O Editor

O Pensamento Político do Movimento Abolicionista na Baixa Mogiana (1870-1890)





O PENSAMENTO POLÍTICO DO MOVIMENTO ABOLICIONISTA NA BAIXA MOGIANA (1870-1890)



Vera Silvia Constantino (PUC - MINAS)







RESUMO

O presente artigo tem como temática o pensamento político do movimento abolicionista na Baixa Mogiana entre 1870 e 1890, cujo ponto norteador foi o assassinato do delegado de polícia, Joaquim Firmino, que, de acordo com o noticiário da época e com a literatura existente, teria inspirado e apressado a assinatura da Lei Áurea, já em iminência. Esse episódio, portanto, somou-se a outros na decisão pela abolição da escravatura e influenciou na mudança do nome da cidade Penha do Rio do Peixe para a atual Itapira. A elaboração do estudo permitiu refletir sobre uma particularidade ocorrida na Região da Baixa Mogiana que, na realidade, vivia reflexos de acontecimentos maiores: as pressões externas e internas pelo fim do trabalho escravo, uma vez que a modernidade vigente exigiu a mão-de-obra assalariada, especificamente a de imigrantes europeus.  

PALAVRA-CHAVE: Escravidão negra, Brasil, Abolição, Baixa Mogiana.


ABSTRACT

This present article is subject to the political thought of abolitionist movements in Baixa Mogiana between 1870 and 1890, whose guiding point was the murder of the delegate of police, Joaquim Firmino, which, according to the season news and with the existing literature, it would have inspired and rushed thr signing of Law Aurea, already under imminent. This episode, therefore, there was the other in the decision by the abolition of slavery and influenced the change of name of the city of Penha do Rio do Peixe for the current Itapira. The preparation of the study allowed reflect on a particular occurred in the Region of Baixa Mogiana that, in fact, lived reflexes of major events: the external and internal pressures by the end of slave labour, in a time modernity required the existing workforce employed specifically to European immigrants.

KEY-WORDS: Black Slavery, Brazil, Abolition, Baixa Mogiana.


INTRODUÇÃO

A escravidão foi um sistema que esteve presente desde o início da ocupação européia na América. Inicialmente, as populações nativas foram submetidas ao regime de escravidão. Mas, tendo em vista os aspectos culturais do indígena, cujos costumes eram retirar da natureza apenas o necessário para a sua sobrevivência e não acumular riquezas, essas populações foram descartadas. Além disso, a escravidão vinda da África era de interesse capitalista, pois rendia mais buscar o negro no continente africano e vendê-lo em solo brasileiro.
Durante séculos, o alicerce do estabelecimento dos portugueses na América, assim como a manutenção do Império no Brasil, foi a instituição escravocrata. A sociedade da colônia portuguesa e a do Brasil Imperial estavam assentadas em bases hierarquizadas. Nesses dois períodos, as hierarquias estabelecidas tinham como eixo central de sustentação a exploração forçada da mão-de-obra escrava. Tratava-se de “uma trama de serviços prestados liga negociantes e fazendeiros (...)” (MATTOSO, 1993, p. 63).

Pela metade do século XIX, a força de trabalho da economia brasileira estava basicamente constituída por uma massa de escravos que talvez não alcançasse dois milhões de indivíduos. Qualquer empreendimento que se pretendesse realizar teria de chocar-se com a inelasticidade da oferta de trabalho. O primeiro censo demográfico, realizado em 1872, indica que nesse ano existia no Brasil aproximadamente 1,5 milhão de escravos. Tendo em conta que o número de escravos, no começo do século, era de algo mais de um milhão, e que nos primeiros cinqüenta anos do século XIX se importou muito provavelmente mais de meio milhão, deduz-se que a taxa de mortalidade era superior à de natalidade (FURTADO, 1964, p. 141).

Observa-se que, após mais de três séculos, o trabalho do escravo permanecia como pilar fundamental da sociedade brasileira. Os escravos eram mãos e pés do senhor. Só o escravo trabalhava e produzia (SILVA, 2004).

O africano representou o elemento fundante da sociedade escravocrata. Porém, a ênfase no aspecto puramente econômico induziu a que lhe dedicasse um tratamento restrito ao status de mera mercadoria, valor de uso e de troca: coisa. E era assim que os senhores os viam: como mero capital fixo, comparável aos instrumentos de trabalho. O que o diferenciava de outras mercadorias, como a força de trabalho assalariada, é que ele estava condenado aos castigos e penas, ao bel-prazer do senhorio (SILVA, 2004, p. 2).

A continuidade da escravidão, no entanto, estava sendo questionada por questões externas e internas já na primeira metade do século XIX. Externamente “ao alvorecer do século XIX trouxe dois grandes acontecimentos que influíram grandemente neste arraigado modo de vida escravista. Por um lado o movimento emancipacionista tomava vulto nas ruas miseráveis, nos ricos salões e no parlamento da Inglaterra, determinando o início das pressões internacionais contra o secular tráfico de negros da África para as colônias de além-mar. O Brasil recém-independente herdaria, por seu turno, estas incômodas pressões da nação capitalista mais poderosa de então, já consideravelmente aumentadas. Também caberia ao novo país uma outra herança, igualmente decisiva para que se começasse a pensar na necessidade de se extinguir a escravidão. Era o grande medo suscitado pela sangrenta revolução em São Domingos, onde os negros não só haviam se rebelado contra a escravidão na última década do século XVIII e proclamado sua Independência em 1804, como também – sob a direção de Toussaint l`Ouverture – colocavam em prática os grandes princípios da Revolução Francesa, o que acarretou transtornos fatais para muitos senhores de escravos, sua famílias e propriedades” (AZEVEDO, 1987, p. 35).
E, internamente, as três primeiras décadas do século XIX só viriam confirmar as sombrias expectativas de “São Domingos” com os quilombos, os assaltos às fazendas, as pequenas revoltas individuais ou coletivas e as tentativas de grandes insurreições, culminando com as insurreições baianas, detalhadamente organizadas pelos haussás e nagôs.
Frente a estas expectativas disseminadas de inversão da ordem política e social, de vingança generalizada contra os brancos, os ouvidos educados não só ouviam como começaram a falar e, sobretudo a escrever, registrando todo um imaginário em que se sobressaía a “percepção de um país marcado por uma profunda heterogenia sócio-racial, dividido entre uma minoria branca, rica e proprietária e uma maioria não-branca, pobre e não-proprietária” (AZEVEDO, 1987, p. 36).
Sob essa conjuntura nacional, as soluções encontradas para se ultrapassar esta heterogenia foram diversas, embora tivessem como ponto comum a necessidade de se instituir uma nacionalidade, a busca de um povo.
Ao longo do século XIX, diversos reformadores expuseram suas idéias acerca dessa busca de um povo. Por um lado, num primeiro momento, estavam os emancipacionistas que se voltaram para os próprios habitantes pobres do país, fossem eles escravos ou livres, e procuraram arrancá-los de suas vidas inúteis e isoladas para integrá-los no seu projeto de uma “sociedade unida, harmoniosa e progressiva”.
 Em meados da década de 1870 e, sobretudo no início dos anos 80, os abolicionistas, por sua vez, retomaram muitas das propostas emancipadoras, embora passassem a defender um prazo fatal para o fim da escravidão no país. Já em um segundo momento, principalmente, nos anos 70, os emancipacionistas defendem a idéia imigrantista como solução ideal para a formação da nacionalidade brasileira, vêem a solução no exterior, nos imigrantes europeus, tipo racial ideal para purificar a “raça brasílica”.
Nesse contexto, alguns acontecimentos propiciam a discussão em torno da continuidade da escravidão. Dentre eles, estava o Artigo 10 do Tratado de Comércio firmado com a Inglaterra, em 19 de fevereiro de 1810, e que previa a extinção da escravidão, o que significaria a falta de braços em futuro próximo.
Na seqüência, a partir da década de 50, viria a Lei de Bill Aberdeen, aprovada na Inglaterra, a qual permitia à Marinha Inglesa apreender os navios negreiros. Essa lei fez com que os ingleses ameaçassem fechar alguns portos brasileiros, caso o tráfico permanecesse. Em 1850, sob muita pressão, foi aprovada a Lei Eusébio de Queirós que proibia o tráfico de escravos para o Brasil. Após essa lei, os grandes cafeicultores do Sudeste, especialmente em São Paulo, passaram a fazer tráfico interno, comprando escravos negros de outras regiões do país. O que também causou muitas discussões parlamentares.
A fim de diminuir as pressões abolicionistas, principalmente inglesas, no ano de 1871, o gabinete conservador do Rio Branco aprovou a Lei do Ventre Livre, através da qual os filhos de mulheres escravas que nascessem no Império a partir da data da referida lei, tornar-se-iam livres. Ficando, entretanto, em poder e sob autoridade dos senhores de suas mães até a idade de oito anos. Após essa idade, caso quisessem teriam a liberdade. Não foi uma lei significativa para os escravos, podendo ser vista apenas como uma manobra parlamentar que procurava aquietar os ânimos abolicionistas e, ao mesmo tempo, garantir a força de trabalho escrava, visto que os senhores podiam contar com o trabalho compulsório dos ingênuos até os vinte e um anos de idade,
A partir de 1880, a campanha abolicionista ganhou maior dimensão envolvendo parlamentares, como José Patrocínio, Joaquim Nabuco e Rui Barbosa; artistas como o poeta Castro Alves; jornalistas como Luís Gama e os órgãos da imprensa que publicavam artigos a favor da abolição (como o jornal paulista “A Redempção”), inclusive, negando-se a noticiar fugas de escravos e pedidos de ajuda para a captura dos mesmos. Da mesma forma, membros da igreja e até do Exército (estes últimos chegavam a recusar-se a capturar escravos fugitivos) também se envolveram na causa.
Com isso, em 1885, foi proposta outra lei no processo para a libertação dos escravos, a Lei do Sexagenário, que dava direito ao escravo com mais de sessenta anos de idade a se tornar livre. Essa lei, contudo, foi mais uma contradição na vida do escravo, haja vista que, dificilmente, ele chegaria a essa idade, já que a média de vida não atingia os quarenta anos. Além disso, esse escravo corria o risco de passar de escravo a mendigo, uma vez que não estava preparado para o trabalho livre, assim como todos os outros escravos. E, aliás, essa questão do futuro dos trabalhadores escravos gerou muitas discussões entre diversos setores da sociedade bem antes da Lei Áurea, especificamente na província de São Paulo.
A situação estava insustentável. Desde a virada das décadas de 1860 e 1870, os relatórios dos chefes de polícia dirigidos aos presidentes de província expressavam uma crescente preocupação com as lutas de escravos. Individualmente ou em pequenos grupos, de forma premeditada ou não, eles se revoltavam e matavam e, ao invés de simplesmente fugir, como era costume – refugando-se nos quilombos nas matas ou mesmo em agrupamentos de leprosos à beira das estradas – começaram a se entregar espontaneamente à polícia como se julgasse de seu direito matar quem os oprimia.
Como a província de São Paulo possuía o maior número de escravos em decorrência da expansão da cafeicultura, comprando inclusive escravos de outras regiões, o tema da “criminalidade” crescente dos negros nas fazendas vai se impondo nesses relatórios. Assim, ao longo da década de 1870, grande parte das atenções das autoridades policiais convergia para a questão dos crimes diários de escravos, contra senhores, administradores, feitores e respectivas famílias.
E a figura dos chefes de polícia estava muito atrelada à manutenção da ordem e do trabalho escravo. Havia a lei geral de 1835, que previa a pena de morte para os escravos que atentassem contra a vida de seus senhores e feitores, objetivava pôr um paradeiro nos eventos sangrentos. Porém, em São Paulo, a partir da segunda metade do século XIX, as possibilidades de manter a disciplina e o controle sobre os escravos na grande produção agrícola tornavam-se cada vez mais difíceis. Isso devido à grande concentração de negros em atendimento às necessidades crescentes de mão-de-obra colocadas pela expansão do café rumo ao oeste paulista.
Mas essa lei de 1835 deixou de ser cumprida rigorosamente após um aviso imperial que suspendia a execução de pena de morte ao negro rebelde. Essa medida, que, provavelmente, procurava preservar a existência de braços para o trabalho alguns poucos anos após o encerramento do tráfico africano, pode ter sido o efeito inesperado de afrouxar a impunidade aos escravos que se rebelassem.
E é neste contexto em que o papel da polícia se destaca, é que temos o assassinato do chefe de polícia Joaquim Firmino de Araújo, da pequena cidade paulista Penha do Rio do Peixe, por senhores escravocratas, episódio que teve forte repercussão na região próspera da Baixa Mogiana e no restante do país, através de noticiários da grande imprensa. Esse episódio teve conseqüência a mudança do nome da cidade para Itapira e teria influenciado na assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888.

Região da Mogiana e Criação da Ferrovia Mogiana

A região da Mogiana é uma das mais tradicionais regiões produtoras de café do Estado de São Paulo. Está localizada ao norte do Estado e as principais cidades que a compõem são: Franca, Cristais Paulistas, Jeriquara, Pedregulho, Rifaina, Itirapuã, Patrocínio Paulista, São João da Boa Vista, Altinópolis, Batatais e Restinga.

Criada em 1872, a Companhia Mogiana de Estradas de Ferro efetivou-se em 1875 o seu primeiro trecho. Partindo de Campinas, onde fazia conexão com a Companhia Paulista, a nova ferrovia supriria, então, os municípios de Mogi Mirim, Amparo e, naturalmente, Campinas (RIBEIRO, 1993, p. 1).


O progresso engendrado pela lavoura cafeeira e, consequentemente, das cidades servidas pela rede ferroviária fez com que, muitas vezes, as estações fossem retomadas e ampliadas ainda no século XIX ou no início do século XX. Algumas delas tiveram suas características arquitetônicas originais alteradas, outras, porém, não sofreram transformações significativas (RIBEIRO, 1993, p. 1).

Segundo Ribeiro (1993) é provável que os últimos acessórios, definidos e instalados, no complexo - estrada de ferro Mogiana, tenham sido as estações. 1875 foi o ano das inaugurações do primeiro trecho – seção 1 (Campinas – Jaguari), seção 2 (Jaguari – Mogi Mirim) e seção 3 (ramal de Amparo) e também quando estas foram contratadas e construídas.
Dessa forma, a cultura do café e a instalação da Companhia Mogiana de Estrada de Ferro contribuíram para o aquecimento do primeiro ciclo de expansão econômica da região.
A criação das estradas ferroviárias auxiliou na libertação da mão-de-obra escrava presente no sistema latifundiário e serviu como incentivo à migração interna, aquecendo ainda mais a transformação econômica do modo de produção capitalista. Haja vista que, à medida que o café se alastrava, as distâncias aumentavam juntamente com as dificuldades de seu transporte, tornando-se um “obstáculo”, vencido, no entanto, com a facilitação do escoamento por meio das estradas de ferro.
No ano de 1875, a Companhia Mogiana de Estradas de Ferro assentou seus trilhos na Vila Bueno, através da construção do ramal que ligava Campinas – Mogi Mirim. Sua inauguração foi realizada pelo Imperador D. Pedro II. Em decorrência do grande ciclo do café, as atenções voltaram-se para o desenvolvimento do transporte moderno que, naquela época, era a via férrea.
Essas cidades se desenvolveram a partir da cultura do café, introduzida por volta do século XVIII. E ainda exerce grande influência na economia da Mogiana. A cultura cafeeira baseava-se na força de trabalho escrava. E, como a maioria das cidades brasileiras, até 13 de maio de 1888, Penha do Rio do Peixe foi palco de uma época em que a economia de todo o país dependia da mão-de-obra escrava. Dessa forma era comum as pessoas brancas abastadas possuírem escravos, inclusive para trabalhos domésticos. E o delegado de polícia da cidade também possuía escravos. O que não era comum é o fato de esse mesmo delegado se mostrar favorável ao fim da escravidão, recusando-se a caçar escravos fugidos, o que era então função da autoridade policial.

Joaquim Firmino de Araújo Cunha

Joaquim Firmino de Araújo Cunha, nascido em Mogi Mirim, em 29 de agosto de 1855, casado com Valeriana Rodrigues de Alvarenga Cunha, com quem teve quatro filhos, tomou posse como delegado de polícia de Penha do Rio do Peixe, em 19 de setembro de 1885. E tudo caminhava conforme a chefia de polícia da Capital determinava, ou seja, a autoridade policial era encarregada de reforçar a segurança dos senhores de escravos, capturando escravos fugitivos.
Mas, no limiar de 1888, quando as idéias abolicionistas ecoavam pela Capital do país e estampavam as páginas dos grandes jornais, mesmo em São Paulo onde a economia girava em torno do trabalho escravo e possuía, assim, um grande número de escravos, Joaquim Firmino viaja até Amparo, após receber o comunicado de que um parente adoecera gravemente e fica nessa cidade por alguns dias.
Justamente nessa ocasião, anunciou-se em Amparo um comércio a favor do abolicionismo, que seria realizado em um teatro.

No dia marcado, o recinto regurgitava. A cidade ficou agitada. Havia protestos, as ameaças, as tentativas de tiroteios, o diabo... Contudo uma multidão se dirigiu ao local do comércio. Entre a enorme massa humana estava o delegado de Penha do Rio do Peixe. Ansiava por ouvir os grandes pregadores, chamados de “Caifazes”, pelos escravocratas (MANDATTO, 1959, p. 48).

Após o comício, o delegado ficou entusiasmado e sentiu-se desejoso de lutar pelo fim da escravatura. Voltou para Penha e deu início à defesa dos escravos. A princípio, recusando-se a perseguir escravos que fugiam. Depois, recolhendo-os em sua casa, os quais, refugiados em porões, aguardavam o dia da liberdade já em iminência. De início, agira sigilosamente; depois passou a falar abertamente discutindo, defendendo os negros e incentivando a campanha de Patrocínio, Luiz Gama e Rebouças.
Observa-se que, assim como em vários lugares do país, a escravidão ainda era alimentada e defendida, por fazendeiros que detinham o poder não só sobre os escravos, mas também sobre algumas autoridades como juízes, intendentes, bispos, padres, vereadores e delegados. Os fazendeiros escravocratas de todo o país encontravam-se desesperados, com medo de a abolição da escravatura tornar-se realidade:

A libertação dos negros significava a paralisação dos serviços da lavoura, principal fonte de renda na época. E o escravo era um objeto, uma ferramenta viva de trabalho que havia sido adquirida por um bom dinheiro, portanto, uma peça valiosa cuja perda repentina seria desastrosa (MANDATTO, 1933, p. 36).

Na região da Baixa Mogiana, mais especificadamente em Penha do Rio do Peixe, os senhores de escravos também não queriam perder suas ferramentas vivas e urgia-lhes impedir as fugas constantes que ocorriam em suas propriedades. Apelavam, então, para a única autoridade policial que tinham à mão, o delegado de polícia Joaquim Firmino, para que os socorresse na captura dos fugitivos. No entanto, não eram atendidos. Essa atitude do delegado gerou grandes e ferozes insatisfações desses senhores.
Segundo conjetura de Mandatto (1933, p. 19):

Calculava-se a cólera que deve ter se apossado dos fazendeiros da cidade com a petulância do delegado, organizando manifestações em favor da emancipação dos negros. Joaquim Firmino de Araújo Cunha devia ser visto, então, como a mais perigosa arma voltada contra os senhores poderosos, pelo estímulo que transmitia aos escravos de, a cada vez mais, abusarem de direitos que não tinham. Restava, pois, apenas uma saída: exemplá-lo à altura, colocá-lo no seu devido lugar. E se fosse preciso aplicar-lhe uma boa sova!

Sendo assim, o posicionamento contrário à escravidão por parte de Joaquim Firmino e a sua recusa em capturar os fugitivos “era um estorvo e um perigo para os inconformados fazendeiros penhenses” (MANDATTO, 1933, p. 36). Sua morte seria, portanto, a melhor saída para tirar-lhes do caminho o perigo da adesão de uma autoridade policial ao movimento abolicionista.

Em vista disso os fazendeiros planejavam uma vingança. Tinha de ser de um modo que impressionasse para amedrontar outros possíveis abolicionistas (...) Às 4 horas da madrugada, quando o silêncio caía pesado sobre a escura cidadezinha, um bando de pessoas, calculado em mais de trezentas, todas armadas de revólver, espingardas e facas do mato, se dirigiu em direção à residência do delegado (...) Joaquim Firmino, numa energia inaudita consegue chegar ao quintal onde tenta se esconder num forno. Retiram-no à força e com violenta paulada na cabeça, tiram-lhe a vida. Chacinam-no, depois. Quebram-lhe os membros, destroncam-lhe o pescoço. O bando alucinado entrou a depredar todos os móveis e os objetos da casa. Reduziram tudo a um montão de cacos. Após bárbaro e nefasto acontecimento, a turba desapareceu. Começava a clarear o dia que é tido como o mais negro da história de Itapira: 11 de fevereiro de 1888! (MANDATTO – A Tragédia do Delegado Joaquim Firmino – p. 49 e 50).

Trata-se, na realidade, da morte de um abolicionista convicto comprovado através de sua desobediência à chefia de polícia da Capital quanto à captura de negros fugitivos, à organização e à participação de comícios em prol da abolição.
A Joaquim Firmino:

Deve-se creditar algo mais do que uma mera simpatia pela abolição Só essa condição não justificaria a morte brutal que lhe foi imposta pela turba possessa que invadiu a sua residência na madrugada de 11 de fevereiro de 1888 (MANDATTO, 1933, p. 26).

De Penha do Rio do Peixe a Itapira

O presidente da província, Conselheiro Laurindo Abelardo de Brito, em 17 de outubro de 1879, elevou a Vila da Penha do Rio do Peixe a categoria de Termo, sendo criados o Foro Civil e o Conselho de Jurados, instalados em 8 de novembro do mesmo ano.
Posterior a esse período, em 7 de abril de 1881, tomou pose da presidência da província de São Paulo o Senador do Império, Florêncio de Abreu, elevando a Vila à categoria de cidade. Isso foi possível, pois a solicitação da câmara teve como justificativa o fato de a Vila possuir “uma boa Matriz, uma excelente Cadeia e Casa de Câmara e uma população de mais de 7000 almas”. O decreto que elevava a Vila da Penha do Rio do Peixe à cidade foi assinado por Florêncio de Abreu, em 27 de junho de 1881.
Todavia, após o 11 de fevereiro de 1888, a data do episódio funesto do assassinato do delegado de polícia Joaquim Firmino, já relatado no presente trabalho, houve a alteração do nome da cidade para Itapira, numa tentativa de:

Extinguir da memória das pessoas a mácula que ultrajava os penhenses desde a ocorrência do assassinato. Urgia livrarem-se da peça desagradável que os afrontava qual estigam atroz. A saída encontrada foi a mudança do nome da cidade (MANDATTO, 1933, p. 1).
E também de distanciar da lembrança das pessoas o trágico assassinato:

Na atualidade quando se fala na morte de Joaquim Firmino, o caso é narrado com algumas fantasias e várias distorções. Mesmo assim, pelas circunstâncias em que se deu o crime, o episódio de 11 de fevereiro de 1888 está enquadrado na relação das efemérides ligadas à escravatura e à abolição no Brasil, e Joaquim Firmino é citado como herói e mártir da emancipação da raça negra (MANDATTO, 1933, p. 10-11).

Como esse fato ganhou grande repercussão em todo o Brasil, a Intendência Municipal solicitou do então governo do Estado, Prudente de Moraes, que mudasse o nome da cidade. Dessa forma, em 1 de abril de 1890, foi assinado o Decreto nº. 40, que mudava o nome de Penha do Rio do Peixe para Itapira.
A notícia do assassinato do delegado Joaquim Firmino ganhou dimensão em nível nacional com bastante rapidez. Todos os jornais da época noticiaram o ocorrido. Cada qual buscava dar uma versão do fato e isso permitiu até mesmo informações distanciadas dos fatos motivadores de sua morte.

A descrição do crime doa dia 11 de fevereiro de 1888, na Penha do Rio do Peixe, tem, pelo menos, três versões. A popular (plena de fantasias, que deve ser desprezada), a da imprensa (com relatos verdadeiros, porém com os exageros da sensação) e a constante dos depoimentos das testemunhas oculares, especialmente da esposa e da filha de Joaquim Firmino e de mais três pessoas que ali se encontravam no momento da tragédia (MANSATTO, 1933, p. 63).

 Em razão da grande divulgação do crime, conforme relata Mandatto (1933, p. 39):

Como não podia deixar de acontecer, a notícia do assassinato de Joaquim Firmino chegou até a Corte, fazendo com que os Órgãos de imprensa abolicionista dessem ampla cobertura aos acontecimentos.

Desde 1881, intensificou-se o apoio popular à causa dos escravos. Era comum o envolvimento de pessoas de fora das fazendas nos conflitos entre senhores e escravos. Somando a isso, havia as grandes pressões externas, por parte dos países de capitalismo moderno e industrializado como a Inglaterra, que incentivavam a mão-de-obra assalariada com o objetivo de que essas pessoas comprassem seus produtos. Havia também a pressão interna, intensificada pelos jornais abolicionistas que divulgaram a notícia do assassinato. Até então, era comum os escravos assassinarem seus senhores, feitores, capitães do mato e familiares, forçando as discussões parlamentares acerca da inadiável assinatura da Lei Áurea.     

Após a fuga das fazendas, os negros tentavam solucionar seu destino como homens livres de formas variadas. Havia os que ficavam pelos matos reunidos em grupos e que para sobreviver saqueavam cidades e vilas. Este parece ter sido um recurso momentâneo até que fosse encontrado o caminho para Santos, cidade em que esperavam encontrar abrigo no quilombo do Jabaquara, especialmente montado para eles a partir de 1882 por dirigentes abolicionistas preocupados com a manutenção da ordem na província. Outros insistiam em ficar nas próprias imediações das fazendas de onde haviam se retirado, exigindo sua carta de liberdade e pagar-lhes salário. E, enquanto não conseguiam seus intentos, rondavam nas ameaçadoramente, ao que indica um veemente relato do chefe de polícia Barreto de Aragão, em dezembro de 1887 (AZEVEDO, 1987, p. 206).

O que não era comum era os senhores de escravos assassinarem uma autoridade policial, um delegado de polícia que se recusava a perseguir e capturar escravos fugitivos, além de defender idéias abolicionistas. Neste paradoxo, de um lado escravos assassinos, noutro senhores de escravos assassinos, o episódio de Joaquim Firmino, na pequena Penha do Rio do Peixe, pode ter colaborado – e apressado talvez – para a assinatura da Lei Áurea, três meses depois, em 13 de maio de 1888, pela Princesa Isabel.

Considerações Finais

No início de 1888, as idéias abolicionistas borbulhavam pela província de São Paulo, bem como em todo o país. E os negros já clamavam por liberdade, provocando o “despovoamento” das fazendas. Segundo um deputado da época, o despovoamento das fazendas estaria tomando um caráter mais perigoso para a ordem social, pois se, a princípio, os escravos abandonavam secretamente as fazendas, escondendo-se em seguida, naquele momento, eles invadiam as cidades, organizando passeatas e gritando pelas ruas “vivas” aos abolicionistas e “morras” aos escravocratas.

Este movimento de retirada das fazendas parece ter sido tão grande que já em janeiro de 1888, mesmo que se quisesse fazer durar ainda algum tempo a escravidão, este regime de trabalho não seria mais possível. As fazendas estavam despovoadas, muitos municípios proclamavam a emancipação, e agora, diante deste “não quero” generalizado dos escravos, só restava aos políticos trabalhar por uma saída simultaneamente ordeira e honrosa: a decretação legal da abolição (AZEVEDO, p. 213).

No meio desse caldeirão fervilhando, estavam as autoridades policiais, que ficavam entre a cruz e a espada, pois se compactuavam com os fazendeiros – o que era mais comum – corriam o risco de ser agredidas de forma nada lisonjeiras pelos populares. Já quando policiais pendiam para o abolicionismo.

A sua sorte podia ser mais violenta, conforme o ocorrido com o delegado de polícia de Penha do Rio do Peixe, na madrugada do dia 11 de fevereiro. Atacado quando dormia, por grupos armados, aos gritos de “morra! deita fora os negros!”, Joaquim Firmino de Araújo Cunha foi linchado no quintal de sua casa, após tentar fuga escalando muros. Pagou assim com a vida o fato de ter escondido escravos fugidos da região (AZEVEDO, p. 211).
   
Diante de tanta pressão (inclusive “evitando-se por todos os modos que as paixões ruins das classes ínfimas viessem à tona, o que possivelmente poria muito ou mesmo tudo a perder para proprietários e comerciantes, bem como representantes políticos”), uma proposta de união nacional (já proposta em 1884 pelo barão de Guajará), cada vez mais insistentemente colocada pela elite em suas diversas correntes de opinião, ”no início de maio de 1888, os políticos dos três partidos – Liberal, Conservador e Republicano, aos quais se filiavam escravistas, emancipacionistas e abolicionistas indistintamente – deram-se as mãos num consenso quase absoluto e votaram na Lei da Abolição, chamando em meio as loas e hinos à pátria pela conciliação, o que queria dizer esquecimento dos conflitos passados e sobretudo não-revanchismo” (AZEVEDO, p. 214).


Referências Bibliográficas



AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda Negra, Medo Branco – O negro no imaginário das elites – século XIX. Prefácio de Peter Eisenberg. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. 12º. Ed., São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1974.
MANDATTO, Jácomo. A Tragédia do Delegado Joaquim Firmino: O Mártir da Abolição. Livro: Relíquias da Terra Natal – Grupo da Pedra, Itapira, 1959.
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser Escravo no Brasil. Brasiliense, 1990.
RIBEIRO, Vladimir. Subsídios para a História da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro em seu primeiro trecho inaugurado em 1875. Faculdade de Ciências e Letras – Plínio Augusto do Amaral. Departamento de História e Pesquisa, Amparo, 1993.
SILVA, Antonio Ozaí da. A Representação do Negro na Polícia Brasileira. Revista: Espaço Acadêmico, Ano IV nº. 40 – Setembro, 2004.


 

Anexo de Documentos



- Almanach Mogi Mirim e Mogi Guaçu;  
- Igreja Nossa Senhora do Rosário, de Mogi Mirim; 
- Delegado Joaquim Firmino;
 - Rua Joaquim Firmino (Rua Central de Mogi Mirim); 
- Mapa do Centro de Itapira; 
- Invasão da casa de Joaquim Firmino; 
- Fotos da família de Joaquim Firmino e de alguns indigitados autores do crime; 
- Livro de memórias “A Longa Viagem”;
- Foto do advogado Dr. Brasílio Machado; 
- Documento do Jornal “Gazeta de Mogi Mirim”; 
- Foto do Médico norte-americano Dr. James Hankins Warne;
- Folhas do processo do réu escravo José;  
- Os últimos autógrafos de Joaquim Firmino;
- Último despacho firmado pelo delegado Dr. Joaquim Firmino; 
- Auto de perguntas a D. Valeriana de Alvarenga Cunha, mulher de Joaquim Firmino; 
- Auto de perguntas à menina Julieta, filha de Joaquim Firmino; 
- Mandato de prisão e recolhimento na cadeia de Penha do Rio do Peixe ao Dr. James Hankins Warne; 
- Recibo assinado pelos réus e testemunhas acusados da morte de Joaquim Firmino e requerimento do Dr. Brasílio Machado; 
- Recibo do “Diário de Campinas”; 
- Recibo de “A Província do Estado de São Paulo”; 
- Recibo do “Diário Mercantil”; 
- Homenagem ao Delegado Joaquim Firmino (nome dado a uma rua de Itapira).