Eliana Machado Coelho
Um motivo para viver
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Descrição da capa: A capa é uma fotografia em tom amarelado de uma floresta não muito densa. Ao centro
uma faixa na cor marrom apresenta o título do livro na cor branca. Na parte superior o nome da autora na
cor mostarda.
Numeração das páginas: No rodapé
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Revisão- Maria Cristina S. Gomes
** página em branco **
Psicografia de Eliana Machado Coelho
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Pelo Espírito Schellida
Copyright @ 2004 by Lúmen Editorial Ltda.
2a edição - março de 2005
Direção editorial: Celso Maiellari
Revisão: Marinete Ferrarini e Alessandra Miranda de SáProjeto Gráfico e Diagramação: Cláudio Braghini
Júnior/Casa de Ideias
Capa: Daniel Rampazzo/Casa de Ideias Impressão e acabamento: Yangraf Gráfica
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Schellida (Espírito).
/ pelo espírito Schellida; psicografia de Eliana Machado Coelho. 1. ed. São Paulo: Lúmen, 2004.
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2005 Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem prévia autorização da editora
Impresso no Brasil - Printed in Brazil
Sumário
Dificuldade iminente 7
A única ajuda 25
Reforçando os laços de amizade 45
O passado angustioso 71
Acusações indevidas 93
Confiando em alguém 119
Desorientada e sem rumo 145
Confidências necessárias 167
Sequelas de um trauma 193
Rosana - a nova amiga 221
A preocupação dos pais 245
As primeiras brigas 259
O reconforto em uma prece 289
Assumindo os sentimentos 303
Turbulência inesperada 321
Compreensão e amor filho adotivo 345
O retorno de Alexandre 371
Vida nova 391
Três corações entrelaçados 415
Desabafo inesperado de Raquel 445
Doação de órgãos 481
O mundo dá voltas 503
** página em branco **
Capítulo 1
Dificuldade iminente
Era início de noite e Raquel, após chegar do serviço, como de costume, realizava suas atividades habituais,
preparando o jantar e arrumando alguns detalhes de sua simples casa.
De repente, a jovem teve sua atenção voltada para a voz que, diante do portão, gritava seu nome.
Ah! É Marcos! reconheceu rapidamente e foi recebê-lo comum belo sorriso estampado no rosto.
Para Raquel a visita de seu irmão era uma situação comum, muito corriqueira. Entretanto, após entrarem
na casa, antes mesmo de Marcos se acomodar em uma cadeira que puxara, Raquel teve a certeza de
perceber que uma tristeza indefinível, mesclada de melancolia e preocupação, emoldurava a face de seu
irmão, anuviando seu sorriso.
Sem questionar sobre o que o incomodava, Raquel ofereceu-lhe um café, serviu-se também e escolheu
uma cadeira, sentando-se próxima a ele de modo a tê-lo em frente de si.
E lá na empresa, Raquel, como está?
Tudo bem, afirmou com modos simples. - É a rotina de sempre.
Não posso dizer o mesmo.
Fixando o olhar em seu irmão, serenamente aguardou que Marcos continuasse. O que ocorreu após breve
intervalo:
Nos últimos dias nem estou conseguindo dormir. Estão mandando muita gente embora. Cada dia é
um. Vivo em constante pesadelo, pois, a cada manhã, penso que serei o próximo. O pobre homemtinha
lágrimas nos olhos e contava tudo com a voz trêmula. Após ligeirapausa, Marcos continuou: Como se
não bastasse lá em casa está um
inferno. Encarando a irmã ligeiramente e tomando suas mãos, pediu: Desculpe-me, Raquel. Acho
que você está cansada de ouvir reclamações da Alice.
Você só está desabafando, Marcos. Eu entendo. Afinal de contas,se você não falar comigo, vai
conversar com quem? argumentou amoça tentando consolá-lo.
Marcos, por sua vez, largou as mãos de Raquel, tornou a pegar a xícara com café e, após ingerir mais um
pouco da bebida, continuou comentando exibindo tristeza em seu tom de voz.
Meu casamento com Alice foi um erro. Você bem sabe. Ela égeniosa, exigente, orgulhosa.
É terrível
conviver com ela. Nos últimostempos vem se queixando das condições em que vivemos, reclama dafalta de
dinheiro, de luxo, de riqueza. Só que, também, não move umapalha para me ajudar.
Em defesa de Alice, para procurar amenizar os sentimentos do irmão, Raquel expôs-se favorável à
cunhada.
Mas Alice cuida bem da casa e dos meninos. Ela é muito caprichosa, Marcos. Isso você não
pode negar.
Caprichosa com a casa, sim. Isso ela sempre foi. Mas, com osmeninos, ultimamente está
deixando a desejar. Alice vive brigando com eles, gritando, xingando... Não há coisa pior do que chegarmos
em casa e deparar com uma mulher nervosa, irritada, reclamando de tudo. Estou saturado, Raquel. Só
quero ver hoje, quando eu chegar.
O que tem "hoje"?
O nosso aluguel subiu. Não teremos como pagar. Não tive aumento de salário e ainda corro o
risco de ficar desempregado. Como senão bastasse essa situação crítica, ainda terei que ficar ouvindo os
gritos da Alice.
O que você vai fazer, Marcos?
Não sei. Há tempos não compramos roupas, não passeamos, ultimamente comemos mal e agora
nem terei como pagar o aluguel.
E se mudarem para uma casa menor e em outro bairro? Talvez oaluguel seja mais baixo.
Não tenho dinheiro para pagar o depósito do aluguel. Além disso, Alice vai se revoltar mais do que
já está. Após ligeiros segundos de silêncio, completou: Se não fosse por meus filhos...
Raquel se preocupou. Levantando-se, caminhou vagarosamente pela cozinha, recordando a ajuda que
recebera daquele irmão em um período muito crítico de sua vida. Quando todas as portas se fecharam, fora
Marcos quem a amparara e cuidara até de sua saúde. Raquel era grata por tudo e, com certeza, faria o
possível para ajudá-lo. Porém, aquela situação era difícil demais, pouco poderia fazer. Lembrando-se da
pequena reserva em dinheiro que depositara em uma conta de poupança, a jovem ofereceu: Marcos,
tenho algum dinheiro guardado. Não émuito, mas... Ele é seu! afirmou convicta. E esperando um
semblante mais animado por parte dele, Raquel se decepcionou quando o irmão anunciou:
Já tenho dois meses de aluguel em atraso. Mais um e estou na rua.Ante a revelação desagradável,
Raquel empalideceu. Ligeira, pela ideia
imediata, decidiu afirmando rápido:
Mudem-se para minha casa. Pronto! Está resolvido. Você, a Alice e os meninos virão morar aqui.
Esta casa não é muito grande, mas podemos nos ajeitar, certo?
Marcos levantou a cabeça, antes pendida e, dirigindo o olhar ainda tristonho para sua irmã, mantinha-se
sem palavras ou argumentos.
Eis a solução, Marcos! Eu continuo pagando o aluguel daqui evocê só me ajuda com a
alimentação e com as contas de água e luz. Estabilizados, guardam algum dinheiro e aguardam sua
situação se firmar.
E se eu for demitido?
Será melhor que esteja morando aqui se isso acontecer. Vocês não vão ficar sem ter onde morar
e será o tempo de arrumar um outro emprego.
Não posso fazer isso, Raquel afirmou insatisfeito com a proposta.
Você tem que aceitar!
Não quero usar você, Raquel. Sabe como a Alice é... Isso não vaidar certo.
Será por pouco tempo. Tenho certeza de que esses "cortes", láonde trabalha, vão parar e você não
será demitido. Quando tudo voltar ao normal, vocês arrumam outro lugar até melhor.
Diante do silêncio de Marcos, parada em frente dele, Raquel insistiu com voz generosa expressando um
brilho sem igual no olhar:
Por favor, aceite. Deixe-me fazer algo por você. Dê-me a oportunidade de retribuir o que já fez por
mim. Não estarei fazendo isso porpaga, é por amor. Somos um pelo outro, Marcos. Não somos?
Ele a encarou reconhecendo que Raquel era a única ajuda a seu alcance. Com olhar melancólico e no
semblante um forçado sorriso triste, Marcos pendeu com a cabeça afirmando positivamente, dizendo que
aceitaria.
Raquel se emocionou e secou discretamente as lágrimas que rolaram teimosas em seu rosto. Com a
fisionomia expressando preocupação, Marcos argumentou:
Ainda tenho que falar com Alice. Pensativo, tornou a concluirquase desalentado: Não será
fácil, minha irmã. Você bem conhece minha esposa. Eu só aceito sua oferta por não ter alternativa, não é
demeu agrado que se sacrifique tanto, perdendo sua privacidade, sua liberdade e ainda tendo de aturar o
mau humor de Alice.
Não pense assim, Marcos. Não estou me sacrificando. Sempre serei grata a você por tudo o que
tenho hoje. Sempre estarei ao seu lado.
Com o olhar enternecido e grato, Marcos aproximou-se de Raquel, beijou-lhe a fronte e agradeceu:
Obrigado, Raquel. Acredito que é uma fase, mesmo.
Vai dar tudo certo. Não se preocupe afirmou a jovem animada, escondendo com um largo
sorriso sua preocupação. Oferecendo novo rumo à conversa, convidou: Bem, hoje você fica para jantar
comigo,não é?
Não, Raquel, obrigado.
Só hoje, Marcos!
Não, obrigado. Quero chegar cedo em casa. Tenho que conversarcom Alice e... Creio que a noite
será longa.
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Após Marcos se retirar, um sentimento indefinido tomou conta de Raquel. A inapetência ganhou espaço
em seus desejos, por causa dos sentimentos tristes pela incerteza com a situação de seu irmão.
Rapidamente tomou um banho e se aprontou para dormir sem jantar. Deitada em sua cama, Raquel não
conseguia adormecer; pensamentos e emoções inebriados de melancolia e insegurança passaram a lhe
corroer a alma.
"Será que agi corretamente?", perguntava a si mesma em pensamento. "Eu não tenho alternativa.
É meu
irmão!", justificava, forçando-se àquelas ideias. "Depois, Marcos foi a única pessoa que me ajudou quando
mais precisei. Não posso deixá-lo sem amparo em um momento como esse."
Os pensamentos de Raquel corriam céleres, pois ainda havia inúmeras dúvidas na decisão já tomada.
"Será difícil conviver com Alice. Mas, por Marcos, eu tenho de suportar. Devo-lhe muito!", refletia. Após
breve pausa, tornava insistente: "Prometo, a mim mesma, tolerar Alice. Não vou dar ouvidos às suas
implicâncias. Vou deixá-la falar e até brigar sozinha. Será por pouco tempo".
E assim Raquel passou a noite, convencendo-se de que a decisão que tomara para ajudar seu irmão,
cedendo espaço em sua casa, fora a melhor. Perseverante para que os planos positivos ocupassem seus
pensamentos, sem perceber, não conciliou o sono até amanhecer.
Enquanto isso, na residência de Marcos, Alice reagia com extrema revolta à situação que já era difícil. A
mulher parecia estar envolta por uma aura de labaredas, uma vez que, levada por irresistível força, a pobre
esposa não conseguia se conter e, aos gritos, expunha ao esposo seu parecer.
Eu não acredito! dizia Alice com voz estridente, franzindo o semblante e exibindo sua insatisfação.
Morar com sua irmã pela sua incompetência! Era só isso o que me restava. Eu não posso aceitar uma coisa
dessas, Marcos!!! Caminhando de um lado para o outro da sala, Alice parecia alucinada tamanha era
sua revolta e indignação. O silêncio
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de Marcos a incomodava. O homem estava cabisbaixo, desalentado e sem argumentos. Em virtude da
ausência de palavras do companheiro, Alice, ainda andando de um lado para o outro feito um animal
enjaulado, continuou a reclamar: O que será que fiz para pagar tanto pecado assim?! Veja só a que
ponto chegamos! Viveremos à custa de sua irmã! Como se não bastasse, agora nem teremos onde morar.
Depois de pequena pausa, Alice diminuiu o volume da voz reclamando de forma menos estridente: Já
levamos uma vida pobre e miserável, enquanto muitos por aí se esbaldam no luxo e no prazer, não temos
nem o que vestir. Às vezes pergunto se Deus existe mesmo, porque não suporto sofrer tanta injustiça.
Ao cabo de alguns momentos, procurando reconfortar a esposa, Marcos manifestou-se de forma
esperançosa:
É só uma fase, Alice. Isso tudo vai passar. Vai dar tudo certo.Enérgica e sem poder conter-se, Alice
reagiu:
É só isso o que escuto: "Que é uma fase! Que tudo vai passar!" Noentanto, você nada faz para
melhorarmos de vida. Desde quando saímosdo Rio Grande do Sul escuto isso.
O que você quer que eu faça?
Se vira!!! respondeu Alice num grito, arremessando para longe de si o utensílio que segurava.
Como?! gritou Marcos. Só se eu assaltar um banco! O quevocê quer que eu faça? A crise é
no país todo! O governo não oferece boascondições de vida, os políticos roubam, as escolas não prestam!
De você,Alice, eu só escuto reclamações! Estou desesperado, também! Somente aRaquel me escuta sem
me criticar, além do mais é a única que estátentando, de alguma forma, me prestar uma ajuda.
Por que você não pede aumento? Reclama um pouco também.
Pró inferno, Alice! Você e suas opiniões malditas! Dois já foram demitidos só no meu setor, nesta
semana. Quer que eu seja o próximo?
Em meio à discussão que se fez, Alice se deixou dominar pela revolta e, impensadamente, murmurou:
Não sei como fui me casar com um cara tão cretino como você.
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Apesar do baixo volume de voz, o esposo ouviu com clareza aquela opinião infeliz. Marcos aproximou-se
de Alice e, com as mãos gélidas pelo suor frio, segurou-a com firmeza pelo braço e, sem desviar o olhar
agora furioso, com a garganta ressequida falou com a voz trêmula, exigindo:
O que foi que você disse?! Sem aguardar que ela repetisse, com o semblante sisudo, encorpando a
voz em tom grave e pausado, prosseguiu: Se desejava um marido rico, deveria ter visto isso antes.
Vocênão é tão grande coisa assim para ser tão exigente. Além do mais, Alice destacou Marcos ainda
com voz de desdém , você é uma pessoa improdutiva. Aliás, mais incompetente do que eu. Ao menos eu
trabalho. Ganho pouco pelo que faço, mas ganho. Quanto a você, Alice, vive dependente, à minha custa e
reclamando! Se não fosse por esse cretino aqui, morreria de fome, pois nem pra faxineira presta, ninguém
a suportaria.
A esposa conservou-se muda, mas, em seus olhos espremidos, podia-se ver uma ameaça escondida. Num
gesto brusco, ela puxou o ombro e livrou-se de Marcos, que ainda lhe deu um leve empurrão. Eles se
calaram. Mas os pensamentos de Alice fervilhavam. Marcos não tinha o direito de escarnecê-la daquela
forma. Nunca tinha se sentido tão humilhada, nem havia sido tão espezinhada como naquela hora. Marcos
haveria de sofrer, e muito, por aquela afronta. Pois Alice prometia, com muito ódio, a si mesma, que
encontraria uma maneira de se vingar de seu esposo. As reflexões da pobre mulher passavam agora a
imaginar um modo de revidar ao marido o sofrimento, a mágoa e a angústia que sentira com aquelas
palavras. Ela ainda teria o prazer da desforra.
Aquele ocorrido, por si só, criou vibrações, energias muito inferiores para o ambiente doméstico. Agora, os
pensamentos corrosivos de Alice alimentavam e fortaleciam aquelas vibrações.
Pensamentos negativos, imagens mentais de ocorrências trágicas, assuntos amargos da vida alheia,
reclamações e desânimo representam a atração e a criação de fluidos inferiores que,
consequentemente,
significam padecimentos enormes em futuro breve, seja quem for o seu criador.
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Longe dali, José Luiz, outro pai de família, conversava amigavelmente com sua esposa sobre o seu dia.
Hoje tivemos outra reunião. Creio, agora, que tudo ficará mais estável. Os que tiveram de ser
demitidos já foram. A partir desse momento a empresa vai oferecer qualidade profissional, segurança,
melhores salários e, principalmente, reconhecimento aos funcionários que continuarão lá.
Tomara, Deus, que não dispensem mais ninguém rogou Ivone,esposa de José Luiz, com
sinceridade. Nós sabemos, por experiênciaprópria, como é difícil a condição de desempregado. Fico
com penadesse pessoal demitido. Se pudéssemos ajudar...
Mas, querida, sou um simples diretor. Recebo ordens! Passei noites em claro quando me
pediram para listar os empregados que não preenchiam os requisitos da empresa. Eu nunca havia feito isso.
É muita responsabilidade. Você sabe! Rezei tanto! Pedi tanto a Deus que me ajudasse e me perdoasse
qualquer falha...
É, eu sei. Mas você recebeu instrução, lá na empresa, para poder escolher, ou indicar qual o
funcionário que não preenchia os requisitos,não foi?
Ah, sim! Eles nos orientaram para indicar primeiro os que não tinham muita educação, os que
eram agressivos com palavras ou atos, os que usavam palavreado inadequado ao ambiente, os que
assediavam as colegas de trabalho...
Ou os colegas! interrompeu Ivone esboçando um sorriso intencional e depois completou:
Porque, hoje em dia, não são somente os homens que fazem assédios.
José Luiz sorriu e balançou com a cabeça concordando ao admitir:
É verdade. Tem cada moça que... Tá louco! Nem te conto. Elas falam de modo a se insinuar, com
palavreado chulo, roupa inadequada...Teve um dia em que eu chamei a atenção de uma auxiliar de
escritório lá da contabilidade. Sabe, eu falei com jeito, procurei ser educado...
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O que ela fez? atalhou Ivone interessada.
Não foi o que ela fez. Foi pelo que usava, ou melhor, não usava. Amoça estava de minissaia,
com aquelas blusinhas... Sabe?
Sei. Transparentes e de alcinhas.
É. Bem, eu falei com ela que ali, principalmente por ser perto dosetor de peças, onde temos
muitos homens, ficaria bem outro tipo de roupa para impor mais respeito. Seria melhor para ela mesma.
E ela?
Ela disse que este era um país livre.
E você?
Não disse nada. Comecei a reparar que os rapazes do setor passavam perto de onde ela se
sentava e ficavam jogando conversa fora, assediando, entende?
Ah-rã!
Não foi por vingança à resposta que ela me deu, mas por eu observar que ela, ou melhor, o tipo
de roupa que usava, provocava tumulto e era inadequada ao valor moral que a empresa gosta de preservar;
sem alternativas, eu a indiquei na lista dos que deveriam ser demitidos. Após pequena pausa, prosseguiu
como num desabafo: Já que esse é um país livre, que ela goze da liberdade, que julga ter direito,
bemlonge dali. Não podemos ser contra um estilo de roupa jovial. Minha filha também usa roupas da moda,
mas há lugares adequados para essas roupas e limites para tudo. Devemos usar o bom senso, sempre.
Às vezes a pessoa aprende e se coloca no devido lugar só depois de sofrer um pouco.
É verdade. No entanto, agora com a saída de tantos empregados,principalmente daqueles que
mais denegriam os níveis morais, a empresa ficará com um ambiente mais saudável. Haverá
remanejamento decargo e grandes oportunidades àqueles que desejam crescer. Vários cursos de
atualização serão fornecidos e máquinas novas estão chegando.
E tempo de progresso! afirmou Ivone.
Mesmo como um simples diretor, procuro agir com o máximo dejustiça. Não quero que ajam
injustamente comigo. Peço a Deus para
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que me ajude a decidir o melhor a ser feito. Se tiver de ser demitido, quero ter meus valores reconhecidos,
sempre.
O diálogo tranquilo do casal foi interrompido pela chegada dos dois filhos que, animados, relatavam as
novidades ao mesmo tempo e, pelo visto, todos dormiriam bem tarde porque as histórias pareciam longas.
Na manhã seguinte, Raquel estampava na face pálida os resultados de uma noite sem o devido descanso
físico. Acomodada em sua cadeira diante da mesa de trabalho, a moça olhava para o amontoado de papéis
parecendo não entendê-los.
Nossa, Raquel! Que cara! observou uma colega de serviço admirada. Parece que passou a
noite em claro.
Com expressão de desânimo, olhar baixo e parecendo fazer grande esforço para afirmar, Raquel explicou:
Você não está errada, Rita. Realmente não dormi esta noite.
Algum problema?
Sim. Até parece que não vivemos sem eles tornou Raquel esboçando leve sorriso forçado.
Tome ofereceu a colega estendendo algumas pastas para aamiga, enquanto orientava: , o
senhor Valmor, para não perder ocostume, quer isso "pra ontem". Seria bom que você se animasse
umpouco e ficasse bem atenta, hein! Essas tabelas não podem ir para asmãos do "homem" com falhas.
Concentre-se nelas. Após alguns segundos, em que Raquel observava a documentação, Rita disse:
Nahora do almoço eu passo aqui para irmos juntas e assim teremos maistempo para conversar.
Acho que não vou almoçar hoje. Estou repleta de serviço e aindatenho essas malditas tabelas
avisou Raquel com semblante preocupado.
Ah! Vai almoçar sim! Eu passo aqui e...
Eu também vou! interrompeu imediatamente Alexandre,colega de trabalho que se aproximou e
ouviu a última afirmação de
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Rita. As moças o olharam e, com largo sorriso, ele perguntou: Posso, não é?
O que você pode? perguntou Raquel com modos simples.
Almoçar com vocês, oras!
Talvez eu não vá almoçar insistiu Raquel desalentada.
Ah! Vai sim! respondeu Rita, convicta.Voltando-se para Alexandre, afirmou: Combinado.
Nós nos encontramos aqui, certo?
Certo! respondeu o rapaz, ainda sorrindo e retirando-se.Rita, virando-se para Raquel,
imediatamente mirando os olhos e
entoando a voz de um jeito engraçado, reclamou:
Ah!!! Eu mato você!
Por quê?! assustou-se Raquel.
Como você pode fazer pouco-caso dessa raridade, dizendo: "Talvez eu não vá almoçar!"
arremedou Rita, entoando a voz de formadebochada. Ficou louca, Raquel?
Nossa, Rita! Que horror!
Minha filha! Homem hoje em dia é coisa rara! Ainda mais dotipo: solteiro, alto, atlético e, além de
tudo, bonito. Ai! Que olhos lindos! Rita meneou o corpo fingindo cambalear, como se fosse desmaiar.
Raquel esboçou suave sorriso enquanto pendia com a cabeça negativamente, dizendo:
Que exagero, Rita.
Exagero nada. Ele é um "gato"! Você não acha?Demorando um pouco para responder, Raquel
concordou:
É. Alexandre é bonito, sim.
Credo! Que falta de ânimo. Eu, hein! Estou estranhando sua faltade empolgação.
Raquel, um pouco mais séria, chamou-a à realidade.
Vamos trabalhar ou na hora do almoço estarei ainda "até o teto"de serviço.
Rita, sobressaltando-se, rumou para o seu lugar deixando a colega trabalhar tranquila.
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A verdade era que Alexandre, exuberante, simpático, alegre e cheio de vigor, era muito cobiçado pela
grande maioria das moças que trabalhavam ali e que, tentando conquistá-lo, só conseguiam animadas
conversas e um pouco de coleguismo, nada mais. Ninguém sabia nada sobre sua vida pessoal e nenhuma
mulher parecia ter conseguido impressioná-lo seriamente, ao menos ali no serviço. Alexandre, apesar de
jovial e belo, no ambiente de trabalho jamais se aproveitou de suas dádivas para iludir ninguém, tampouco
subjugou qualquer moça que tenha se atraído por ele. Talvez fosse isso que deixasse suas colegas mais
interessadas e curiosas.
Aquele convite para se incluir como companhia das moças na hora do almoço não foi uma surpresa, pois
era hábito seu convidar, a cada dia, um colega diferente, sem distinção, para almoçar.
Bem mais tarde, chegando à seção em que Raquel trabalhava, Alexandre, na companhia de um amigo que
trouxera consigo, aproximou-se da colega e chamou:
Vamos? Onde está a Rita?
Ainda não chegou. Mas... Olha... Estou tão...
Antes que Raquel argumentasse qualquer empecilho, ele alertou:
Raquel, preste atenção: Você me parece preocupada demais com seu trabalho. Vejo-a pálida, com
uma carinha de quem está com sono eaté alheia a tudo o que está fazendo. Aproximando-se mais, com
seujeito atencioso, pegou-a pelo braço tirando-lhe a caneta da mão e, girando sua cadeira, foi conduzindo-a
agora por ambas as mãos para que se levantasse e prosseguiu: Vamos almoçar porque, aí sim,
estarámais revigorada, ficará mais atenta ao que está fazendo...
Quando Alexandre a segurou pelos ombros, brincando gentilmente como quem a conduzisse, Raquel, com
o semblante sério, esquivou-se rapidamente, parecendo não gostar de ser tocada daquela forma.
Observando o gesto arredio, Alexandre, um tanto sem jeito, recuou erguendo as mãos mostrando que não
a tocaria mais e disse:
Desculpe-me, eu não...
Sou eu quem pede desculpas, eu... disse Raquel também embaraçada, sem saber como se
justificar pelo que fizera.
Vagner, o outro colega que se encontrava ao lado e presenciou a cena, achou estranha a atitude da moça,
porém, somente trocou ligeiro olhar com Alexandre e nada falou. A chegada de Rita acabou desfazendo o
clima um tanto sem graça que, repentinamente, havia se criado. Ao ver Vagner acompanhando Alexandre,
a colega afirmou:
Que bom, o Vagner vai conosco?!
Sim. Vou.
Então vamos logo! pediu Alexandre animado e colocando-se àfrente para saírem.
Almoçando em um lugar de pouco luxo, recolheram-se os quatro colegas a uma mesa num canto do
restaurante onde conversaram bem àvontade. Rita, muito falante, atraía para si a atenção de todos. Com
sua bela voz agradável e seu riso gostoso de ser ouvido, ela conseguia trazer alegria e animação. Raquel,
no entanto, mais recatada, sorria vez ou outra, permanecendo a maior parte do tempo em silêncio. No
momento em que ficava séria, uma tristeza indefinida poderia ser notada em seu olhar, mas a todo custo
Raquel tentava disfarçar.
Sem deixar que os demais percebessem, Alexandre a espiava. Muito observador, se deixava atrair pela
quietude, um tanto misteriosa e natural, que Raquel trazia em si. Em dado momento, já incomodado com a
falta de participação da jovem Raquel naquela conversa, decidiu provocá-la:
E você, Raquel? O que tem para nos contar?Imediatamente todos pararam e voltaram a atenção
para a moça que
timidamente, pela súbita questão, pareceu quase se encolher emudecida por alguns instantes, mas que,
por fim, falou:
Bem... dissimulou com um sorriso, completando: Não tenho nada para contar.
Alexandre e Vagner fixaram-se em Raquel observando seu jeito meigo e encabulado. Vagner, mais
provocador, insistiu:
Parece-me, Raquel, que seus pensamentos criaram asas e planavamlonge daqui. Não quer nos
contar sobre a paisagem que vislumbrava?
Raquel ficou surpresa. Seu delicado rosto estava rubro. Ela ofereceu um belo sorriso generoso que foi
retribuído e falou:
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Estou repleta de serviço e... Bem, era nisso que estava pensando.
Vagner, por sua vez, passou a ser galanteador com a colega, dissertando sobre a importância de se
desligar um pouco dos assuntos preocupantes a fim de, mais descansados, podermos encontrar forças ou
soluções para realizá-los melhor. Ele queria aproximar-se mais da moça e chamar-lhe a atenção.
Rita, entretanto, na primeira oportunidade, acabou contando o que a amiga lhe confiara, em poucas
palavras, enquanto estavam no toalete, minutos antes.
O problema da Raquel é bem outro. O irmão dela está comdificuldades e por isso vai morar com
ela. Deixará de viver só! Não é,Raquel?
Franzindo levemente o semblante, mostrando o seu desagrado, Raquel a advertiu imediatamente:
Puxa, Rita. Como você é indiscreta. Se eu soubesse que iria espalhar para todo mundo...
Alexandre, para evitar um desentendimento, procurou distrair Raquel, perguntando:
Então você mora sozinha, Raquel?
Moro respondeu com simplicidade, sem se alongar.
Eu também afirmou Alexandre.
Ah! Você mora sozinho, Alexandre? perguntou Rita que, mais uma vez, parecia querer atrair
para si toda atenção.
Como disse. Moro, sim respondeu o colega sem pretensões.Vagner, exibindo grande interesse
em saber mais sobre Raquel, perguntou:
Sabemos pouco sobre você, Raquel. Apesar de fazer mais de umano que trabalha conosco,
desconhecemos tudo a seu respeito. Conte-nos: De onde você é? Onde moram seus pais?
Um tanto contrariada ainda, e também pelo fato de não gostar de expor sua vida, ela, sem demonstrar
desagrado, contou em rápidas palavras:
Sou do Rio Grande do Sul. Meus pais moram lá.
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Por que não mora com seus pais, ou, então, por que eles não vêmpara cá? tornou Vagner,
curioso.
Eles moram no campo. Eu e meu irmão Marcos não nos adaptamos muito bem lá explicou
após profundo suspiro e bem séria, descontente pela insistência do colega.
Mas... tentou dizer Vagner, mas foi interrompido por Alexandre que, em socorro de Raquel,
lembrou:
Gente! Estamos em cima da hora! Vamos?
Nesse instante, Rita, mais uma vez, arrumou um assunto para falar e todos voltaram a atenção para sua
história. Ao retornarem para o prédio em que trabalhavam, o assunto sobre a vida de Raquel foi esquecido.
As moças rumaram para seu setor e Raquel, ainda magoada com a colega, não fazia qualquer comentário,
enquanto Rita, parecendo não notar, admirava a companhia que tiveram.
Ai! Tomara que o Alexandre almoce conosco outras vezes. Pornão haver ninguém no toalete
onde estavam, a moça rodopiou olhandopara o alto, exibindo extrema admiração pelo ocorrido. Estou
sonhando! Com tantas por aí e o "gato" mais cobiçado vem nos chamar!
Mirando o olhar como a tecer planos, Rita suspirou, dizendo: Ainda conquisto esse homem!
E fitando-se no espelho, continuou:
Sou bonita, simpática, sei me comportar... O que você acha, Raquel?
Tudo é possível comentou a colega sem entusiasmo.
Você não acha que sou capaz de "ganhar" o Alexandre?
Não sei dizer, Rita. Eu nem o conheço. Acho que conversei com ele uma ou duas vezes antes de
irmos almoçar hoje. Não sei dizer se ele quer ser conquistado. Por outro lado, não duvido dos seus desejos
nemda sua capacidade comentou sentindo-se amargurada.
Não entendi, Raquel. O que você quer dizer?
É o seguinte: Eu vejo que a maioria das nossas colegas vive "dando em cima" do Alexandre.
Como eu já disse, não o conheço. No entanto, nas poucas vezes que entrei em contato com ele, pareceu-
me que é uma pessoa alegre, descontraída, inteligente, porém muito reservada. É do tipo que não quer ser
"amarrado", não quer comentar sobre sua vida
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íntima, entende? Apesar de educado e gentil, manterá distância de quem quiser ou tentar invadir a sua
privacidade.
Mas é impossível um homem desse tipo não querer ficar com alguém, nem ter uma mulher, uma
namorada. Tem que haver um modo de lhe chamar a atenção. Refletindo alguns segundos, Rita
observousubitamente: Você parece não se atrair por ele, não é, Raquel? Aliás,você parece não se atrair
por ninguém.
Sem esperar por aquela pergunta, Raquel, um tanto embaraçada, tentou dissimular:
É... Talvez eu não tenha encontrado a pessoa certa.
Mas você não namora e também nunca nos falou de um antigonamorado, se é que já teve.
Diante do silêncio da colega, Rita insistiu: Você já teve namorado, não é, Raquel?
Raquel pareceu ficar nervosa, enquanto Rita a fitava com olhos ávidos, aguardando uma resposta.
Embaraçada, sentia um suor gelado umedecer suas mãos. Definitivamente ela não gostava de falar sobre
sua vida. Encarando a colega e tentando disfarçar o seu estremecimento, admitiu:
Não. Não tive nenhum namorado. Porque nunca me senti atraída por ninguém. Impondo na voz
uma energia quase arrogante,afirmou: E não tenho intenção de me deixar atrair por homem nenhum.
Essa é uma opção à qual tenho direito.
Admirada e surpresa, Rita não conteve sua curiosidade. Cedendo a seus impulsos indiscretos, questionou:
Nossa, Raquel! Bonita, elegante e simpática como é, pretende ficar sozinha? Sem esperar por
uma resposta, continuou: Eu sempre achei você muito... muito "fechada" para com seus
admiradores,mas agora, ouvindo de você mesma que não quer nenhum homem emsua vida, fico até...
Até... Sei lá. Acho esquisito.
Raquel, em silêncio, expressava um semblante enfadado. Seu coração fora invadido por uma repentina
tristeza que a magoava ainda mais. Arrumando rapidamente sua bolsa, avisou:
Tenho que ir para a seção, Rita. Você ainda vai ficar aqui?
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Raquel, ainda estou intrigada. Você nunca gostou de ninguém?Jovem e bonita, nunca teve um
rapaz em sua vida?
A pergunta desgostou Raquel. Ela não queria passar por aquela inquisição. Com o coração acelerado e
oprimido, olhar triste e semblante sério, pediu:
Por favor, Rita. Eu não gostaria de falar sobre isso. Esse assuntonão me agrada nem um pouco.
Agora vamos, já estamos atrasadas.
Dizendo isso, Raquel se retirou. Rita, por sua vez, trazia os pensamentos fervilhando na curiosidade e na
falta de respeito à privacidade da amiga. Apesar de contrariada, ela não disse mais nada e saiu logo atrás
de Raquel.
Ao chegar perto da mesa onde Raquel trabalhava, Rita, bem próxima da colega que já se encontrava
sentada em sua cadeira, curvou-se e perguntou em voz baixa, quase sussurrando:
Raquel, e se alguém gostar de você? E se um rapaz vier falar comvocê? Como hoje, por exemplo,
ficou claro que o Vagner estava interessado e... sabe, né? E se ele quiser conhecê-la melhor?
Suspirando profundamente, exibindo seu desagrado, Raquel soltou os lábios que se contraíram e afirmou:
Não sei dizer, Rita. Não sei nem se amanhã eu estarei viva. Agora,no entanto, eu não quero mais
falar sobre isso. Por favor.
Rita ergueu-se, pediu desculpas e saiu. Raquel ficou aborrecida. Magoada por ter de enfrentar aquela
situação que, pelos resquícios do passado, lhe era muito amarga. Seus olhos quase transbordavam as
lágrimas quentes e teimosas que se fizeram.
Rita foi para o seu lugar intrigada com o segredo da amiga. Mas isso só durou alguns minutos, pois suas
ideias se voltaram para os planos de como conquistar seu colega de trabalho. Ela imaginava que não seria
fácil; entretanto, com a ajuda de uma colega, seria favorecida. Por essa razão não poderia brigar com
Raquel. Teria que dar um jeito de se aproximar de Alexandre, mas não poderia deixar em evidência os seus
planos.
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** página em branco **
Capítulo 2
A única ajuda
Alguns dias se passaram após os últimos acontecimentos, mas Alice e o esposo não conseguiam se
harmonizar. Irritada com a difícil situação financeira, a pobre mulher exibia insatisfação e longas queixas
eram dissertadas com modos até furiosos no falar e no agir. Mais uma vez o casal iniciava outra discussão.
Eu não vou sair daqui e me submeter a tamanha humilhação de ter que ir morar na casa de sua irmã!
afirmava Alice veemente. Se Raquel tem tanta boa vontade em ajudar, que se mude para cá e ajude
você a pagar o aluguel.
Andando de um lado para o outro, sentindo a fronte como a queimar pelo excesso de preocupações e
problemas, Marcos ocultava seus pensamentos, agora tenebrosos. Alice não parava de se queixar com
modos que irritariam qualquer um. Após alguns passos negligentes até próximo da pia da cozinha, o
homem desesperado pensou, ao fitar uma faca de cozinha:
"É por isso que muitas tragédias acontecem. Não suporto mais a Alice. Bem que eu poderia acabar com
essa desgraçada agora mesmo e depois dar um jeito na minha vida."
Quase se apoderando do utensílio doméstico, que agora se transformara em uma arma, Marcos refletia,
enquanto a esposa continuava com suas reclamações:
"Alice é o motivo de todo esse inferno que vivo!", imaginava. E com as mãos
trêmulas e geladas, apanhou a
faca e olhou para a esposa, pensando: "Já chega! Vou terminar com isso!"
Um tarefeiro espiritual que desempenhava a função de proteção e amparo aos queridos encarnados,
conhecido como espírito protetor, já
envolvia com amor e bondade o pobre Marcos, que não podia vê-lo, ouvi-lo nem senti-lo. Esse espírito fazia
tudo para afastar aquela ideia de consequências trágicas. Sentindo a dificuldade de alertar o pupilo, o
tarefeiro espiritual lançou vibrações de amor e socorro a um dos filhos do casal que, mais espiritualizado e
flexível ao envolvimento elevado, saiu de onde estava e foi até a cozinha. Sem saber muito bem o que
queria, Elói abriu a geladeira, encontrou uma maçã, pegou-a e se dirigiu até o pai, pedindo:
Empresta a faca!
Surpreso, Marcos olhou para o filho e, num gesto automático, entregou-lhe o utensílio. Elói cortou a fruta e
ainda ofereceu:
Quer? Toma!
Não, obrigado o pai respondeu atordoado.
Alice, ainda resmungando, não deu conta do que ocorria. Mas Marcos, ao encarar o filho, se alertou para o
que ia fazer, como se despertasse de um pesadelo para a realidade.
Seria uma loucura!
Alice não parava de reclamar. Marcos, por sua vez, retirou-se sem dizer nenhuma palavra.
Mais tarde, depois de andar muito e tentar se distrair, ele chegou atéa casa de Raquel e passou a contar o
ocorrido.
Alice não quer vir morar aqui, como eu já disse. E só tenho maisduas semanas para resolver essa
situação com o aluguel.
Os pensamentos de Raquel, ligeiros e preocupados, trabalharam na sombra de suas dúvidas. Deveria
deixar aquela casa e ir morar com Marcos, conforme Alice propusera? Suas coisas não caberiam na casa
de seu irmão. Teria de se desfazer delas. Se não fosse pela dolorosa situação em curso, e por tudo o que
Marcos já fizera por ela, jamais tomaria aquela decisão. Raquel temia que seu irmão cometesse alguma
loucura contra a vida de sua esposa ou contra a própria vida. Disfarçando as preocupações que lhe
fervilhavam as ideias, Raquel decidiu:
Fique tranquilo, Marcos. Resolveremos assim: eu mudo para suacasa e o ajudo pagar o aluguel.
Está decidido!
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Não posso concordar com isso, Raquel. Ninguém suporta Alice.Acabei de contar tudo o que fiz
hoje porque entrei em desequilíbrio portanta queixa que ouvi, e você ainda quer ir lá para casa? Só se
estiverlouca!
Veja, eu conheço a Alice e, por isso, não vou me importar com o que quer que ela faça ou diga.
Estarei preparada.
Não!
Então quem vai lhe ajudar? inquiriu Raquel com firmeza,encarando-o sem arrogância, mas
desarmando-o de qualquer subterfúgio. Após alguns segundos, enquanto Marcos refletia, ela
argumentou: Acredito que tenha sido por minha causa que você se indispôs comnossa família e hoje não
tem notícias de ninguém. Papai está inválido.O coitado nem entende o que está acontecendo. Mamãe é...
Bem, nemsei dizer se ela é submissa ou acomodada. Vovô, por ser o "cezar" da nossa família, soberano,
cruel, de extraordinária figura, jamais deixaria nossos irmãos nos ajudarem. Como "Pedro, o Grande", ele
seria bem capaz demandar executar o filho que se opuser às suas ordens. Depois debreves instantes,
Raquel apelou com voz mansa, envolvendo-o com sentimentos bondosos e sinceros: Somos um pelo
outro, Marcos. Eu sótenho a você. Vamos morar juntos, irei para lá e vai dar tudo certo.
Marcos fitou-a longamente. Ele estava sem alternativas e sem argumentos, por essas razões teria que
concordar.
Com o passar dos dias, Raquel mudou-se para a casa de seu irmão. E tendo a oportunidade de ficar
sozinha com Marcos, ofereceu:
Tome dizia, estendendo-lhe um maço de notas de dinheiro.
Onde você arrumou isso? perguntou Marcos surpreso.Com doce sorriso que irradiava ternura,
Raquel respondeu:
Assaltei um banco! brincou, rindo gostosamente. Notando que os olhos de Marcos sinalizavam
espanto, esclareceu: É brincadeira, seu bobo.
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Eu sei, mas como o conseguiu?
Eu tinha certa economia guardada no banco e... Bem, o restante consegui com a venda de alguns
móveis, televisão, vídeo, geladeira...
Raquel!...
Não diga nada interrompeu-o, colocando o dedo indicadornos lábios de Marcos, sinalizando
para silenciar. Depois completou: Quero que aceite e pague os aluguéis atrasados. Daqui para frente
será:vida nova!
Raquel, você não deveria ter feito isso!
Por que não? Você não vai me deixar usar a sua geladeira? Nem assistir
a sua TV?
Marcos calou-se meio angustiado. Algo o incomodava com aquela-situação. Era muita renúncia por parte
de sua irmã. Não queria que se sacrificasse tanto. Com o dinheiro na mão, ele a olhou por longo tempo
sem dizer nada e estampou um suave sorriso, quase forçado, no rosto pálido. Nesse instante, Alice entrou
na sala e com ar de desdém, trazendo na fala uma expressão debochada, observou:
Que cena! Hum!... Comovente.
Não oferecendo atenção aos comentários pobres da esposa, Marcos lhe mostrou:
Temos o dinheiro para pagar o aluguel. A Raquel nos emprestou.Alice fechou o sorriso
irônico que
segundos antes sustentava. Não
disse uma palavra. Sua face, antes alva, cobria-se agora por um intenso rubor provocado pela ira e pela
revolta. Por índole, possuía um coração orgulhoso, repleto de ódio e de impulsos vaidosos que não a
deixavam, no mínimo, agradecer o auxílio recebido.
A cena foi interrompida pela chegada de Elói, o filho mais novo do casal, que anunciava, afoito, um
imprevisto:
Mãe! Mãe! O Nilson está brigando lá na rua, aos socos e pontapés!Agora, com a oportunidade de
se manifestar, Alice colocaria em
suas palavras a insatisfação com o ocorrido minutos antes. Ela poderia descontar naquela situação, através
da imposição da voz, toda sua ira represada:
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Quero que se mate! gritou a mulher, estremecida de ódio. Que morra de uma vez! Será um a
menos a me dar trabalho!
Marcos, sem dizer nada, saiu junto com Elói para ver o que estava acontecendo. E Raquel, chocada com a
expressão da cunhada, respirou profundamente, levantou a cabeça e saiu logo atrás do irmão. Ela não
queria ficar ali com Alice. Pouco tempo depois, Marcos adentra em casa segurando o filho Nilson pelo
braço e advertindo-o:
Nada justifica isso! Estou cansado de vê-lo rolando na rua comoum animal.
Ele me xingou!... Qual é? Quer que eu seja um covarde?
Vê se me respeita, moleque! gritou Marcos furioso.Alice, que possuía o dom de interferir
negativamente, opinou:
Quer que ele seja igual a você, Marcos? Engraçado, outro dia vocêdisse que ele já ia fazer
dezessete anos e que deveria arrumar um emprego e ir trabalhar. Agora o chama de moleque!
Nesse instante, entre o casal, iniciou-se nova briga. Nilson, intrometendo-se, foi punido fisicamente pelo
pai, que o mandou para o quarto. Raquel, em outro cômodo, permanecia em silêncio e aflição.
Tendo em vista as atitudes dos encarnados, os pensamentos queixosos e críticos, o palavreado carregado
de sentimentos inferiores, no plano espiritual daquele lar, espíritos sofredores, de baixo valor moral, se
achegavam compatíveis com as vibrações criadas pelos moradores dali.
Naquele instante, enquanto Marcos e Alice discutiam, eles possuíam verdadeiros aliados espirituais, tal
qual um grupo de torcida que vibra a fim de incentivar seu escolhido.
A falta de respeito mútuo, a ausência de paciência, o excesso de reclamações, a falta de fé em Deus e de
prece deixam qualquer lar àmercê da desarmonia, do desequilíbrio e de irmãos que, na espiritualidade, se
aproximam e se instalam nesses ambientes. São espíritos que, ignorantes e até maldosos, passam a
influenciar, a envolver através de suas vibrações e até, muitas vezes, começam a incitar os encarnados às
discórdias, aos conflitos, desejando que tragédias sejam concretizadas por eles.
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Esses espíritos, como já dissemos, ignorantes e sofredores, se comprazem com tais acontecimentos
funestos.
No entanto, eles só podem atuar quando o encarnado se deixa dominar por ideias incorretas, negativas e
lamuriosas, expressando também, em atos, tais sentimentos inferiores.
Logo na primeira noite na casa de seu irmão, Raquel não conseguiu dormir, passando a rolar de um lado
para outro em busca do sono. Em vão.
Ao se levantar pela manhã, tomou somente uma xícara de café e se foi. Em seguida, Alice decidiu ir buscar
o pão para os filhos fazerem o desjejum e saiu reclamando:
Agora vou virar empregada dessa "madame" aí! Nem se incomodou em ir buscar o pão e só tomou
café porque eu levantei cedo e fiz!
Ao retornar, antes de entrar em sua casa, uma vizinha, à qual Alice confiava alguns particulares,
cumprimentou-a:
Bom dia!
Oi, Célia.
Que cara! Aconteceu alguma coisa?
Alice, desviando poucos passos de seu portão, parou diante de Célia, que parecia querer puxar conversa.
Só posso estar com essa cara, né?
Quem é aquela que eu vi saindo agora há pouco da sua casa? Você recebeu visita logo cedo?
Antes fosse visita. Essa é a minha cunhada, a Raquel. Você não se lembra dela?
Hum!... Parece que conheço, mas...
Pois é, Célia, "quanto mais eu rezo, mais assombração me aparece". Estamos numa situação tão
difícil, menina... Sabe, a Raquel veio morar com a gente pra ajudar com as despesas.
Mais uma boca! Ajudará de que jeito?
Ajudará pagando o aluguel. A primeira ideia foi mudarmos praa casa dela. Mas de maneira
alguma eu poderia concordar com umacoisa dessas. Daí eu falei para o Marcos que, se ela quisesse
ajudarmesmo, ela que se mudasse para cá! E não é que o "diabo" veio mesmo!
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relatava Alice, exibindo descontentamento e mau humor. Mas ao menos eu estou na minha casa.
Aqui mando eu! Qualquer coisa, eu boto ela pra correr! Ai, Célia, o que eu faço? perguntou, agora com
voz chorosa.
Já disse, mas você não acredita em simpatias advertiu Célia.
Se você me ensinar uma simpatia para arrumar um emprego, e se der certo, eu acredito
admitiu Alice desalentada.
Para você arrumar um emprego?!
Eu ouvi alguns desaforos do Marcos. Com o olhar altivo, recordando-se novamente da
agressão sofrida, Alice revelou: Vou me vingar dele. Quero fazê-lo engolir, e a seco, o que ele disse de
mim. Vou mostrar quem é incompetente e improdutiva. Ele me paga!
Ah! Mas se o negócio é esse!... Vem cá. Vem comigo.
Mas eu tenho que levar o pão para os meninos.
E só um minutinho!
Célia levou Alice para dentro de sua casa e pegou um caderno onde havia várias anotações sobre suas
crenças.
Pouco depois, Alice voltou para sua residência e, por acreditar estar sem alternativas, passou a reunir
apetrechos iniciando a manipulação do que seria necessário para conseguir o que queria. Nesse instante, o
espírito protetor de Alice aproximou-se dela e envolveu-a carinhosamente, sugerindo:
Filha, se pensa em oferecer a Deus esses apetrechos, está perdendo o seu tempo. Deus é dono de
tudo. Se você oferece tudo isso a um espírito, cuidado! Jesus já nos disse: "Experimentai se os espíritos são
deDeus". Se os espíritos são de Deus, assim como o Pai Celeste, eles não querem nada disso. Os valores e
as conquistas pessoais são alcançados por merecimento, não por barganha.
Mesmo sabendo que Alice não o ouvia, aquele mentor passou-lhe sabiamente sua orientação. Pelo
envolvimento de amor, Alice, repentinamente, sentiu um medo inexplicável. Um frio correu-lhe o corpo todo,
e ela passou a pensar: "Será que isso é certo? Será que eu vou atrair 'coisas' ruins com isso?"
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Aquele pensamento era o alerta que sinalizava que algo não estava
correto. Alice bem que deveria ter
atendido aquela inspiração, porém seu desejo de vingança e sua vaidade foram mais fortes. Ela não
conseguiu se deter e continuou.
Na espiritualidade, em uma faixa vibratória na qual não poderia ver o mentor de Alice, encontrava-se Sissa,
um espírito ignorante que quando encarnada praticava o mesmo que Alice, reclamações, criava brigas, era
egoísta, vaidosa e orgulhosa, não procurava práticas salutares como a prece e pensamentos bons. Sissa
não era produtiva e só sabia tecer longas queixas.
Ela estava junto de Alice havia algum tempo e, naquele instante, ao ver a mulher realizando o que ela mais
praticou, quando encarnada, regozijou-se satisfeita. Aproximando-se mais de Alice, Sissa passou a
envolvê-la com um verdadeiro abraço, se comprazendo com o que a encarnada fazia. Decidindo, então,
permanecer sempre com ela, procuraria ajudá-la para que continuasse com aqueles feitos. Foi nesse
momento que um sentimento de segurança e fé, ainda que não verdadeiros ao que realizava, passou a
fazer parte de Alice. O medo experimentado pouco antes agora desaparecera.
Sabiamente seu mentor pessoal não interferiu, uma vez que sua tarefa já havia sido realizada: o
envolvimento e a inspiração relembrando o que é correto, o que Alice percebera de alguma forma, mas,
infelizmente, não dera atenção. Mentor "não é ama-seca", e todos os encarnados têm direito ao livre-
arbítrio, à livre escolha.
Se no instante em que sentiu insegurança Alice tivesse parado e pedido: "Deus, oriente-me. Ajude-me a
fazer o que é correto. Instrua-me!", é bem certo que em seu âmago sentiria vontade de abandonar o que
fazia e não se deixaria envolver por qualquer espírito sem instrução que pudesse, porventura, estar
próximo.
Quantas vezes questionamos: "Deus, por que estou infeliz e insatisfeito? Por que me encontro em situação
tão difícil?". Ao invés disso, poderíamos nos harmonizar e, com humildade, perguntar: "O que deixei de
fazer para estar assim? O que posso fazer para me resignar, traba-
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lhar para o bem dos outros e evoluir, com as bênçãos de Deus e seguindo os ensinamentos de Jesus?"
Sempre existe uma entidade instruída a nos orientar no plano espiritual. Afinarmo-nos com ela e nos
afastarmos de espíritos malfeitores e ambiciosos depende de nossos pensamentos, de nossas palavras e
ações condizentes com as Leis de Deus e os ensinamentos de Jesus.
Bem mais tarde, ao chegar em casa, Raquel estranhou ver aquela vela de grosso calibre acesa em lugar
bem elevado na cozinha.
Após o jantar, enquanto ajudava a cunhada a arrumar a cozinha e assegurando-se de que Alice não iria se
irritar com sua curiosidade, Raquel perguntou, um tanto cautelosa:
Para que aquela vela, Alice?
Ah! E uma simpatia que estou fazendo. Quero arrumar um emprego, para ter algum dinheiro,
manter-me ocupada e ter mais valorpara o seu irmão.
Ora, Marcos a valoriza. Mas se quer arrumar um emprego, creio que ele ficará ainda mais
contente, porque a situação de vocês se estabilizará mais rapidamente.
Não tente me adular, Raquel. Marcos nunca me valorizou retrucou a cunhada em tom de ironia.
Para mim, já. Outro dia mesmo ele comentou do seu caprichocom a casa. Sabe, Alice, meu irmão
a quer muito bem. Você e os meninos são a única família que ele tem. Quanto a mim... bem, eu sou
irmã,estarei aqui por pouco tempo. Marcos só tem vocês.
Deixando-se envolver pelos modos mansos que Raquel naturalmente usava, mais branda, Alice perguntou:
Não sei por que brigamos tanto. O que será que posso fazer?Pensativa e cuidadosa com as
palavras, Raquel arriscou:
Sabe, quando a situação é crítica, se os sentimentos dos outros estão enervados, e se eu vejo que
posso tumultuar ainda mais com uma
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pequena opinião, eu me calo. Fico quietinha. Depois, quando tudo se acalma, posso até arriscar um palpite
ou esclarecimento de forma mansa.
Ah! Isso é você. Eu não sei ser assim, não reagiu Alice rapidamente.
Sabe, Alice, para tudo na vida precisamos treinar. Tente! Quantasvezes forem necessárias.
Quando você verificar os bons resultados, amudança estará ocorrendo naturalmente.
A cunhada ficou pensativa até que o espírito Sissa aproximou-se dela e interferiu a fim de não deixá-la
branda para refletir sobre o que é bom, pois, se isso acontecesse, Alice não mais se deixaria envolver por
ela.
Ela está querendo ditar normas para você? perguntou Sissacomo se debochasse. Pelo visto
já começou a mandar na sua vida!
Repentinamente, Alice transformou a face serena em um rosto franzido e sisudo. Arrematando o assunto,
falou quase arrogante:
Quem quiser conviver comigo tem que me aceitar como sou.Raquel emudeceu, sentindo seu rosto
aquecer por uma sensação
de vergonha e um misto de mágoa pelo que ouvia. Como uma dor, guardou no peito aquela sensação de
desapontamento, sem nada comentar. Tinha prometido a si mesma não discutir com Alice, então não o
faria, nem daria qualquer conselho ou opinião que não fossem bem-vindos.
Passaram-se alguns dias...
Marcos agora se encontrava mais tranquilo, pois, com o dinheiro oferecido por sua irmã, colocara em dia o
pagamento da locação da casa. A presença de Raquel oferecia mais serenidade; ela era agradável e
contornava a situação com Alice, que quase não se alterava mais. A nova hóspede procurava fazer de tudo
para não incomodar a cunhada, e ainda ajudava no que fosse preciso, de acordo com sua disponibilidade.
Sabendo que Alice desejava trabalhar, Raquel procurou, com os conhecidos, uma oportunidade de
emprego para a cunhada.
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Certo dia, quando o início da noite era agraciado com um belo pôr-do-sol, por se tratar da época do ano em
que o gostoso verão parece animar a todos, Raquel, bem-disposta, nem sentiu o trajeto de volta para casa,
quase não percebendo que naquela hora o sol ainda podia ser visto, belo e alaranjado, bem na linha do
horizonte.
A moça não via a hora de chegar em casa e contar para a cunhada a mais recente novidade.
Pouco depois...
... então a Rita me deu o número do telefone. Esse gerente écunhado dela. Sabe, ele queria
conversar um pouco sobre o perfil de quem pudesse ocupar a vaga e... bem...
Diante da pausa, Alice inquietou-se animada:
Vamos, diga!
Aqui está o endereço! anunciou Raquel, exibindo largo sorrisoao estender a mão para Alice,
segurando o papel em que estava a anotação.
Ah! Eu não acredito! gritou Alice empolgada.
Pode acreditar tornou Raquel muito contente. Você estáagendada para uma entrevista
daqui a dois dias.
Ligeiramente, olhando para o endereço com olhos brilhantes, Alice afirmou com convicção:
Eu vou conseguir. Eu sei que vou conseguir.
Claro que vai! incentivou a cunhada.Elas estavam felizes com aquela primeira vitória.
Marcos, que acabava de chegar, surpreendeu-se com tanta animação por parte da esposa, coisa rara de se
ver. Colocando-o a par das novidades, Alice, muito entusiasmada, voltou sua preocupação para alguns
detalhes:
É roupa! lembrou-se. Eu não tenho roupa para uma boaapresentação. Afinal, é uma
entrevista.
Se você não se importar, pode usar as minhas avisou Raquelsem pretensões.
Mas será que servem? preocupou-se Alice medindo com oolhar o corpo de Raquel.
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Claro que sim. Encontraremos algo. Você não deve usar umanumeração muito maior que a minha.
Além do que tenho roupas detecidos que cedem. Vamos, venha ver! chamou Raquel ansiosa e alegre,
puxando Alice pelo braço.
Já no quarto, passaram a procurar o que mais convinha vestir para uma ocasião como aquela. Roupas,
sapatos, adornos para os cabelos, bolsa, brincos e até maquiagem Raquel colocava à disposição de sua
cunhada. Entre a alegre procura e a exibição de suas coisas, Raquel não pôde perceber o olhar invejoso de
Alice, disfarçado com um sorriso, na decepção de quando uma ou outra peça não lhe servia bem.
Impensadamente e com ingénua felicidade, Raquel estendia sobre seu belo corpo um vestido e o admirava
sob o olhar enraivecido de sua cunhada, que a jovem não podia perceber, pois ria gostosamente depois de
uma brincadeira singular.
Segurando com uma mão o vestido no colo e com o outro braço apertando-o rente à sua cintura, Raquel
rodopiou em frente do espelho, enquanto sorria ao ver seus longos cabelos se desalinhando e a cobrindo
toda, formando um belo despenteado.
Com simplicidade, arrumou as mechas para trás, livrando o rosto dos longos fios. Voltando-se para Alice,
ofereceu a roupa, dizendo:
Veja se serve. Eu nunca tive oportunidade de usá-lo. Mas é lindo!Irritada pela exuberante e
delicada beleza corporal de sua cunhada,
Alice estremeceu de inveja, mas respondendo com modos, pois precisava da ajuda de Raquel, disse:
Nem adianta. Não vai servir.
Experimente! insistiu a moça, sem pretensões.
Não queira me comparar a você, Raquel! Tudo lhe cai muito bem!
Não se subestime, Alice. Você é muito bonita, é jovem...Atalhando-a de imediato, a outra revidou:
Trinta e sete anos é juventude? Onde?
Se você for ranzinza, chata e egoísta, aos dezoito anos será umavelha. Vamos! tornou Raquel
com generosidade. Vista isso.
O vestido, apesar de ter servido em Alice, que tinha outro biotipo e era bonita também, ficara melhor na
elegante Raquel que, com seu
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rosto delicado, de finos traços e expressões meigas na pele macia, parecia espelhar generosidade,
traduzindo uma doce simpatia e harmonia a tudo que usava.
Já escolhida a roupa e os apetrechos, Alice ficara mais tranquila, enquanto Raquel passou a ver a cunhada
como uma amiga. Ela acreditava que todo aquele mau humor de Alice seria pela ausência de ocupação
produtiva e lucrativa, principalmente. Agora, arrumando um emprego, junto com as novas situações
corriqueiras que haveriam de surgir, Alice estaria atenta para outras novidades e,
consequentemente, não
seria tão implicante com os acontecimentos no lar.
Os dias correram céleres.
Tudo certo. Alice conseguiu o emprego tão desejado e, maravilhada com o êxito, na primeira oportunidade
procurou por Célia, avisando-a da novidade e agradecendo sua ajuda na conquista:
Obrigada, Célia! Obrigada mesmo! Se não fosse por você!... Quemdiria que alguém como eu,
que só poderia trabalhar como faxineira, e na minha idade, encontraria um emprego como esse?
é um grande magazine, Alice! Que sorte! Promotora de vendasdeve ganhar bem! Você viu como
simpatia funciona?
É mesmo, né menina! Agora o que eu preciso é dar um jeito noMarcos e no emprego dele.
Ah! Isso é fácil. Só que, pro Marcos firmar no emprego e pró chefe dele dar aumento, o melhor
mesmo é ir num "lugar aí" que eu conheço,que é ótimo.
Após ouvir a amiga e combinarem ir ao "tal lugar", Alice foi para sua casa e contou à sua cunhada:
Então, Raquel, foi depois dessa simpatia que apareceu essa oportunidade de emprego. Puxa, eu
nunca tinha dado importância para olado espiritual!
Raquel ouvia atentamente, mas, no decorrer do relato, aquele tipo de assunto provocou-lhe uma sensação
diferente, ruim. Uma amargura
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começou a vibrar em seus sentimentos, chegando a experimentar um verdadeiro mal-estar. Raquel
acreditou que não foi a simpatia que ajudou Alice a arrumar um emprego, mas sim sua manifestação no
desejo de ir trabalhar. Se ela soubesse que a cunhada gostaria de encontrar uma ocupação, já teria lhe
arranjado um serviço bem antes. Mas ela temeu fazê-lo, pois acreditou que Alice reagiria dizendo que não
havia lhe pedido nada, ou que aquilo não era de sua conta. Repentinamente os pensamentos de Raquel se
voltaram para a cunhada que lhe perguntava:
Então Célia disse que tem um "lugar aí" que é ótimo. Sabe, Raquel, eu queria tanto ir lá, mas... Ah!
Sabe... Ir sozinha é tão ruim.
Raquel, sem expressão alguma em seu semblante, porém um tanto apreensiva, aguardou pelo inevitável e
indesejável convite:
Ah, Raquel, vamos comigo?
Titubeando e não querendo magoar a cunhada que, nos últimos dias, se mostrava mais amigável, Raquel
respondeu:
Não sei, não, Alice. Não gosto disso.
Já foi a algum "lugar" assim?
Não. Mas a ideia não me agrada. Sabe, fui criada na Igreja Católica e... Você sabe como minha
família é ortodoxa. Não gosto dessas coisas.
Ah! Vamos, vai, Raquel. Se a gente não gostar do "lugar", não voltaremos mais e pronto.
Diante do silêncio da jovem, que não sabia impor sua vontade, Alice chantageou, dizendo: Você é
minhaamiga ou não é? Se for, não vai me deixar ir lá sozinha.
Raquel, com um sorriso forçado, acabou concordando.
Está bem. Mas só dessa vez, hein.
Alice se contentou, mas a moça não se sentia bem com aquilo. No entanto, se quisesse vê-la satisfeita,
teria de ceder aos seus caprichos.
No dia seguinte, em seu trabalho, Raquel via-se confusa em meio a tanto papel. Vagner, o colega que se
interessara por ela, aproximou-se dizendo:
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Como está compenetrada!
Raquel se surpreendeu e voltando-se para o lado, com a educação que lhe era própria, perguntou com
singelo sorriso:
Como? Não ouvi.
Estou observando-a há tempos e nunca vi tanta concentração.
Tenho que ficar atenta a essas tabelas, códigos e valores, se não...
explicou-se cortês e gentil. Já pensou fazer reservas para a Espanhaem vez da Austrália ou
coisa assim? Sem falar dos remanejamentos e dasestatísticas. Estamos nos aproximando das férias,
esqueceu?
É, eu sei. Também estou ficando maluco por causa das férias. Quando vim trabalhar em uma
empresa aérea, não imaginava que seria assim.Pensei que teria mais facilidade de viajar nas férias, mas
descobri que é atemporada em que mais se trabalha aqui. Raquel ameaçou voltar suaatenção ao
trabalho, mas Vagner insistiu: Não se desgaste tanto. Vocêprecisa se poupar. Diante do suave sorriso
da bela jovem, ele arriscou:
Gostaria de conversar com você, Raquel. Eu a acho tão... misteriosa. A moça ficou séria e ele
continuou: Vamos sair hoje, após o expediente?
Não. Não posso respondeu imediatamente, sem refletir.
Por quê? Só bateremos um papo, nos conheceremos, afinal, nunca fala de si.
Desculpe-me, Vagner, mas estou tão atarefada agora que nem posso lhe dar atenção. Agradeço
o convite, no entanto não quero sair.Estou muito cansada.
Então vamos almoçar juntos, certo?
Perdoe-me novamente, mas hoje não vou almoçar.
Está bem. Fica para outro dia. Insatisfeito, porém sem exibirseu descontentamento, Vagner
deu-se por vencido.
Sem qualquer comentário, Raquel forçou um sorriso e voltou para suas atividades. Sentiu-se incomodada
com o convite, pois não o desejava. Havia dias percebera que Vagner, vez ou outra, tentava se aproximar
para conhecê-la melhor.
Bem mais tarde, quando a fome a incomodou muito, decidiu não ir almoçar, mas fazer um lanche rápido.
Sentada a uma mesa em lugar de
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pouco movimento, pois já passara do horário comum às refeições, Raquel apreciava um lanche enquanto
refletia contrariada por ter que acompanhar sua cunhada. Não queria desagradar Alice, mas aquilo não era
de sua vontade. No entanto, de uns dias para cá, Alice estava tão alegre, gentil e muito animada. Nunca a
vira assim.
Posso?! perguntou Alexandre, com sua voz grave, que chegoubem próximo sem ser notado.
Raquel, muito distraída e perdida em seus pensamentos, quase gritou, assustando-se tanto que
estremeceu a ponto de se sobressaltar, entornando um pouco do refrigerante que estava no copo que
segurava.
Por favor, Raquel, me desculpe! pediu o moço gentil, ligeiro e bem constrangido com a
situação. Sem jeito, deixando sobre a mesa sua bandeja, segurou no braço de Raquel, tentando acalmá-la.
Não foi nada respondeu a jovem tentando disfarçar o susto e secando a mesa com um
guardanapo.
Mesmo exibindo-se verdadeiramente envergonhado, Alexandre não conseguiu segurar o riso que refletia
em seus lábios e nos olhos brilhantes. Raquel também começou a rir com gosto e permitiu:
Vamos, sente-se.
Alexandre se acomodou a sua frente e disse:
Depois dessa, fico até sem graça. No entanto... Desculpe-me,mas tenho que admitir que você
reagiu de um jeito muito engraçado.Pareceu receber uma descarga elétrica. Raquel riu novamente e
Alexandre tornou menos hilário: Por onde voavam esses pensamentos?Aproximei-me e você nem viu!
Não. Não o vi, mesmo. Eu estava tão distraída.
Está tudo bem?
Sim, está.
Não parece. Para estar fazendo um lanche a essa hora... Deve estar repleta de serviço, como eu.
Ah! Estou sim.
E ambos falaram juntos, como num coro:
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Férias!
Eles riram e depois continuaram o lanche entre um assunto e outro sobre o trabalho. Raquel mais ouvia do
que falava. Ela possuía uma personalidade quieta, quase misteriosa, que se escondia por trás de sua
beleza naturalmente angelical.
Após terminarem, eles voltaram juntos para o trabalho e não deixaram de ser percebidos por Rita e Vagner,
que estavam atentos, cada qual com seu interesse pessoal. Raquel sentiu-se satisfeita pela companhia
agradável que tivera, pois o amigo não era indiscreto e sempre falava de coisas agradáveis.
Mais à tarde, na primeira oportunidade, Vagner procurou por Alexandre.
E aí? Você conseguiu, hein!
Consegui o quê? perguntou sem entender as intenções dooutro.
Não disfarça, Alexandre. Você está querendo "ganhar" a Raquel.Será mais uma para sua
coleção.
Alexandre riu gostosamente, pendendo com a cabeça de forma negativa e afirmando:
Não quero "ganhar" ninguém, cara! Pode "atacar"! Se você estáfalando isso só porque nos viu
chegar juntos, esquece. Foi casual. Eu aencontrei sozinha no local em que fui fazer um lanche rápido.
Mas eu a convidei para almoçar e ela recusou.
Você errou. Deveria tê-la convidado para um lanche rápido. Raquel me disse que está repleta de
serviço, como todos nós, e que não teve tempo para ir almoçar.
Vagner, com olhar desconfiado, encarava o colega com certo desdém. Não lhe agradava a ideia de
Alexandre se interessar por Raquel, pois ele havia se determinado a conquistá-la. Ele temia pela decisão
do colega, para quem não se achava páreo, pela exuberância, pela personalidade decidida, forte e
marcante. Apesar de Alexandre não ser do tipo a ficar tentando ou assediando mulher alguma. Aliás, no
que se dizia em respeito a isso, pouco se sabia sobre ele.
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Fique tranquilo, Vagner. Não estou querendo "ganhar" a Raquel.Admiro seu bom gosto. Ela é
muito bonita, sensata... Mas eu não me pretendo "amarrar" em ninguém. Desejo-lhe sorte!
A Raquel me atrai, sabe. Ela tem um certo enigma que me fascina.
É diferente. Pensando por
alguns minutos, Vagner perguntou:
O que posso fazer para me aproximar?
Pessoas quietas e misteriosas não gostam de ser abordadas. Elas,normalmente, repelem a invasão
de privacidade. Aproxime-se dela sem ser "grudento". Seja simpático e amigo. Fale sobre o que ela quiser
falar.
Alexandre sorriu, pois se lembrou que em sua família todos o chamavam, às vezes, de "grudento",
por ele adorar um abraço e o contato decarinho.
Vagner sorriu ao conselho do amigo e animou-se para conquistar Raquel.
No fim do expediente, apesar do horário de saída já ter se adiantado, Raquel ainda trabalhava querendo
colocar em ordem as suas tarefas. Vagner, observando-a de longe e aproveitando que havia poucos
colegas na grande seção, aproximou-se da moça, anunciando:
É hora de ir embora!
Raquel não ficou satisfeita; Vagner tirou-lhe a atenção do serviço que queria, a todo custo, terminar o
quanto antes, e a presença do rapaz atrapalhava sua concentração.
Deixe isso para amanhã, Raquel. Vá descansar. Você não serápromovida por ficar depois do
expediente.
Raquel respondeu com silêncio e um leve sorriso forçado.
Vamos. Eu a levo para casa quase impôs Vagner.
Não respondeu enérgica e com impulsiva frieza.
Não reaja assim disse ele com voz dengosa. Vamos vai. Eua levo para casa.
Mantendo-se firme, com uma postura quase agressiva, Raquel informou, sem se incomodar com os que
podiam ouvir:
Vagner, se eu estou aqui após o expediente pode ter certeza de que não é por prazer, é por
necessidade. Agora, por favor, se você ficar
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aqui ao lado me pressionando ou me distraindo, será, além de inconveniente, mais um problema para eu
resolver. Agradeço a carona, mas não quero. Obrigada.
Vagner enrubesceu, pois ouviu risos dos que assistiram a cena e sentiu-se humilhado. Raquel ferira seu
orgulho. Seus olhos brilharam e seus lábios apertaram-se, tamanha raiva que experimentou naquele
momento pelo comportamento arredio da colega. Jamais fora tratado daquela forma. Raquel não tinha esse
direito. Estava acostumado a ser recebido com prazer por outras moças quando fazia seus convites.
Envergonhado, mas mantendo-se altivo, falou:
Está certo. Como quiser.
Desculpe-me Vagner tornou Raquel mais branda. Estounervosa com o que faço no
momento e... Desculpe-me.
Tudo bem, Raquel. Amanhã conversaremos.
Vagner guardou imenso rancor da colega que tanto admirava. Em seu íntimo, não poderia negar que
desejava conquistá-la, no entanto, agora, quebrado o encanto, gostaria de fazê-lo, mas somente por sua
honra e para subjugá-la.
Alexandre, que não pôde deixar de observar a cena, ficou quieto em seu canto, sem se deixar perceber. Ele
compreendeu Raquel e verificou o quanto Vagner era inconveniente. Entretanto, nada disse a nenhum dos
dois.
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** página em branco **
Reforçando os laços de amizade
Com o passar dos dias, Alice começou a trabalhar.
Sendo uma mulher inteligente, de aparência respeitável e bonita, ficou ainda mais em evidência com o
auxílio de Raquel, que lhe ajudou com o empréstimo de suas melhores roupas e até acabou comprando-lhe
algumas peças.
Alice, sempre caprichosa com a casa, agora, mesmo trabalhando, não era diferente. No entanto, ela podia
contar com a colaboração de Elói e Raquel, que se propunham, espontaneamente, a algumas tarefas.
Empolgada com a nova experiência de trabalho, Alice passou a comentar em casa sobre alguns assuntos
interessantes em seu serviço. Eram ocorrências novas e até engraçadas para ela, mas que a faziam
esquecer as dificuldades financeiras que enfrentavam.
A ausência de queixas da esposa e os comentários que ela fazia de forma alegre sempre distraíam Marcos,
os filhos e Raquel. Isso provocava um clima harmonioso no ambiente doméstico e Marcos passou a
expressar menor preocupação. Ele se divertia com os casos que Alice contava, dava-lhe mais atenção e
carinho, pois podia aproximar-se mais da esposa, que não o recebia com suas queixas tão contundentes.
Antes, era a forma de agir e falar de Alice que mudava a vibração do ambiente, interferindo no
relacionamento de todos, fazendo-os ficar irritados e dispostos para divergências a qualquer momento.
Então a cliente me fez entrar no provador, experimentar a blusapara ela ver como ficaria em sua
filha, pois a moça não estava ali e amulher afirmava que tínhamos o mesmo corpo contava Alice
muitoanimada, descontraída e com largo sorriso, coisa rara de se ver.
E o gerente? perguntou Marcos.
Ah, sim! Antes de fazer isso eu falei com ele, claro. E aí ele respondeu: "Se é isso o que a cliente
quer, ela manda!"
Todos acharam graça no caso, mas os filhos, Elói e Nilson, chamaram a atenção para outro assunto.
Depois, enquanto arrumava a cozinha, Alice perdia-se em pensamentos de admiração.
"Nossa! Como Marcos mudou!"
O espírito Sissa, que se afinou com Alice por compatibilidade de pensamentos, estava sempre presente
junto dela para opinar e, com isso, ligar-se mais e mais a Alice, através da harmonia e da aceitação de suas
ideias que chegavam, para a encarnada, como se fossem seus próprios pensamentos.
Envolvendo-a como que em um abraço, Sissa opinou de forma muito convincente, aproveitando a primeira
ideia de Alice.
Marcos mudou mesmo. E tudo isso se deu graças ao que vocêtem feito, graças às velas e a tudo
mais que tem oferecido em troca.Afinal, alguém tem que cuidar do lado espiritual da família, e esse alguém
é você. Os seus desejos e a sua fé realizarão milagres se seguir novas instruções recebidas. Terá que
continuar a cumprir com o que lhe mandaram fazer ou então sua vida vai virar aquele inferno novamente.
De imediato, recebendo essas impressões, Alice se deixava envolver ao tecer os seguintes pensamentos:
"Não quero mais ser como antes. Não quero viver como eu vivia. Eu mudei, tenho mais valor e minha vida
também. Realmente tudo está dando certo. As simpatias e os 'trabalhos espirituais' funcionam mesmo. Não
há nada errado com o que eu estou fazendo. Ninguém pode me culpar por estar querendo uma vida
melhor. Tudo mudou! Marcos está diferente, rindo e oferecendo atenção... Vai ver que é por causa do meu
dinheiro que vai chegar no fim do mês. Mas, se ele pensa que eu esqueci o que me falou sobre eu ser
improdutiva, estámuito enganado."
Isso mesmo, minha amiga! insistia Sissa. Valorize-se! Vocêé jovem, bonita! Não merece ser
escrava de um homem como ele.
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"Se Marcos está pensando que vai pôr a mão no meu salário, estámuito enganado. Vou ajudar em casa,
sim. Mas vou me cuidar, preciso me produzir. Ele vive elogiando a irmãzinha dele, pois que se vire com ela.
Agora é que percebo o quanto minha aparência é importante. Meu emprego e meu bem-estar vão depender
da minha apresentação, agora."
Alice, levando consigo Raquel, já havia ido ao referido "lugar" ensinado por sua vizinha Célia. Lá, relatou
todas as suas dificuldades e, após ouvir as orientações, aceitou levar determinadas encomendas que
diziam ser para que os espíritos trabalhassem a seu favor. O pedido era para que Marcos ficasse mais
tranquilo, mais harmonioso com ela e que pudesse se estabilizar no emprego com um salário mais elevado.
O que Alice ignorava é que a estabilidade na empresa em que o marido trabalhava já estava prevista muito
antes de ir à busca daquele tipo de ajuda. Alice negava-se a reconhecer que o esposo só estava mais
tranquilo em casa por ela ter mudado os seus hábitos agressivos ao falar e ter, agora, assuntos novos,
produtivos e bem-humorados.
Raquel, que acompanhou a cunhada, ficou um tanto desconfiada e receosa. Não gostou do que Alice
decidiu fazer, porém, nada podia falar, uma vez que, quando tentou argumentar, ela reagiu contra suas
opiniões. Então, decidiu se calar, apesar de se sentir muito mal com tudo aquilo.
Com o passar dos dias, Marcos estava diante do diretor da empresa em que trabalhava se justificando,
admirado:
Mas, senhor José Luiz, eu nem sei o que dizer!
Eu esperava ouvir de você, Marcos, um "Muito obrigado", só respondeu o diretor, com ar de
riso.
Entorpecido pela agradável surpresa, Marcos tornou a estampar largo sorriso, admitindo satisfação.
Sim, claro! Muito obrigado pela confiança. Eu sei que esse cargoexige responsabilidade, tenho
até receio de não poder corresponder. Comoo senhor vê, tudo aqui na metalúrgica está sendo
informatizado e...
Marcos interrompeu o diretor , agora, sendo o coordenadordo setor, a empresa vai lhe
oferecer cursos nessa área. Você é um profis-
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sional respeitável, uma pessoa de caráter exemplar, esforçado, e, por tudo isso, tenha certeza de que não
será difícil se adaptar à nova função e aprender o que será necessário. Vai dar tudo certo! Bem, a princípio,
seu salário sofrerá um pequeno reajuste. Mas, após os cursos de atuali-zação profissional, vamos corrigir
isso.
O coração de Marcos estava aos saltos. Não cabia em si de tanta alegria.
O senhor não imagina como estou feliz! Nem sei se mereço esse cargo... Obrigado, senhor José
Luiz! Muito obrigado!
Agradeça a Deus e a você mesmo. Foi o seu comportamento, seu empenho e sua dedicação que
nos fizeram observá-lo e concluir quetinha o perfil ideal para essa colocação. Nunca ouvimos qualquer
comentário que pudesse desabonar a confiança que depositamos em você hoje. Chegou a sua chance,
rapaz! Vamos trabalhar juntos e, vou avisando, sou exigente e gosto de estar bem informado sobre todos
os detalhes. Espero que sempre me deixe a par das novidades, uma vez queestamos sem gerente
administrativo, como você sabe, e, assim sendo, oscoordenadores ficarão responsáveis por me transmitir
as informações,certo? Quero ver aquele setor funcionando a todo vapor!
Pode deixar! Vou me empenhar ao máximo!
Ao chegar em casa, Marcos exibia felicidade total e não deixava de falar daquela novidade. Raquel oferecia
toda atenção ao irmão e Alice, muito satisfeita, não conseguia acompanhar a conversa do marido, uma vez
que seus pensamentos se voltavam para a admiração aos credos adotados, às promessas e propostas de
ajuda que recebera daquela doutrina espiritualista que procurara. Contudo, a razão maior de Alice desviar
os pensamentos das palavras de Marcos era o fato de Sissa estar naquele mesmo instante passando-lhe
suas sugestões:
Está acreditando agora nas magias, minha amiga? Viu como omundo espiritual tem força?
Podemos fazer tudo o que você desejar.Tudo! dizia Sissa impregnando, com suas vibrações e seus
desejos, ospensamentos de Alice.
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A encarnada não podia ouvi-la, mas passava a ter ideias e pensamentos que antes não tivera, e que agora
julgava que fossem somente seus.
"Que impressionante! Como tudo está dando certo! Célia foi amigo-na mesmo! Ela tinha razão. Eu não era
feliz porque nunca tive fé. O 'lugar lá' é bom mesmo. Os espíritos que consultei foram
ótimos. Tenho que
voltar lá. Tudo foi tão fácil!"
A ganância passou a fazer parte dos desejos de Alice. Influenciada por Sissa, começou a desejar cada vez
mais os gozos dos bens terrenos através de aquisições "fáceis".
Em outra oportunidade, ao conversar com sua amiga Célia, Alice contava animada:
Ah! Pedi, sim! Quero me destacar no serviço. Preciso de estabilidade financeira. Não serei só
uma vendedora, você vai ver. O gerente domeu setor me disse que nunca viu alguém tão esforçada como
eu. Houve uma pequena reunião com vários vendedores e ele até me destacoucomo exemplo na frente de
todo mundo.
Que virada você deu, hein, menina! Quem te viu e quem te vê.Tem uma coisa, Alice, não deixe
só para os espíritos ajudá-la. Você temque fazer algo por você mesma. Melhore o quanto puder o seu
visual,procure falar baixo, pausadamente, sem euforia, com modos educados,com a maior classe. Não
fique gargalhando alto, nem à toa, seja sempre discreta, em tudo. As pessoas educadas, graciosas, atraem
a atenção dosoutros. Enquanto aqueles que querem chamar muito a atenção para sipassam pelo maior
ridículo.
É verdade. Tenho que contribuir com a ajuda espiritual que estou recebendo. Quanto à aparência,
pode deixar, já estou cuidando disso.Comprei roupas novas e boas. Melhores do que as emprestadas
pelaRaquel.
E a Raquel, foi lá com você?
Foi, foi sim. Mas, sabe, ela parece que não gosta muito. Ah, Célia!Se você pudesse ir comigo...
reclamou Alice com jeito dengoso.
Não dá menina. Só posso ir lá à tarde. De noite o Geraldo, meumarido, está em casa e, já viu, né,
ele não quer saber disso.
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As amigas conversavam mais um pouco até que o horário chamou a atenção de ambas para se
recolherem.
Bem mais tarde, Alice procurava convencer a cunhada para que a acompanhasse:
Ah, Raquel! Vem comigo, vai pedia-lhe Alice com jeitinho.
Puxa, Alice, não sei, não. Eu não gostei de ter ido "àquele lugar".Eu me senti tão mal depois.
Passei até alguns dias meio... deprimida,sei lá. Não seria melhor irmos a uma igreja?
Sempre fui a igrejas, e o que recebi? Que nada, Raquel, vai ver que você ficou ruim ou deprimida
por outra coisa. Passa pela consulta evocê vai ver...
Diante da insistência de Alice, Raquel acabou por acompanhá-la até o "tal lugar", mas não aceitou passar
pela consulta e, mais uma vez, não se sentiu bem com o ambiente por causa do nível espiritual
incompatível com a sua índole.
No dia seguinte, em seu trabalho, Raquel sentia-se um tanto atordoada e não conseguia ficar atenta ao que
fazia.
Puxa vida! O que será que está acontecendo comigo?
O que foi, Raquel? Errou novamente? perguntou Alexandre,que agora, com o último
remanejamento de lugares e funções na empresa, passou a ocupar uma mesa ao lado de Raquel. Somente
umadivisória de poucas proporções os separava.
Nossa! Parece que estou ficando boba! Nem acredito no que estoufazendo.
Dando um empurrão em sua cadeira giratória de rodinhas, Alexandre se colocou ao lado de Raquel e
propôs ajuda:
O que foi? perguntou ao observar mais de perto o que ela fazia.
Novamente me enganei com os códigos e essas reservas foram parar em outro lugar. Quando eu
cancelar, o senhor Valmor vai ficar uma fera.
Não tem alguém com reserva para esse lugar? Veja com os outros,quem sabe?...
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Vai ser difícil respondeu Raquel desanimada.
Dê-me o telefone, quem sabe o Mauro tem alguma coisa paratrocar com você.
Raquel estava sem iniciativa. Desalentada, observou o colega agir em seu lugar. Depois de alguns minutos,
Alexandre, eficiente e animado, solucionou o problema.
Obrigada, Alexandre respondeu Raquel com sinceridade. Você não imagina o que fez por
mim. Eu acho que é a quinta vez, emmenos de um mês, que não presto atenção no que faço.
Ligue para o "suporte" e peça para te fazer um "programinha"onde essas tabelas fiquem
reservadas com as informações, daí, só no fimdo dia, ou quando quiser, você registra e confirma tudo.
Vou solicitar, sim concordou mesmo exibindo desânimo. Após alguns segundos com o olhar
perdido, Raquel admitiu: Também, eu era uma mera operadora e por força das circunstâncias fui
mudando de setor até vir parar aqui. Pouco entendo de programas ou sistemas. Ainda confessou: Mas
tenho que admitir que talvez seja falta de atenção de minha parte. Não sei dizer por que isso está
acontecendo.Sempre tive esses códigos decorados.
Será que você não precisa de férias? Um descanso cairia bem.
Descanso agora seria impossível.
Raquel suspirou profundamente, demonstrando certa insatisfação pessoal com as turbulências de sua vida.
Seu olhar perdido exibia melancolia. Parecia triste e até abatida, seu coração estava apertado e com maus
presságios. Revelando-se atencioso, apesar de discreto, o rapaz preocupou-se e perguntou:
Está com problemas, Raquel?
Erguendo o olhar mansamente, com entonação singular na voz, ela respondeu:
Estou morando na casa do meu irmão. Não sei se você lembra, mas a Rita disse, há algum
tempo, que ele iria morar comigo, mas não deu certo. Houve uma mudança de planos e eu acabei indo
morar com ele.
Pelo visto não está sendo bom para você, não é?
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Não mesmo. Ou melhor, com meu irmão eu me dou muito bem,os desafios que enfrento são com
a mulher dele.
Ah, ele é casado?
Sim, e tem dois filhos. Depois de pequena pausa, Raquel encarou Alexandre com olhar meigo,
ofereceu um doce e singelo sorriso e, por fim, concluiu acreditando estar incomodando-o: Bem, deixapara
lá. Não gosto de incomodar os outros com meus problemas.
O amigo fez um gesto singular e, após sorrir também, voltou ao seu trabalho.
Rita, que os observava a certa distância, corroía-se inquieta pela curiosidade em saber sobre a ligeira
aproximação dos dois. Mais tarde, durante o café, Rita questionava a amiga:
Qual era o assunto, então?
Ora, Rita, eu me "enrolei" com uns códigos e ele estava me ajudando.
E, mas outro dia eu vi quando você não quis almoçar com oVagner e acabou voltando do almoço
com o Alexandre.
Nós nos encontramos por acaso, Rita. Cansada de ser interrogada com tanta desconfiança,
Raquel reagiu: Nossa, Rita! O que você quer afinal de contas?! Eu já lhe disse que não estou
interessada no Alexandre, nem em homem algum. Irritada concluiu: Olha,pega o Alexandre e pendura
no pescoço, tá bom?
Credo, Raquel, eu não sabia que você era tão grossa assim!
Todo mundo tem um limite, você não acha? Estou cheia desse assunto!
E com um gesto, demonstrando-se enfadada, Raquel aquietou-se.
Rita, por sua vez, sabia que não poderia brigar com a amiga, pois agora, principalmente por Alexandre
estar próximo da mesa de trabalho de Raquel, seria mais fácil, ela teria um motivo para se aproximar dele.
Por isso tornou-se mais branda:
Desculpe-me, Raquel. Eu confio em você, mas é que tem horasque... Puxa, eu tenho um objetivo,
né! Sei que me entende. Raquelnada disse, e Rita continuou: Tenho que dar um jeito de me
aproximar dele e, para isso, eu só posso contar com você.
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Comigo?!
Claro, Raquel! Primeiro porque você parece que é a única mulheraqui que não está interessada
no Alexandre, segundo porque ele estábem ao seu lado.
Não sei como posso ajudá-la, Rita. Eu e o Alexandre mal conversamos.
Raquel sentia seu coração apertado sem saber definir o que era. Tentando persuadir a colega, Rita passou
a chantageá-la emocionalmente, pois acreditava em sua sensibilidade:
Raquel, você é a única pessoa que pode me ajudar. Não sei mais o que fazer. Olha dizia a
amiga com modos dengosos , a verdade é que eu não paro de pensar no Alexandre. Estou apaixonada!
Sonho com ele. Imagino que estamos juntos... Eu adoro o Alexandre. Não sei mais o que fazer. Não posso
me revelar e dar uma de fácil, mas tenho que me aproximar dele.
E se ele tiver namorada?
Não tem.
Como você pode ter certeza disso, Rita?
Eu sei que ele não tem ninguém. Parece que nunca teve namorada firme. Ele não se prende a
ninguém.
Ora, Rita, então por que insistir?
Porque eu adoro o cara! Você nunca se apaixonou por alguém?
Não admitiu com simplicidade.
Não! Nunca?
Nunca. Olha, Rita, veja se você não vai se humilhar. Eu acho que, como mulher, devia se
valorizar mais. Tenha auto-estima.
Eu estou gostando do Alexandre, Raquel. Se você nunca se apaixonou por alguém, não sabe
como é. Ajude-me, por favor! pediu Rita com voz piedosa.
Raquel se comoveu e, sem alternativa, concordou:
Está bem. Mas veja lá, não quero me envolver em encrencas!
Que encrenca, Raquel? Você só estará me ajudando. Apóspequena pausa, Rita, com os
pensamentos fervilhando de ideias, propôs: Convide-o para almoçar hoje, certo?
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Eu?!
Claro! Você não quer me ajudar?
Como? Eu não tenho cara para chegar e convidá-lo assim, semmais nem menos!
Mas você disse que iria me ajudar!
Contrariada e pensativa, sem esconder seu descontentamento, Raquel falou:
Olha, Rita, não posso garantir nada. Vou ver.
Vai ver, nada! Você tem que conseguir...Raquel e Rita retornaram aos seus devidos lugares.
Ao ocupar sua mesa, Raquel, pensativa no desejo da amiga, não tinha coragem de sequer olhar para
Alexandre, que estava ao lado. Voltando-se para Raquel, ele a chamou dizendo:
Raquel, o senhor Valmor a procurou duas vezes enquanto você estava fora.
Puxa! Demorei no café, não foi?
Demorou mesmo concordou Alexandre sem exaltação. Aprimeira vez que ele a procurou,
informei que você estava no café; a segunda, disse que havia voltado, mas precisou sair novamente.
Perdoe-me, mas eu falei que você havia ido ao toalete.
Obrigada agradeceu Raquel, pensativa. Já sei o que ele quer, eu tenho que entregar
algumas tabelas de estatísticas comparadascom as das duas últimas férias do mesmo período do ano.
Estão prontas? perguntou o colega.Raquel sorriu sem jeito e, desanimada, afirmou:
Não. Não estou conseguindo. Não sei o que está acontecendocomigo.
Já disse, você está precisando de férias. Após poucos segundos ele perguntou: Quantas
tabelas são?
Seis. Duas férias por ano: deste ano e dos dois últimos.Animado, como sempre, Alexandre pediu:
Dê-me três. Eu te ajudo. Começando agora, em meia hora terminamos.
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Raquel se entusiasmou, não esperava por aquele auxílio. Rapidamente os dois trabalharam no serviço que
pertencia só a ela e que estava atrasado. No final de meia hora estava tudo pronto. Sem perceber, Raquel
abriu um largo sorriso de satisfação ao ter em mãos o trabalho que agora levaria para seu chefe.
Após retornar da entrega das referidas estatísticas para o diretor, ainda exibia um sorriso de satisfação.
Voltando-se para o colega, agradeceu:
Obrigada, Alexandre. Nossa! Nem sei como agradecê-lo.
Eu sei! anunciou o rapaz sorridente.
Como? perguntou ainda iluminada pelo sorriso.
Pagando o almoço! Está na hora, vamos almoçar? convidoucom modos simples e sem
pretensões.
Raquel lembrou-se imediatamente de Rita e concordou:
Claro! Só espere um minuto, pois eu tenho que chamar a Rita,combinamos de ir juntas hoje.
Tudo bem. Chame-a logo concordou avisando em seguida: A história de pagar meu almoço
é brincadeira, tá?
Os três saíram juntos e, como sempre, Rita atraía para si toda a atenção. Só que aquele tipo chamativo de
se apresentar passou a desagradar ao colega, que, mesmo sem demonstrar, entendeu que ele era o alvo
do comportamento evidente ao qual Rita se forçava. Em outros dias que se seguiram houve novamente a
oportunidade deles se reunirem para uma refeição; como antes, Rita se colocava em destaque a fim de
atrair a atenção do colega.
Após alguns dias, em uma manhã qualquer, Raquel estava triste e inquieta. Nada parecia dar certo. Ela
estava quase chorando pela insatisfação com seu trabalho. Percebendo o que seu comportamento,
Alexandre perguntou:
Tudo bem, Raquel?
Ela não conseguiu deter as lágrimas e, com a voz embargada, respondeu:
Não... Essa droga não quer dar certo.
Alexandre, mais uma vez, empurrou-se em sua cadeira para perto de Raquel a fim de acompanhar algumas
planilhas que estavam sobre sua
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mesa. A colega procurava secar as lágrimas e esconder o rosto rubro. Ao lado de Raquel, Alexandre
passou a orientá-la sobre as anotações, e após algumas explicações...
Entendeu? perguntou gentilmente procurando ajudar.Raquel olhava as planilhas e parecia
nem saber o que era.
Entendeu, Raquel? insistiu ele.
A moça não conseguia se concentrar. Novamente as lágrimas teimosas banhavam sua face agora rosada e
ela reclamou com voz abafada:
Esse serviço é novo. Nunca fiz isso e... nem sei o que estou fazendo. Não entendo nada de fatura.
Alexandre, paciente e gentil, procurou explicar todo o processo de exigências para aqueles cálculos e, ao
ver que Raquel ainda parecia alheia, convidou:
Vamos tomar um café, Raquel?
Não. Eu tenho que...
Desse jeito você não vai conseguir nada. Vamos lá! Vem! insistiuo colega, girando-lhe a
cadeira e amparando-a para que se levantasse.
Procurando esconder o rosto avermelhado pelo choro, Raquel atravessou a seção seguida por Alexandre.
Ao chegarem à lanchonete que funcionava em outro andar, ele a acomodou à pequena mesa, quase
escondida em um canto, e foi solicitar dois sucos.
Raquel, muito envergonhada, ainda procurava esconder o lindo rosto meigo em meio aos cabelos sedosos,
perfumados e brilhantes que lhe cobriam parcialmente a face. Alexandre sentou-se à sua frente e, apoiando
os braços sobre a mesa, passou a fixar o olhar na moça que, de cabeça baixa, não o deixava ver seus
olhos. O silêncio reinou por alguns minutos e Alexandre passou a prender sua atenção na beleza física de
Raquel. Apesar de já ter percebido isso antes, agora tinha a oportunidade de observá-la melhor sem ter que
se preocupar com os demais.
A simplicidade da jovem e sua meiguice ofereciam harmonia ainda maior aos seus delicados traços.
Quando Alexandre se surpreendeu em plena admiração pela moça, sentindo grande atração por ela,
respirou fundo, ergueu-se e levantou,
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caminhando poucos passos até o balcão, para ver se o seu pedido jáestava pronto. Preocupado, Alexandre
passou as mãos pelos cabelos esfregando em seguida o rosto, procurando raciocinar:
"O que está acontecendo?", perguntava a si mesmo em pensamento. "Não posso sentir isso. Já me
decepcionei muito em relacionamentos anteriores. Sou experiente e não vou me deixar dominar. Quero
ajudá-la, sim, mas como seu amigo, nada mais. Admiro a Raquel como pessoa. Não vou me deixar
envolver."
Após pegar os dois copos, voltou para a mesa onde Raquel estava mais recomposta de suas emoções.
Espero que goste. É suco de abacaxi.
Obrigada agradeceu em voz baixa, concordando com um aceno de cabeça. Arrastando o copo
para perto de si, Raquel ficou observando-o, deixando seus pensamentos vagarem.
Não suportando o silêncio, Alexandre perguntou:
Não é só o serviço que a deixa inquieta e amargurada, não é,Raquel?
Ela ergueu os olhos tristes, que novamente se rasaram de lágrimas, e afirmou positivamente. Alexandre a
encarou e admirou em pensamento:
"Como Raquel é linda! Como é terno seu olhar e generoso o seu semblante, mesmo quando triste." E
acompanhando os contornos, observou: "Que boca bonita!"
Rápido, surpreso consigo mesmo, procurou fugir daqueles pensamentos insistentes e quase sacudiu a
cabeça para afugentá-los.
"Sou mais forte do que isso", pensava ele. "Não vou me deixar levar por isso."
Em seguida perguntou:
Seu maior problema é por estar na casa de seu irmão, não é? Creio que seja isso que a incomoda
e a faz perder a atenção no que está fazendo.
Sim, é isso afirmou com voz vacilante. Eu preciso sair de lá.Acho que já estou acostumada
a morar sozinha.
Não sei se já te disse, mas eu também moro sozinho e, quando minha irmã resolve ficar alguns
dias no meu apartamento, eu acho es-
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tranho. Parece que não me acostumo mais. Ela dorme na sala, tira a minha privacidade, entende? Mas por
que você não procura outro lugar e se torna independente novamente? É simples.
Não, Alexandre. Não é tão simples assim.
Por quê?
Eu morava numa casa de aluguel, para ajudar meu irmão, saí delá e fui morar com ele. Meus
móveis, minhas coisas não couberam nacasa dele e... Bem, acabei vendendo tudo. Nem cama eu tenho.
Estoudormindo no sofá da sala.
Alexandre ficou perplexo, mas nada comentou, uma vez que teve medo de magoar a colega, que
dificilmente falava sobre si. E ela continuou:
A pouca economia que eu tinha no banco, junto com o que arrecadei devido à venda de minhas
coisas, entreguei ao Marcos para que ele pagasse os aluguéis em atraso.
Você está brincando?! perguntou Alexandre não suportando.
Não. Pior é que não. Agora, depois de alguns meses, a situação dele se estabilizou. Mas eu ainda
continuo ajudando com as despesasda casa. De imediato eu não tenho para onde ir. Para alugar outra
casa preciso fazer depósito de um ou dois meses de aluguel e, em alguns casos, pedem até fiador. Não
tenho dinheiro para esse depósito e mesmo se eu o arrumasse, precisaria mobiliar a casa novamente;
ajudando-os, como estou, não consigo fazer nenhuma economia.
Alexandre a ouviu e depois de refletir um pouco decidiu opinar:
Desculpe-me, Raquel, eu mal a conheço e... Puxa! Fale com seu irmão. Diga que quer voltar a
morar sozinha, pois agora ele já está estabilizado.
Marcos não quer abrir mão da minha presença em sua casa. Dizque está feliz comigo lá, e eu
acredito. Mas o problema maior, Alexandre, nem é esse.
Qual é então? perguntou o rapaz, diante da pausa que se alongara.
Raquel contou tudo sobre sua cunhada e as tais simpatias e lugares frequentados. No final acrescentou:
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Eu não quero mais ir lá. Não gosto disso. Ela vive insistindo e eunão posso me indispor por causa
disso. Nas vezes em que me recusei acompanhá-la, Alice ficou nervosa, irritou-se e começou a bater em
móveis e objetos propositadamente. Isso durou quase uma semana.
Contou ao seu irmão?
Não. Não quero que ele brigue com a Alice. Sabe, eles já tiveram momentos difíceis. Já
discutiram muito e hoje vivem mais tranquilos.Se eu contar, serei o motivo de novas divergências. Temo
que Marcos seja fraco e faça alguma besteira. Sabe, Alexandre continuou , eu nunca acreditei nesse
negócio de espírito ajudar ou atrapalhar os vivos.Mas agora...
Agora o quê?
Eu não gosto de ir lá. A Alice fica pedindo "isso ou aquilo" edepois volta para entregar o que eles
solicitam. Cada vez que eu a acompanho volto tão mal, nem sei explicar o que sinto. Minhas coisas não dão
certo, levo bronca no serviço, não consigo deixar em ordem meu trabalho e até meu dinheiro desaparece.
Às vezes sinto até um mal-estar físico e tudo aumenta à medida que vou lá para acompanhar a
minha cunhada.
Não entendo nada sobre espíritos nem sobre a ajuda que eles podem nos dar. Nunca acreditei
nisso. Mas, de uma coisa tenho certeza, não se envolva com o que você não conhece. Saia dessa,
Raquel.Procure se afastar. Dê um jeito de sair da casa de seu irmão. Mas, enquanto isso, tente separar a
situação. Quando estiver no trabalho, concentre-se no que você tem a fazer aqui. Organize-se. Em casa,
pense nas soluções que terá de providenciar para ajeitar a situação.
Não é fácil.
Sim. Não é. Mas você tem capacidade.
Após conversarem por mais alguns minutos, retornaram para a seção e Raquel já se sentia um pouco
melhor. Alexandre, não resistindo ao impulso, convidou:
Vamos almoçar juntos? Assim conversaremos melhor. Quando ele entendeu que Raquel poderia
convidar a colega, pediu: Só
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que, por favor, não chame a Rita. Ela fala muito e... se tentarmos resolver um assunto conversando a
respeito dele, a Rita não é uma boa companhia.
Raquel se viu numa situação difícil. O que poderia dizer à colega para justificar não tê-la convidado para
almoçar? Alexandre, inteligente, percebeu seu embaraço e sugeriu:
Vamos almoçar bem mais tarde, certo? Eu vou na frente e a espero naquele lugar onde tomamos
lanche outro dia.
Raquel ofereceu um leve sorriso, lembrando-se da cena, e perguntou:
Onde levei aquele susto?
Lá mesmo rindo junto, ele confirmou.
Horas depois, quando faziam um lanche, após conversarem sobre as dificuldades de Raquel, ele perguntou
subitamente:
A Rita está te usando, não é, Raquel?
A moça sentiu-se gelar. Ela empalideceu e não sabia o que dizer ao perceber que Alexandre entendera
tudo.
Bem... tentou justificar, mas não conseguiu prosseguir.
Não precisa se encabular. Desculpe-me por ser tão direto, é quenão há como ignorar. A Rita só
falta se atirar sobre mim. Dizendo isso, Alexandre riu, divertindo-se, e Raquel abaixou a cabeça
envergonhada, sem saber o que falar. Descontraído, ele prosseguiu: Eu fico em uma situação difícil,
entende? Quero muito bem a vocês duas,mas como colegas. Sinceramente, Raquel, não estou a fim de me
prender a ninguém.
Eu entendo. Mas é que a Rita gosta de você.
Alexandre sorriu novamente e não se calou sobre o que observara:
A Rita não gosta de mim. Ela, como algumas outras, quer umcara bonito para lhe servir como um
"cartão de visita".
Raquel sorriu diante da falta de modéstia do amigo. Alexandre, inteligente e perceptivo, ao entender o olhar
da colega, comentou:
É verdade! Eu sei que tenho boa aparência. Assim como você não pode negar, quando está em
frente de um espelho, que é muito bonita.Sua beleza é evidente e sua delicadeza natural ressalta tudo isso
cha-
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mando a atenção de todos, não é, Raquel? Vendo-a embaraçada, com o rosto rubro, Alexandre riu
gostosamente e admitiu: É verdade! As pessoas geralmente se aproximam de nós e nos querem
conquistar pela nossa aparência, e não pelo que somos como pessoa. Se não tomarmos cuidado, vamos
nos envolver em difíceis situações. Estou cansado disso e creio que você também. Acho que todos os seus
namorados primeiro se aproximaram de você por sua beleza, para dizer: "Olha, eu consegui a menina mais
bonita!"
Raquel abaixou a cabeça e ele perguntou:
Não é verdade?
Não.
Sem graça, Alexandre se desculpou:
Bem, então me perdoe. Talvez seu namorado seja sincero e...
Eu não tenho namorado afirmou interrompendo-o.
Mas já teve?
Não.
Nunca?! surpreendeu-se ele duvidando.
Nunca.
Quantos anos você tem?
Vinte e um.
Tenho onze anos a mais que você. De que planeta você veio paranunca ter namorado?
brincou.
Raquel sorriu encabulada e ele tornou, deixando de ser indiscreto:
Bem, isso não vem ao caso. Mas eu sei que você me entende. Jáestou ficando sem jeito na
companhia da Rita. Eu sei que ela vem tepedindo e...
Desculpe-me. Sei que sou eu quem a chamo sempre, mas...
Não! Não se desculpe. A sua presença não me incomoda. A presença da Rita não me incomoda.
O que está me deixando irritado são as atitudes dela, o comportamento exagerado que ela adota para
chamar aatenção. A Rita não se valoriza.
Raquel sentiu-se levando uma bronca. Envergonhava-se do que fizera e agora estava sem graça.
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Raquel Alexandre a chamou e, após encontrar seu olhar fixo nele, segurou as mãos da moça
sobre a mesa e falou mansamente: ,não me leve a mal. Não fique triste por causa disso que estou te
contando como um desabafo. Não quero perder a sua amizade nem a da Rita. Só não quero deixar ninguém
iludido nessa história. Não sou do tipo que subjuga mulher alguma e depois "dá a volta por cima". Esse não
é o meu perfil. Não quero me prender a ninguém, entende? Perdoe-me se eu a entristeço, mas é que
precisava esclarecer tudo issocom você.
Eu entendo, Alexandre. Desculpe-me. Não vai acontecer mais.A conversa continuou, até que o
horário de almoço chegou ao fim e
eles voltaram para o trabalho. Alexandre sentia-se melhor por ter esclarecido aquela situação, mas depois
ficou inquieto pensando que Raquel poderia estar magoada com ele. Mas ela experimentava um alívio por
ter desabafado, principalmente com um colega tão discreto.
Naquele dia Raquel ficou até mais tarde no serviço tentando dar prosseguimento a algumas coisas que não
conseguira terminar. Alexandre, ao dar o horário de encerramento do expediente, se foi, como a maioria
dos outros funcionários também. Vagner, a certa distância, observava Raquel e, bem mais tarde, quando
ela se arrumou para ir embora, a seguiu.
Preocupada com sua condução, a moça andava apressada pelo pátio onde havia poucos veículos
estacionados. A iluminação fraca a deixava nervosa, pois o lugar parecia um tanto sombrio por causa das
árvores que impediam a luz de clarear como deveria. Vagner acelerou seus passos alcançando-a e
colocando-se à frente de Raquel, que gritou assustada.
Calma, Raquel. Sou eu disse ele mansamente e sorrindo.
Você não deveria fazer isso! respondeu nervosa.
Ao procurar sair da frente do colega para seguir seu caminho, ele a impediu segurando-a e dizendo:
Não fique assim. Vou levá-la para casa.
Raquel esquivou o ombro que Vagner segurava e respondeu:
Não. Obrigada.
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Ei! Espera! O que é isso?
Por favor, Vagner. Solte-me! Preciso ir! impôs-se quase gritando.Vagner a segurou com
firmeza pelo braço e, estampando um sorriso,
argumentou:
Calma... As coisas não são assim.
Apavorada, Raquel sentia seu coração acelerar. Um medo aterrorizante a dominou e ela gritou procurando
reagir fisicamente:
Solte-me! Alguém, me ajude!!!
Vagner a segurou com mais força, levando-a de encontro à parede do prédio, abraçando-a e tentando
beijá-la à força. Raquel se contorceu e gritou, momento em que o empurrou. Conseguindo se soltar, saiu
correndo desesperada. Mas nenhum segurança estava nas proximidades. Vagner tentou alcançá-la, mas,
ao se aproximar da portaria, desistiu.
Raquel, ofegante e assustada, passou pelo guarda que estava dentro da guarita e nem a percebeu, pois se
entretinha com um programa que passava na pequena televisão que havia lá.
Ganhando a rua, ela correu até o ponto onde pegaria a condução. Apavorada, sentiu-se mais segura ali
pela presença de outras pessoas. Raquel tentava conter seu nervosismo e as lágrimas, mas era quase
impossível. Trêmula, tinha a respiração alterada. Ninguém ousou perguntar o que estava acontecendo. A
custo conseguiu se controlar aparentemente.
Enquanto isso, Alexandre, após chegar ao seu apartamento, sentia que algo ainda o incomodava. Acreditou
que após um banho e uma alimentação se harmonizaria. Mas isso não se sucedeu; nem conseguiu se
alimentar direito. Foi para o sofá, largando-se na frente da televisão, no entanto sua atenção não se prendia
nos programas exibidos. Seus pensamentos estavam concentrados em Raquel.
"Como ela fora se envolver em tamanha encrenca? Jamais alguém pode se deixar prender assim."
Alexandre não conseguia desviar suas ideias de Raquel. Uma irresistível atração o prendia. Ela era
cativante, emotiva e meiga.
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Droga! quase gritou nervoso. Isso não vai acontecer novamente! completou, jogando para
longe de si uma almofada que antesprendia apertada ao peito.
Levantando-se irritado, Alexandre andou de um lado para o outro sem saber como deter aqueles
pensamentos. Ele já havia sofrido muito por se apegar e amar tanto alguém. Prometera, então, a si mesmo
que nunca mais isso iria acontecer. Apesar disso, sem perceber, a imagem de Raquel se fazia em sua
mente, não só bela, ele a achava maravilhosa, angelical, dócil e delicada.
"Como nunca tivera um namorado?", pensava. "Por quê? Uma moça aos vinte e um anos não ter
namorado! Isso não deve ser verdade", continuava, inquieto e curioso. "E o Vagner? Ele a estava
incomodando. Aquele cara não presta! Raquel é tão diferente, indefesa..."
Tudo nela era agradável para Alexandre. Gostava de poder fitá-la. Queria tê-la naquele momento consigo.
Poder abraçá-la, beijá-la... Raquel fora a única que, até então, não se insinuara tentando conquistá-lo.
Alexandre, deslumbrado, sonhava acordado com a linda Raquel, mas, repentinamente, negava tudo o que,
sem perceber, formava-se em sua mente logo em seguida, independente de sua vontade.
Não! Estou ficando louco falava sozinho. Aos trinta e doisanos não posso me deixar iludir por
uma... uma menina. Segundos depois, tornava a lutar contra si mesmo: Mas eu tenho que ajudá-
la.Raquel parece não ter experiência nem apoio de ninguém mais. Precisoconhecê-la melhor.
E passando as mãos por entre os cabelos, incomodado com os pensamentos teimosos, Alexandre atirou-se
mais cedo na cama e custou muito para conciliar o sono.
Enquanto Alexandre lutava com os próprios pensamentos, Raquel, ao chegar em casa, sentia-se ainda
aterrorizada, mas procurava manter as aparências. Sem coragem, não contou a ninguém o que aconteceu,
apesar de estar desfigurada ainda devido ao susto.
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Alice não notou seu abalo nem seu semblante amedrontado, que exibia que algo estava errado.
Preocupada consigo mesma, a esposa de Marcos só exigia:
Pensei que fosse minha amiga, Raquel. Preciso ir lá hoje e sem falta!Com voz cansada, Raquel
tentava justificar:
Alice, por favor, hoje não. Eu não estou bem. Aconteceram muitas coisas e... Amanhã ainda é
sexta-feira e...
Recuso aceitar um não. Parecendo nervosa, Alice desfechou: Você só se faz de boazinha
comigo quando Marcos está por perto.
Raquel sentia-se muito mal. Tudo a incomodava. Procurava ser forte para não se deixar dominar pelo
pânico, mas estava sendo difícil. Seu coração estava envolto por uma dor inenarrável. Por não ser firme,
arrancando das entranhas da alma forças que desconhecia ter, Raquel acompanhou a cunhada.
Bem mais tarde, ao voltarem para casa, Raquel, exaurida de forças físicas e mentais, mal tomou um banho
e largou-se no sofá, lugar onde dormia. Alice também adormeceu rapidamente. Durante o estado de sono
de Alice, o espírito Sissa, que havia algum tempo acompanhava a encarnada, aproximou-se de seu corpo
adormecido e chamou:
Ei, Alice! Venha, minha amiga. Sou eu.
O corpo físico de Alice estava completamente adormecido e deitado em sua cama, enquanto o corpo
espiritual despertava agora para o plano que os encarnados normalmente não enxergam e até ignoram. E,
nesse desdobramento, aquela alma passou a oferecer atenção ao espírito Sissa, que estava mais próxima
das vibrações, desejos e pensamentos da encarnada.
Alice! Venha, sou eu! insistia Sissa.
Aonde? perguntou Alice, um tanto perturbada ainda.
Vem comigo. É do seu interesse. Vamos encontrar nossos amigos.
Amigos?
Sim. Você já os conhece. Nós vamos visitá-los num lugar maispropício.
Por ser um espírito ignorante, sem elevação moral, Sissa não podia suprir a companheira encarnada de
amparo, sustentação e bem-estar, o que proporcionava a Alice um estado confuso e perturbado.
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Alice, por sua vez, em desdobramento, tinha aquela companhia espiritual pelo nível moral em que se
colocava, por falta de fé, pela ignorância sobre a vida espiritual e, principalmente, pela ganância material.
Ela não fazia preces a Deus e isso tudo não a deixava favorável para receber algum envolvimento ou
inspiração de seu mentor.
Sissa levou a companheira encarnada para uma faixa vibratória inferior, onde se situava um lugar estranho,
havendo ali vários espíritos de baixos valores morais e inúmeros encarnados em desdobramento pelo
estado de sono. Os encarnados podiam ser reconhecidos pelo cordão fluídico que se alongava do corpo
espiritual, ou perispírito, até o corpo físico, que se encontrava em repouso.
Desencarnados com aparência sinistra preservavam tudo, "organizando" a reunião.
Depois de alguns rituais que foram feitos a fim de impressionar todos e com o intuito de prestar como que
uma homenagem, demonstrar obediência e simbolizar respeito ao líder, deu-se início à reunião. Quando
todos observaram que o chefe fez menção de tomar a palavra, o silêncio foi absoluto.
Eloquente, circunvagando à sua volta, ele falou sentindo-se absoluto:
Mais uma vez, estamos reunidos em favor da nossa força, dos nossos direitos e dos nossos
domínios, mostrando que as chamadas"Falanges da Luz" nada mais são do que migalhas sob nossos pés.
Ninguém proporciona maior segurança ou maior prazer do que a força que obtemos com a nossa união.
Todos a favor de todos! disse o líder com vibrações tenebrosas e olhar fulminante.
Sua aparência era humana, porém ele moldava sua forma perispiritual excessivamente avantajada à dos
homens comuns, a fim de impressionar e impor medo.
Moldava também roupas escuras. Destacando-se em um patamar mais alto onde todos ali reunidos podiam
percebê-lo com nitidez e facilidade.
... porque ficamos anos e anos e nenhum auxílio chegou a nosso favor prosseguia ele.
Quando encarnados, a pobreza, a miséria, as
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doenças e as calamidades nos atingem, aflige e massacra a nós e a nossa família. E então, qual é o
socorro e o auxílio que nos vêm das "Falanges da Luz"?! gritava, intimidando a todos com sua
veemência. Nenhuma!!! Esses miseráveis têm o prazer de nos ver sofrer e na desgraça! Qual a ajuda
que tivemos? Sem esperar por uma resposta, continuava: Nenhuma! A ajuda que eles nos dão é
consolação barata, dizendo que temos de aceitar a dor, o sofrimento, a angústia e o desespero.
Nossa "Organização" proporciona aos seus membros e simpatizantes a verdadeira ajuda e o total
auxílio para uma vida melhor, maisfarta. Custe o que custar! Vocês, encarnados, serão na Terra a prova
dafelicidade e da fartura. Vocês terão a ajuda, o amparo, a nossa força! Nesse instante, uma ovação dos
presentes o aclamou. Fortalecido pelo apoio, ele continuou: Nós, espíritos dessa "Organização",
seremos fiéis e protetores! Em meio ao murmurinho que se fez, ele indagou: Alguém tem alguma
pergunta?
Um encarnado, em meio à grande aglomeração, um tanto vexado, questionou:
Desculpe-me, mestre, mas não estamos pecando quando desejamos a força, isto é, por
intervenção de vocês conseguir o que talvez não era para ser nosso?
Pecado?! vociferou o líder. Pecado é você permitir-se viver na miséria do mundo! Nós
somos donos da nossa vida! Vamos nos ajudar uns aos outros! Vamos nos irmanar!
Alice sentia-se confusa, mas nada questionou até então. Sissa, mais animada, argumentava:
Conseguimos nosso objetivo e haveremos de gozar a verdadeirafelicidade.
Como vão nos ajudar? perguntou Alice.
Serei a sua "porta-voz" aqui na espiritualidade. Nossos desejos se igualam e nossos objetivos são
os mesmos.
Como vou pagar tudo isso? O que eles pedem?
Nossa fé. Veja, Alice, eles têm razão. Qual foi a justiça que se realizou a seu favor? Lembra-se da
vida miserável que levava.
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Não sei, não duvidou a encarnada.
Se você ficar com medo, Alice, sempre estará na miséria.Após alguns minutos, Alice indagou:
Como chegamos até aqui? Vejo tudo tão bem guardado.
Ganhamos um "passe livre" quando você foi pedir ajuda aos espíritos. Foi assim: você chegou lá e
contou todos os seus problemas edesejos. Como eu sou o único espírito que se preocupa com você,
os trabalhadores da espiritualidade me informaram tudo o que era necessário saber enquanto você ouvia os
encarnados. Depois que você aceitou levar as encomendas solicitadas, me deram autorização para trazê-la
aqui. Nosso ingresso para entrar nesse lugar é esse desenho na palma da sua mão.
Alice estendeu a mão e pôde comprovar linhas traçadas como figuras geométricas.
Como isso está aqui?
Esse "ingresso" foi gravado em uma das vezes que fomos lá.Ambas continuaram ali boa parte do
tempo. Elas aguardavam algum assistente daquele líder que viria atendê-las e oferecer informações.
Por não atender às inspirações que recebera e não ter uma opinião forte para recusar acompanhar sua
cunhada, Raquel, também em desdobramento pelo estado de sono, participava daquela reunião, só que em
um estado assonorentado e ainda mais confuso. Ela recebera fluidos pesados, pois era importante que não
estivesse lúcida. Se estivesse desperta como Alice, seria bem provável que oferecesse resistência e saísse
dali.
Dois espíritos que auxiliavam aquele líder sustentavam Raquel que pendia a cabeça como se estivesse
desfalecida. Não se lembraria de nada, mas recebia as vibrações e as impressões funestas de tudo e
sofreria, mais tarde, com as consequências de sua invigilância. Seu mentor pessoal não era visto, mas,
junto com outros benfeitores, acompanhava de perto sua pupila, deixando tudo aquilo acontecer a fim de
que Raquel aprendesse a ser firme em suas opiniões e não se deixasse envolver em situações como
aquela.
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Ele poderia interferir, no entanto não o fizera.
Aquela experiência traria um desconforto imenso para Raquel que, com certeza, aprenderia, a duras penas,
ligar-se a Deus e fazer sua opinião imperar diante de determinadas circunstâncias duvidosas.
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** página em branco **
Capítulo 4
O passado angustioso
Na manhã que se fez radiosa, Raquel despertou confusa e amargurada. Algo estava errado! Lembrou-se
do que Vagner lhe fizera e sentiu-se como que enojada com aquela recordação. Mais do que nunca uma
angústia a castigava e, como uma dor, seu peito apertava incomodando-a muito.
Na cozinha, ao encontrar com seu irmão e sua cunhada, Raquel nada comentou. Arrumou-se logo e foi
para o trabalho bem mais cedo, sem nem mesmo fazer o desjejum.
Alice também não se sentia normal, um cansaço a dominava. Parecia que não tinha dormido. Dores
musculares se estendiam por todo o seu corpo e um mau humor passou a ser expresso.
Que noite horrível! reclamou Alice ao esposo. Dormi tão mal. Tive um sono confuso...
perturbado.
O que você sonhou?
Sei lá... Era tudo muito estranho. Eu lembro de poucos detalhes.Vi um lugar que parecia uma
aldeia da Idade Média. Só que havia váriascavernas nas rochas que nos circundavam. Parece que vi
tochas acesas eum homem grandão falando muito.
O que ele falava? interessou-se Marcos.
Não sei. Ah, credo! Não quero me lembrar disso. Nem parece que eu dormi. Estou tão cansada.
Marcos aproximou-se da esposa, abraçou-a com carinho e lhe disse generoso:
Calma, Alice, todo esse cansaço vai passar. Lá na empresa tudo estáindo muito bem. Daqui a
algum tempo eu creio que você poderá parar de trabalhar e aí tudo será como antes. Você voltará a ficar em
casa e tranquila.
Alice reagiu imediatamente. Afastando-se do abraço, com o olhar expressando rancor, semblante sisudo,
revidou ao que acreditou ser uma audácia de seu marido.
Nunca! Não vou parar de trabalhar, nunca! O que você está pensando? Acredita que vai me
dominar novamente deixando-me dependente das suas migalhas? Pensa que eu esqueci o dia em que me
chamou de improdutiva?
O que é isso, Alice? surpreendeu-se Marcos, com amargo desapontamento.
Olha aqui, meu filho! Se você está pensando que eu vou voltar aviver à sua custa, está muito
enganado. Tenho capacidade e valor, vou lhe provar isso.
Marcos ficou perplexo, incrédulo! Aquela reação inesperada da esposa o fez perder as palavras.
Com modos rudes e um tanto violentos com os objetos da casa, ela se arrumou, pegou sua bolsa e foi para
o trabalho pensando, contrariada, nas ideias de seu marido. Alice sentia-se indignada! Sissa, sempre
próxima, continuava a orientá-la e a envolvê-la.
Isso mesmo! Você não é escrava dele. Você tem capacidade e valor,sim.
Alice não podia ouvi-la, entretanto, ininterruptamente, as impressões e os desejos daquele espírito a faziam
repudiar o marido.
Enquanto isso, na empresa onde Raquel trabalhava, mesmo sem esperar pelo início do expediente,
Alexandre já se encontrava em atividade, concentrando toda sua atenção em alguma tarefa que ficara
pendente. Em dado momento, ele se surpreendeu ansioso desejando que Raquel chegasse logo. Precisava
vê-la o quanto antes. Mas, contrariado consigo mesmo, às vezes relutava com as próprias ideias.
Suspirando profundamente, deixando-se recostar na cadeira com o corpo largado, Alexandre cerrou os
olhos por alguns instantes e refletiu:
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"O que será que está acontecendo comigo? Pareço um adolescente". Recordando a conversa que tivera
com Raquel, temeu que estivesse triste com ele, afinal ela era muito sensível. "Será que ela está magoada
comigo? Preciso saber. Preciso ajudá-la a sair da casa de seu irmão. Enquanto estiver morando lá não terá
sossego. Não poderá pensar em outra coisa... nem em mim. Deus! O que estou imaginando?!" Esfregando
o rosto com as mãos, apoiou os cotovelos sobre a mesa à sua frente e, ainda com as mãos cobrindo o
rosto, pediu em pensamento: "Deus, ajude-me. Não quero sofrer novamente. Não posso estar gostando
dela. Ajude-me".
Naquele momento, Alexandre assustou-se com a aproximação de Vagner, que o cumprimentava com uma
pergunta:
E aí? Caiu da cama? Ao encará-lo surpreso, o colega tornoumais cordial: Bom dia,
Alexandre!
Bom dia.
Caiu da cama, Alexandre?
É... Tinha algumas pendências e resolvi chegar mais cedo.
Como está se sentindo com a mudança de lugar e mais próximo da Raquel?
A mudança de lugar não interferiu em nada, mas o remanejamento de atividade está me fazendo
penar um pouco.
E a Raquel?
Não sei. O que tem ela? respondeu Alexandre com uma pergunta e começando a se sentir
irritado com aquela conversa.
Não se faça de bobo, Alexandre. Como ela está se comportando?Deixou de ser "durona"? Está
mais flexível com você?
Alexandre fez silêncio por alguns instantes, abaixando o olhar e pensando em uma resposta conveniente,
entretanto, antes que refletisse, Vagner insistiu:
Cá pra nós, somos homens e... sabe como é, esse tipo de mulher misteriosa e difícil é só para fazer
charme e chamar a nossa atenção. Após breves segundos comentou: Ontem eu tentei "chegar"
nela,mas não deu.
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Não tolerando a ironia de Vagner, Alexandre procurou se conter, falando sério e quase irritado:
Vagner, é o seguinte: eu não estou aqui para conquistar ou seduzir ninguém. Estou preocupado
com o meu trabalho, quero aproveitar as oportunidades e, principalmente, aprender com os desafios.
Resumindo: quero crescer profissionalmente. Se existe gente fazendo cena de mistério, aqui não é o lugar
adequado. Raquel faz da vida dela o que quiser. Ela não me diz respeito e, como já lhe disse, o caminho
está livre. Não estou interessado. Se você tiver capacidade, conquiste-a.
Ofendido, Vagner revidou com palavreado vulgar, duvidando da moral de Alexandre por não estar
interessado na colega. Irritado, Alexandre levantou-se rapidamente, agarrou-o pela camisa e, quando
armou o punho fechado para acertá-lo, Raquel, que acabava de chegar, foi ligeira, segurou-o pelo braço,
quase se pendurando em Alexandre e colocando-se entre eles, dizendo:
O que é isso? O que está acontecendo aqui? indagou assustada.Alexandre estava furioso,
ofegante e com um suor frio gotejando no
rosto. Ele trazia no olhar uma raiva incontrolável. Raquel, ao encarar Vagner, lembrou-se do que ele lhe
fizera no dia anterior e o odiou por aquilo. Sem perceber, ela apertava o braço de Alexandre sem largá-lo.
Vagner, empalidecido e com a respiração alterada, ajeitou a roupa e temeu que ela contasse algo, isso
irritaria ainda mais Alexandre que certamente reagiria. Cabisbaixo, retirou-se sob a mira dos olhares
brilhantes, fulminantes de ambos.
Como o expediente ainda não tinha começado e a cena foi rápida, ninguém percebeu o que se passou ah,
pois havia poucos funcionários no setor. Segundos depois, trêmula, Raquel ainda se fazia em pé e
Alexandre, agora muito pálido, atirou-se na cadeira e, ofegante, cerrou os olhos. Aproximando-se do
colega, ela o ouviu falar quase sussurrando:
Preciso de um pouco d'água.
Raquel rapidamente trouxe-lhe um copo com água. Assustada, ela observou quando Alexandre,
trêmulo,
mal conseguiu abrir uma gaveta
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e apanhar um vidro escuro, sem rótulo, de onde tirou dois comprimidos, ingerindo-os com rapidez.
O vidro aberto tombou na gaveta, espalhando algumas cápsulas pelas mãos vacilantes do rapaz. Calma,
Raquel as ajuntou, guardando-as novamente no frasco. Agora, fitando Alexandre por alguns minutos,
vendo-o com os olhos fechados e praticamente com o corpo largado na cadeira, ela percebeu sua palidez
acompanhada de um suor frio que umedecera sua face. Depois de alguns segundos, suspirando
profundamente, ele ergueu o tronco e, ainda sentado, ajeitou-se na cadeira, esfregando o rosto com as
mãos e alinhando os cabelos, recompondo-se um pouco mais. Vendo-o mais refeito, Raquel perguntou com
voz suave, quase sussurrando:
Sente-se melhor?
Alexandre, engolindo a seco, ergueu o olhar encarando-a e, forçando um sorriso, afirmou:
Estou bem. Desculpe-me.
Ainda nervosa, mas procurando se conter ao máximo, com cautela ela perguntou:
O que estava acontecendo, Alexandre?
Ele se sentia tonto e precisava respirar. Tranquilo, mas exibindo ainda certo tremor nas mãos fortes, avisou:
Raquel, eu preciso de ar. Vou dar uma volta... Acho que vou lápara o pátio, no estacionamento.
Ainda faltam cinquenta minutos para o horário. Vou com você,também estou nervosa.
O rapaz, com o semblante sério, saiu na frente seguido por Raquel. Pegaram o elevador e o silêncio foi
absoluto. A moça olhava-o assustada, temia que ele passasse mal, pois pouco podia fazer. Alexandre era
alto e forte. Vez ou outra ele esfregava as mãos que traziam, além da palidez, um suor gelado.
Já no estacionamento, caminharam vagarosamente sob as árvores na calçada estreita entre os carros que
se estacionavam a quarenta e cinco graus, sem dizerem nada. Após alguns instantes, ao chegarem perto
de
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um banco, Alexandre parou e fez um gesto para que Raquel se sentasse. Ela assim o fez e ele se
acomodou a seu lado. Quebrando o silêncio, Raquel perguntou:
O que aconteceu? Você está branco feito cera. Ainda não estábem?
Já estou melhor. Pouco depois, desabafou irritado: Desgraçado! Ele me paga.
Você e o Vagner são amigos. O que aconteceu para quase bater nele?
Se não fosse você, eu iria quebrá-lo ao meio. Após pequenapausa avisou: Temos que
tomar cuidado ao falar com os outros, Raquel. Tem coisa que não se diz. Não se deve mexer com a moral
deninguém.
O que ele falou que o deixou assim? Fiquei preocupada. Penseique você fosse desmaiar.
Alexandre olhou-a com ternura e procurou explicar:
Não vou repetir o que ele me disse. Não tenho com você liberdade para falar as mesmas
palavras que aquele crápula usou. Foi uma conversa de homem e ele... Bem, ele me ofendeu moralmente,
duvidando da minha capacidade, da minha integridade. Entende?
Ora, Alexandre, entre amigos há brincadeiras como essas.
Eu não tenho amigos. Não confio em ninguém.
Raquel se calou amargurada, lembrando da agressão que sofrera no dia anterior. O colega percebeu algo
estranho e perguntou:
O que houve?
Nada.
Você também não gosta dele, não é? Sem obter respostas, ao lembrar, perguntou: Ele me
falou que "chegou" em você ontem. O que aconteceu? Raquel abaixou a cabeça e não se manifestou.
Curioso e interessado, Alexandre insistiu: Ele está "dando em cima" de você?
Raquel estava quase chorando. Lágrimas brotavam em seus olhos, mas sua posição dificultava que
Alexandre visse.
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Você está melhor? perguntou para dissimular.
Sim. Já estou bem respondeu sorrindo suavemente.
O que você sentiu? O que era aquilo que estava tomando?Agora, com o semblante mais
tranquilo, quase sorrindo, ele a olhou
e ajeitou-se melhor, tomando-lhe as pequenas mãos e colocando-as entre as suas. Raquel, séria, pareceu
repelir a atitude quando se enrijeceu erguendo o corpo e ajeitou-se no banco puxando vagarosamente suas
mãos. Alexandre, deixando-a à vontade, percebeu a reação, mas nada disse a respeito e comentou:
Tenho uma história longa e... Bem, não sei se você quer ouvir.Ambos se entreolharam. Alexandre
parecia suplicar com o olhar a
atenção da jovem. Ele estava angustiado, magoado. Jamais confiara a um conhecido todos os seus
pesares, todos os seus sentimentos mais puros.
Eu quero saber. Conte-me, por favor pediu com voz suave eolhar atento.
Mais à vontade, Alexandre iniciou:
Anos atrás, por uma grande oportunidade de emprego, eu fuitrabalhar em outra cidade. O salário
era ótimo, mas a viagem diáriaseria cansativa, quase impossível de suportar. Foi aí que eu e mais
trêscolegas alugamos uma casa e passamos a morar juntos. Ganhei umbom dinheiro. Fiz uma excelente
economia e, no final de uns quatroanos, retornamos. Quando regressei, não consegui mais morar
commeus pais. Ficou estranho. Com a desculpa de querer morar perto do serviço, eu e os mesmos amigos
alugamos um apartamento e voltamos a morar juntos. Dividíamos as despesas e pagávamos também
umaempregada para cuidar das coisas. Nessa época, comecei a namorar firme com uma moça que já
conhecia há alguns anos, pois ela morava próximo da casa dos meus pais. A essa altura da conversa,
Alexandre engoliu a seco e se deteve. Suspirou profundamente, esfregando suavemente as mãos, e depois
prosseguiu: Nosso namoro era sério.Depois de alguns meses ficamos noivos... Após breve pausa,
continuou: Com o dinheiro que economizei, comprei um bom aparta-
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mento. Apesar de esse imóvel ser novo, acreditamos que uma pequena reforma seria necessária para o
termos a nosso gosto. Meu pai tem uma boa situação financeira e a reforma seria o seu presente de
casamento. Ele me ajudou muito.
Alexandre fez longa pausa. Raquel o olhava firme e percebeu que seus olhos brilhavam, quase se
empoçando em lágrimas, quando ele disse:
Eu a amava muito. Muito mesmo. Apeguei-me tanto a ela que,em tudo, pedia a sua opinião. Eu
acreditava que não poderia viver sem a Sandra. Marcamos a data do casamento, enquanto mobiliávamos
oapartamento. Nessa época eu ainda morava com meus colegas. Entre eles, um era muito especial. Amigo
mesmo. Seu nome era Júlio.
Raquel estava atenta e não se incomodava com as pausas, cada vez mais longas, que ele fazia.
Um dia tornou Alexandre, com voz grave , percebi a Sandramuito diferente. Nervosa. Não me
importei, achei que fosse por algumacoisa da mobília que haviam entregado errado. Sabe como é, toda
noivafica exigente e Sandra não seria diferente. Passados uns dois dias, estávamos no apartamento em
que morava junto com os colegas, mas eles não estavam. Sem que eu esperasse, Sandra falou: "Estou
grávida". Foi umchoque! Um susto feliz! Nesse instante, Alexandre sorriu e confessou: Verdade. Fiquei
feliz mesmo. Eu a abracei e a beijei. Estava contente... Realizado! Apesar disso, percebi sua frieza e
indiferença. Sandra não estava contente. Ela ficou nervosa com a minha reação. Afastando-se de mim, ela
disse que não queria aquele filho. Conversamos muito e Sandra estava irredutível.
Alexandre olhou para o céu a fim de dificultar que as lágrimas que brotaram corressem por sua face e,
tentando disfarçar, virou-se respirando profundamente. Raquel permanecia calada e ele prosseguiu:
Nunca tinha visto minha noiva tão irritada, tão agressiva, tão cruel. Implorei para que ela deixasse
meu filho nascer. Sandra não me respondia nada e... Passamos um péssimo fim de semana. Domingo à
noite, não aguentei guardar comigo aquela história e acabei
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desabafando tudo com meu amigo, o Júlio, que ficou tão surpreso quanto eu.
Sandra estava de férias e, na segunda-feira eu queria falar com ela, mas tinha que ir trabalhar, havia algo
muito importante para fazer no serviço naquele dia e tive que ir. Após o almoço, eu estava com uma dor de
cabeça insuportável. Tomei um remédio, mas não adiantou, tive que ir embora. Foi então que pensei em
chegar em casa, ligar para ela e pedir que viesse me ver para conversarmos. Eu não estava bem e
precisava dela. Mas, ao chegar em casa, quer dizer, ao apartamento onde eu morava com os colegas, bem
mais cedo do que de costume, percebi algo diferente. Havia uma movimentação em um dos quartos e
pensei até que fosse algum ladrão. Entrei sorrateiramente e surpreendi minha noiva e meu melhor amigo
deitados juntos... Muito àvontade...
A voz de Alexandre embargou. Ele parecia ainda sofrer com aquela decepção. Após longo silêncio, Raquel,
sentindo seu coração apertado, perguntou:
O que você fez?
Tomando fôlego, curvando-se, entrelaçando as mãos à frente dos joelhos e prendendo o olhar em algum
ponto do chão, Alexandre falou mansamente:
Fiquei furioso. Verdadeiramente fora de mim. Invadi o quarto,esmurrei Júlio o quanto pude. Sandra,
enrolada em um lençol, tentoume impedir e... Acabei dando-lhe um tapa muito forte. Ao vê-la caída
echorando de um lado e Júlio, muito machucado, do outro, fiquei atordoado. Só então me dei conta da
situação. Perturbado, decepcionado, ferido, saí sem rumo. Quando dei por mim, estava diante da casa de
meuspais. Senti que algo estava errado comigo. Comecei a passar mal. Entreie minha irmã veio ao meu
encontro. A última coisa que me lembro é do rosto de Rosana, minha irmã, falando algo que eu não ouvi.
Acordei unstrês dias depois num hospital. Tive uma parada cardíaca. Se não fossem os primeiros socorros
prestados por um policial que soube o que fazer,talvez eu não tivesse resistido.
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É por isso que precisou do remédio? perguntou surpresa.
Sim. Eu tive uma parada cardíaca, resultado de uma tensão emocional gerada por uma irrigação
sanguínea insuficiente no músculo cardíaco respondeu Alexandre sem encará-la, e na mesma posição.
Continuando em seguida: Nunca percebi nada. Nunca precisei de ummédico. Alexandre riu
forçosamente e lembrou: Praticava esportes, nunca fumei e não bebo, mas tinha o coração fraco e não
sabia. Era uma inflamação das membranas das paredes do músculo cardíaco que eu ignorava ter.
Brevemente explicou: Para problemas cardíacos existem medicamentos, que aumentam a força das
contrações cardíacas,chamados "cardiocinéticos". Como também os "cardiotônicos", que contêm
adrenalina e coramina para estimular a função do músculo cardíacoenfraquecido. Eles agem sobre os
centros nervosos que são dependentes da pulsação cardíaca. Isso tudo regula o ritmo do coração.
Virando-se para Raquel, perguntou brandamente: Entendeu por que eu precisei tomar aqueles
medicamentos?
Raquel afirmou com um aceno de cabeça e ele continuou:
Um mês depois, eu estava na casa dos meus pais me recuperando ainda. Ninguém sabia do
flagrante que eu dera em Júlio e Sandra. Ospais dela me visitavam com frequência sem entender a
distância que afilha mantinha de mim diante do meu estado de saúde. Perguntaram algumas vezes o que
tinha acontecido entre nós, mas não insistiram quando silenciei, talvez por causa de minhas condições
físicas. Quantoa ela, nem sei o que dizia a eles. Passados alguns dias, ao me ver a sóscom o pai dela, criei
coragem e contei tudo o que tinha acontecido, faleida traição, pois a peguei na cama com meu melhor
amigo... Nossa,pensei que o homem fosse enfartar. Ele não me disse nada. Transtornado, seus olhos
ficaram cheios de lágrimas e ele emudeceu. Estapeou-meas costas fortemente, parecendo ser um gesto de
solidariedade, entendendo a minha situação, e depois foi embora.
Eu já estava bem melhor nessa época, até voltaria a trabalhar napróxima semana, mas no dia
seguinte a esse episódio, eu estava assistindo à televisão, tentando arrancar da lembrança a cena de
traição, que era
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constante, quando ouvi um murmurinho e a voz de Rosana, minha irmã mais nova, um tanto irritada.
Levantei-me e fui ver do que se tratava. Sandra falava alto, estava irritada e à minha procura; Rosana
tentava detê-la.
Quando me aproximei, ela me jogou a aliança no rosto e falou:"Toma! Eu odeio você! Quero que
morra!" Com o olhar transbordando rancor, ainda disse ironicamente: "Sabe o filho que estou
esperando?Não é seu, é do Júlio. Você não é homem para isso. Eu sei por que vocêgosta de viver com
rapazes. Estou sabendo do seu caso com o Celso eque você é 'mulher' dele". Ensurdeci. Senti o sangue
fugir do meu rosto e, novamente, acordei no hospital.
Decepcionei-me tanto! A cena da traição era constante, viva na minha mente! Eu não conseguia
me livrar da imagem de Sandra me dizendo tudo aquilo. Eu a amava, ainda. Não suportei tanta
pressão!Parecia que podia ouvir a sua voz repetindo que o filho não era meu equê...! Você não imagina
como foi, Raquel. Eu parecia ver, a todo instante, meu amigo e minha noiva se amando, se beijando
abraçados.Fiquei louco! Fui fraco, cedi aos impulsos e, mesmo internado, tentei osuicídio. Breve pausa e
completou envergonhando-se da confissão: Um enfermeiro me impediu por duas vezes.
Como? perguntou Raquel, surpresa pelo relato.
A primeira vez foi cortando os pulsos. O homem chegou atempo e, bem, fiquei com essas
cicatrizes de recordação explicoumostrando o pulso. A segunda vez, quase consegui. Sabe, Raquel,a
ideia de morte era fixa. Eu tinha que me matar. Eu queria morrerpara me livrar das imagens que viviam na
minha mente. Por isso,tentei me enforcar no banheiro e pelo fato de não haver muita distância entre o
registro e o chão, por causa da minha altura, amarrei umaponta do lençol rasgado e torcido o mais alto que
pude e a outraponta no meu pescoço e usei meu peso para me asfixiar. Fui ficandotonto, sentindo um
ensurdecimento, enquanto a visão escurecia descreveu com verdadeiro drama. Tive uma experiência
que jamaisvou esquecer. Em poucos segundos, que pareceram eternos, ouvi gri-
tos horripilantes, vi vultos que cada vez se tornavam mais nítidos, fixos, horrorosos! Fiquei com medo e
tentei reagir. Mas não dava. Meus braços não se moviam, não obedeciam. Tentei gritar, mas minha voz não
saía. Não conseguia mais ficar em pé, pois não sentia minhas pernas. Experimentei uma dor horrível no
corpo inteiro. Foi tenebroso! Eu quis voltar atrás e não pude...! Após ligeira pausa, mais calmo, ele
continuou: Dificilmente eu conseguirei, um dia, traduzir em palavras aqueles segundos de horror. Não há
linguagem que descreva tal emoção ou sensação macabra. Eu acho que Deus teve piedade de mim e o
mesmo enfermeiro que me socorreu na primeira vez chegou ao banheiro. Ao me ver roxeando, ele me
soltou e me ressuscitou.
Acabaram me transferindo para a ala psiquiátrica. Mesmo eu contando tudo o que passei e o medo que
senti, não acreditaram em mim. Meus pais, visando minha segurança, me internaram em uma clínica de
repouso por um mês. Fiquei sob vigilância ferrenha. Saí de lá e, a pedido deles, fiz terapia e... Bem, estou
vivo, né!
A essa altura da conversa, Alexandre sorriu. Raquel estava séria e incrédula.
Bem, essa é minha história, Raquel. O resto é simples. Ah! Ia me esquecendo. Júlio também me
procurou e me agrediu com palavras, tentando mexer com meu brio. Soube que Sandra tirou o filho que
esperava. Eu não sei lhe dizer se aquele filho era meu. O pai dela a expulsou de casa. Eles tiveram brigas
sérias e ela foi morar com o Júlio. Não tive mais notícias deles.
Assim que me recuperei, voltei a sair da casa dos meus pais porque, depois de tudo, não conseguia
encarar alguns parentes que iam lá pelo prazer de me ver naquela situação, pois a Sandra, talvez irritada
por eu tê-la agredido, me difamou para todo mundo. Principalmente para minha família, alguns tios e
primos. Disse que eu não era homem, inventou que eu tinha um caso com aquele colega, falou que eu não
era pai do filho que ela esperava... Resumindo, foi o maior escândalo.
Alexandre parou, olhou para Raquel, criou coragem e completou:
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Sandra ainda contou que começou a gostar do Júlio porque foi ele quem a consolou quando ela
descobriu que eu era homossexual. Aí eles se apaixonaram.
Raquel ficou perplexa. Paralisada. Alexandre ainda afirmou:
Nunca pensei que alguém pudesse mentir tanto e ser tão cruel com quem... O rapaz deteve as
palavras, parecendo ainda magoado eferido com tudo aquilo.
Raquel, num impulso, sem perceber, tocou-lhe o ombro com suavidade, deixando a mão repousar sobre ele
e, com a voz macia, afirmou compreendê-lo:
Eu sei o que é isso. Sei o que é encontrar alguém cruel e mentiroso.
Sabe?
Ser acusada de algo e não ter como se defender, ser agredida sem merecer, ser rejeitada... Ah!
Sim, eu sei o que é isso.
Alexandre se voltou para ela e a encarou, dizendo:
Não posso negar que amei muito a Sandra. Fiz tanto por ela. Se fosse necessário, eu lhe daria
minha vida. Tudo o que sentia se transformou em decepção e mágoa. Sinto um asco... Jurei a mim
mesmo nunca mais amar alguém. Sério, com a testa quase franzida e os olhos brilhantes, afirmou: Não
quero outra mulher na minha vida.Você não imagina como sofri. Nesses últimos dois anos, necessitei
demuita força de vontade para continuar vivendo. Deus bem sabe. Sinto-me amargurado. Às vezes acho
que ainda não encontrei uma razão, um motivo... Sinto-me vazio, dolorido. Por isso digo que não tenho
amigos, que é preciso tomar cuidado ao falar sobre a moral dealguém.
Embora Raquel não parecesse perturbada, seu olhar expressava uma tristeza infinita, como se recordasse
de algo. Alexandre sentiu que ela fora a única pessoa capaz de entendê-lo. Por um segundo ele se pegou
admirando-a de novo, sem que se forçasse a isso. Incomodado com o pensamento, examinou o relógio,
assustando-se:
Nossa! Estamos em cima da hora.
Já?!
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Vamos? disse levantando-se.
Claro.
Alexandre sentia-se bem melhor após aquele desabafo. Desde quando tudo aquilo lhe aconteceu, era a
primeira vez que falava sobre o assunto, tão detalhadamente, com alguém. Eles caminharam lado a lado e
após alguns minutos de silêncio, Raquel, sempre delicada e naturalmente sensível, perguntou:
Por que tira o rótulo do vidro de remédio?
Para evitar perguntas. Quando alguém questiona, digo que são vitaminas. Não gosto de tocar
nesse assunto. Vão perguntar: "Por quê?Como começou? O que aconteceu?"
Mas não seria bom alguém saber que você precisa desse medicamento?
Você! Você sabe, agora respondeu satisfeito pela preocupação da amiga.
Raquel sorriu e eles voltaram para a seção. No decorrer do dia, Alexandre ficou pensativo. Era estranho
confiar tal segredo a alguém, nunca fizera isso. Estava cedendo aos seus impulsos e não sabia dizer se
isso seria bom.
"Será que Raquel vai me encarar de outro jeito?", pensava ele. "Será que é minha amiga? Passei a
acreditar que não tenho amigos, e agora?"
Por um segundo, Alexandre se arrependeu por ter contado sua história, mas era algo que não poderia
mudar. Um pouco mais tarde, passando a observar Raquel, que parecia totalmente voltada para o trabalho,
ele pensava:
"Ela está séria demais. Será que pensa em mini e em tudo o que contei?"
Naquele instante Raquel precisou sair de sua mesa, pois o diretor a chamou em outra sala. Pouco depois, a
jovem retornou cabisbaixa. Seus olhos vermelhos e brilhantes denunciavam choro. Alexandre não conteve
seus impulsos; empurrou sua cadeira para próximo da amiga e questionou, quase sussurrando, para que
os outros não ouvissem:
Ei, Raquel! O que foi?
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Ao tentar encará-lo, ela não conseguiu deter as lágrimas que começaram a rolar.
Raquel! tornou murmurando preocupado. O que aconteceu?
Eu não sei... respondeu a jovem entre os soluços.Alexandre tentava ser discreto a fim de não
atrair a atenção dos outros
colegas. As divisórias que separavam os funcionários não tinham altura suficiente que proporcionasse
muita privacidade a ponto de conter o som.
Como, não sabe? insistiu o amigo. Aconteceu alguma coisa. Você não iria chorar por nada.
Estou morrendo de raiva. É isso.
Foi o senhor Valmor, não foi? A moça acenou com a cabeça e ele sussurrou: Não se
amargure por pouca coisa.
Com os olhos banhados de lágrimas, tentando secar o rosto, Raquel o encarou e o rapaz disse:
Sabe, chefes como ele, que exigem tudo com imposição, orgulho,cara feia e voz rude, são criaturas
incompetentes e incapacitadas quenecessitam se impor constantemente para se sentir temidas, pois
normalmente não têm valor, capacidade nem moral. Esse é o único jeito de eles terem auto-estima.
Ela perdia o olhar e, pensativa, deixava transparecer certa mágoa.
Espere pediu Alexandre, que se levantou e retornou logo trazendo um copo com água e dizendo:
Toma. Isso vai acalmá-la um pouco.
Com as mãos trêmulas, Raquel tomou poucos goles e agradeceu ao amigo:
Obrigada, Alexandre. Mais refeita disse: Estou melhor.Depois eu conto o que aconteceu,
senão sou capaz de começar a chorarnovamente.
Tudo bem. Depois conversamos afirmou sorrindo e entendendo.Raquel esboçou um sorriso
forçado no rosto avermelhado pelo choro, enquanto o rapaz se afastou e retornou para o seu lugar.
No final do expediente, restavam somente os dois como funcionários no grande setor da empresa. O rapaz,
um tanto entediado com o que
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fazia, passou a observar a moça, que parecia compenetrada e até nervosa. Mais à vontade agora, por não
haver ninguém por perto e somente, a certa distância, um segurança lendo um jornal, Alexandre
aproximou-se dela e falou em tom de brincadeira:
Com tanta hora extra assim, você vai ficar rica.
A colega sorriu, tirando do rosto o semblante preocupado e sisudo.
Estou consertando a minha "incompetência".
Você está mais calma?
Tenho que estar.
O que aconteceu?Raquel sorriu e contou:
O senhor Valmor me humilhou, me constrangeu e...
E...? insistiu diante da pausa.
Ah! Ele só faltou me chamar de burra reclamou chorosa.
Ele não pode fazer isso disse o amigo mais sério e atento aofato.
Pois fez. E na frente de todo mundo na reunião que estava acontecendo.
Como foi?
A história é longa, Alexandre. Você vai se cansar.
Ele pensou um pouco, esboçou um sorriso gentil e falou:
Hoje eu precisei de um ouvido emprestado para desabafar e você não se cansou. Cansou?
Não. Claro que não. Mas é diferente.
Aproximando-se mais, ele pôs-se em frente dela e, virando-lhe a cadeira, insistiu:
Eu quero saber. Conte-me, por favor sorriu usando as mesmaspalavras que ouvira dela
quando a fez de confidente. Meio sem jeito,Raquel encorajou-se e relatou:
Foi mais ou menos assim: a Rita saiu de férias. O serviço dela jáestava parado havia uns três
dias. O senhor Carlos me chamou e me entregou o serviço da Rita. Sabe aquelas planilhas de estatísticas
quemal aprendi a fazer?
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Sei.
Pois bem, aquilo foi passado para a Magda e eu tenho que ensiná-la. Veja, eu não sei nem pra
mim. A Rita lida com sistemas gráficos e eunão sei nada disso. Então, o que aconteceu: o serviço que me
passaram ontem, já estava atrasado, e hoje, na reunião, eu não tinha nada para apresentar. O senhor
Valmor ficou furioso e disse, olhando para os doisdiretores financeiros: "Perdoem a incompetência da nossa
funcionária".E... Raquel deteve as palavras; seus olhos começaram a marejar.
E...? perguntou Alexandre.
Ai, que ódio! Debruçando-se sobre sua mesa, Raquel começoua chorar, parecendo mais ser
de raiva do que pela vergonha que passou.
Alexandre, muito paciente, aproximou-se ainda mais, dizendo:
Não fique assim, Raquel.
Ele ia acariciá-la com um afago nos cabelos, mas deteve-se alerta, pois se lembrou de que a amiga parecia
não gostar de ser tocada. Observando que ela não tinha visto seu gesto, ficou despreocupado. Com a
delicada voz abafada e rouca por estar com o rosto entre os braços, ela perguntou:
Como, não ficar assim? Ele quer isso tudo para segunda-feiracedo.
Eu posso ajudá-la. Isso é, se você quiser e deixar, lógico.
Como?
Chegue pra lá pediu o amigo animado. Resolverei isso em dois minutos. Não sei se você
sabe, mas já fiz esse serviço antes.
Raquel afastou-se, parou de chorar e ficou olhando o colega que, pacientemente, realizava seu trabalho e a
ensinava. Atenta, a moça permaneceu tranquila e aprendendo. Algumas vezes, Alexandre ria e atéfazia
brincadeiras com alguns erros que Raquel cometera. Ela também achava graça e ria junto. E foi assim que
não perceberam as horas passarem. Ao terminar, Alexandre, sorridente, ainda brincou:
Pronto! Prontinho! Pode fazer o cheque.
Cheque?
Claro! Achou que eu ficaria aqui de graça?
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Mal tenho onde morar e você ainda quer tirar dinheiro de mim? Após o riso descontraído,
Raquel se assustou: Nossa! Já é essa hora?
Não se preocupe. Hoje é sexta-feira. Amanhã você pode dormir até mais tarde.
Você é que pensa respondeu, guardando rapidamente suascoisas, enquanto olhava o relógio
e dizia: Estou preocupada com oônibus!
Calma... tentou dizer Alexandre quando foi interrompido.
E você? Ficou até agora por minha causa! exclamava nervosa.
Raquel, o que é isso? Não estressa e fique tranquila. Estou decarro e vou levá-la.
Não! respondeu num grito u e Alexandre também começou aficar nervoso.
Como não? O que te deu para ficar assim?
Raquel não parava. Exibindo uma agitação quase incontrolável, arrumou sua mesa, pegou suas coisas e
disse, parecendo não tê-lo ouvido:
Obrigada, Alexandre. Depois conversamos. Tenho que ir, pois está tarde e...
Alexandre, cismado com aquele comportamento e pressa, parou na frente dela impedindo sua passagem.
Delicadamente, segurou-lhe o braço e, com o semblante sério, quase sisudo, voz baixa e firme, disse
determinado:
De jeito nenhum! Não há mais condução a essa hora. Você não vai sair daqui sozinha, Raquel. Eu
não posso deixar.
Nervosa, com os olhos marejados, Raquel puxou o braço que ele segurava e respondeu com a voz
embargando:
Você não vai me levar em casa.
Por quê? decidido, questionou austero.
Não! ela gritou alterada.
Sua agitação o incomodava. Ele não compreendia e insistia:
Raquel, calma. Por que esse drama? Se me explicar, talvez eu entenda e a ajude.
Tentando passar por ele, que estava à sua frente, ela falou:
Tenho que ir. Deixe-me passar, Alexandre.
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Sem exibir agressão, ele a segurou por ambos os braços com generosidade. Raquel lembrou-se do que
sofrera no dia anterior e quase gritou:
Solte-me!
Largando-a rapidamente sem saber o motivo que a levava àquele desespero, ele pediu, firme:
Tudo bem, Raquel. Eu não estou te segurando mais. Fique calma.Ela o olhou de modo muito
estranho. Lágrimas corriam pelo seu
rosto e seu queixo tremia. Raquel caiu em um choro compulsivo e ele a fez se sentar.
O segurança daquele setor, que observava tudo a certa distância, aproximou-se lentamente e perguntou a
Alexandre:
Algum problema, senhor?
Alexandre, que esfregava o rosto e passava as mãos pelos cabelos, estava parado na frente de Raquel
sem saber o que fazer. Nesse instante, voltou-se ao homem que aguardava uma resposta e justificou:
Eu não sei o que está acontecendo. Estávamos trabalhando e passamos do horário. Não tem mais
condução a essa hora e... Ela não pode ir embora sozinha. Quero levá-la e ela não aceita.
O homem parou, ficou olhando para Raquel, e, por fim, opinou:
Será que ela está chorando por causa do marido, que pode ficar bravo? E voltando-se para
Raquel, tentou consolá-la: É comum opessoal ficar aqui trabalhando até bem mais tarde. Tem gente que
passaa madrugada aqui até amanhecer. Não fique assim não, moça.
Não é isso. Ela não tem marido respondeu Alexandre, que em seguida pediu: Olha, está
tudo bem. Isso é emocional. Vou conversar mais um pouco com ela e ver o que consigo, certo?
O segurança não disse nada e ficou olhando para a jovem, que sóchorava. Percebendo que o vigia não
saía do lugar, Alexandre pediu:
Pode nos dar licença?
Claro. Eu estarei ali e... Qualquer coisa...
Otimo. Obrigado agradeceu com sorriso forçado.
Com a distância do segurança, Alexandre viu-se mais à vontade. Puxando uma cadeira, sentou-se em
frente de Raquel, ficou em silêncio
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aguardando alguns instantes, enquanto refletia sobre o que poderia estar acontecendo com sua amiga.
Alexandre, com carinho, tentou pegar as mãos de Raquel, que estavam cobrindo o próprio rosto, e colocar
entre as suas. Houve uma reação imediata quando ela negou:
Não!
Tudo bem. Não precisa ficar assim. Alexandre ficou nervoso.Levantou-se e andou de um lado
para outro. "Isso não é normal",pensava ele. "Mas o que está acontecendo?"
Naquele instante, sentia um grande desejo de acalmá-la, enternecê-la, abraçá-la, mas não podia. Raquel,
de meiga, passava a ser quase agressiva quando ele tentava tocá-la. Alguns minutos se passaram, ela
parou de chorar e olhava fixamente para o chão. Aproximando-se, Alexandre sentou-se novamente à sua
frente e procurou encará-la. Com muita calma, usando ternura na voz, falou:
Raquel, preste atenção. Eu não tenho ideia alguma do que estáacontecendo com você. Não
posso entender essa reação. Talvez seja algomuito pessoal. Se não quer falar, tudo bem, eu a respeito.
Mas veja, não podemos ficar aqui até amanhecer. É incabível. Ao mesmo tempo, eu não posso deixá-la ir
embora sozinha, correndo riscos que só Deus sabe.Eu vou levá-la para casa, certo?
Não.
Alexandre, sem deixar transparecer o seu nervosismo, pensou: "Oh, Deus! Vai começar tudo de novo.
Ajude-me!" Respirando fundo, sem demonstrar seu descontentamento, insistiu generoso:
Vou levá-la, sim. Confie em mim, por favor. Está tudo bem.
O rapaz demorou quase uma hora para convencer Raquel que, a custo, aceitou.
No trajeto para sua residência, ela não conversava a não ser para indicar o caminho, e, às vezes, chorava
tentando esconder o rosto. Ao estacionar o veículo na frente da casa de Marcos, Alexandre ficou assustado
com a rapidez com que Raquel desceu de seu carro.
Ei, Raquel? chamou, saindo às pressas e alcançando-a no portão.
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Ela se voltou e agradeceu:
Obrigada. E, por favor, me desculpe.
Espere pediu ao se aproximar. Você está bem?
Sim. Estou admitiu envergonhada, abaixando o olhar.
Não precisava ter ficado tão nervosa. Viu? Está tudo bem. Eudisse que poderia confiar em mini.
Desculpe-me.
Alexandre esboçou um agradável sorriso, explicando:
Não tem pelo que se desculpar. Mas, sabe... Puxa, Raquel, vocême assustou. Ao vê-la sem
jeito, afirmou com generosidade: Émuito bom conversar com você. Mas é que ali, naquela situação, eu
não sabia como agir. Perdoe-me se fui um pouco duro com você. Mas eu não podia deixá-la vir embora a
essa hora sozinha. Espero que entenda queeu visava a sua segurança. Ela não disse nada e ele
desfechou: Agora entre, vai. Eu fico olhando.
Raquel agradeceu novamente e ele ficou observando-a entrar na casa.
De volta ao seu apartamento, Alexandre ficou inquieto. Tomou um banho e se deitou, mas não conseguia
dormir.
"Raquel agiu de modo muito estranho. O que a fez ficar assim?", pensava. "Vagner falou que havia
'chegado' nela, será que ele tentou algo? Crápula nojento! O que será que aconteceu? Ela estava muito
amedrontada."
Em dado momento, Alexandre falou sozinho e em voz alta:
Chega! Já me envolvi demais. Não vou e não quero me meter navida de ninguém.
Minutos após dizer isso, percebendo que não conseguiria conciliar o sono, levantou-se, foi para a sala,
ligou a televisão e começou a procurar algum filme para se distrair.
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** página em branco **
Capítulo 5
Acusações indevidas
Ao contrário do dia anterior, aquela manhã se fez nublada, cinzenta e uma garoa fina umedecia tudo. Alice
levantou cedo e aguardava, bem ansiosa, a chegada de Marcos à cozinha para o desjejum, a fim de poder
contar para o marido as novidades. Quando o viu, seus olhos brilharam. Ali estava a oportunidade tão
esperada.
Você viu a que horas a sua irmã chegou?
Não respondeu Marcos sem preocupação.
Eram quase quatro horas da manhã!
Que estranho admirou-se ele sem expressar espanto. Depoisconcluiu: Raquel não é disso.
"Não é disso", na sua frente.
O que você quer dizer com isso, Alice? perguntou o marido,mais sério e atento, encarando-a.
Um cara veio trazê-la de carro e ainda ficaram um bom tempo noportão conversando. Você acha
isso normal?
Acho.
Ora, Marcos, não seja idiota! Seria normal para outra moça, não para sua irmã.
Por que não? Raquel tem o direito de ser feliz. Tomara que ela encontre alguém que a queira
bem, que a respeite e ame. Você tem algo contra isso?
Com um sorriso irônico e na voz um tom de desdém, Alice respondeu:
Não tenho nada contra. Muito pelo contrário. Só que, todo aquele drama, todo aquele medo e os
traumas pelos quais ela diz ter sofrido,sumiram, assim, de repente? Eu não sou boba, Marcos. Eu te avisei
que
a Raquel mentiu para nós e nos usou. Você foi o único que acreditou naquela história absurda e até se
indispôs com toda a sua família. Levou-a para tratamentos, pagou terapias, médicos...
Interrompendo-a, Marcos interferiu demonstrando nítida insatisfação:
Aonde você quer chegar, Alice?
Olhando firme em seus olhos, sem pestanejar, Alice falou:
Não sou boba, Marcos. Toda aquela história, todo aquele medo foimentira. Raquel nos enganou
para nos usar. Ela não teria onde ficar nem apoio de mais ninguém. Hoje isso ficou óbvio, pois, naquela
época, semter onde viver nem onde morar, ela teria que fazê-lo acreditar naquele absurdo, por isso encenou
todo aquele drama e trauma. Como justificar,hoje, ela chegar em casa àquela hora e acompanhada por
alguém que não sabemos quem é? Seus traumas sumiram, assim, de repente?!
Chega, Alice!
Não, Marcos, não chega. A prova está aqui, no que aconteceu hoje. Ninguém faz algo com
naturalidade se não está acostumado. Escuta o que eu estou falando. A Raquel vai aprontar, não vai
assumir aresponsabilidade e vai largar aqui em nossas mãos, como já...
Como já o quê, Alice?
Ora Marcos! Como já fez por aí. Você sabe.
Em defesa da irmã, ele se levantou, aproximou-se de Alice e, com voz pausada, falou manso, contendo seu
nervosismo, que podia ser notado:
Não quero que fale nesse assunto novamente. Eu a proíbo.
Tá pensando que sua irmã é santa?
Fique quieta, Alice!
O que foi? perguntou Raquel, que surpreendeu o casal emdiscussão.
Bom dia, Raquel! disse Marcos, tentando disfarçar.
Bom dia. Mas o que está acontecendo? Eu ouvi meu nome.
Nada, Raquel afirmou a cunhada, assumindo uma posturamais natural. Tome seu café.
Sem dar trégua, Marcos tentou saber o que aconteceu e perguntou:
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O que houve, Raquel? Você chegou tarde. Estávamos preocupados.
Tive problemas no meu serviço. Um colega resolveu me ajudar eficamos na empresa além do
horário, depois fiquei sem condução.
Foi ele quem veio trazê-la? perguntou Alice, trocando olhares com o marido, aproveitando que
Raquel estava num ângulo que não podia vê-la.
Sim. Foi ele mesmo quem me trouxe respondeu com simplicidade.
Marcos, sem oferecer mais atenção, saiu deixando-as conversando. Com a oportunidade de se ver a sós
com a cunhada, Raquel questionou:
Alice, o que vocês estavam falando quando cheguei?
E melhor você não saber, Raquel.
A moça sentiu-se gelar. Um mal-estar pareceu invadi-la subitamente. Alice, por sua vez, pensou rápido e
decidiu não brigar mais com o marido por causa de Raquel. Aquele método era falho e perigoso. Marcos
gostava da irmã e iria se voltar contra ela. Então, deveria ser astuciosa e arrumar um jeito de colocar um
contra o outro.
Raquel, com as emoções alteradas, sentindo as mãos gélidas pelo suor que verteu imediato, se levantou e
pôs-se diante da cunhada pedindo explicações:
Eu quero saber, Alice. O que você e Marcos estavam conversando? Se era sobre mim, eu preciso
saber.
Alice fingiu-se embaraçada. Aquela seria sua oportunidade. Ela respirou fundo, sem encarar Raquel,
enquanto torcia as mãos para demonstrar-se nervosa.
Vamos, Alice, por favor insistiu Raquel apreensiva.
Marcos não quer que eu lhe diga, mas...
"Mas" o quê? perguntou Raquel diante da pausa.
É que ele pediu para eu ficar de olho em você. Marcos tem medo de...
Raquel empalideceu. Sentiu um torpor estonteando-a, mas se fez firme e encarava Alice esperando mais
explicações ao perguntar:
Marcos tem medo do quê, Alice?
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Raquel, deixe isso para lá.
Não! Fale logo, por favor!
Não posso. Se eu lhe disser e você for contar para ele... Não quero que voltemos a brigar
novamente. Minha vida mudou, não quero maisviver naquele inferno de antes onde as brigas eram
constantes e...
Não vou dizer nada para o meu irmão. Conte logo.
Olhando Raquel com frieza ao encará-la para que suas palavras parecessem verdadeiras, Alice relatou:
Marcos tem medo pelo seu passado, Raquel. Ele pensou bem e...Eu não sei como foi acontecer,
mas, depois de tanto tempo, ele acha quevocê não foi tão inocente assim.
Raquel sentiu como que sem forças. Suas pernas adormeceram e quase não se sustentava em pé. Com a
voz enfraquecida e desalentada, a moça desabafou, incrédula:
Não... Marcos não pode pensar isso de mim. Ele foi a únicapessoa que acreditou em mim e... As
lágrimas brotaram rapidamente nos olhos de Raquel.
Alice aproximou-se, colocando a mão em seu ombro, pediu com voz piedosa, parecendo terna e
compreensiva:
Eu sei. Eu acredito em você. Entendo como se sente. Só que não conte nada para o Marcos, por
favor. Se ele souber que falamos sobre isso... Diante do silêncio da cunhada, Alice continuou: Não
chore. Olha, sente-se aqui e tome seu café.
Não, obrigada.
Raquel...
Fique tranquila, Alice. Eu não vou dizer nada. Só estou muito decepcionada. Isso me machucou
demais.
Não ligue para isso. Homem é assim mesmo. Hoje ele pensa umacoisa, amanhã pensa outra e...
Não ligue, tá?
Raquel passou a se preocupar. O fantasma do passado batia-lhe àporta. Estava magoada, ofendida por
tanta injustiça e incompreensão. Seu segredo, sua história triste e amarga deveria ser esquecida, mas não.
Na mente das pessoas restavam dúvidas e muitos não acreditavam nela.
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Além disso, em lugar distante, a semente dessa história germinava, crescia... Jamais sendo apagada. Ela
não teria paz. Raquel não desconfiou da crueldade de Alice, que tinha seus planos ardilosos para afastá-la,
o quanto antes, de seu irmão.
A cunhada não se sentia bem com a presença dela. Principalmente agora que sua situação financeira
estava mais equilibrada por causa da promoção de Marcos e de seu emprego, onde ganhava
satisfatoriamente para ela.
Não! Definitivamente Alice não queria a presença de Raquel, seu coração endurecido não reconhecia tudo
o que aquela jovem fizera para ajudá-los, nem queria devolver o que ela lhes emprestara, no momento que
mais necessitaram.
Aquele fim de semana iniciou-se com inúmeros pensamentos turbulentos nas ideias de Alexandre. Sozinho
em seu apartamento, não tinha muito que fazer. Pensou em sair e ir ao clube, mas o tempo estava horrível.
Esportes em quadras fechadas não lhe agradavam. Teve vontade de visitar seus pais, mas não se sentia
bem para conversar e sabendo como era sua mãe que, conhecendo-o bem, desconfiaria que estava
amargurado e começaria a enchê-lo de perguntas.
Nem o jogo eletrônico no computador prendia sua atenção. Desligou a máquina, ligou em seguida o
aparelho de som colocando um CD com músicas suaves. Lembrou-se de um livro que tinha comprado
havia mais de um mês e não tivera tempo para lê-lo. Apanhou a brochura e atirou-se no sofá, mas, após ler
poucas páginas, percebeu que sua atenção se prendia em Raquel.
O que estou fazendo? perguntou em voz alta. Prometi a mim mesmo que não iria me preocupar
com ela.
Amargurado, não conseguia controlar os seus desejos. Levantando-se, colocou o livro sobre um console,
pegou uma jaqueta, desligou o som e, por fim, apanhou as chaves do carro saindo rapidamente.
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Minutos depois, sob a densa garoa fina que caía, Alexandre se encontrava parado quase em frente à casa
do irmão de Raquel.
"Se ela saísse agora...", desejava em pensamento. "Mas a rua estádeserta, está muito frio. O que Raquel
teria para fazer fora de casa agora?" Segundos depois tornava, preocupado: "Estou ficando louco! Tenho
que pôr um fim nisso. O que estou fazendo aqui?"
Quando pensou em ligar o carro para ir embora, uma vontade maior o dominou e uma esperança o
prendeu. Sentia que precisava ver Raquel.
"E se ela aparecer? O que digo? Que desculpa posso dar?"
De repente, Alexandre vê uma silhueta feminina, ao longe, andando na rua em direção de seu carro. A
cabeça estava coberta por um capuz que acompanhava o grosso agasalho. Ele não se importou e
continuou a olhar na direção da casa. O perfil que ele vira ao longe era Raquel que, mais perto, o
identificou. Aproximando-se do veículo, ela o encarou surpresa e com um leve sorriso. Alexandre
sobressaltou-se e não sabia o que fazer.
Você aqui? perguntou a jovem sorridente.
E, eu... embaraçou-se o amigo que, descendo rapidamente docarro, não tinha quase o que
dizer e nem sabia como se justificar. Colocando-se diante da colega, a cumprimentou, dizendo:
Oi, Raquel. Tudo bem?
Tudo. E você?
Estou bem. Passei aqui para saber como você estava e...Alexandre exibia-se um tanto sem jeito
e ela perguntou encabulada:
Ficou preocupado com o que fiz ontem, não foi?
É verdade. Fiquei preocupado, sim admitiu amavelmente.
Estou envergonhada. Desculpe-me respondeu constrangida eabaixando o olhar.
Não peça desculpas. Você não tem por que se preocupar. Acontece que... Bem, não é comum
uma crise de nervos como aquela. Entende? Eu realmente fiquei preocupado e só queria saber como você
estava.
Estou bem. Não sei o que dizer.
Pensando rápido, Alexandre perguntou à queima-roupa:
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Foi o Vagner?
Como?!
O Vagner me disse que "chegou" em você. O que ele fez?Raquel empalideceu e não sabia o que
dizer. Percebendo sua mudança e nervosismo, ele insistiu mais firme:
O que o Vagner fez com você, Raquel?
Nada respondeu amedrontada.
Como nada? Por que você ficou assim? Por que estava com tantomedo ontem? Ele tentou
delicadamente segurá-la pelo ombro, mas ela se afastou. Raquel, o que houve? perguntou Alexandre,
alterado e nervoso. Sou capaz de matar esse cara se ele encostar um dedo em você! O que aconteceu?
Temendo uma situação difícil, ela resolveu mentir para acalmá-lo:
Não aconteceu nada. Por favor, acredite.
O que ele disse?
Só me chamou para irmos ao shopping e eu não aceitei.
Ela abaixou o olhar e o colega fitou-a por longo tempo. Por um momento, ele pensou no motivo que o
levava a reagir daquela forma, afinal não tinha nada a ver com a vida de Raquel. A garoa começou a ficar
mais densa. Eles já estavam quase molhados e Raquel começou a se incomodar. Não poderia convidar
Alexandre para entrar por causa de seu irmão. O que Marcos não pensaria? O colega, por sua vez,
esperançoso por um convite que não acontecia, decidiu abrir a porta do carro e, mais gentil, chamá-la:
Vem, entra aqui, vamos conversar.
Não respondeu a moça sem jeito. Justificando em seguida: Perdoe-me por não chamá-lo
para entrar, é que...
Tirando-a do embaraço, a interrompeu educado:
Não se preocupe. Eu entendo. Mas venha, vamos dar uma volta.
Não. Agradeço o convite, mas estou com uma dor de cabeçahorrível. Estou vindo da farmácia,
veja disse tirando do bolso um pequeno saquinho contendo um medicamento , saí para comprar um
remédio porque não aguentava mais.
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Ah, então estou te atrapalhando. Vá, entre e tome o remédio.Passei aqui só para saber de você.
Obrigada. Estou bem.
Se não fosse a dor de cabeça, não é?
É sim sorriu docemente ao concordar.
Tchau, então despediu-se. Alexandre sentiu forte impulso debeijá-la no rosto, como seria
comum, mas conteve-se e estendeu-lhe amão.
Tchau correspondeu Raquel sustentando o agradável sorriso.Após a partida de Alexandre, ela o
admirou, pensando:
"Como ele é discreto, generoso..." Mas, em seguida, anuviou o sorriso e se preocupou: "Alexandre está
muito solícito, dedicado. Não! Ele não pode estar interessado. Nunca tive um amigo como ele e não quero
perder sua amizade, se isso acontecer... tenho que me afastar dele, mas..."
Raquel sentiu-se muito mal e insatisfeita com o rumo que as coisas tomavam. Como sua vida mudara. Ela
era independente, trabalhava para sobreviver, mas ninguém a incomodava. De repente aconteceram tantas
coisas que lhe doíam muito.
Alexandre, por sua vez, foi embora satisfeito. Uma alegria agradável o invadira. Como desejava, viu
Raquel, mesmo que por alguns minutos. Entretanto, mais tarde, em seu apartamento, se questionava se
aquilo estava certo. Temia estar apaixonado por sua amiga. Temia sofrer novamente. Procurando alterar o
rumo da situação, começou determinar-se a ser forte e ter uma postura mais vigilante. Decidido, resolveu
que só seria amigo de Raquel.
Na semana que se seguiu agitada, Raquel demonstrava nítida preocupação. Alice queria que ela a
acompanhasse ao "tal lugar", que era denominado assim pelo fato de nem mesmo ser um local onde várias
pessoas se reúnem centralizadas com o mesmo objetivo, o que seria um centro. Esse "tal lugar" era uma
residência e, em um quartinho nos
100
fundos, aglomeravam-se altares, velas, flores, cortinas e toalhas de renda. Uma pessoa, em transe
mediúnico, com vestimenta típica e comum àquela seita espiritualista, recebia os que a procuravam. Esse
médium ficava dentro do referido quartinho e atendia um a um dos que esperavam sentados em um banco,
no corredor comprido, onde seria um quintal. Em uma das vezes em que Raquel, só como acompanhante,
foi a esse "lugar" com sua cunhada, um espírito sofredor aproximou-se dela e passou a acompanhá-la. No
início, sua presença, suas vibrações, seus desejos e seus pensamentos eram imperceptíveis a Raquel.
Com o tempo, pelo fato de ela ter inúmeras preocupações e nem sequer se socorrer em prece, esse
espírito passou a envolvê-la, mas sua presença era ignorada e a moça nem podia imaginar esse
envolvimento.
Ela não percebeu que recebia vibrações inferiores, pensamentos queixosos e desejos lamentáveis,
aceitando como sendo seus alguns sentimentos e vontades. Raquel não sabia distinguir suas ideias dos
desejos do irmão espiritual que a acompanhava. Aliás, bem poucos o sabem.
Por essa razão, suas preocupações e suas angústias ficavam mais intensas e dolorosas. Raquel, que já
era uma pessoa calada, ficara mais triste do que nunca. Sua quietude, antes tranquila, exibia-se agora
amarga e depressiva.
Alice, ao contrário, mais alegre e extrovertida, em seu serviço revelava-se uma pessoa capacitada e
esperta. Ela não cultivava muitas amizades. Todas as colegas que possuía eram por interesse. Alice
fomentava a discórdia, sempre falava de qualquer companheira deixando a desejar sobre seu caráter em
algum aspecto.
Com o incentivo do espírito Sissa, Alice começava então a se animar em chamar a atenção do gerente de
seu setor para si. Ela era uma mulher de aparência respeitável e bonita.
Você merece coisa melhor do que o Marcos - dizia-lhe Sissa, envolvendo-a a todo instante. Veja,
Alice, você pode ter a oportunidade de ser feliz e ter melhor condição financeira, se quiser.
Sem ouvi-la, Alice passava a ter ideias e desejos daquele nível. Assim, sempre que tinha oportunidade,
jogava todo o seu charme e
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direcionava olhares de conquista para o referido gerente que, percebendo suas insinuações, dava a
entender que estava se sentindo atraído por ela. A pobre mulher não respeitava seu marido nem seus
filhos. Alice não se amava, porque não respeitava a tranquilidade de sua consciência, pois não cultivava
boa moral, preservando-se de futuras harmonizações dolorosas, porque já adulterava em pensamento. E
assim, a cada dia, ela se aproximava cada vez mais daquele homem que lhe correspondia.
Com o passar do tempo, Aldo, o referido gerente do setor em que ela trabalhava, fez um convite a Alice
que, sem pensar, aceitou. Eles começaram a sair juntos, frequentando barzinhos e boates, conhecendo-se
um ao outro, enquanto tomavam aperitivos.
Alice fazia de tudo para que ninguém percebesse. Pelo fato daquele magazine oferecer opções diferentes
de horários, ela adaptou-se ao expediente mais propício e, quando se atrasava muito para chegar em casa,
desculpava-se dizendo que pegou uma grande venda e que a cliente demorou na escolha. Ninguém
desconfiava. Não havia motivo.
Por outro lado, Raquel, em seu serviço, preocupava-se em demasia. Vagner tornava a se aproximar dela.
Temendo-o, procurava evitá-lo o quanto podia, mas era difícil, uma vez que seus serviços se interligavam.
Ele agia como se nada tivesse acontecido, lançando olhares que a molestavam pelos desejos que podia
perceber.
Então, Raquel explicava Vagner muito cordial , dependo desses valores para poder passar
esses resultados.
Raquel o ouvia, mas se sentia ineficiente e insatisfeita. Vagner a incomodava com sua presença. Tudo
agora estava sendo muito difícil.
Veja, Raquel, esses primeiros resultados aqui que me passou não estão certos, por isso, após ter
pronta toda a resenha, os valores não batem. Entendeu? explicava Vagner, com extrema gentileza,
tentando conquistá-la. Eu sei. Já entendi avisava desalentada, cansada.
O espírito desencarnado que se aproximava argumentava-lhe:
Para que tanto empenho? Ninguém nos dá valor. Qualquer hora vão mandar você embora, mesmo.
Veja, trabalhei tanto para quê? A vida
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não vale a pena. Só temos tristezas e desilusões. Só vivemos para sofrer e ser incomodados pelos outros.
Raquel não o ouvia, porém, a cada minuto, sentia-se mais desanimada. Mesmo assim, voltou-se para o
colega, explicando:
Olha, Vagner, não sei o que aconteceu para eu errar isso. Deixe tudo aí que, após eu terminar esse
relatório, vou arrumar.
Aproximando-se mais de Raquel, curvando-se, Vagner mostrou-se gentil e perguntou em voz baixa, quase
sussurrando:
Você está com algum problema, Raquel? Posso ajudar?
Alexandre, que ocupava a mesa ao lado, que era ligeiramente separada por uma divisória, aguçou os
ouvidos tentando entender o que Vagner dizia. Desde o dia em que divergiram, Alexandre e Vagner só se
comunicavam para assuntos de serviço, conversando somente o essencial. Por não conseguir entender o
que o colega dizia para Raquel, Alexandre ficou inquieto e nervoso. Sentindo seu coração pulsar
desordenadamente, pensava:
"Crápula! Como pode uma criatura ser tão... Se ele tentar alguma coisa com ela, vou arrebentá-lo. Será que
esse cretino não percebe que é nojento e indesejável?!"
Alexandre sentiu um frio envolvê-lo todo. Sua impaciência quase podia ser notada. Procurou ficar atento no
que fazia para não se envolver. Impossível! Ele se torturava acreditando que não podia pensar daquele
jeito, afinal, Raquel era só sua amiga.
Mas, contra os sentimentos fortes, pouco podemos fazer.
No olhar de Alexandre, um brilho apaixonado resplandecia, anunciando seu sentimento e seu ciúme.
Quando em vez, mordia os lábios pela raiva que sentia. Agora, visivelmente nervoso e adivinhando as
intenções do colega que sussurrava e deixava poucas palavras serem ouvidas, Alexandre não podia
resistir.
Vamos, vai dizia Vagner com voz amável, melosa e com meio sorriso, a Raquel, que parecia
repudiar aqueles modos.
Não, obrigada respondia a jovem exibindo firmeza e insatisfação.
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Não posso aceitar um "não".
Sem poder se conter, Alexandre se virou, ficou olhando para Vagner, que nem o percebia, e reclamou com
grave tom na voz:
Ei, cara! Dá para respeitar a vontade da moça? Já estou saturado de ouvi-lo insistir tanto. Você é
surdo? Ela disse: não!
Raquel estremeceu. Surpresa e confusa, estava atordoada. Vagner franziu o olhar com rancor e inquiriu,
estúpido:
Por acaso você é porta-voz da Raquel?
Qual é, Vagner?! retrucou Alexandre. Coloque-se em seu lugar!
Alguns da seção repararam no tom grave da voz de Alexandre, que aumentou o volume sem se intimidar.
Vagner ergueu o corpo e ia dar um passo na direção do colega, mas viu-se inibido por um dos diretores que
se aproximava. Mesmo assim, Alexandre ficou encarando-o como se o desafiasse com o olhar. Por sua
vez, nervosa e atordoada, Raquel ficou sem saber o que fazer.
Vagner, com o dedo em riste para Alexandre, mas sem fazer alarido nem ser chamativo, ameaçou com voz
pausada, baixa e odiosa:
Você me paga virando-se, em seguida, saiu.
Raquel, surpresa, não sabia o que dizer e ficou olhando para Alexandre, que se virou, tornando a ficar de
frente para sua mesa procurando entreter-se com seus afazeres. Aquele dia estava sendo péssimo para
ela. Raquel e Alexandre não se falaram mais.
Ao chegar em casa, logo à noitinha, Alice insistia novamente para que a cunhada a acompanhasse.
Raquel, sem opinião própria, acabou cedendo aos caprichos de Alice e lhe fez companhia. Enquanto
aguardava a vez para ser atendida, Alice induzia Raquel:
Faça uma consulta, boba. Peça para lhe ajudarem com o emprego, com essa depressão e também
para darem um jeito na sua vida. Se não quiser falar com ele, aproveita hoje que a mulher também está
atendendo.
Confusa, Raquel acabou decidindo fazer a tal consulta. Ao ver-se a sós num pequeno recinto fechado
diante de uma mulher que usava
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roupas alvas, rendadas e fumava um charuto de modo incomum, Raquel sentiu algo estranho. Seu primeiro
desejo foi o de virar as costas e sair correndo. Mas sentiu vergonha de tomar tal iniciativa.
Sentada em uma banqueta e em meio a alguns apetrechos, a mulher indicou um lugar a fim de que Raquel
se sentasse e esta assim o fez.
Tá cum medo zé-fia? perguntou a senhora, impostando a vozcom sotaque caipira.
Com a respiração alterada, sentindo-se sufocada pela fumaça do charuto, das velas e das ervas que
ardiam em um canto, Raquel, um tanto inquieta, respondeu:
Não sei. Desculpe-me.
Será que tá cum vontade de ir s'imbora, zé-fia? Fica assim não.Mia-fia tá cum poblema, num tá?
Raquel, instintivamente, decidiu não comentar nada sobre sua vida particular, muito menos sobre o que a
afligia. Com seu raciocínio correto e lógico, acreditou que: se ali havia um espírito, ele deveria saber de
seus problemas, ela não precisaria relatá-los.
Nem sei por que estou aqui comentou a jovem com modos tímidos. Talvez por insistência de
minha cunhada.
Raquel, diferente das demais pessoas, não ofereceu diretrizes de sua vida que pudessem revelar suas
aflições. Por essa razão, não havia muito que dizer. Após algumas baforadas de charuto, a mulher falou:
Zé-fia é forte. Ocê tem sinar de quem já viveu muito "poblema". Fez-se pequena pausa para
baforar novamente, depois continuou: É lutadora! Num é, zé-fia? Oia, toma cuidado qui as pessoa num
é sincera cum-cê. É milho num ter amigo qui tá mar acumpanhada. Após pequena pausa, ela perguntou:
Ocê tem argo pra pidi?
Não respondeu Raquel, com modos frios e sentindo-se perturbada.
Intão, zé-fia, vai té qui si livrar desse mau-olhado, dessa invejaiada toda. Ocê vai fazer o seguinte:
Pega essas erva...
Mais tarde, Alice questionava:
O que você achou?
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Olha, Alice, pra ser sincera, eu não achei nada. Tudo o que aquela mulher me disse se encaixaria
perfeitamente para qualquer outra pessoa.
Ora! Não seja boba, Raquel!
É verdade! Ela disse que eu era uma lutadora. Quem não é lutador nessa vida? Ela disse que eu
vivi muitos problemas. Quem não teve problemas em sua vida? Ela falou que há pessoas que não são
sinceras comigo. Ora, Alice! Quem de nós poderá dizer que tem amigos sinceros? Até Jesus, o símbolo da
perfeição humana, foi traído!
Mas, Raquel, ela tem razão! Você já lutou muito na sua vida.Com pouca idade passou por
dificuldades terríveis...
Alice queria que Raquel recebesse ajuda a fim de conseguir sair de sua casa, pois queria se ver livre da
cunhada. Raquel, que se incomodava com aquela conversa, repentinamente pediu:
Não quero mais falar nesse assunto, Alice. Por favor.
Você perguntou alguma coisa? insistiu a cunhada.
Não.
Ah! Aí está o problema. Se você perguntasse, ela falaria.
Se eu lhe perguntasse ela pediria detalhes. Pedindo detalhes, ela teria uma série de informações,
depois iria me dar opiniões como se adivinhasse minha vida. Sabe, eu deixaria de acreditar do mesmo
jeito.Foi melhor eu ter ficado quieta, assim economizei tempo. Olha, Alice,quer saber de uma coisa, não vou
mais lá! Para mim chega! Arrependi-me de ter ido. Só gastei dinheiro e perdi meu tempo. Por favor, não
me chame mais. Cheguei tarde, estou cansada e, além de tudo, não gosto de sair à noite.
Alice nada comentou, ficou somente olhando contrariada para Raquel. Uma sensação odiosa começou a
envolver o seu coração que agora, ainda mais, indignava-se com Raquel. Isso se dava principalmente pelo
fato de Sissa estar animando essa discórdia, pois Raquel, apesar de nenhum entendimento, possuía um
coração puro e poderia orientar Alice para o que era certo e errado.
Ela não é sua amiga. Raquel não pode mais ficar aqui. Ela vai acabar estragando tudo. Vamos dar
um jeito nela.
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Naquela noite, Raquel custou a dormir. Mesmo adormecendo só no meio da madrugada, perturbada por um
sonho ruim que era induzido por espíritos inferiores, Raquel passou a dizer:
Não... Sai de perto... Não! Até que acordou todos com umgrito.
Marcos correu para a sala e, ao lado da irmã, que já estava sentada, a chamou:
Raquel! Raquel! Está tudo bem! Acalme-se.
Ele tentou abraçá-la, mas Raquel o empurrou. Ela parecia confusa.
Com a respiração alterada e os olhos arregalados, Raquel circunvagava o olhar pela sala, procurando
reconhecer o lugar, enquanto passava a mão pela fronte, que lhe parecia escaldante.
Calma, Raquel. Foi só um sonho dizia Marcos com suavidade na voz, procurando enternecê-la.
Alice, que ficou em pé, olhando friamente a cena, não dizia nada. De repente ela foi até a cozinha e voltou
com um copo com água. Após tomar alguns goles, Raquel se acalmou. Passado um tempo, tudo ficou
tranquilo e ela voltou a se deitar, depois que se desculpou com todos. Marcos e Alice voltaram para o
quarto e, ao perceber que o marido estava acordado, ela decidiu comentar:
Marcos, estou preocupada com Raquel.
Interessado no assunto, ele ficou atento para não ceder ao sono, e Alice continuou:
Não quero magoá-lo, mas você acreditou nesse pesadelo?
O que você quer dizer, Alice? perguntou quase irritado.
Sabe o que é, eu andei conversando com a Raquel. Coisa de mulher. Entende?
Não, não entendo. Dá para ser mais clara?
Exibindo nervosismo e inquietude, Alice torceu as mãos a fim de mostrar ao marido sua preocupação com
Raquel. Tomando cuidado com as palavras, continuou em tom brando e baixo:
Sabe, Marcos, eu não tenho gostado de algumas coisas que venho percebendo. Ela vem chegando
de carro com um e com outro.
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Que eu saiba, ela só pegou carona naquele dia.
Não é problema ela pegar carona. É que a Raquel vem mentindo para nós. Lembra-se, anos atrás
ela apresentava traumas, desequilíbrios emocionais, pesadelos e o que eu te falei? Sem esperar pela
resposta do marido, Alice continuou: Falei que não acreditava nela. Lembro-me de ainda ter dito que, se
ela mentiu ou não, não tinha problema,mas o que me irritava era o fato de nos abalar, nos deixar nervosos
e preocupados.
Aonde você quer chegar, Alice?
Vendo-a chegar de carro com um e outro, eu fui falar com ela.Raquel me respondeu mal. Disse
que fazia de sua vida o que queria.
Não posso acreditar nisso.
Então espere um pouco. Alice se levantou e, sorrateiramente,foi até a sala espiar para garantir
que Raquel estava dormindo, caminhou um pouco mais, pegou a bolsa da cunhada, que estava sobre
um móvel ao lado da sua, e voltou. Entrando no quarto, fechou a porta e acendeu a luz. Sentou-se na cama
e, como se revirasse a bolsa que segurava, tirou alguns preservativos e mostrou para Marcos, dizendo:
Para que alguém carrega isso se não vai usar?
Marcos ficou paralisado. Sentindo-se enganado, não respondeu nada.
Raquel não é santa, Marcos! Tudo bem. Ela faz o que quiser da sua vida, mas... Ela está mentindo
para nós. Ela mentiu o tempo todo.
Marcos ficou alterado. Levantando-se, andou de um lado para outro do quarto.
Não posso acreditar que Raquel tenha mentido para mim.
Agora mesmo, com esse falso pesadelo, ela mentiu para ter a sua atenção. Mentiu para que não
acreditasse em mim, pois sabia que eu iria contar para você sobre seu comportamento e suas mentiras. Vá
lá na sala e veja por você mesmo. Alguém que acabou de ter um pesadelo,horrível, iria dormir tão rápido?
Inconformado com a apresentação dos fatos, Marcos saiu do quarto e foi até a sala onde Raquel dormia
profundamente. Olhando fixamente para sua irmã, comprovou que estava serena e tranquila.
108
Alice ficou no quarto aguardando. Sabendo que Raquel tinha o sono perturbado, ela já esperava por aquela
oportunidade. Agora seu plano havia dado certo. Ela colocara algumas gotas de sedativo na água adoçada
e Raquel, nervosa, nem percebeu o que bebera. Ao voltar para o quarto, Marcos não viu a esposa
esconder seu sorriso cínico.
Viu como tenho razão? argumentou Alice com voz branda emelancólica.
O marido não respondeu, mas expressava um rosto contraído e sisudo. Seus pensamentos fervilhavam
nervosos nas dúvidas que começavam a pairar em suas ideias. Pegando a bolsa da irmã, começou a olhar.
Para ele, não seria problema Raquel estar saindo com alguém, sua irritação era por ela ter mentido e criado
um conflito de informações no passado.
Marcos tornou Alice , tenho medo que a Raquel nos dêtrabalho.
Que tipo de trabalho?
Raquel não assume responsabilidade alguma, pelo visto. Ela não admite estar errada e sempre
quer ser a vítima. E se ela engravidar e abandonar a criança aqui? Sabemos que já fez isso e nem temos
ideia de onde está sua filha.
Marcos, contrariado, pediu:
Tudo o que acontecer com a Raquel, de hoje em diante, eu quero que me conte.
Não vá dizer nada a ela. Vá com calma. Pegue-a no "pulo". Vocêvai conseguir.
Ele resolveu seguir os conselhos da esposa e concordou. Algum tempo depois, ao colocar a bolsa de
Raquel no lugar, Alice tomou o cuidado de transferir para a sua bolsa os preservativos que usara para
acusar a cunhada. Agora ela agia com inteligência. Se quisesse Raquel longe dali, tinha de ser astuciosa.
Não haveria mais de impor as condições. Ela encontraria maneiras de fazer com que Marcos visse o que
ela queria.
Na manhã seguinte, Marcos, por não ter dormido bem e repleto de preocupações, apresentou-se sisudo e
quase não cumprimentou Raquel
109
que, percebendo-lhe a indiferença, ficou magoada, mas não disse nada. Sem fazer o desjejum, ela foi para
o seu trabalho, torturando-se em pensamentos tristes, principalmente por estar sendo envolvida por aquele
espírito que lhe passava ideias lamentáveis, deprimentes e com vibrações pesarosas.
Com o serviço, Raquel não conseguia ficar atenta ao que fazia.
Droga! reclamava para si mesma. Preciso entregar isso hoje.Parece que nada quer dar certo.
As ideias pessimistas daquele espírito sem instrução cravavam-se cada vez mais nos sentimentos de
Raquel. Mesmo sem ter, nesta existência, ou em vidas passadas, ligações com Raquel, agora, aquele
espírito sofredor e tão perturbado ficava próximo da encarnada, que não o percebia, e isso se dava por se
afinar com os seus sentimentos, por ter, vamos dizer, gostado dos pensamentos preocupados e tristes que
Raquel vinha experimentando nos últimos tempos, sem reagir, sem fé nem esperança que situações
melhores pudessem ocorrer.
Ao vê-la nervosa com o que fazia, esse espírito sugeria:
Não adianta. Você vai se matar para que tudo saia perfeito edepois de pronto ninguém vai
valorizar.
Que droga! reclamava Raquel.
Isso não vai dar certo. Você não é competente e vão colocá-la no"olho da rua". Eu descobri que
só têm valor aqueles que conquistam oschefes, sabia? ainda argumentou o companheiro espiritual.
Há tempos Alexandre não interferia nos assuntos da colega. Vendo-a agora embaraçada, não resistiu e foi
em seu socorro, oferecendo:
O que foi, Raquel? Quer ajuda?
Não estou conseguindo. Veja.
Dê-me licença solicitou o colega com brandura e suave expressão no olhar. Raquel, quase
chorando, tinha a visão turva. Ela seafastou e Alexandre trouxe a solução em poucos minutos.
Prontinho! desfechou animado.
Ela, desanimada e embaraçada, nem sabia o que dizer e ficou parada olhando o serviço.
110
Vai, garota! Continua agora! impulsionou alegre e repleto deenergia.
Sorrindo ao ver Raquel retomar novamente o trabalho, ele voltou para o seu lugar e ficou olhando-a,
admirando-a. Raquel era bonita, simpática e delicada. Sua quietude oferecia um ar que o intrigava e atraía.
Ele sentia vontade de ficar perto dela, mas... Na verdade, desejava poder tocá-la, abraçá-la com carinho...
Raquel era encantadora! Possuía uma candura sem igual. Seus pensamentos corriam apressados e
Alexandre buscava, sem perceber, uma maneira de conquistar Raquel. Contrariando assim suas
promessas de dias anteriores.
"Preciso conhecê-la melhor", pensava. "Engraçado, sou capaz de sentir sua sensibilidade. Eu sei, de
alguma forma, que ela é frágil, delicada, sentimental, fiel... Não posso me impor, isso iria agredi-la. Serei
paciente o quanto for preciso."
No final do expediente, Alexandre encorajou-se e, com jeitinho meigo, aproximou-se de Raquel arrastando-
se em sua cadeira para junto da mesa da colega. Curvando-se mais ainda, ele colocou o rosto colado na
mesa da jovem, fazendo um semblante piedoso no olhar e sorrindo docemente, pediu com modos
engraçados, como uma criança a implorar:
Vamos ao shopping aqui em frente para tomar um suco?
Como? Raquel começou a rir pelo modo como ele se colocava e pedia.
Ainda na mesma posição, ele tornou a dizer:
Em vez de ir embora para casa, vamos sair um pouco. Podemos irao shopping e tomar um
refrigerante ou um suco. Quem sabe um lanche?
Alexandre ergueu-se ansioso e à espera de uma resposta positiva. Raquel surpreendeu-se com o convite e
ficou atrapalhada sem saber o que responder.
É que...
"É que..." risonho, ele a arremedou diante da pausa, depois continuou animado: Que nada!
Guarde suas coisas e vamos.
Desculpe-me, Alexandre...
111
Olhando-a fixamente nos belos olhos amendoados que irradiavam ternura, pediu:
Por favor, vamos? Prometo que não sairemos tarde de lá. Quero só conversar um pouco. Estou me
sentindo só.
Raquel sorriu timidamente. Sem entender, viu-se dominada por uma vontade sem igual e, atordoada pelo
tom de voz, pelo jeito carinhoso e olhar sereno do colega, que não exibia outras intenções, aceitou o
convite. Logo depois, o casal via-se sentado na praça de alimentação do referido shopping que Alexandre
mencionara.
Que tal um lanche? Ou prefere uma refeição? ofereceu animado.
Não. Você disse que não iríamos demorar.
Alexandre não disse nada nem se expressou fisionomicamente, mas Raquel percebeu sua insatisfação.
Desculpe-me. Não sou uma boa companhia.
Dizendo isso educadamente, ela se levantou como quem decide se retirar. O mesmo espírito de outras
vezes dizia-lhe que ela não agradava a ninguém e só incomodava os outros com suas preocupações e
tristezas.
Alexandre, ligeiro, pôs-se em pé à sua frente e delicadamente a segurou pelo braço, dizendo:
Por favor, Raquel, fique. Está tudo bem. Eu vou pegar um suco para nós, certo? Sente-se, por
favor.
Eu o incomodo, Alexandre. Percebi, em seus olhos, que ficou contrariado.
Não. Não é isso. Eu só pensei que, se fizéssemos um lanche agora, eu não teria que comprar
alguma coisa para levar para minha casa. E meio sem jeito, confessou: Não tenho nada pronto para
comer e pensei em me alimentar por aqui. Só isso. Está tudo bem. Eu já venho, tá? Fique aqui.
Raquel se sentou novamente e o aguardou. De volta à mesa, o rapaz via-se embaraçado e sem saber o
que dizer. Por fim, para brincar, perguntou:
Está bom? Quer mais açúcar?
112
Não.
Não está bom? ele perguntou sorrindo e para confundi-la.
Sim tornou ela.
Então vou pegar o açúcar.
Não! Espera respondeu agora sorridente e atrapalhada. Depois explicou: O suco está ótimo
e não precisa de açúcar, certo?
Eles riram e Alexandre se viu mais à vontade. Puxando conversa, resolveu saber mais sobre Raquel.
De onde você é mesmo?
Sou do Rio Grande do Sul. E você?
Sou daqui. Meus pais são filhos de imigrantes italianos. Engraçado, você não tem sotaque do Rio
Grande do Sul.
Talvez seja por causa da minha mãe. Ela é de Goiás e foi criada noDistrito Federal. Só após se
casar com meu pai foi para o sul e a suaconvivência lá a fez adquirir um pouco do sotaque. Você também
não tem sotaque nem modos italianos.
Não, não tenho. Creio que vamos perdendo com o tempo. Meuspais também não os têm.
Após pequena pausa, continuou: Tenho duas irmãs. Uma é casada e tem dois filhos. Essa mora no Rio
de Janeiro.A outra é noiva e mora com meus pais. E seus pais, Raquel, onde moram?
No Rio Grande do Sul, mesmo. Meu pai é tetraplégico. Vive em uma cama. Além disso, ele não é
mentalmente capacitado por causa de um acidente que o deixou assim. Ele e minha mãe moram com
meus avós paternos. Tenho o Marcos e mais dois outros irmãos casados. Todos mais velhos.
Seus avós são imigrantes? Pergunto isso porque, no extremo sul,encontramos muitos imigrantes.
Meus avós são de um lugar chamado de "Polônia Russa" ou "Reino da
Polônia", que sofreu
várias invasões alemãs e ataques da Rússia,que reivindicava parte do seu território. Eles chegaram ao
Brasil escondidos no porão de um navio e ganharam a nacionalidade brasileira com o nascimento do
primeiro filho. Ao todo, eles tiveram quatro. Umpouco pensativa, ela completou: Os dois primeiros já
morreram.
113
O pessoal daquela região é muito sério, não é?
Sabe, Alexandre, eu não sei dizer. Creio que a seriedade ou a simpatia não depende da
nacionalidade, mas sim do coração de cada um. Mas meu avô é muito rigoroso e...
E...? perguntou o colega diante da longa pausa.
E até cruel respondeu ela impensadamente e com o olhar perdido.
Cruel?! surpreendeu-se.
Alertando-se sobre o que falara, Raquel corrigiu:
Não foi bem isso o que eu quis dizer. Eu o acho rigoroso. Ele éduro demais. Meu avô foi criado
naquele costume católico ortodoxo que há na Rússia, e traz consigo muitas exigências.
Com a simplicidade que lhe era própria e sem refletir sobre o que falava, Alexandre perguntou:
Ele é rigoroso e a deixa morar sozinha?
Raquel não esperava por aquela questão. Ela se viu confusa e ficou só olhando-o, sem nada responder.
Alexandre imediatamente se retratou, dizendo:
Desculpe-me. Por favor, Raquel! Ao dizer isso, impulsivamente Alexandre colocou suas mão
sobre as dela, que estavam estendidas na mesa, completando: Eu não tenho nada com isso e...
Raquel sorriu delicadamente e, abaixando o olhar, retirou suas mãos, que ainda estavam envolvidas.
Mesmo percebendo sua reação, ele não disse nada, porém intimidou-se. Passaram a conversar, então,
sobre alguns assuntos de serviço. As horas foram correndo e, ao consultar o relógio, Raquel informou:
Tenho que ir. Já é tarde.
Oh, Cinderela! Fique tranquila. Eu a levarei para casa. Meu carronão vai se transformar em
abóbora. Eu garanto. brincou o amigo,sorrindo.
Por que Cinderela?
Porque você sempre quer estar em casa antes da meia-noite. Não são nem nove horas! Eu a
levo.
114
Não. Por favor pediu Raquel com voz mansa, sem encará-lo.
Eu vou dar uma passada na casa dos meus pais. É caminho. E,rindo gostosamente, admitiu:
Além de visitá-los eu janto lá.
Diante da indecisão de Raquel, Alexandre mudou o assunto, impedindo-a de pensar a respeito.
Então, conseguiu falar com seu irmão a respeito de você sair dacasa dele e ir morar em outro
lugar?
Novamente um semblante aborrecido figurou no rosto de Raquel, que respondeu:
Falei por alto, mas... Marcos não quer concordar. Disse que sou aúnica família que ele tem e...
Já sei. Você continua ajudando com as despesas e não consegue juntar uma grana para
conquistar novamente a sua liberdade.
Raquel pendeu a cabeça positivamente confirmando a conclusão do colega e confessou:
Não sei o que está acontecendo. Parece que minha vida fica maiscomplicada a cada dia. Seja no
serviço, seja em assuntos particulares,tudo é difícil de ser resolvido. Acho que... Raquel deteve as
palavras.
Alexandre, atento e curioso, ficou aguardando, mas diante da demora, perguntou:
O que você acha?
Os olhos de Raquel estavam brilhando e, tomando um impulso, ela revelou:
Nunca dei importância a magias ou coisas assim. Agora, porém,depois que visitei junto com
minha cunhada aquele "lugar", comecei aficar cismada, duvidando. Desde o princípio, comecei a me sentir
mal,com o coração oprimido, triste. Hoje as coisas estão piores. Nada estádando certo.
Mas você não está indo mais lá, está?
Eu disse para Alice que nunca mais volto lá. Não mesmo! Encarando Alexandre, Raquel
revelou: No instante em que disse isso, eu senti que Alice olhou-me com uma raiva, com um rancor...
Ela não disse nada, mas eu senti, entende?
115
Raquel, dê um jeito de se afastar daquela casa o quanto antes.
Como? Você não sabe o que é dificuldade, Alexandre. Por mais que eu tente, não estou
conseguindo. Dependo sempre do maldito dinheiro. Além do mais, não é só isso. Você mesmo pode
comprovar que,lá no serviço, não estou fazendo nada direito. Já fui chamada a atenção várias vezes.
Alguns colegas têm me ajudado, mas ultimamente ando tendo ideias fixas de que vou ser demitida, que vão
me mandar embora de uma hora para a outra pela minha incompetência, e...
É...?
Ora, Alexandre, nem preciso falar.
Falar o quê? Não entendi.
Você sabe que o Vagner está insuportável. Ele começou a insistir e... Tenho tanto medo
admitiu com sensibilidade ferida. Alexandre respirou fundo e franziu o semblante, não conseguindo disfarçar
seus sentimentos, e ela continuou: Não gosto dele. E você sabe que ele é muito amigo do senhor Oliveira,
o diretor de negócios. Disseram-me que o Vagner é primo da esposa dele. Veja, nós estamos sem um
chefe no setor porque o Edson pediu demissão. O Vagner conhece tudo ali dentro, é capacitado e tem um
tempo razoável na empresa. Agora me diz: quem você acredita que será nosso novo coordenador?
Com os olhos arredondados pela surpresa, Alexandre, muito sério, ficou em silêncio, e ela prosseguiu:
Não vou ceder às investidas do Vagner. Ele me apavora e enoja...Não sou tão competente assim
com meu trabalho a ponto de ser indispensável para a empresa. Entrei ali como digitadora e por força das
circunstâncias, olha onde estou e sem capacidade. Após poucos segundos de silêncio, ela admitiu: É
uma questão de raciocínio lógico, Alexandre. A qualquer momento ficarei sem emprego por causa do rumo
que as coisas estão tomando. Lá na casa do meu irmão, posso também, de repente, ficar sem ter onde
morar. Tenho todos os motivos do mundo para ficar preocupada. Raquel estava com os olhos brilhando
pelas lágrimas que começaram a brotar, então lamentou com suave voz abafada pelas mãos que passava
no rosto: Deus! Eu não sei o que fazer. Estou desesperada, você entende?
116
Entendo sim, Raquel. Calma. Eu vou ajudá-la.
Como? Ninguém pode me ajudar respondendo inconformada e abaixou a cabeça, escondendo
o rosto para não chamar a atenção.
Paciente, Alexandre argumentou:
Lá no serviço eu posso ajudá-la, sim argumentou Alexandre,paciente. Já fiz o seu trabalho
antes, você sabe. Quando tiver dúvidas, ou alguma dificuldade, é só me falar.
Não posso usá-lo, Alexandre. Tenho que resolver tudo isso sozinha.
Preste atenção, Raquel. Ninguém precisa ficar sabendo. Eu posso e quero ajudá-la. Há alguns
dias eu a vejo com dificuldades e só não me ofereço para não parecer intrometido.
Você já me ajudou muito.
Não tanto quanto eu acredito que posso. Diante do silêncio,ele perguntou: Se eu estivesse
em dificuldade e com problemas, vocênão faria o mesmo por mim? Raquel não respondeu nada e ele
concluiu: Então fica assim: lá no serviço, quando surgir alguma dúvida,eu a ajudo. Assim você ficará
mais calma e encontrará soluções para as outras coisas. Vai dar tudo certo, Raquel. Não podemos ser
pessimistas. Depois de alguns segundos, ele perguntou: Você está com fome?Vamos lá! Vamos
comer alguma coisa?
Não, obrigada. Preciso ir.
Encarando-o com jeito meigo, Alexandre figurou como um bálsamo reconfortante para Raquel, que o
olhava firme. Expressando-se com gentileza, ele pediu com ternura:
Deixe-me levá-la em casa? Conheço o caminho, já fiz isso antes evocê chegou inteirinha. Confie
em mim, vai.
Raquel sorriu levemente e, sem entender, acabou aceitando o convite. Quando se levantaram, ela
percebeu que Alexandre, rápido e discreto, tirou do bolso um pequeno recipiente que manuseou com
agilidade e pegou de dentro dele um comprimido que, ligeiro, engoliu a seco. Raquel não disse nada, pois
percebeu que o amigo não queria ser
notado.
117
No caminho para casa, ela contou sobre o sono perturbado que estava tendo e comentou sobre seus
pesadelos, mas sem entrar em detalhes.
Ao estacionar o carro, eles não puderam ver que Alice e Marcos os observavam por uma das janelas da
casa.
Sem perder muito tempo no interior do veículo, Raquel rapidamente agradeceu a carona, enquanto
Alexandre, com as costas na porta do carro, despediu-se a distância, pois sabia que Raquel não gostava de
aproximações.
Ao entrar em casa, Marcos e Alice ficaram em silêncio.
Raquel sentiu algo estranho, mas não disse nada. Ela não tinha o que falar.
Capítulo 6
Confiando em alguém
Na primeira oportunidade de se ver sozinha com o marido, Alice, calma e cautelosa, observou comentando:
Viu, Marcos, foi como falei. Agora você mesmo pôde comprovarque Raquel não é o que
aparenta. Ela disfarça muito bem.
Por que ela faz isso, Alice? Não posso acreditar.
Ela faz isso a troco de sua proteção, sua atenção. Não se esqueçade que, anos atrás, Raquel
criou um caso que revolucionou a vida detoda a sua família. Todos ficaram contra ela, só você a apoiou.
Até suamãe reconheceu a filha que tem, tanto, que nem com você ela quer maiscontato. Agora está aí a
verdade. Após alguns instantes de silêncio,aparentando-se tranquila e racional, Alice continuou: Onde
vocêacha que Raquel arrumou o dinheiro que nos emprestou para que pagássemos o aluguel em atraso?
Se fosse através de economias, você não acha que ela já teria guardado outro tanto? Sim, porque o seu
saláriodeve ser o mesmo, se é que não aumentou. E, morando aqui conosco,ela não tem tantas despesas
assim. Acorde, Marcos! A Raquel é bonita!Muito bonita! Quem iria trazê-la em casa a troco de nada? Na
certa elafez programas para conseguir o dinheiro que reservou e, agora, por estarmorando aqui, sob a sua
vigilância, não deve estar ganhando nada e, por isso, não consegue juntar alguma grana.
Marcos, embebido por pensamentos terríveis, deixava-se envolver por Alice e Sissa, que lhe passavam
incentivos com o propósito de amargurá-lo e colocá-lo contra sua irmã.
Ao ver o marido em silêncio, Alice perguntou:
O que faremos?
Tristonho e até abatido, ele resolveu:
Ainda não sei. Vamos esperar mais um pouco. Não podemos mandá-la embora daqui.
Marcos, a passos lentos, retirou-se sem dizer mais nada. Alice imediatamente esboçou um ar de felicidade
através de uma satisfação sórdida, indecente. Iria, a qualquer custo, macular a imagem de Raquel para o
irmão.
Por quê?
Por simples prazer.
O coração das criaturas pequenas, que ainda não descobriram o amor, promove os danos nos sentimentos
alheios através de seus pensamentos, palavras e atitudes.
Mas elas ignoram que, no exato momento em que pensam indevidamente, falam de modo não conveniente
à boa moral ou agem com intenções indevidas, criam imediatamente em torno de sim uma aura
impregnada, uma grosseira camada de energias, fluidos pesarosos, vis, torpes, baixos e que
inevitavelmente atraem entidades sem evolução nem valores morais. Só que, independente de qualquer
coisa, a duras penas, haverão de harmonizar tudo o que desarmonizaram, pois esta é a Lei.
Como nos disse Jesus: "... de modo nenhum passará da Lei um sójota ou um só til, até que tudo seja
cumprido".
Só temos a eternidade para nos refazermos.
Com o passar de algumas semanas, Alice via-se nervosa e preocupada. Seu relacionamento extraconjugal
não estava indo muito bem. Ela e Aldo se desentendiam por qualquer coisa. Ele exigia mais tempo em sua
companhia, o que era difícil, pois Alice não poderia oferecer nenhuma desconfiança ao marido. Esse foi um
dos motivos que geraram várias divergências entre ela e o amante. Por essa razão, Alice começava a ficar
impaciente e irritada dentro de casa, voltando a ser mal-humorada, sóque não brigava tanto quanto antes.
Marcos acreditava que ela tornara a se comportar assim por estar insatisfeita com a presença e o
comportamento de Raquel. O que ele
120
poderia fazer? Ele não poderia colocar a irmã na rua. Se bem que, se Alice estivesse com razão, Raquel
arrumaria rapidinho um lugar para ficar. Outra coisa que o incomodava era o fato de ter usado o dinheiro
que Raquel lhe emprestara e, no momento, não teria como devolver.
Procurando por Alice, que se encontrava nervosa, conversou com ela a respeito e ouviu depois:
Veja, não tenho onde guardar mais nada. Não tenho espaço, não tenho os móveis nem armários
suficientes. Esta casa está pequena. Estamosprecisando de dinheiro para poder viver melhor.
Será que não teríamos um jeito de ajuntar um certo valor emdinheiro para devolver à Raquel?
ele ainda insistiu.
Alice estremeceu de ódio, porém não se mostrou alterada. Teria que manter a aparente harmonia se
quisesse convencer seu marido. Serena, mostrando uma calma incomum, perguntou:
Como assim: "devolver o dinheiro para a Raquel?".
Se nós devolvermos o que minha irmã nos emprestou, ela arrumaria um lugar para ficar e aí
teríamos mais tranquilidade e espaço.
Estou querendo minha privacidade, sim expressou-se Alice,ponderada. Mas você se
esqueceu de que Raquel também nos deve?Tempos atrás, quando ela não tinha onde ficar, pois até nas
ruas como indigente sabemos que ela morou, nós a apoiamos. Pagamos médicos,psicólogos. Eu sei que a
nossa situação era um pouco melhor. Mesmoassim, logo que se ajeitou e foi morar sozinha, nunca se
preocupou emnos pagar.
Mas, Alice...
Marcos interrompeu com cautela , se tivéssemos sobrando,eu concordaria agora mesmo.
Mas no momento não podemos. Além domais, ela vem mentindo para nós todos esses anos. Veja como
ganhoufácil aquele dinheiro.
Marcos se esforçava para reagir contra aquelas ideias, mas era difícil. A cada dia ele tinha motivos para
acreditar que Raquel não era verdadeira e que mentira aquele tempo todo. Alice realmente possuía um
coração repleto de impulsos maldosos. Ela começou a usar
121
verniz para disfarçar seus interesses mesquinhos e desprezíveis. A cada dia, se realizava em satisfação
íntima ao perceber que Raquel murchara, perdendo o viço e a alegria, ao se deixar abater visivelmente
pelos próprios pensamentos pessimistas que cultivava, por perceber a diferença de tratamento que seu
irmão lhe dispensava. Como se não bastasse, Raquel ainda tinha como companheiro espiritual um sofredor
que lhe emitia contínuas afirmações tristonhas e desani-madoras.
Em conversa com a amiga Célia, Alice revelava sua insatisfação por ter a cunhada em sua casa e também
seu desejo de vê-la longe o quanto antes.
... e o Marcos ainda quer lhe devolver o dinheiro! Que absurdo!
Por que você não foi lá naquele "lugar"? perguntou Célia,curiosa.
Já fui! Lógico que fui.
Então considere realizado.
Estou só aguardando, Célia. Só aguardando.
Após alguns dias, algo inesperado aconteceu e Alice, aos prantos, retornou para casa e narrou seu drama
em desespero:
Eu não acredito! gritava Alice, inconformada. Tudo poderia acontecer, menos a minha
demissão.
Calma, Alice pedia Raquel, consolando-a. Você arrumaráoutro emprego com facilidade.
Acredite!
Em um pranto compulsivo, onde os soluços, vez ou outra, inibiam-lhe a voz, Alice reclamava:
Isso foi injusto! Eu já estava acostumada ali... Isso foi por culpadaquelas invejosas! Cretinas!
Raquel estava muito penalizada com a situação, até porque sabia o quanto era importante para a família
que Alice tivesse emprego e salário. Recordando os primeiros dias de sua estadia naquela casa, Raquel
122
lembrou que nem mesmo a comida era farta. Temia que Alice voltasse a ser tão briguenta como antes. A
vida de seu irmão voltaria a ser aquele inferno, pois Alice tinha o dom de irritar a qualquer um.
Marcos poderia, novamente, voltar a ter aquelas ideias terríveis que lhe contara sobre querer matar a
esposa e depois tentar o suicídio.
Esforçando-se para reagir e dar ânimo à sua cunhada, Raquel falou:
Quem sabe isso aconteceu para você arrumar coisa melhor? Agora, com experiência, você
conseguirá um emprego mais rendoso, em umlugar mais tranquilo. Anime-se, amanhã mesmo vou ver o
que posso fazer por você.
Você promete, Raquel? tornou Alice, quase implorando. Eu preciso tanto de um trabalho.
Prometa que vai me ajudar. Estou tão desorientada.
Prometo, sim. Vou conseguir.
Raquel parecia entorpecida. Envolvida por Sissa, ela se comovia com a condição de Alice. Sissa, através
de Raquel, iria procurar ajudar a sua protegida e colocá-la em uma situação melhor. A jovem Raquel, sem
conseguir raciocinar, quase automaticamente, fazia os contatos necessários para empregar Alice.
Em uma das oportunidades que teve durante o horário de serviço, Raquel comentou com Alexandre o
ocorrido e o amigo se indignou:
Você ficou louca?! exclamou incrédulo. Sua cunhadatripudia sobre você e ainda quer ajudá-
la?
Mas Alexandre, ela precisa. Além do que, quando Alice está desempregada, ela é terrível! Parece
que, com os pensamentos ocupados no serviço, ela não se revolta dentro de casa e fica menos implicante.
Quer um conselho, Raquel? E sem aguardar, opinou: Cuide da sua vida. Arrume um jeito
de sair dali. Procure alugar uma casa,uma quitinete, sei lá...
Como?
123
Ora, Raquel, procure insistiu Alexandre, sem se exaltar. Deve haver um jeito. Tem que
haver um lugar sem tantas exigências.
Tá! Tudo bem, eu arrumo o lugar e onde vou dormir? Como voucomer? Preciso de móveis e
utensílios básicos. Vendi tudo. Mal me sobraram as roupas, pois Alice vive pegando emprestado o que
tenho de melhor.
Suspirando e pendendo a cabeça de forma negativa, Alexandre confessou:
Tudo isso me deixa indignado. Como você foi entrar nessa? Ninguém se desfaz de tudo o que
tem e...
Devo muito ao meu irmão. Você não entende porque não sabe o que já me aconteceu.
Alexandre, fixando o olhar sério, encarava Raquel, aguardando que ela contasse.
Já me vi em muitas dificuldades, Alexandre, e somente o Marcos me ajudou. Por isso, farei por
ele o que for preciso, nem que isso sejaarrumar um emprego para Alice.
Você deve ajudá-lo, sim, mas sem se prejudicar. Ultimamente,Raquel, vejo-a triste, abatida,
desanimada com tudo. Como vai querer ajudar seu irmão sem ter forças nem para você?
Eu sei que tem razão, mas a verdade é essa: sinto-me realmente sem forças, sinto-me
incapacitada. Encontro-me num serviço em quenão me acho competente, não me dou bem nessa função e
acredito quevou perder o emprego a qualquer hora.
Quem falou que você vai perder o emprego?
Alexandre, para tudo o que faço fico dependendo de você.
Ora, Raquel, nem tanto.
É verdade! Eu o uso o tempo todo. Tudo o que faço dá errado. Eu luto, trabalho, me esforço ao
máximo e ninguém me reconhece. Nemminha família.
A moça se deixava envolver pelas vibrações daquele espírito que a acompanhava e que, desalentado,
passava-lhe suas impressões.
O colega ouvia calado. Mas um espírito de maior evolução moral, que agora acreditou ser o momento certo
de agir, envolveu Alexandre, que reagiu otimista ao pessimismo de Raquel:
124
Quem precisa valorizar os seus feitos é você mesma, Raquel,e não os outros. Não ressalte
o seu orgulho, mas você pode se considerar umapessoa vitoriosa por ter chegado aonde chegou. Não fique
olhando osproblemas. Procure as soluções. Após uma pequena pausa, ele prosseguiu firme: Tem
uma frase de Guimarães Rosa que é mais ou menos assim: "o animal satisfeito dorme". Se não está
satisfeita, acorde,Raquel! Não se acomode! Não creia que a vida seja assim mesmo, porque não é, não.
Você sempre pode fazer algo para melhorar. Reaja!
Não tenho motivos que me impulsionem, Alexandre. Estou semvontade.
Olhando-a bem nos olhos, ele se aproximou e, como se quisesse embutir-lhe as palavras, afirmou
categórico:
A decadência de uma pessoa se inicia com frases desse tipo. Não pense assim. Seu humor, seu
ânimo, sua força de vontade e a reconquista da auto-estima serão renovados quando sair da casa de seu
irmão, mas, para isso, você precisa se auto-afirmar como pessoa. Raquel não dizia nada, e o colega
continuou: Não faça nada em favor de Alice até você se estabilizar. Guarde suas energias para você
mesma. Vendo a colega manter o olhar fixo no chão, ele completou: Pense, Raquel. Pense bem.
Estabilize-se primeiro depois você pode pensar em ajudá-la. Antes, não. Passado alguns segundos,
Alexandre tomou coragem e decidiu: Eu preciso muito falar com você,mas não pode ser agora, nem
aqui. O assunto é sério e por isso precisamos de um tempo maior. Quando encerrar o expediente, você
me espera, certo?
Raquel, confusa e sem saber o que pensar, afirmou positivamente sem dizer nada. Alexandre voltou para o
seu lugar e ficou planejando o que iria dizer. Durante todo esse tempo de conversa, Rita e Vagner ficaram
paralisados e olhando-os, sem saber qual era o assunto. Quando terminaram, Rita, pensando em voz alta,
falou entre os dentes:
Ela me traiu. Quietinha, linda, ingénua e falsa.
Acho que ali o cafajeste é ele avisou Vagner. Alexandre,como todo bonitão, só sabe "dar
em cima", conseguir e cair fora.
Tá a fim da Raquel? perguntou Rita bem direta.
125
Não mais. Se bem que ela é tentadora admitiu sorrindo commalícia.
Rita sorriu cinicamente exibindo no olhar um brilho diferente pelas ideias que começaram a surgir; virou-se
para o colega e decidiu:
Podemos ser grandes amigos, Vagner. O que você acha?Vagner quase gargalhou de satisfação e
estendeu a mão para a amiga,
que se encontrava sentada em sua mesa.
Bem mais tarde, Raquel e Alexandre se encontraram no shopping a fim de conversarem sobre o assunto
tão importante que ele anunciou. Esquecendo-se das promessas que fizera a si mesmo, tinha vontade de
se declarar apaixonado, mas deveria ter paciência. Raquel era diferente e estava com problemas. Então
resolveu guardar seus sentimentos e cuidar dos assuntos materiais. Ele poderia se conter.
Sentado em frente dela, muito decidido, Alexandre estava sério, com o semblante exibindo preocupação,
entretanto, firme avisou:
Raquel, quero lhe fazer uma proposta. Primeiro ouça tudo o quetenho para dizer. Tudo!
Entendeu? Ela o encarou e ele prosseguiu: Eu moro sozinho e não tenho muitas despesas. O
apartamento émeu. Não é muito grande, mas tem três quartos. Um é suíte, um eu usocomo escritório e no
outro eu guardo algumas coisas, este último é meiobagunçado. O quarto que faço de escritório não tem
muita coisa, nele eu posso colocar uma cama e...
O que você quer dizer com isso, Alexandre? perguntou ela, jáentendendo a proposta do
colega.
Espere. Ouça, por favor pediu tentando se explicar. Depois continuou: Você poderia vir
morar comigo. Eu passo a dormir no escritório e você fica com a suíte, será mais próprio e adequado para...
Você ficou louco?!
Não! Espere!
126
Raquel ajeitou a alça de sua bolsa em seu ombro e foi levantando quando Alexandre a segurou, pedindo:
Por favor, Raquel. Espere-me terminar. Vamos conversar como dois adultos inteligentes e
racionais. Não fuja da situação. Por favor.
Eu não vou morar com você! respondeu quase sussurrando. Isso é um absurdo! Onde já se
viu?...
Sente-se Raquel. Não chame a atenção. Ela obedeceu e o amigo prosseguiu: Será por
pouco tempo. Podemos até estipular um prazo de três ou quatro meses. Só até você guardar certa quantia
para comprar o que precisa e montar uma casa. Aceite, por favor. É uma boa alternativa.
Nervosa, suspirou fundo exibindo seu desagrado, depois comentou:
Olha, Alexandre, eu venho comentando para você os meus problemas como um desabafo. Não
quero envolvê-lo em minhas dificuldades. O fato de ser meu amigo não lhe dá a obrigação de ter que
me ajudar. Se eu soubesse que iria agir assim...
Alexandre percebeu que não teria chances, sentiu-se derrotado, não conseguiria convencê-la. Após breves
instantes, ela concluiu, sempre educada e gentil:
Se quiser ainda continuar sendo meu amigo, vou sugerir, porfavor, me entenda e não me force a
aceitar seu convite. Eu sei que foicom boa intenção, mas...
Está bem, Raquel. Esquece. Não vamos mais falar nisso, eu prometo. Mas tome cuidado com
sua cunhada. E, lembre-se, serei sempre seu amigo. Certa vez eu disse que não tinha amigo por não
confiar emmais ninguém. Eu estava enganado, ainda existem pessoas sinceras, honestas e
desinteressadas, e você, Raquel, é uma delas. Eu a considerominha amiga.
O silêncio reinou por longos minutos. Alexandre, para disfarçar sua decepção, começou a falar alegremente
sobre o carro novo que havia comprado com a cor que ele desejava e que dera o outro como parte do
pagamento. A conversa seguiu sobre coisas corriqueiras até que Raquel, olhando a hora, informou:
Preciso ir embora. Já está tarde.
127
Posso levá-la para casa?
Diante da humilde ternura que ele colocou no tom de voz e no olhar que parecia suplicante ao encará-la,
Raquel não teve coragem de recusar.
Após deixá-la em frente de casa, Alexandre se despediu com um nó a engasgar-lhe na garganta. Algo
estava errado. Ele sentia. Seus olhos estavam umedecidos e uma vontade de chorar o amargurava. A
custo conseguia conter-se.
Raquel, percebendo seu estado sensível, perguntou antes de descer do carro:
Você está bem?
Sim. Estou admitiu disfarçando o olhar sem encará-la.
Não está sentindo nada? preocupou-se a amiga.
Não dissimulando com um sorriso generoso, ele fugia do seu olhar. Não se preocupe,
Raquel. Estou bem. Pode ir tranquila. Ah!Tome! disse buscando no porta-luvas do carro um bloco de
anotações e uma caneta. Depois explicou: Sempre quis te passar o telefone do meu apartamento e
acabo esquecendo.
Após anotar o número no papel, entregou-o para Raquel, que admirou:
Nossa! Que número fácil de ser lembrado! Os quatro últimos são do meu ramal!
É verdade. Se precisar, não se acanhe. Ligue-me a qualquer hora.Sei que não vai esquecer.
Obrigada. Vou me lembrar.Raquel desceu do carro e entrou.
Mais uma vez eles não perceberam que Marcos e Alice os observavam de dentro da residência.
Veja você mesmo. Ela chegou em outro carro, com outro cara.Marcos só observou, sem dizer nada.
Mas seus pensamentos fervilhavam indignados.
128
Com o passar dos dias, Raquel conseguiu uma colocação para Alice na mesma empresa em que
trabalhava. Alice ficou maravilhada. Mais experiente, ela se empenhava em obter destaque.
No decorrer de poucos meses, bem inteirada do serviço que realizava, Alice se destacava com o que fazia
e, em razão de trabalhar no atendimento telefônico, anotando recados e oferecendo informações, se
aproximou da chefia que, observando seu empenho, a colocou em outro setor, porém com o mesmo tipo de
serviço.
Só vou atender as ligações para os diretores, anotar os recados e,dependendo de quem ligar,
oferecer informações. Só que o horário será o do expediente contava ao marido.
Você e a Raquel fazendo o mesmo horário podem ir juntas evoltar também.
Ah, não! Deixe a Raquel seguir o ritmo dela e eu sigo o meu respondeu a esposa, com o
semblante sério.
Por quê?
Bem, será melhor assim tornou Alice generosa.
Marcos ficou pensativo. Aquela atitude de sua mulher deixou a desejar sobre o comportamento de Raquel.
Sua irmã talvez tivesse companhias que não agradassem a sua esposa. Analisando bem, reparou que
Raquel arrumou um emprego muito rápido para Alice e num momento de crise. Só alguém com muita
influência conseguiria isso. Ele ficou intrigado e não disse mais nada.
Na primeira oportunidade, Alice e Célia conversavam a respeito de Raquel.
Então eu fui lá novamente e reforcei os trabalhos. Quero a Raquel fora da minha casa o quanto
antes. Disseram que está sendo difícilporque ela tem um "santo muito forte". Mas eles vão dar um jeito.
Célia ignorava que tinha grande parcela de culpa nas maldades que Alice realizava e, com toda certeza,
teria que harmonizar à custa de muito trabalho o que estava fazendo.
Só pelo fato de ouvir algo errado e não ensinar o correto, já estamos coniventes com o erro e somos
responsáveis por ele.
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Em uma oportunidade casual, ao chegar ao restaurante, Alexandre viu Raquel almoçando sozinha. Depois
de se servir, devido ao tipo de serviço que o referido restaurante prestava, o rapaz se aproximou da colega
e, parado diante dela, empunhando uma bandeja com a refeição, perguntou:
Posso?
Claro. Sente-se e fique à vontade indicou, sorrindo satisfeita pela companhia.
Por alguns minutos a conversa predominante foi sobre o serviço, atéque Alexandre não conseguiu conter
sua preocupação e perguntou:
E você, como está? Há tempos não conversamos. Como estão osdesafios?
Não sei, Alexandre. Cada dia... Agora a voz de Raquel embargou,seus olhos ficaram nublados
pelas lágrimas que quase rolaram.
Vendo que a amiga tentava se controlar, ele aconselhou:
Tudo bem. Não diga mais nada. Aqui não é um lugar propício.Vamos fazer o seguinte. No final do
expediente nós nos encontraremosno shopping, no lugar de sempre, está bem?
Para a surpresa de Alexandre, ele ouviu:
Sim, por favor. Eu estou sentindo falta... Preciso falar com alguém.Pouco depois, já na empresa e
antes de retornar para a seção, pois
ainda não estava no horário, Alexandre encontrava-se no corredor à espera do elevador quando Vagner
perguntou:
Tudo bem, Alexandre?
Sim. Está respondeu, friamente e desconfiado.
Então não há problema algum com o serviço ou com o ambiente de trabalho?
Não, Vagner. E, mesmo se houvesse, acredito que esse não é o lugarmais propício para o
assunto. Além do que, ele não lhe diz respeito.
Está irritado, Alexandre?
Deveria?
Não sei. Só que você me parece um tanto nervoso, decepcionado.
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Engana-se, Vagner. Não tenho motivos para decepções nem para me sentir nervoso.
Procurando encontrar um meio de impor a Alexandre suas colocações venenosas, Vagner atacou:
Será que não está nervoso ou decepcionado por não conseguirnada com a Raquel?
Alexandre sentiu-se gelar, quase não conseguindo conter sua raiva. Calado, ele cerrou os punhos pelo
nervosismo, enquanto seu rosto transpirou, exibindo sua inquietação. Mas conseguiu permanecer em
silêncio. Vagner, com sorriso irônico, desfechou a punhalada fatal:
Estou tentando ser seu amigo. Não me leve a mal. Mas sabe porque você não consegue nada com
a Raquel? Porque ela "camufla". A Raquel joga no "nosso time". O negócio dela é outra mulher.
Alexandre sentiu-se ferver. Seus olhos faiscavam de raiva e, indignado, agarrou Vagner pela camisa,
exigindo:
Você vai ter que provar isso!
É fácil! Solte-me!
Alexandre o largou com um empurrão e Vagner, alargando mais o sorriso de desafio, concluiu:
A prova está em você mesmo. Seja esperto, cara! Como é que você,sendo como é, que tem
qualquer uma aos seus pés, não consegue nada com a Raquel? Depois de tanto tempo "chegando junto",
não acha que já deveria ter conseguido alguma coisa? Por que nunca a vimos com algum cara?
Isso não é prova, canalha. Vou quebrá-lo ao meio.Quando ia investir contra Vagner, este
rapidamente falou:
Pergunte à Rita. Alexandre estancou e o colega prosseguiu: Pergunte à Rita por que ela não
tem mais amizade com a Raquel. Repare que nenhuma outra moça tem amizade com ela.
Você está mentindo. Isso é muito baixo, Vagner! Alexandreparecia estar enjaulado. Ele
andava de um lado para o outro sem saber o que pensar e Vagner continuou:
A Rita se afastou de Raquel porque ela a estava assediando. Vamos! Vai lá e pergunta. Foi por
isso que me afastei. Nunca percebeu que
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a Raquel não suporta um abraço ou um beijinho nosso? Com quem soubemos que ela namorou, ou coisa
assim?
Desalentado, Alexandre falou em voz baixa, começando a crer no outro:
É mentira... Isso não pode ser verdade.
Vagner, querendo magoar ainda mais o colega, favoreceu-se de sua fragilidade, notando seus sentimentos
abalados.
Eu sei que você está decepcionado. Pelo visto, pela sua cara, vocêestava mesmo gostando dela,
não é?
Sem responder, Alexandre virou-se e caminhou até as escadas, usando-as. Seu rosto empalidecera e
exibia uma amarga decepção. Ele afirmava, em pensamento, que aquilo era mentira, mas algo o
enfraquecia. Tudo o que era lógico passou a ser duvidoso, e isso acontecia pelo fato de Alexandre ter ao
seu redor companheiros espirituais que insistiam em lhe passar pensamentos inferiores, fazendo-o crer
naquelas acusações baixas e irresponsáveis.
Chegando ao andar desejado, ele se deparou com Rita, que o cumprimentou e depois se alarmou:
Nossa, Alexandre! Que cara é essa?!
Sentindo-se atordoado e confuso, ele parecia ouvir a frase de Vagner em sua mente: "Nunca percebeu que
Raquel não suporta um abraço ou um beijinho nosso?" "Como é que você, sendo como é, não consegue
nada com a Raquel?"
Ele parou e ficou olhando para Rita, seus olhos pareciam vidrados.
Alexandre, você está bem?Encarando-a, foi direto e objetivo:
Por que você e a Raquel não têm mais amizade como antes?
Já preparada para tal indagação, pois Rita e Vagner haviam combinado tudo, ela disfarçou cinicamente ao
responder:
Alexandre, isso não vem ao caso. Você está tão branco, pálido.Vamos até ali, vamos conversar um
pouco.
Reagindo impulsivamente, ele quase gritou:
Não!
Rita encarou-o nos olhos e disse:
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Você já sabe, não é? Por isso está tão irritado e decepcionado, mas é isso mesmo. É por causa
desse tipo de vida que Alice briga com ela.
Alexandre parecia estar entorpecido. Não podia mais ouvir aquilo. Virando as costas, deixou Rita falando
sozinha e se foi.
Ocupando o lugar em sua mesa, o rapaz não parecia bem. Os companheiros espirituais que o envolviam
faziam com que se lembrasse de detalhes que achava estranho em Raquel. Ela nunca namorara, não tinha
amigas, era calada, não gostava de ser tocada pelos rapazes. Ele acabou recordando quando a viu
abraçada a Rita, enquanto riam por alguma coisa. Era estranho. Quando Rita a abraçou, Raquel não a
repeliu. Ele se sentia muito mal com tudo aquilo.
Procurou por seus remédios, mas com as mãos trêmulas e suadas, não conseguiu segurar o vidro, que lhe
escapou para o chão, onde se espatifou. Sem conseguir pegá-los, pois estava tonto e com a respiração
alterada, ele se debruçou sobre os braços e ficou quieto.
Raquel, que acabava de chegar, percebeu que algo estava errado, pois o amigo não costumava largar-se
daquela forma. Enquanto ia se aproximando percebeu sua palidez e, ao olhar no chão, viu os comprimidos
espalhados junto com pedaços de vidro.
Alexandre! assustou-se ela, correndo em sua direção.
Às pressas, Raquel pegou água, teve o cuidado de limpar bem um comprimido que apanhou do chão e,
oferecendo-o a Alexandre, disse:
Tome. Beba isso logo.
Dois... sussurrou ele.
Raquel abaixou-se, pegou outro remédio e o deu ao amigo, que, após ingeri-los, debruçou-se novamente
aguardando o efeito.
Raquel apanhou todas as cápsulas que encontrou no chão e as colocou sobre uma folha de papel. Virando-
se para Alexandre, avisou preocupada:
É melhor chamar alguém. Você precisa de um médico.
Não! reagiu o colega com toda firmeza que conseguiu.
Você não está bem, Alexandre.
Estou sim. Por favor, espere. Isso passa.
O quanto antes, ele ergueu a cabeça fitando-a longamente com um olhar suplicante que ela não pôde
entender. Vencendo-se, Raquel o tocou
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no rosto sentindo sua temperatura fria. Em seguida, afagou-lhe de leve e com terno carinho. Ele não dizia
nada, mas seus pensamentos fervilhavam.
Alexandre, deixe-me chamar alguém? pediu com sua voz suave.
Não. Estou melhorando. Isso é assim mesmo. Tomando novamente o fôlego, ele perguntou:
Tem alguém nos observando?
Raquel olhou em volta e respondeu:
Não. A seção ainda está vazia. O pessoal não voltou. Só têm alguns lá embaixo; onde estão, não
podem vê-lo sentado aí. Diante do silêncio, ela insistiu: Tem certeza de que está melhorando?
Sim, já estou melhor. Mais alguns minutos e isso já vai passar.Ele parecia se tornar mais corado.
Vagner acabava de chegar e presenciou a cena em que Raquel novamente acariciava com delicadeza o
rosto do amigo sentindo sua temperatura, mas ela não o viu.
Alexandre começou a se sentir melhor. Sentou-se corretamente, esfregou o rosto com as mãos e girou a
cabeça em círculos. Raquel, já sentada em seu lugar, observava-o a pouca distância. Ele pegou o telefone e
solicitou a alguém da manutenção que viesse prestar o serviço de limpeza pelo vidro que quebrou.
Percebi que está menos gelado. Mas tem certeza de que está melhor? perguntou Raquel um
tanto inibida, porém preocupada.
Sim, já estou melhor. Obrigado respondeu sem encará-la.
Você me assustou, Alexandre admitiu sensível.
Acontece. Não se preocupe afirmou sorrindo para disfarçar.Alexandre procurou se entreter com
alguns papéis, mas fazia isso
para dissimular. Ele ainda não estava conseguindo se concentrar, na verdade. Seus pensamentos eram
tumultuados pelas cenas das lembranças de alguns acontecimentos. Quantas vezes ele simplesmente
pegou em suas mãos e ela, com certo jeitinho, se afastou?
Vagner parecia ter razão. Como é que, sendo como era, não conseguia fazê-la se impressionar por ele?
Raquel o tratava sempre como amigo, nunca ofereceu qualquer oportunidade para uma aproximação.
Sópoderia ser essa a explicação para tudo isso.
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As ideias de Alexandre fervilhavam. Ele estava aflito. Intimamente sentia tanta amargura que era quase
impossível descrever. Lembrou-se de quando surpreendeu sua noiva traindo-o com seu melhor amigo.
Quanta decepção! Agora não sabia dizer qual experiência tinha sido pior, pois tudo apontava que só essa
explicação justificava as atitudes de Raquel. Ele sentia algo muito forte por ela. Não saberia descrever, mas
era algo muito acima dos sentimentos comuns.
Alexandre a amava.
Ele a respeitava e a queria muito bem. Seu coração estava oprimido pelos pensamentos que agora o
fustigavam. Com o olhar perdido, ele refletiu e resolveu:
"Não vou julgar Raquel. Apesar de tudo indicar que isso seja verdade, não posso julgá-la. Raquel nunca me
enganou e se não me contou foi por vergonha. Mas ela nunca me enganou. Talvez seja por isso que disse
já ter sofrido muito", pensava Alexandre, forçando-se ao equilíbrio. "Não vou dizer nada a ela, pois já está
com muitos problemas, com muitas dificuldades."
E, como que em prece, ele fechou os olhos e clamou:
"Deus, dá-me forças. Ajude-me a suportar. Parece que nasci para não ser feliz no amor, por isso, me dê
forças para suportar mais essa. Estou decepcionado, arrasado, não posso acreditar, mas... Sabe, se
alguém me dissesse que a Sandra me traía com meu melhor amigo, eu também diria que era mentira.
Portanto, diante do comportamento de Raquel eu não posso..."
A voz meiga e suave de Raquel tirou-o daquele diálogo com Deus. Alexandre quase se sobressaltou ao
ouvi-la perguntar:
Alexandre, você está bem?
Que susto, Raquel. Eu estava tão longe respondeu ao oferecer um leve sorriso.
Desculpe-me. Estou preocupada. Você fechou os olhos e ficoutão quieto.
Ele sorriu e acabou ficando satisfeito com a preocupação da colega, porém afirmou que estava bem e que
só pensava em um relatório que
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tinha de preparar. Raquel voltou para sua mesa e ele passou discretamente a observá-la com carinho e até
piedade. Alexandre possuía um coração nobre, pois era bondoso por índole.
Bem mais tarde, no final do dia, ele sinalizou para Raquel que jáestava saindo e a esperaria no local de
sempre.
Após alguns minutos, Raquel e Alexandre já se encontravam conversando na praça de alimentação do
shopping.
Você tinha razão, Alexandre. Trazer Alice para trabalhar comigofoi a pior coisa que eu poderia ter
feito.
Ele escutava atencioso e calado, pois sabia ouvir. Passando a olhar as lágrimas copiosas que rolavam no
rosto de Raquel, desejou apará-las, mas não podia. Respeitava sua amiga, afinal ele a amava e acreditava
no amor incondicional. Se era desse jeito que Raquel queria, assim seria. Alexandre somente aproximou
sua cadeira de Raquel para ficar mais perto e a fim de ouvi-la melhor. Raquel queria lhe contar algo, mas
sua emoção não deixava, embargando-lhe a fala que ele não conseguia entender. Em dado momento, a
amiga pareceu perder o controle das emoções. Queria falar, mas os soluços a impediam. Foi então que um
choro compulsivo, quase desesperador, a dominou.
Não resistindo, Alexandre se viu compelido a colocar seu braço nas costas de Raquel; abraçando-a,
recostou-a em si. Raquel parecia muito tensa, mesmo assim não o repeliu e chorou algum tempo em seu
ombro.
Envergonhada pela situação, ela abaixou a cabeça e, enquanto ele lhe afagava os cabelos, pediu com a
voz rouca, sussurrando:
Alexandre, me leva embora daqui, por favor?
Claro, vamos concordou gentil e prestativo.
Ajudando-a se levantar, ele a abraçou com generoso cuidado e a conduziu para que saíssem dali. Raquel
estava envergonhada, aquele era um lugar público e muitos olhavam curiosos, não tinham discrição. Ela
recostou seu rosto no peito de Alexandre, usando os cabelos para encobri-lo a fim de que ninguém a visse
chorando, entregando-se aos cuidados do amigo.
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Atencioso, sofrendo por vê-la naquele estado emocional, ele a levou para o seu carro, a fez entrar e logo
saíram do shopping. Raquel não dizia nada, só chorava, pois seus pensamentos estavam impregnados de
ideias pelas vibrações de amigos espirituais que a castigavam com induções.
Nesse caso, o mentor sabiamente não interferia. Havia um bem ocorrendo no suposto mal. Raquel
começava a vencer um medo que hámuito sofria e deixava-se abraçar por alguém de caráter em quem
poderia confiar. Em breve, ela descobriria que, por falta de preces nos momentos aflitivos, deixava seus
pensamentos desguarnecidos de fé.
Após dar algumas voltas, Alexandre decidiu ir para o seu apartamento e, ao vê-lo entrar na garagem
subterrânea do prédio, ela perguntou, com voz vacilante:
Onde estamos?
Calma, Raquel. Estamos em um lugar tranquilo e seguro. Não vamos ficar na rua "dando sorte ao
azar", correndo o risco de sermos assaltados ou coisa assim.
Amedrontada, com os olhos assustados, a moça parecia estar em choque.
Após estacionar o carro, Alexandre saiu do veículo, contornou-o, abriu a porta e convidou com
generosidade, ao estender a mão para ajudá-la:
Vamos?
Demonstrando certo espanto, com a respiração alterada, olhos vermelhos e voz levemente rouca, Raquel
pediu timidamente:
Leve-me embora.
Alexandre percebeu que a amiga estava trêmula e trazia uma expressão de pavor no olhar. Acreditou que a
qualquer momento ela pudesse gritar apavorada. Por isso, com cautela e extrema brandura, ele se abaixou
para ficar na mesma altura de Raquel, que continuava sentada no banco do carro. Aproximando-se um
pouco mais, olhou em seus olhos assustados e, generoso, com voz suave, explicou:
Raquel, estamos na minha casa. Não vou lhe fazer nenhum mal.Confie em mim. Eu sei que você
está nervosa e que precisa conversar, só
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que não dá para ficarmos no shopping por causa da sua emoção e não podemos ficar sentados dentro do
carro parado na rua, é perigoso. Após pequena pausa, ele se levantou e, estendendo-lhe novamente a
mão, pediu afetuoso: Confie em mim, Raquel. Venha. Vamos sóconversar, eu prometo.
Nesse instante, Raquel sentiu-se entorpecida. Sem entender, pegou na mão de Alexandre e aceitou o
convite. Após fechar a porta do carro, temeroso e com todo cuidado, ele tornou a colocar o braço no ombro
da colega, que estranhamente não reagiu e se deixou conduzir.
Já no devido andar, após abrir a porta do apartamento, ele educadamente se desculpou, oferecendo suave
sorriso:
Entre. Fique à vontade. Só me perdoe pela bagunça. Sou umpouco desordeiro.
Raquel ainda parecia assustada e nada disse. Fazendo-a se sentar em um sofá na sala, ele foi até a
cozinha, voltando rapidamente com latinhas de refrigerante e ofereceu-lhe uma. Sentando-se observou que
sua amiga ainda estava nitidamente trêmula e nervosa por estar ali. Com paciência e generosidade nas
palavras, perguntou:
O que foi, Raquel? Se bem que já imagino o que está acontecendo, mas quero ouvir de você.
Com os olhos novamente banhados de lágrimas, ela o encarou e desabafou:
Você tinha razão. Eu não deveria ter trazido Alice para trabalharjunto comigo. Agora, já
estabilizada no serviço e com "certos contatos",ela está fazendo tudo para me prejudicar.
Como?
Sabe, assim que a Rita voltou de férias, ela foi indicada para outro serviço e eu acabei ficando
com o que era dela.
É...?
Eu soube que a Alice, assim que começou a ter amizade com a Rita, disse-lhe que fui eu quem
insistiu para pegar aquele trabalho.Isso não é verdade! Agora a Rita está com raiva de mim, virando a
cara,jogando indiretas bobas e falando coisas que... Raquel deteve aspalavras.
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Ao ouvir isso, Alexandre ficou alerta. Tudo começava a fazer sentido. Se Rita estivesse com raiva de
Raquel, nada melhor do que difamá-la. Mas, por outro lado, Raquel agia estranhamente. Ele não disse
nada, achou melhor ouvi-la primeiro.
Isso não é só continuou Raquel falando baixinho e em meio aum choro mais suave , Alice
anda inventando calúnias absurdas!
Como o quê? perguntou mansamente.
Agora, trabalhando mais perto do senhor Valmor, ela anda... vamos dizer, fazendo cena, cara de
triste ou algo assim. Quando o senhorValmor pergunta o que é, a Alice diz que eu sou o motivo de sua
preocupação, pois a ameaço só porque fui eu quem lhe arrumou o emprego.Ainda mentiu dizendo que eu
falei tanta coisa ruim sobre ele e, só agora, trabalhando mais próximo, é que ela viu que era tudo mentira
minha. Raquel começou a chorar mais e, mesmo entre os soluços, continuou: O Vagner ficou irritado
comigo e...
Por quê? perguntou Alexandre, imediatamente alterado.
Ele disse que eu só fazia meu trabalho quando você me ajudava.Disse-me que você não estava
dando conta do seu serviço por minhacausa.
Canalha! Isso é mentira! E foi por isso que você parou de me pedir as coisas?
Raquel afirmou que sim, ao pender com a cabeça, e continuou:
Além de tudo isso, o Marcos está muito diferente comigo nosúltimos tempos. Talvez até ele já deva
estar sabendo da fofoca que Alice e Rita inventaram.
Que fofoca, Raquel? interessou-se, mas perguntoutranquilamente.
A jovem não se conteve, caiu em um choro compulsivo e atédesesperador. Sua natureza sensível e
delicada estava sendo rigorosamente agredida. Alexandre, ao seu lado, procurou olhar em seus olhos,
curvando-se ao perguntar com sutileza:
O que elas inventaram a seu respeito que a deixou assim?Raquel escondia o rosto com as mãos e
os soluços não a deixavam
responder. Nesse minuto, Alexandre, ligeiro em seu raciocínio, já havia
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descoberto tudo. Sem que Raquel visse, ele sorriu satisfeito ao juntar os fatos: Rita, não conseguindo
conquistá-lo, juntamente com Vagner, que nada conseguiu com Raquel, e agora com o apoio de Alice, que
não gostava da cunhada, inventaram aquela enorme calúnia contra Raquel para afastá-los como amigos ou
até algo mais sério que pudesse existir entre eles.
"Como pude ser tão idiota?", pensava ele. "Raquel é feminina demais para aquela história ser verdadeira. E
só observar o seu jeito delicado, sua personalidade sensível, seu comportamento feminino íntegro e
recatado, a maciez de sua voz... sua beleza... Como eu pude acreditar?!"
Ele sorriu satisfeito, mas piedoso, e ficou olhando para Raquel imaginando o quanto aquilo a magoava, o
quanto lhe doía tanta ofensa. Com a voz branda, aconselhou:
Não se preocupe, Raquel. Isso não é verdade e logo...
Você... tam... também já sa-be? gaguejou pelo soluço insistente.
Isso não tem importância argumentou com ternura.Raquel, envergonhada, começou a chorar
mais ainda, mesmo assim
ela dizia entre os soluços:
Meu irmão deve estar acreditando nisso! Que horror! Todo mundo pensa...
Ela estava em desespero. Raquel era extremamente sensível e Alexandre sabia disso. Ele podia entendê-
la, conseguia sentir sua alma delicada e compreender sua dor, mesmo desconhecendo sua história e as
dificuldades que a deixaram assim.
Aproximando-se dela, a abraçou recostando-a em si, oferecendo seu ombro para o pranto da amiga.
Raquel, talvez pelas fortes emoções e pela carência de alguém sincero naquele momento, não o repeliu.
Sem que ela percebesse, Alexandre encostou seus lábios na cabeça de sua querida, beijou-lhe várias
vezes os cabelos, roçando suavemente os fios que se enroscavam de leve em seu rosto. Sentia um
carinho, uma ternura imensa por ela, só que não podia se revelar. foi muito difícil conquistar aquele pouco
de confiança e trazê-la até ali fazendo acreditar nele. Agora não poderia estragar tudo. Ele saberia esperar.
Refletindo um
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pouco concluiu que Raquel, para ser arisca daquela forma, deveria ter experimentado, vivenciado algo
muito grave. Com generosidade, afagando-lhe os cabelos, Alexandre falava baixinho:
Não chore, Raquel. Não fique assim.
Eu... eu não sei o que faço lamentava soluçando.Delicadamente Raquel afastou-se do abraço
e começou a secar as
lágrimas com as mãos. Passado alguns minutos, um pouco mais recomposta, ela falou com leveza na voz:
Lá na casa do meu irmão está tão difícil. A Alice é falsa comigo.Eu sei. Ela está enchendo as
ideias de Marcos a meu respeito. Vouacabar sem ter onde morar e ainda perderei o emprego.
Não vai, não. Pense diferente, Raquel.
Como? Como devo pensar? É difícil arrumar um bom emprego.Estou desatualizada. Não tenho
casa, vivo com meu irmão e... Depois de breve pausa continuou: Parece que nasci para sofrer. Tudo
dáerrado para mim.
A cada instante a jovem se deixava envolver em vibrações inferiores. Pensando daquela forma, não reagia
e se entregava à manipulação de espíritos inferiores. Alexandre, mais racional, procurava animá-la:
Não fale assim, Raquel. Aproveite esse grande momento e descubra sua capacidade.
Que grande momento?
Aproveite esse desafio e mostre sua capacidade de vencer. Pense nas soluções, e não nos
problemas.
Você diz isso porque não está em meu lugar. Encarando-o nosolhos, ela admitiu: Estou
cansada. Não sabe o que eu já passei, nem imagina o que já tive de suportar e de superar. Não tenho mais
forças,Alexandre. Quero morrer!
Raquel! Não fale assim! "Faça uma jangada com o resto dos destroços do naufrágio." Já passei
por poucas e boas, também. Você sabe.E, veja, estou aqui. Não sei o que enfrentou, mas se foi um
problemamaior do que o atual e já superou, então, o desafio do momento não énada. Reaja, Raquel!
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Ela ofereceu um sorriso e um olhar tristonho com lágrimas que começaram a brotar novamente; falou
delicadamente:
Meu amigo, o difícil é saber que, até hoje, não solucionei meudesafio do passado e ainda tenho
um grande problema para resolver.
O que aconteceu, Raquel? perguntou interessado, sério e ansioso.
Encarando-o, ficou em silêncio, mas sem conseguir deter os soluços que se fizeram teimosos. Fitando-a
com serenidade, ele viu rolar as lágrimas em seu rosto trêmulo que, apesar de angelical beleza,
expressava-se triste. Seu olhar parecia implorar por socorro e amparo. Raquel sofria angustiada. Alexandre
sentiu um envolvimento irresistível entre eles. Instintivamente, puxou-a para perto de si, agasalhou-a em
seu peito, envolvendo-a com ternura e carinho. Raquel, parecendo entorpecida e um tanto paralisada, não
reagiu. Ele a ajeitou nos braços, quase a deitando em seu colo, prendendo-a firme contra si, mas com
delicadeza. Não acreditando naquele momento, Alexandre beijou-lhe a testa com todo carinho, com todo
seu amor. Sussurrando, pediu:
Raquel, conta pra mim a sua história.
Um choro desesperador se fez sem que ela conseguisse se conter, segurando-o com as mãos, puxava-o
pela camisa num gesto de aflição extrema, escondendo o rosto em seu peito. Alexandre começou a
embalá-la nos braços esperando que se acalmasse. Com voz generosa e piedosa, murmurou:
Oh, Deus! O que fizeram com você para ser assim?
Raquel não disse nada e continuou chorando enquanto escondia o rosto. Aos poucos ela se acalmou até se
recompor do desespero. Afastando-se dos braços dele, não o encarava, como que envergonhada. Com a
cabeça baixa, escondendo o rosto vermelho entre os cabelos, pediu:
Leve-me embora, por favor, Alexandre. Já é tarde.
Você não quer conversar comigo sobre isso?
Não consigo... respondeu hesitante.
Quer tentar? sugeriu bondoso.
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A bela jovem ergueu o olhar, que parecia clamar por misericórdia, fitou-o por longo tempo, mas não teve
coragem de relatar sua história. Diante do silêncio que se fez, o amigo decidiu:
Tudo bem. Deixa para outro dia.
Ela concordou e depois pediu temerosa, envergonhada:
Dá para você me levar embora?
Lógico! Vamos respondeu Alexandre, com suave sorriso generoso.
Levantando-se rapidamente ele lhe estendeu a mão, ajudando-a. Não poderia trair a confiança que a amiga
lhe depositara, mesmo desejando que ficassem ali por mais algum tempo. Quando ela já estava em pé, ele
lembrou:
Quer ir lavar o rosto? O banheiro é ali ofereceu indicando.
Muito acanhada, Raquel aceitou. Ao retornar à sala sem fazer barulho, viu que Alexandre, sentado no sofá,
segurava a cabeça com as mãos, apoiando os cotovelos nos joelhos enquanto olhava para o chão,
pensativo. Aproximando-se do amigo, Raquel falou tímida e praticamente sussurrando:
Alexandre, por favor, me desculpe. Isso nunca me aconteceu antes e...
Levantando-se rapidamente, se pôs à sua frente e, interrompendo-a educadamente, disse bem seguro:
Por favor, não se desculpe. Tenho uma consideração, um respeitoe um carinho muito grande por
você, Raquel. Acredito em você e, comojá disse, eu a respeito muito. Gostaria que confiasse em mini, pois
quero, antes de qualquer coisa, ser seu amigo de verdade. Amigo mesmo tem que entender e sempre deve
estar pronto para tudo. Lembre-se disso.
É difícil encontrarmos pessoas sinceras, honestas e sem segundas intenções.
Sincero e honesto eu sempre fui revelou deixando-se conhecer. Mas não posso negar que,
no passado, eu não me aproximava de uma
143
moça, principalmente bonita como você, sem segundas intenções. Jásofri muito por isso também. Hoje é
diferente. Sorrindo meio sem jeito, ele completou: Creio que amadureci, cresci. Aprendi a respeitar as
pessoas. Após pequena pausa prosseguiu: Quero que confie em mim. Está certo? Não se sinta
ridícula, boba, nem coisa assim pelo que aconteceu aqui. Eu compreendo que precisava desabafar,
necessitava de atenção, carinho e tudo isso tinha que acontecer. Eu sei o que éprecisar disso.
Obrigada por entender agradeceu encabulada e abaixando oolhar. Depois elogiou: Seu
apartamento é muito bonito! Você disse que ele não era muito grande, você mentiu riu com leveza no
semblante e, antes que ele se pronunciasse, pediu: Vamos? Já é bemtarde, você me leva?
Sim. Claro. Deixe-me ver onde coloquei as chaves do carro.Alexandre a levou para casa, deixando-
a, como sempre, em frente da
residência de Marcos e indo embora após vê-la entrar. Raquel reparou que, mesmo tendo-a em seus
braços, confortando-a em um momento de desespero, Alexandre não se viu com a liberdade para abraçá-la
ou beijá-la para se despedir ao deixá-la em casa. Realmente ele a respeitava. Ao mesmo tempo, estranhou
sua própria reação, deixando-se envolver por ele. Não estava acostumada àquilo! O que será que
acontecera?
Aquela conversa com Alexandre lhe fizera muito bem. Ela não sentia seu coração tão oprimido agora. E em
meio a esses pensamentos, entrou em casa.
144
Capítulo 7
Desorientada e sem rumo
Ao caminhar seguindo pelo corredor lateral da casa, Raquel passou a ouvir Marcos e Alice conversando em
voz alta e seu nome ser pronunciado. Sem imaginar que eles sabiam de sua chegada, caminhou a passos
lentos parando próxima de uma janela onde poderia ouvir melhor o que eles diziam.
Antigamente você não acreditava. Agora está aí nervoso e semsaber o que fazer.
Eu mato a Raquel! prometia Marcos, enfurecido. Aquelamentirosa!
Mentirosa mesmo! Eu vi, com os meus próprios olhos. Depoisde breve pausa, Alice
prosseguiu com voz de desdém: Quer dar umade mocinha ingénua, pura! Ela é uma safada, isso sim!
Você foi até eles?
Ora, Marcos! Você acha que eu ainda deveria me sujeitar a isso?Tenho testemunha, se quiser.
Porém, depois do que vi hoje, exijo quetome uma atitude, antes que ela apronte e sobre para nós.
Não suportando mais ouvir aquilo, Raquel entrou, parou após os primeiros passos e perguntou:
O que eu posso aprontar, Alice? Apesar de sentir seu coração apertado agora, Raquel tentou
ser forte e insistiu com veemência na voz fraca: É, diga Alice! O que é que eu posso aprontar e deixar para
dvocês?
Quem você pensa que é para exigir alguma coisa aqui na minhacasa? interferiu Marcos
rigoroso ao encorpar a voz.
Tomada de um súbito mal-estar, Raquel sentiu-se atordoada. Não esperava aquela reação de seu irmão.
Marcos nunca agira assim. Tentando se defender, a moça insistiu:
Quero saber o que Alice inventou a meu respeito. Como ela pode me tratar assim e...
Alice não inventou nada. Eu mesmo vi! interrompeu-a bruscamente.
Viu o quê, Marcos? perguntou Raquel.
Sinto muito, Raquel interferiu Alice coberta por um vernizcínico , estou cansada de esconder
tudo do seu irmão. Chegou omomento de dizer a verdade. Após pequeno intervalo de tempo,continuou:
Lá no serviço, assim que comecei a trabalhar, souberam que éramos parentes e pensaram que eu fosse
igual a você. Foi aí quecomeçaram a fazer inúmeros convites... convites indecentes.
O quê?! indignou-se Raquel. Que história é essa?
Chega de dar uma de santa, Raquel! gritou Alice, representando de uma maneira
impressionante. Você sabe do que eu estou falando. O Marcos também está ciente de tudo. Não precisa
mais fingirpara nós. Seu irmão já te viu chegando em casa com um e com outro!Marcos sabe que você está
acostumada a aceitar convites para esses programas levianos e se vende. O que ele não sabe é que você
já tirou filho várias vezes porque não achou um trouxa para assumir você e a criança!
Raquel começou a empalidecer diante da veemência da cunhada, que gritava. Ela ficou estática,
ensurdecida e não conseguia reagir contra Alice. Marcos, paralisado, também ficou boquiaberto e incrédulo
ao que ouvia da esposa. Ele ficou em silêncio enquanto sua mulher arrumava forças e convicção para dizer
muito mais sem que restasse qualquer dúvida sobre a verdade.
Estou sabendo também continuou Alice que você está tentando "segurar" esse tal de
Alexandre, dizendo que ele é o pai do filho que você está esperando. Chega, Raquel! Já chega! Se pensa
que vai largar esse filho aqui, está muito enganada.
A moça olhou para seu irmão e não conseguia falar por causa de seu estado de choque. Raquel passava
mal. Marcos, por sua vez, enlouquecido, colocou num grito seu ódio e sua repugnância para com aquelas
revelações, dizendo:
146
Diga algo, Raquel!!!
A jovem sentiu que o ar lhe faltou aos pulmões. Vendo-a desorientada, Alice perguntou aproveitando-se do
estado de choque da cunhada:
Vamos, Raquel, diga que é mentira o fato de você ter ido até oapartamento desse homem, que é
solteiro e mora sozinho!!!
Isso é verdade, Raquel? Você foi até o apartamento desse cara?Raquel ficou perplexa, muda! Não
acreditava no que acontecia. Alice
não oferecia uma trégua para que ela respondesse e exigia:
E então, Raquel! Como foi lá no apartamento do Alexandre hoje?Diga!
Marcos se aproximou da irmã, pegou-a pelo braço e inquiriu sacudindo-a:
E verdade, Raquel?!
Marcos, não é bem assim... gaguejou Raquel timidamente tentando se explicar.
Em vão.
Marcos, alteando mais ainda a voz, tornou firme:
Você veio da casa de um homem? Então é verdade... Decepcionado, ele a olhou nos olhos e
revelou: Você mentiu pra mim.Você me traiu, Raquel. Todo esse tempo...
Vamos, Raquel, tente explicar! inquiria Alice, irritando Marcos ainda mais. O que você foi
fazer lá? O que você fez com os seustraumas? E os seus medos? Onde é que está o seu pânico e
pesadelo?Nos fez acreditar que precisava de ajuda, atenção. Pagamos médicos,tratamentos! Para quê?
Sua sem-vergonha!
Raquel quase não ouvia o que Alice falava. Ela ensurdeceu em razão do nervosismo e nem conseguia se
defender.
Eu disse ao seu irmão que todo aquele trauma que você apresentava era mentira! Explique-se
agora! Hoje ele viu com os próprios olhos!
Marcos... aturdida e intimidada, tentou dizer.
Cale a boca, Raquel! gritou Alice. Eu e seu irmão vimosquando ele a trouxe de carro agora
há pouco. Eu vi, com meus próprios olhos, você indo ao apartamento do Alexandre. Foi assim: eu estava
147
com a Rita no shopping, nós vimos vocês dois lá na praça de alimentação, sentados e conversando muito à
vontade. Vocês estavam abraçados! A Rita ainda me disse: "Esse cara é o maior safado! Usa uma garota,
depois outra... Agora ele vai levá-la para o seu apartamento, vocêquer apostar?" Ela ainda me revelou:
"Você sabia que a Raquel estágrávida?". Eu me assustei e ela disse: "A essas alturas, o Alexandre
estáconvencendo-a a tirar o filho". Não demorou muito e vocês saíram abraçadinhos. Negue!!!
Isso é verdade, Raquel?! perguntou o irmão.
Com os olhos banhados em lágrimas, Raquel não dizia nada e Alice continuou:
Eu fui com a Rita até o estacionamento. Vimos vocês saindo.Entrei no carro da Rita e, a convite
dela, seguimos os dois até o apartamento. Nem acreditei quando vi você entrando naquele prédio. A
Ritaainda avisou que há tempos vocês estão se envolvendo. Fora isso ela me falou muitas coisas que a vê
fazer desde quando começou a trabalhar lá.Agora eu pergunto: onde estão os seus medos e traumas?
Não posso acreditar que você nos enganou esse tempo todo, Raquel! afirmava o irmão
desolado, pendendo com a cabeça negativamente, enquanto se apoiava no encosto da cadeira.
Raquel ficou paralisada, atônita. E em choque não conseguia falar. Erguendo-se, ficando na frente de sua
irmã, Marcos perguntou calmo e quase friamente:
O que Alice contou é verdade? Você foi até o apartamento desse moço e ficou lá até agora?
Eu fui, mas... tentou explicar-se com voz fraca e coagida.Interrompendo-a, com modos
bruscos, o irmão pediu exigente:
Quero que vá embora desta casa.
Raquel ficou incrédula. Paralisada, não saiu do lugar e Marcos gritou:
Agora!!!
A moça não tinha palavras. Ela tremia enquanto as lágrimas, antes abundantes, agora se escassearam. O
irmão virou as costas e foi para
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outro cômodo. Enquanto Alice, com sorriso cínico, estampava na face um ar de vitória. Raquel, sem saber o
que fazer, estava sem forças para enfrentar novamente a dura realidade do abandono. Seu coração batia
acelerado, dolorido e triste. Encarando a cunhada que, com ar de desdém, fitava-a quase sorrindo, usou
suas últimas forças e falou firme para Alice:
Você não perde por esperar. Um dia você vai se lembrar de tudo o que está fazendo comigo hoje,
porque eu tenho certeza de que ainda vai passar por situação igual.
Virando as costas, carregando consigo somente sua bolsa, que continha alguns documentos, e a roupa do
corpo, Raquel deixou a casa de seu irmão sem saber para onde ir. Passou horas caminhando sem rumo e
os pensamentos conflitantes a deixavam mais confusa, atordoada. Ela não acreditava no que estava
acontecendo, não sabia o que fazer. Seu abalo era tanto que nem sentia a garoa fina que a molhava toda.
Aos poucos, Raquel parecia não saber o que se passava, a perturbação súbita intensa desequilibrou-a
mentalmente, mas de forma parcial. Ela não se lembrava de toda a discussão e acreditava ter perdido a
consciência daqueles últimos instantes vividos. Ela caminhava automaticamente e estava em choque,
desorientada e sem rumo.
Naquele mesmo instante, Alexandre, já deitado em sua cama, nem de longe podia imaginar o que estava
acontecendo. Ele começou a lembrar das dificuldades de Raquel e se preocupava.
"Como poderiam existir pessoas tão sórdidas e baixas como Rita, Alice e Vagner para inventar tudo
aquilo?", pensava. "Como eu pude acreditar naquela mentira tão infantil? Raquel é doce, delicada... Se bem
que ela é diferente. Sim, Raquel é diferente de todas as garotas que conheci. Seu jeito, seu silêncio é como
um mistério que me atrai e encanta."
Seus pensamentos vagavam deslumbrados. Em alguns momentos, ele acreditava que jamais poderia se
aproximar dela, em outros garantia que a teria junto a si. Fora tão bom abraçá-la! Beijar seus cabelos e
confortá-la nos braços! Como queria tê-la novamente! Queria protegê-la e tirá-la daquele medo, daquela
aflição extrema para apreciar, ainda mais,
149
sua brandura. Como estava feliz por ter conseguido chegar até ali. Em dado momento, Alexandre elevou
os pensamentos em uma prece agradecendo por tudo o que tinha.
"Deus! Obrigado pela confiança que me depositou para proteger Raquel, de poder encontrar palavras que a
confortassem. Obrigado por tê-la colocado no meu caminho, por ter me considerado digno de alguém tão
nobre e fiel como ela, obrigado por me dar forças... Dê-me nova oportunidade para que ela confie em mim.
Dê-me discernimento, sabedoria... Proteja-a, Senhor. Proteja a minha Raquel. Envolva-a com amor e
carinho. Dê-lhe forças..."
A prece se seguiu. Alexandre voltou a relembrar os breves momentos com Raquel e passou a sonhar
acordado até que o sono o arrebatou, suave e definitivamente.
Alexandre... Alexandre, querido. Em poucos minutos, o rapazpassava a ouvir seu nome
pronunciado como que por uma vibração angelical, terna.
Ao dormir, no estado em que a alma se emancipou do corpo ou se desdobrou, Alexandre, ainda
assonorentado, passou a se deslumbrar com a bela imagem que lhe surgia na percepção. Era uma figura
doce, que trazia um rosto lirial, um aspecto suave e uma postura majestosa, impressionantemente bela.
Estendendo-lhe a mão, esse ser, que como um anjo se portava, sorriu com candura. Encantado, Alexandre
pegou-lhe a mão com cuidado e, olhando-a, sentiu como se um bálsamo sereno o envolvesse todo. Ele se
deixou largar naquele êxtase maravilhoso, indescritível. Aquele ser passou-lhe carinhosamente a sua
mensagem com brandura:
Meu querido, que bom tê-lo! Não foi fácil chegar onde está. Temos conhecimento disso. No entanto,
querido Alexandre, sabemos queé a porta estreita que nos conduz ao envolvimento sublime, à reparação e
à harmonização necessária. Querido filho, peço-lhe a paciência, a tranquilidade nas ações e a
perseverança no bem. Eleve os pensamentos nos momentos difíceis e tenha a certeza do amparo. Não
duvide. Procure oconhecimento para compreender, aceitar e se elevar diante dos fatos. Se
150
deseja respostas, busque-as você mesmo através do estudo sério. Conheça Jesus! Estude o Seu
Evangelho. Tenha fé. Diante das turbulências, renuncie ao fácil, à acomodação. Seja sensato para
conseguir separar o bom do mau. Agora descanse. Restaure as energias para se fortalecer. Nós o
amamos! Estaremos sempre com você!
Alexandre nada dizia, parecendo acostumado àquele envolvimento sublime. Eram suas preces e sua fé que
o elevavam àquele envolvimento. Seu silêncio parecia render culto àquele amor pela nobreza de seus
sentimentos.
No estado de sono, a alma encarnada dispõe de liberdade e atividade, pois quando o corpo se encontra
em repouso, não necessita da mesma e esta, com liberdade parcial, frequentemente se liga aos espíritos e
até às assembleias que possuem o seu nível moral, suas afinidades e seus objetivos; quando são os
mesmos. Encarnados que cultivam a prece sincera, pensamentos bons, conversação salutar e a tudo mais
que inclinem para elevados valores morais, quando dormem, procuram se reunir com os que lhe são
superiores, se instruem, se elevam e trabalham para o bem.
Mesmo não tendo recordações sobre esses ocorridos durante o sono, os conselhos salutares recebidos
surgirão no momento oportuno, como ideias exatas para se equilibrar diante da situação, ou sentir o que
poderáfazer de melhor. Assim também acontece com aqueles que são egoístas, maldosos, que desprezam
o bem, o bom ânimo e os valores morais elevados; esses, em estado de sono, vêem-se emancipados do
corpo e buscam assembleias, sociedades ou amigos no plano espiritual com os quais comunguem
"doutrinas vis, mais ignóbeis, mais nocivas do que as que professam", como nos ensina a questão 402 de
O Livro dos Espíritos.
Todo o tempo que tiramos para o repouso do corpo físico, seja para um simples cochilo, seja para um sono
profundo, entramos em contato com companheiros espirituais que influenciam imensamente nossa vida e
nossas experiências. "Dormir para o bem ou dormir para o mal" depende somente de nossas opiniões,
ações, pensamentos e práticas quando "acordados". As questões de número 400 a 418 de O Livro dos
Espí-
151
ritos nos explicam muito bem sobre a emancipação da alma e as visitas que podemos ter ou fazer durante
o sono do corpo físico, bem como os sonhos que, às vezes, recordamos.
Enquanto isso, Raquel chegava caminhando devagar até uma praça.
Com o coração descompassado, atordoada ainda, Raquel estava alheia e sem se importar com mais nada.
Desalentada, sentou-se em um banco, sem reparar os frequentadores do lugar, parecendo incapaz de ver e
ouvir. Minutos ali e um travesti, que a observava desde a sua chegada, incomodou-se com a presença da
moça.
Amigos espirituais, que foram designados para auxiliar Raquel, agiam naquele instante fazendo com que
aquele irmão pudesse ter compaixão da moça e se sensibilizar com as suas dificuldades. Eles procuravam
envolvê-lo, mas não era fácil. Raquel nada notou até o travesti dizer:
Por que não dá o fora daqui?! Esse lugar não é pra você!
Angustiada, Raquel ergueu vagarosamente o olhar, exibindo um semblante extenuado. Suas mãos
estavam trêmulas, geladas, aliás, todo o seu corpo tremia. Seguindo o rapaz com o olhar, pois ele enervado
andava de um lado para outro a examinando, Raquel, com voz fatigada, explicou:
Desculpe-me, não tenho pra onde ir.
Se vira!
Meu irmão me tocou de casa... Fui roubada... Após poucos segundos, abaixando o olhar,
disse, quase sussurrando: Tenho vontade de me matar, mas nem sei como.
O olhar de Raquel prendia-se em ponto algum do chão, enquanto as lágrimas caíam abundantes. O rapaz,
de súbito, sentiu um arrepio por todo o corpo ao ouvir aquilo, que o impressionou imensamente.
Credo, menina! Pare com essa história de morrer! Cruzes!!! respondeu o moço, horrorizado
fazendo o sinal-da-cruz.
Depois de observá-la um pouco, ele começou a se apiedar do estado de Raquel. Ela trazia o rosto
machucado e a leve blusa de frio rasgada. A
152
garoa intensa, que caía pouco antes, a deixou toda molhada e naquela hora fazia muito frio. Compadecido,
perguntou:
Você não tem nenhum namorado? Uma amiga?
Raquel ficava paralisada e parecia não ouvi-lo. Seu olhar continuava perdido. Menos agitado, o rapaz
perguntou:
Qual é o seu nome?
Raquel respondeu automaticamente.
Olha, menina, esse não é um bom lugar pra você ficar. Aqui, vaiacabar arrumando encrencas,
acredite! Você tem que ligar pra alguém.Tem que cair fora daqui. Entendeu?
Raquel, olhando-o sem expressão alguma, murmurou:
Não sei o que fazer. Não tenho para onde ir. Não tenho comoavisar alguém...
Suspirando profundamente, com modos e gestos típicos, ele respondeu:
Você já está me dando nos nervos! Não sei por que, mas voutentar te ajudar. Levanta daí! Vamos!
insistiu, puxando-a com delicadeza pelo braço.
Raquel, confusa, desorientada, não reagia e se deixou levar. Eles caminharam até um telefone público
próximo dali e ele ofereceu:
Tome! Ligue e vamos acabar logo com isso. Eu não sou babá e não posso ficar aqui pajeando
ninguém a madrugada toda! Mesmo me simpatizando com você.
Eu não sei... atordoada não conseguia ligar.
Vamos, Raquel! exigia inquieto. Não me faça perder tempo!
Vendo que a moça estava atormentada, ele resolveu:
Vai, me fala o número que eu ligo pra você.
Eu não tenho certeza, acho que... tinha os quatro números domeu ramal e...
O rapaz teve que fazer três ligações até conseguir acertar o número do telefone do apartamento de
Alexandre que, ao se identificar, assonorentado, acreditou tratar-se de um trote e desligou.
153
Puxa! Que cara grosseiro! reclamou o moço. Vou tentaroutra vez, mas, se ele desligar...!
O nome dele é Alexandre informou com a voz fraca.
Alo! É da casa do Alexandre? perguntou ligeiro.
Por estranhar os trejeitos de entoar a voz, Alexandre admitiu, novamente exibindo insatisfação:
que?
É! Por
Não desliga. Não é trote, viu?! A Raquel vai falar com você.
Escuta aqui gritou Alexandre nervoso , vou...
Alexandre...? perguntou Raquel com voz suave e chorosa.
Raquel?! estranhou o amigo, sobressaltando-se. Onde vocêestá? Quem está com você?!
Alexandre... Raquel não conseguia parar de chorar, mas, entre os soluços, murmurou:
Alexandre, me ajuda...!
Onde você está?! perguntou o amigo, quase gritando, enquanto ouvia o choro sem obter
respostas.
Dá aqui, Raquel pediu o rapaz que a ajudava. Eu falo com ele. E pegando o fone, disse:
Alo?
Quem está falando? perguntou Alexandre.
Ah, meu bem! Não interessa! Olha, são três da madrugada. Esselugar é uma "barra". Vem pegar
a Raquelzinha, vem! Antes que ela se dêmal. Ela está muito nervosa, credo! Tá falando em morrer!!! O
irmão atocou de casa e ela também tá machucada. O problema é: ela tá bem aqui no "meu ponto", me
atrapalhando, né!
Procurando conter seu desespero, Alexandre perguntou com voz mais calma:
Onde vocês estão?
Após saber o endereço, ele saiu às pressas para o local. Minutos depois, Alexandre chegou à referida
praça e, ao parar o carro, ficou desconfiado, pois o lugar era muito sinistro. Mas antes mesmo de descer do
veículo, ele sofreu assédios daqueles que se encontravam ali por ficar olhando à procura de sua amiga, até
que ouviu:
Saiam! Saiam, meninas! Esse aí é amigo da minha colega, não éfreguês!
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Alexandre reconheceu Raquel que, bem fragilizada, era conduzida por aquele rapaz. Saindo rapidamente
do carro, sem se importar com mais nada, Alexandre só viu Raquel. Aproximando-se, ele a envolveu com
carinho, perguntando:
Raquel! O que aconteceu?
E melhor vocês irem. Vão! Vão! pediu o moço que ajudava.Alexandre, conduziu Raquel e a
colocou dentro do carro. Virando-se
para o rapaz, agradeceu meio sem jeito, tendo em vista a situação.
Obrigado. Obrigado por tudo...
De nada. Mas... como é? Vai ficar só nisso? Gastei com a ligação.Não foi, Raquel? perguntou
curvando-se ao olhar para a moça que jáestava dentro do carro.
Alexandre muito preocupado e querendo sair o quanto antes dali, rapidamente tirou de seu bolso certo valor
em dinheiro e entregou ao rapaz. Agradeceu novamente e se foi.
No caminho para o seu apartamento, ficou em silêncio enquanto percebia que lágrimas contínuas rolavam
no rosto de Raquel, que parecia em choque, com o olhar perdido, imersa em seus próprios pensamentos.
Estacionando o carro na garagem do prédio, ele desceu, contornou o veículo e abriu a porta para que ela o
acompanhasse. A amiga estava em profundo abalo emocional. Percebendo seu estado, pediu gentilmente:
Vem, Raquel. Vamos subir.
Ela desceu como que maquinalmente do carro, obedecendo-o. Chegando ao apartamento, Alexandre
verificou que estava toda molhada e muito gelada. Ele não sabia o que fazer, estava nervoso e preocupado.
Colocando-a sentada no sofá, tomou o lugar ao lado e, segurando-lhe a pequena mão gelada entre as
suas, perguntou com voz mansa:
O que aconteceu, Raquel?
Ela fez um gesto singular com os ombros como quem não soubesse responder. Alexandre a abraçou, só
que ela ficou petrificada, sem reação e com olhar perdido.
Raquel, o que houve? tornou o amigo ao afastá-la de si. Mas ainda segurando em seus braços,
pediu: diga alguma coisa, por favor.
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Ela olhou-o nos olhos e Alexandre só pôde observar as lágrimas compridas que rolavam seguidas, mas ela
não dizia nada.
Tudo bem. Tudo bem disse, com voz branda e pensando no que deveria fazer. Olha, é melhor
descansar. Você está muito gelada,molhada. Vem aqui. Ele a conduziu até a suíte e tirando um robe
doarmário, falou: Vou fazer alguma coisa quente para você beber. Tire essa roupa molhada e vista esse
roupão. Deite-se e... Vou ver o que faço,tá? avisou um tanto atrapalhado pelo imprevisto.
Raquel não respondeu nada. Alexandre saiu, fechou a porta do quarto e, somente após preparar um
chocolate quente, retornou. Batendo àporta, ele não ouviu resposta e perguntou firme:
Raquel, eu posso entrar?
Sem ouvir qualquer argumentação, vagarosamente Alexandre abriu a porta da suíte e, para sua surpresa,
Raquel ainda estava sentada na cama do mesmo jeito que a deixara.
Raquel... murmurou desalentado e sensibilizado. Deixando a bandeja que levava sobre uma
cômoda, aproximou-se e pediu: Raquel, ouça bem segurando-lhe o rosto, ele a fez olhá-lo e
continuou: , está sendo difícil para nós dois. Estou preocupado, nervoso,e não sei o que fazer ainda por
ter sido surpreendido com você neste estado. Não estou insensível, estou sendo racional. Vamos
minimizar os problemas, certo? Então, por favor, antes que fique doente, tire essas roupas molhadas. Você
está fria demais e...
Preciso ir ao banheiro murmurou com voz baixa e vacilante,interrompendo-o.
Ótimo. É aqui disse indicando. Aproveita, toma um banho bem quente e...
Não... recusou impensadamente.
Tudo bem, não toma, mas vista isso, certo? Ah! Ou melhor argumentou ele que, lembrando-se
e abrindo uma gaveta, pegou dizendo: , aqui tem esta camiseta e este agasalho. Estão limpos.
Ficarão grandes em você, mas é o melhor que posso oferecer. Por favor... pediu com brandura
oferecendo-lhe as roupas.
156
Raquel, estendendo a mão pálida e trêmula, pegou e o amigo disse com jeitinho:
Toma um banho bem quente, vai. No armário do banheiro temtoalhas limpas e secas. Pode usar.
Ao ver Raquel se levantar, ele pegou a bandeja novamente e saiu da suíte, dizendo: Vou esquentar esse
chocolate. Já deve estar frio.
Raquel não disse nada e Alexandre saiu. Após poucos minutos, do outro
cômodo, ao aguçar os ouvidos,
ele pôde escutar o barulho do chuveiro ligado. Alexandre estava muito preocupado com o que poderia ter
acontecido. Raquel estava agindo estranhamente. O que ele poderia fazer?
Em poucos segundos passou a ter dúvidas sobre o fato de ajudá-la ou não. Os companheiros espirituais
que Raquel trazia consigo e que, havia algum tempo, a envolviam com pensamentos tristes de maus
presságios, começaram a passar suas vibrações para o rapaz que, imediatamente, após os primeiros
sentimentos que o amarguraram, rogou por socorro.
"Deus, me ajude", pensou. "Eu queria tanto a Raquel comigo, agora... O que está acontecendo? Preciso de
forças. Eu a amo, mas a situação é confusa, complicada e eu estou com medo de ter problemas. Ajude-me,
por favor."
Mesmo preocupado, Alexandre sentiu-se mais confiante. Atento, ao perceber que Raquel saíra do banho,
foi até o quarto levando o chocolate quente.
Raquel, eu posso entrar? perguntou junto à porta da suíte.
Entre respondeu a jovem com voz fraca.
A moça estava sentada sobre a cama trazendo o semblante desolado e o mesmo olhar perdido. Ao vê-la
com sua camiseta e seu agasalho, Alexandre teve a iniciativa de lhe dar uma blusa e meias de lã, uma vez
que estava muito frio.
Toma, vista este suéter aconselhou com brandura. Examinando-a com o olhar ficou comovido
com o estado de Raquel, que faziatudo mecanicamente. Sem se constranger pegou as meias e pôs-se a
157
colocá-las nos pés da amiga. Levantando-se, pegou a pequena bandeja que sustentava a xícara com o
chocolate quente e pediu: Beba isso para esquentar.
Ela não dizia nenhuma palavra. Ele tirou a toalha que envolvia os cabelos da moça, ainda molhados, e, de
joelhos sobre a cama, passou a secá-los, penteando-os com terna delicadeza. Raquel pouco se importava
com o que acontecia. Estava muito estranha.
Ao vê-la terminar de beber o leite, tirou-lhe a xícara das mãos e a fez deitar. Raquel só obedecia. Ao cobri-
la, Alexandre ficou de joelhos no chão ao lado da cama afagando-lhe os cabelos e o rosto. Depois de
alguns minutos, disse com extrema generosidade:
Procure dormir. Tocando levemente no pequeno hematomaque Raquel tinha na face, avisou:
Lamento não ter nenhum remédio para isso. Quando amanhecer, eu vou até a farmácia comprar
algumacoisa. Ante o silêncio, avisou: Estarei lá na sala. Vou deixar a porta aberta. Qualquer coisa,
você me chama.
Forçado pelas circunstâncias, Alexandre apanhou algumas cobertas no armário, foi para a sala e ajeitou-se
no sofá. Insone, pois as preocupações roubavam-lhe qualquer conciliação com o sono, observou o dia
clarear lentamente. Quando não conseguiu mais ficar deitado, levantou-se e preparou o desjejum, tentando
não fazer tanto barulho pensando em não acordar a amiga.
Após algum tempo, inquieto, pois não percebia nenhum movimento da moça, foi até o quarto.
Aproximando-se vagarosamente, verificou que Raquel estava deitada de lado, encolhida, na mesma
posição que a deixou. Seu olhar estava perdido e o avermelhado denunciava que também não havia
dormido. Ajoelhando-se ao lado da cama, acariciou-lhe os cabelos e o rosto, depois propôs:
Quer levantar? Preparei algo para você comer.Maquinalmente ela se sentou sem encará-lo e, para
deixá-la mais à
vontade, Alexandre avisou mais animado:
Aguardo você na cozinha, tá?
Alguns minutos depois Raquel saiu do quarto e o rapaz a recebeu na sala, conduziu-a até a cozinha,
fazendo-a se sentar.
158
Desculpe-me, não sei fazer café. Mas aqui tem chá, leite, chocolate em pó, biscoitos, torradas...
avisou descontraidamente, tentando deixá-la mais à vontade.
Estou sem fome falou tímida e desalentada.Tranquilizando a animação de segundos antes,
agora estava insatisfeito. Ele ficou sério, sentou-se a seu lado e explicou:
Raquel, você precisa se alimentar. Tome ao menos esse chá bem adoçado, certo? disse
colocando-lhe a bebida fumegante na xícara.
A custo, Raquel ingeriu somente o chá, enquanto ele fazia sua refeição quase normalmente. A situação era
preocupante, Alexandre não conseguia relaxar por mais que tentasse. Após terminarem, Raquel se
levantou e, sem dizer nada, automaticamente ia levando a louça até a pia quando Alexandre a deteve:
Agora não. Isso pode ficar para depois. Vamos nos sentar ali na sala. Acredito que temos muito que
conversar.
Após se acomodarem no outro recinto, o amigo tomou a iniciativa e falou:
Raquel, quando chegamos aqui de madrugada, fiquei atento ao seu estado, às circunstâncias, e vi
que não era um momento propíciopara nós conversarmos. Sei que ainda está abalada, mas acredito
quepode me contar o que aconteceu.
Ela estava muito abatida e amargurada. Eles se entreolhavam e o silêncio reinou por alguns segundos. A
respiração curta e rápida da moça mostrava alteração de seu equilíbrio emocional e, por isso, murmurou
vacilante:
Estou com medo...
Lágrimas copiosas rolaram em seu rosto. Ele se sentou ao seu lado e, tentando abraçá-la, foi repelido com
um gesto delicado. Nesse instante Raquel, colocando os pés sobre o sofá, abraçou os próprios joelhos e
pôs o rosto entre os braços, chorando por alguns minutos.
Raquel chamou o amigo mais firme e equilibrado. Diga-me o que aconteceu.
Ontem começou tímida e com voz hesitante: , depoisque você me deixou em casa, entrei e
ouvi a Alice me caluniando para
159
o Marcos. Ela disse que nos viu juntos no shopping e nos seguiu atéaqui.
E daí? perguntou ele diante da pausa.
Meu irmão ficou uma fera e me mandou ir embora da casa dele.
Só por causa disso?!
Não... respondeu Raquel, soluçando agora pelo choro queiniciava. A Alice disse para o
Marcos que...
Quê...? questionou ansioso não suportando a longa pausa.Com a voz abafada, pausada e
muito constrangida, ela revelou aflita:
... que eu estou grávida e... e o filho é seu.
Alexandre abaixou a cabeça e quase riu, não se incomodando com a seriedade do assunto. Mais sério,
argumentou:
Raquel, não se preocupe com isso. "A verdade é filha do tempo",em breve Marcos saberá que é
mentira.
A Alice disse que você estava me convencendo a tirar a criança.Ela falou ao meu irmão que eu já
fiz isso antes, que sou uma garotade programa chorou mais ainda em virtude de sua
sensibilidade natural.
Raquel, pelo amor de Deus! alertou com sutileza tentandoanimá-la. Em vez de ficar
chorando, você tem mais é que se dar porfeliz, pois saiu da casa deles.
Não é bem assim! replicou fragilizada.
Como não é assim? Além do mais, seu irmão é muito ignorante para agir dessa forma e por esse
motivo. Aproximando-se da colega,ele tocou-lhe na face machucada com jeitinho ao perguntar: Foi
ele quem fez isso no seu rosto? O Marcos bateu em você?
Não. Eu fui roubada. Saí da casa dele e não sabia para onde ir.Fiquei andando e... Nem sei
direito como aconteceu.
Machucaram você, além disso? expressou-se bem preocupado.
Não murmurou com leveza na voz.
Não mesmo?! insistiu ele desconfiado.
Não.
Como você foi parar naquela praça?
160
Andando.
Andando?! admirou-se o rapaz.
Raquel chorava ainda e, tentando consolá-la, Alexandre propôs:
Vamos resolver uma coisa de cada vez. Você vai ficar aqui comigo e necessita de algumas coisas.
Olhando-a e acreditando que Raquel estava adoravelmente linda em suas roupas, que lhe vestiam bem
grande, ele falou voltando à realidade: Vou buscar um remédio parapassar em seu rosto. Depois preciso
providenciar um colchão para eupôr no outro quarto e, ainda, irei até a casa do seu irmão para pegarsuas
roupas.
Não vou ficar aqui. Não é certo... avisou tímida.Quase friamente, para fazê-la raciocinar, ele
perguntou:
Então onde você quer ficar, Raquel?
Ela abaixou a cabeça e não disse nada. A situação era constrangedora e Raquel sentia-se humilhada.
Lágrimas copiosas corriam-lhe na face. Quando o amigo, comovido e carinhoso, tentou tocar-lhe o ombro,
como um carinho em sinal de apoio, ela se afastou vagarosamente acanhada e Alexandre respeitou sua
vontade. Levantando-se e não se deixando abater pelas circunstâncias, Alexandre decidiu:
Tenho de aproveitar que hoje é sábado para resolver o que lhe disse. Depois cuidamos de outras
coisas. Vendo-a ainda abraçada aospróprios joelhos, porém mais calma, perguntou: Você acha que
pode ficar sozinha?
Posso.
Pensando rápido, ele se lembrou que alguém de sua família poderia telefonar e, ao ser atendido por
Raquel, não iria entender o que estava acontecendo, por isso pediu:
Vou me trocar para sair e, quando eu estiver fora... Só peço umacoisa: não atenda o telefone. Se
precisar de algo, ligue para o meu celular. Vou deixar o número anotado aqui avisou, ao fazer a
anotação num pequeno bloco deixado ao lado do telefone. Você precisa de algo? Quer que eu lhe traga
alguma coisa da rua?
Não. Obrigada.
161
Alexandre foi para o quarto, trocou-se e saiu. Após ir a uma farmácia, retornou encontrando Raquel deitada
e encolhida no sofá da sala. Com o medicamento em mãos, passou um pouco da pomada no rosto
machucado de Raquel, pegou uma manta e a cobriu, oferecendo-lhe também um travesseiro para que se
ajeitasse melhor.
Quer que ligue a televisão? perguntou solícito. Raquel fez umgesto singular, como quem diz:
"tanto faz". Ele pegou o controle remoto, ligou o aparelho, deixando-o em seguida ao alcance dela.
Depois informou: Naquele saquinho, lá no banheiro da suíte, tem uma escova de dentes que eu comprei
para você. Há creme dental no armário.Vou sair para providenciar algumas coisas que vamos precisar.
Talvez eudemore um pouco. Se precisar, não hesite, ligue-me. Lembre-se de quenão vou telefonar. Depois
conversamos sobre isso.
Alexandre se aproximou, fazendo-lhe um suave carinho, quando observou que Raquel parecia encolher-se.
Despedindo-se, ele saiu rápido. Seus pensamentos estavam tumultuados. Ele queria Raquel consigo, sim.
Gostava muito dela, só que a situação era problemática. Conquistá-la seria difícil, não era bem isso o que
planejara.
Pouco mais tarde, parando o carro em frente da casa do irmão de Raquel, Alexandre ficou pensativo. Como
seria recebido? Ele nem conhecia Marcos! O que diria? Seu coração batia acelerado pelo nervosismo.
Não importa o que aconteça. Não vou pensar mais nisso disse em voz alta falando sozinho.
Vou lá e... Vamos ver.
Ao atendê-lo, Alice demonstrava-se desconfiada e até assustada. Ao tê-la próxima ao portão, após
cumprimentá-la cordialmente, Alexandre, sem oferecer trégua, foi bem direto e ponderado, nem mesmo a
cumprimentou:
Alice, eu vim aqui buscar as coisas de Raquel. Ela está em minhacasa e ficará lá.
As coisas dela?...
Sim, Alice. As roupas, os sapatos... Sei lá mais o quê. Creio quevocê deve saber melhor que eu,
certo?
Sim. Claro concordou amedrontada.
162
Alice exibia-se nervosa, não imaginava que Alexandre fosse capaz de fazer aquilo. Marcos estava em casa
e ela não queria que o marido visse Alexandre, pelo fato de ter inventado que Raquel esperava um filho
dele. Temia que tudo fosse esclarecido nesse encontro.
Você pode esperar aqui? Volto logo pediu Alice acanhada.
Sim. Eu espero. Obrigado.
Alice entrou. Marcos, entretido com um jogo que assistia, a princípio não deu muita importância à
movimentação da esposa. Entretanto, depois de muito vaivém, eles se inquietou, perguntando:
O que você está fazendo, Alice?
Nada.
Como nada? E olhando pela janela, por entre as cortinas, ele viu Alexandre parado em seu
portão. Quem é?!
Espere, Marcos, deixe que eu resolva isso.
Quem é esse moço, Alice?
Fique calmo. Ele veio buscar as coisas da Raquel. Não vamosprocurar encrencas, certo? Deixe
sua irmã viver com quem ela quiser eassumir a vida que escolheu.
Marcos ficou surpreso, sentindo-se gelar ao ouvir aquilo.
"Então Raquel tinha mesmo alguém", pensou atordoado. "Ela me enganou mesmo."
Até acreditou que sua irmã iria para a casa de uma amiga, mas não. Um homem, como Alice contou, e ele
mesmo via, foi quem veio buscar as suas coisas.
Fique aqui, Marcos pediu a esposa. Eu já volto. Só voulevar isso aqui.
Quando Alice entregava as sacolas nas mãos de Alexandre, Marcos não suportou ficar aguardando. Ele
estava indignado. Caminhando até o portão vagarosamente, Alexandre o notou e ao ver Marcos mais
próximo cumprimentou-o dizendo:
Boa tarde. Desculpe-me incomodá-los numa tarde tão fria, masjá estou indo. Virando-se para
Alice, agradeceu: Obrigado, Alice.
Quem é você?! perguntou Marcos, irritado.
163
Perdoe-me por não ter me apresentado. Meu nome é Alexandre.Você deve ser o Marcos, irmão
da Raquel. Prazer... Alexandre ficoucom a mão estendida, pois Marcos não lhe retribuiu o
cumprimento.Sem jeito, resolveu: Bem, preciso ir. Encarando o casal, aindaavisou: Não se
preocupem com a Raquel, ela ficará bem. Agora ela está muito abalada emocionalmente, em choque
mesmo. Mas vou cuidar dela. E olhando bem nos olhos de Marcos, admitiu sem se constranger: Eu
gosto muito da Raquel.
Então assuma o filho também! gritou Marcos. Não a obrigue a abortar.
Alexandre esboçou um sorriso satisfeito e irônico, respondendo:
Eu assumiria com o maior orgulho, com o maior prazer, se aRaquel estivesse grávida, sabia?
Mas, infelizmente, nunca tivemos nada. Mais sério e encarando-os, afirmou convicto: Não que eu
não quisesse. Não consigo me aproximar da Raquel, parece que há algumproblema, ela não se permite...
Cale a boca e suma daqui! gritou Marcos indignado.
Primeiro você vai me ouvir, Marcos! impôs Alexandre, tomando uma posição austera e
imperturbável. Impressionando Marcos a ponto de emudecê-lo, ao impostar um tom grave e firme na voz
baixa, continuou rápido e determinado: Nunca tive nada com a sua irmã, alémde uma grande amizade.
Nem sequer a beijei. Não namoramos ou ficamos, nem tivemos qualquer tipo de relacionamento íntimo.
Não consigo me aproximar dela até agora, não por eu não tentar ou desejar. Adoroa sua irmã, mas a
Raquel me esconde algo, ela não se permite e ainda não consegui descobrir o motivo. Mas eu a respeito
muito, tanto, que saberei esperar. Contudo, tenho certeza que você, Marcos, sabe do que se trata, sabe do
que estou falando, não é?! Pois alguém que vive em aflição extrema simplesmente por receber um toque de
carinho e nemse deixa abraçar, como sua irmã faz, só ficaria grávida por consequênciade uma violência!
Sou um homem experiente, Marcos! Ninguém me engana mais! No tempo certo, tudo ficará esclarecido.
Farei tudo pelaRaquel, tudo! Sabe por que, Marcos? Por causa da pureza, da lealdade e
164
honestidade que vejo nos sentimentos de sua irmã. Dificilmente encontramos pessoas nobres assim. Eu
acredito que você saiba o motivo que a leva a ser tão arisca, tão frágil e amedrontada, por isso deve saber,
lá no íntimo, que essa história de gravidez é uma mentira! Alexandre, agora menos tenso após o
desabafo, fez um ar de riso quase debochado e falou: Um dia, ficarei feliz em lhe dar essa notícia.
Lamento não ser agora.
Canalha! reagiu Marcos enfurecido e ofendido. E enquanto Alice o segurava, ele ainda gritou:
Diga à Raquel que se ela aparecer na minha frente eu a mato! Ordinária! •
Alexandre não se intimidou e prosseguiu, como se quisesse irritá-lo ainda mais:
É sério. Ficarei feliz mesmo. Só que agora não é o momento.Porém, como eu gosto de tudo
certinho, vou me programar bem paraque esse filho seja recebido com muita atenção e carinho, para que
ele e a mãe tenham tudo de melhor. A Raquel é adorável, será maravilhoso ter um filho com ela.
Suma daqui!!!
Não vou sumir, não disse Alexandre ao sair caminhando vagarosamente na direção de seu
carro , volto a fim de convidá-lo para ocasamento. Ao entrar no veículo, ainda desfechou: Cuidado
com o que você inventa, viu, Alice. Isso ainda vai fazê-la se dar muito mal.
Imensamente irritada pelo desaforo, pelo modo rápido, simples, cínico e provocante de desmascará-la,
Alice quase gritou:
Se houver um casamento, não se esqueça de levar a filha da Raquel pra junto de vocês!
Alexandre se foi. A princípio não deu importância, acreditando se tratar de mais uma mentira de Alice.
O casal entrou e Marcos começou a duvidar da esposa:
Ninguém falaria daquele jeito se devesse alguma coisa! Ele disse que nunca teve nada com a
Raquel. Falou muita coisa e de um modo bem seguro comentou desconfiado.
Você não vê que isso foi combinado?! Ele está mentindo!
165
Alice, se essa história for mentira sua...!
Analise comigo: quem a Raquel foi procurar para ajudá-la? O tal Alexandre, lógico! Por que ela
não foi pedir ajuda para uma amiga? E quando você perguntou se ela havia ido ao apartamento dele,
Raquelnão negou. Raciocine, Marcos!
O marido sentia que algo estava errado, mas todas as evidências apontavam contra Raquel.
166
Capítulo 8
Confidências necessárias
A caminho de seu apartamento, às vezes, Alexandre ria sozinho, perguntando-se onde tinha arrumado
modos tão corajosos e cínicos para falar daquele jeito. Em outras circunstâncias talvez tentasse ofender
com palavras bruscas para esclarecer aquela situação, querendo tirar satisfações com Alice pelo que ela
inventara. Entretanto, a ideia de estar com Raquel o agradava.
Ele a amava, tinha certeza disso.
Por um instante, Alexandre se lembrou das últimas palavras de Alice sobre levar a filha de Raquel para
junto deles. Por que ela dissera aquilo? Se fosse mentira, Alice deveria saber que ele falaria com Raquel e,
mais uma vez, seria desmascarada. Deveria ser mentira mesmo. Raquel lhe dissera que nunca tivera um
namorado.
Alexandre sentia um frio invadir-lhe o ser. A insegurança por ignorar os fatos lhe causava temores que
chegavam a abalar seu equilíbrio emocional, antes inalterável por ser muito racional. No apartamento, ao
entrar, não viu Raquel. Não a chamou, acreditando que estivesse dormindo. Reparou que tudo estava
muito arrumado. Por não ser muito ordeiro, sempre largava suas coisas pela sala, que agora estava bem
ajeitada. Indo até a cozinha, comprovou que alguém passara por ali colocando ordem, pois tudo estava
muito limpinho.
Chegando à porta da suíte, que estava entreaberta, ele a chamou baixinho, espiando ao mesmo tempo:
Raquel...?
Deitada em sua cama, ela se mexeu, voltando-se em sua direção. Em seu olhar havia uma expectativa
aflitiva em saber o que tinha acontecido. Alexandre entrou e se sentou na cama, ao lado da amiga,
perguntando:
Você está bem?
Estou. respondeu com voz branda, mas seus olhos estavam vermelhos, denunciando que
havia chorado.
Eu trouxe suas coisas. Bem, trouxe o que Alice me entregou. Se faltar algo, não se preocupe,
deixe para ela. Que faça bom proveito.Depois compramos o que lhe faltar.
Sentando-se para vê-lo melhor, podia-se notar que sua aparência exibia uma angústia intraduzível em
palavras, ela sofria fatigada e amedrontada. Frágil, avisou tímida:
Alexandre, eu não estou me sentindo bem.
O que você tem? perguntou preocupado, franzindo o semblante.
Não sei... sussurrou.
Como assim?
Parece que dói o corpo todo, algo que incomoda muito. Sinto-me tonta...
Raquel, você está abalada. Podemos dizer que é normal, tendo emvista o que sofreu.
Aproximando-se, tentou envolvê-la em um abraço.
Não, por favor... pediu meiga e sussurrando, afastando-se lentamente com lágrimas correndo-
lhe pela face.
Por quê? perguntou em tom deprimido e brando. Em razão do silêncio, expressou-se com sutil
generosidade: Não vou lhe fazermal algum. Confie em mim. Só vou lhe dar um abraço. Vem cá...
Aproximando-se cautelosamente, puxando-a para si, abraçou-a enquantoavisava: Vou cuidar de você.
Não quero vê-la sofrer mais, viu?
Alexandre afagava-lhe suavemente os cabelos, quando percebeu que ela estava tensa, amedrontada e
trêmula. Acreditando que lhe fazia sofrer mais com aquele carinho, afastou-a de si, percebendo que ela
escondia o rosto choroso.
O que foi, Raquel? tornou carinhoso.
Ela não respondeu e se afastou ainda mais. Secando o rosto com as mãos, ao se recompor um pouco,
perguntou acanhada:
Você viu meu irmão?
168
Alexandre pensou rápido. Não poderia contar à Raquel tudo o que dissera para Marcos. Apesar de não ter
mentido para o irmão dela em nenhum momento, tinha que reconhecer que se excedera. Para Raquel,
aquilo era prematuro demais, ela não aceitaria. Sem se estender, ele respondeu:
Sim, eu o vi disse breve.
Falou com ele?
Falei. Disse quem eu era e avisei que cuidaria bem de você. Que ele não se preocupasse.
E Marcos? Pediu que eu voltasse?!
Olha, ele não me pareceu muito bem e...
Preciso falar com meu irmão.
Lembrando-se da ameaça de Marcos, Alexandre aconselhou:
Aguarde um pouco. Agora não creio que seja um bom momento.
Vocês discutiram? perguntou encarando-o nos olhos.
Bem... Não.
Por ele não conseguir ser convincente, ela insistiu:
Não, mesmo?
Bem, eu tive que lhe dizer algumas coisas porque... Suspirando fundo, Alexandre falou:
Olha, nem me lembro como tudo começou, só sei que acabei falando que não há filho nenhum, que você
não está grávida e nós nem namorados somos, mas temos uma grande amizade e respeito. Alexandre
abaixou a cabeça, não conseguia encará-la,lembrando-se de tudo o que tinha dito para Marcos, pois num
impulso revelou quanto prazer teria em lhe dar a notícia de uma gravidez, sobre o convite do casamento e
tudo mais.
E ele? perguntou a moça, trazendo-o à realidade.
Não sei... Ele estava nervoso. Acho que nem me ouviu.
E a Alice, ela estava perto?
Sim, estava. Mais uma vez ela tentou jogar seus venenos...Raquel empalideceu ao deduzir o que
sua cunhada poderia ter dito.
Um novo tremor a dominou pela nítida e extrema aflição.
O que foi, Raquel? perguntou Alexandre, surpreso com o seu estado.
169
O que ela disse? indagou, já em choro, quase perdendo ocontrole.
O amigo, confuso, sem entender aquela súbita alteração, não sabia o que dizer, e ela insistiu, com
desespero na voz fraca:
Diga! O que ela falou?
Por que tanto pânico, Raquel? Alice é venenosa.
Fale, por favor implorou em meio aos soluços compulsivos.
Eu estava saindo explicou atordoado, sem saber como detalhar , já entrando no carro, Alice
disse algo sobre sua filha. Eu nemconsegui entender direito, nem sei se foi isso mesmo. Não ligue para
ascalúnias que ela inventa...
Não...! Ela não poderia... murmurou melancólica e em desespero.
Alexandre deteve as palavras e ficou olhando-a deixar o corpo cair, deitando-se novamente e escondendo
o rosto no travesseiro ao chorar muito. O amigo ficou ao seu lado por longo tempo afagando-lhe os cabelos.
Raquel estava inconformada. Ele se levantou, preparou uma água com açúcar e levou para ela.
Raquel, sente-se. Tome isso.
Ela parecia não ouvi-lo. Segurando em seu rosto, forçando-a a olhá-lo, Alexandre ia argumentar quando
percebeu sua temperatura muito alta. Tirando-lhe os cabelos da testa, ele sentiu que Raquel ardia em
febre. Após sair em busca de um medicamento que, ao encontrá-lo, gotejou na água, voltou e insistiu para
que ela bebesse.
Eu acho que a garoa fria te fez mal. Nossa! Você está com muitafebre.
Raquel demonstrava-se atordoada, aquela notícia e a febre a deixaram confusa. Parecendo mais calma,
ela reclamou baixinho ao fechar os olhos deixando-se largada:
Estou com frio...
Alexandre a cobriu, sentou-se na cama a seu lado, pegou suas mãos pequenas e frágeis, que estavam
suadas e bem frias, colocando-as entre as suas para aquecê-las. Preocupado com o estado da amiga, ficou
ali
170
sentado por longo tempo pensando no que Alice falou e na reação de Raquel. Ele não deveria saber de
muita coisa. Quando Raquel parecia estar em profundo sono, a deixou e foi preparar algo para comer.
Após fazer uma refeição, para se distrair e tirar da mente alguns pensamentos que o incomodavam,
começou a pôr em ordem um dos quartos, armando uma cama para se acomodar. De repente o telefone
tocou.
Droga! reclamou ao sair correndo e atirar-se no sofá para atender o quanto antes, pois se
lembrou que Raquel poderia acordar com otoque do outro aparelho que era extensão e ficava na cabeceira
de suacama.
Alo! Oi, mãe, tudo bem?
O que houve, filho? Você está muito sumido. Pensei que viesse aqui hoje.
Ah! Não deu. Arrumei algumas coisas para fazer e estou entretidoaté agora.
O que está fazendo de tão interessante assim?
Arrumando um quarto aqui. Sabe, está muito bagunçado. Estou com uns livros aqui que quero
catalogar. Então, aproveitei que estavafrio para me entreter com isso.
Você vem aqui amanhã?-É...
Se não vier, eu peço para seu pai me levar aí. Fiz algo que você adora!
Embaraçado, rapidamente decidiu:
Amanhã eu passo por aí, mãe. Não tem problema.
Vem para almoçar.
Olha, acho que não vou terminar isso aqui hoje, sabe? Quando vamos organizar um lugar, antes,
desorganizamos tudo. Façamos o seguinte: se eu terminar cedo, eu vou almoçar, mas antes eu telefono.
Não se preocupe.
Está bem, eu aguardo.
Certo.
171
Quando Alexandre pensou que sua mãe fosse se despedir, ela reparou:
Alex, o que você tem?
Eu?!...
Eu o conheço, Alexandre! Não me esconda nada. Você está bem?
Claro! Ora mãe, o que é isso? Estou ótimo!
A mãe fez silêncio por alguns instantes, depois resolveu:
Amanhã a gente conversa. Tchau, filho.
Tchau, mãe. Até amanhã. Dá um beijo na Rosana e outro no pai,por mim.
Apesar de seus trinta e dois anos, Alexandre, por ser muito amoroso, deixava sua família participar de sua
vida. Até porque, devido aos problemas de saúde, todos se importavam com ele.
"Será difícil tentar explicar tudo isso para minha mãe", pensava ele. "Como vou fazer? Quando eu disser
que coloquei uma moça para morar comigo aqui, não quero nem estar na minha pele! Ela vai falar tanto!
Além do mais, a Raquel está muito frágil e abalada para ser apresentada à minha família, principalmente
para minha mãe, tão exigente! Talvez só a Rosana entenda e..."
Um grito o fez voltar à realidade.
Raquel! exclamou correndo na direção do quarto.
Sentada na cama, ela estava ofegante. Seus olhos brilhantes denunciavam seu estado febril. Os cabelos
umedeceram com o suor e se colavam ao rosto e no pescoço da jovem. Com a respiração alterada,
coração acelerado, ela tentava balbuciar algo e não conseguia.
Raquel, calma. Estou aqui. Está tudo bem dizia Alexandrecom brandura ao tirar-lhe os cabelos
de seu rosto.
Não! Ele... Ele... tentava dizer ofegante.
Deve ter sido um sonho. Já passou, Raquel.
Não! Minha filha...
Alexandre sentiu-se gelar. Algo o decepcionava. Raquel deveria ter mentido justo para ele que não tolerava
ser enganado. Fazendo-se firme, perguntou quase friamente:
O que tem sua filha?
172
Ele vai maltratá-la... respondeu fitando-o com olhos vidrados,como que em delírio.
Calma, Raquel. Não vai acontecer nada.
Ela soluçou por algum tempo até parecer acordar para a realidade e serenar um pouco. Alexandre estava
nervoso. Aquele dia estava sendo difícil demais. Após alguns minutos, ele perguntou:
Você está bem? Abatida, ela afirmou que sim com um aceno de cabeça e ele aconselhou:
Faça o seguinte: pegue suas roupas etome um banho. Você precisa comer algo. Praticamente não se
alimentou hoje. Já é noite, sabia?
Atordoada, obedecendo a tudo maquinalmente, a bela jovem tentou se levantar, mas precisou da ajuda do
amigo, que a amparou quando a viu cambalear. Vendo-a mais firme, ele a deixou ir em direção do banheiro
e falou:
Vou fazer o mesmo. Pegarei minhas roupas e vou tomar um banho. Fique à vontade, não tenha
pressa. Vou usar o outro banheiro.Depois a gente janta, tá?
Alexandre saiu da suíte com o coração oprimido, amargurado, e não conseguia esconder suas emoções.
Algo acontecera e ele precisava saber ou não teria paz, odiava mentiras e traições.
Mais tarde um pouco, após fazerem uma refeição que o rapaz mesmo preparou, arrumaram a cozinha e ele
perguntou:
Você está melhor?
Sim, estou respondeu com voz suave e mais tranquila.
Venha cá ver o que fiz ele a chamou não se contendo. Levando-a até o outro quarto, mostrou:
Montei essa cama de solteiro que tinha aqui há algum tempo. É a que eu usava antes de mandar
fazeraqueles móveis lá da suíte. Não a usei mais porque seria desaforo abandonar aquela cama enorme
por essa aqui, não é? contou sorrindo.Raquel não dizia nada e ele, levantando a colcha sobre os lençóis,
continuou: Veja o colchão que eu comprei. Parece ser bom. Enquanto fuilá na casa do seu irmão, o
entregaram para o zelador e eu o peguei agora há pouco.
173
Por favor, Alexandre, deixe-me dormir aqui. Não quero incomodá-lo, tirando-o do conforto que
tem.
Não! De jeito nenhum afirmou cortês.
Será só por alguns dias. Vou arrumar um lugar para ficar, logo,logo.
Se é só por alguns dias, continue lá.
Não vou me sentir bem incomodando tanto.Colocando-se em frente de Raquel, falou brandamente:
Você não me incomoda. Pode ficar o quanto quiser e deixe-me, como bom anfitrião, fazer o que for
possível para acomodá-la bem, por favor.
Raquel abaixou a cabeça sem saber o que dizer. Sentia-se constrangida e era forçada pela situação a
aceitar a proposta. Pegando-a delicadamente pela mão, ele pediu:
Venha aqui na sala comigo. Precisamos conversar. Sentando-se ao lado da amiga, ele
perguntou, colocando-lhe a mão na testa: E afebre, cedeu?
Sim. Só sinto um pouco de moleza, mas já estou bem melhor.
Acho que ficou resfriada devido à roupa molhada naquele frio.
Ela não disse nada e Alexandre, respirando fundo, tomando coragem e buscando forças, falou
brandamente, porém determinado, procurando esclarecer a situação, uma vez que a inquietude e a
insegurança abalavam seus sentimentos:
Raquel, precisamos conversar. Eu sei que toda essa situação está sendo muito difícil para você.
Primeiro, quero que fique bem claro umacoisa: eu vou ajudá-la, aconteça o que acontecer, pois se for leal
comigo serei sempre fiel a você. Confie em mim. Mas, por favor, diga-me a verdade, seja ela qual for. Não
esconda nada. Não gosto de surpresas.Não gosto de estar envolvido em assuntos ignorando detalhes.
Apóspequena pausa, olhando-a firme nos olhos, ele continuou: Quero saber de tudo, mas tudo mesmo. E
provável que minha família não vá entender muito bem o que aconteceu e o que está acontecendo,
principalmente minha mãe. Na certa enfrentaremos dificuldades. Ninguémvai interferir nas minhas
decisões, sou totalmente independente. Entre-
174
tanto, quero que eles venham saber de tudo, se for preciso, por mim e não por intermédio de outros, como
fofoca. Por isso, conte-me tudo o que aconteceu.
Olhando-o fixamente, ela perguntou constrangida:
O que a Alice falou?
Não importa o que ela falou, uma vez que vou ouvir a verdade devocê.
Os pensamentos mais conflitantes a invadiam. Estava insegura e envergonhada. Vendo Alexandre como
único que não a decepcionara e nada exigia dela, teria que lhe contar toda a verdade. Ele merecia saber.
Então, Raquel começou:
Para que entenda, precisarei te contar toda minha vida, não sei se vou conseguir.
Sentando-se mais próximo da amiga, ele pegou sua mão, colocou entre as suas e disse:
Vai conseguir, sim. Eu estou aqui para apoiá-la no que for preciso.Um longo silêncio se fez até que
Raquel, bem acanhada, iniciou:
Há tempos, quando eu tinha uns oito ou nove anos, percebiaalgo diferente com o tratamento que
recebia. De modo estranho, ele tentava me agradar... A respiração da moça estava alterada, seu coração
batia forte e ela fugiu ao olhar de Alexandre, recolhendo a mão que ele segurava sem conseguir arrumar
palavras para continuar. Diante dapausa, ele perguntou:
Ele quem?
Imediatamente as lágrimas rolaram na face angelical de Raquel, mas ela não se deteve e sussurrou:
Meu tio.
Como ele a tratava diferente? perguntou gentil, mas resoluto.
Percebi que ele me acariciava... chorando aflita e constrangida,ela se reprimia, sem saber
como explicar, e o amigo argumentou tentando ajudá-la:
Seu tio te acariciava com certa malícia, ele era ousado, tocava em você
de modo incomum, é isso?
175
Abaixando a cabeça por estar ainda mais envergonhada, admitiu em voz baixa:
É isso. Após pequena pausa, Raquel prosseguiu: Eu fui criada no interior, em uma fazenda.
Não tinha muita malícia nem compreendia o que estava acontecendo. Na época falei para minha mãe,
queme pediu para não contar nada a ninguém, e eu a obedeci. Dias depois,eu a vi brigando com esse meu
tio.
Ele era irmão do seu pai?
Sim, era. Daí ele parou de ficar perto de mim, mas ainda me olhava diferente. Não muito tempo
depois, às vezes, mesmo perto dos outros, ele me punha para sentar em seu colo... No meio da agitação
ouda conversa, ninguém percebia que ele me acariciava... Eu queria me levantar, mas ele me segurava e
dizia que eu era arisca. Mas não era isso.O tempo foi passando e eu, quanto mais crescia, mais fugia dele.
Então,quando eu tinha quinze anos, meu pai sofreu um acidente. Foi assim:meu pai pegou carona com um
amigo que dirigia imprudentemente e,por excesso de velocidade, o homem bateu com o carro. Meu pai
quebrou o pescoço e teve traumatismo craniano. Ele nunca mais ficarianormal. Na época desse acidente,
todos nós ficamos abalados. Meus avós, minha mãe e meus irmãos foram para o hospital, na capital,
poismeu pai exigia tratamentos especiais que, na cidade próxima da fazenda, não havia.
Esse meu tio não foi com eles... Ele tinha mulher, três filhas e morava na fazenda mesmo, só que em outra
casa, não muito próxima da Casa-Grande, onde nós morávamos.
Raquel, agora extremamente sensível, fez uma pausa e caiu num choro compulsivo. Entre os soluços
persistentes, ela encontrou forças para continuar narrando:
Esse tio... Ele disse que dormiria na Casa Grande para tomarconta...
Alexandre ficou nervoso, bem que desconfiara; agora diante do relato já imaginava o que acontecera, mas
não podia mostrar para Raquel sua alteração pela indignação. Deveria manter-se equilibrado para ouvi-
176
la e ampará-la. A fim de fazê-la terminar de narrar aquele sofrimento o quanto antes, percebendo sua
dificuldade e constrangimento para relatar os fatos, ele perguntou cauteloso:
Não havia mais ninguém lá? Nenhum empregado?
Na Casa-Grande, não. Entre os soluços ela revelou: Ele seaproveitou de mim, me bateu,
me machucou muito... Após outracrise de choro intenso, ela continuou: Disse que, se eu contasse
paraalguém, iria ser pior...
Dois dias depois, quando minha mãe voltou, eu soube que meu pai estava em estado grave e, quando vi o
desespero de minha mãe, não tive coragem de contar nada. Não pude mais dormir bem, eu tinha sonhos
ruins, pesadelos horríveis. Acordava em desespero... Gritava... Todos pensavam que era por causa do meu
pai. Ninguém imaginava que...
Alexandre chegava a suar frio ao ouvir o relato, forçando-se imensamente para não exibir sua ira, sua
aversão à prática hedionda daquele homem. Vez ou outra, ele esfregava o rosto, circunvagando o olhar
pela sala para tentar espairecer por alguns segundos.
Mesmo chorando, entre soluços insistentes, Raquel continuou:
Esse meu tio tinha o perfil de um homem íntegro, digno e demoral inabalável. Ninguém poderia
duvidar dele. Quando perguntaram por que eu tinha aqueles machucados, ele disse que eu havia caído das
pedras da cachoeirinha que tem na fazenda, lugar onde eu gostavade ficar. Ninguém questionou. Não
havia motivo para duvidar dele. Otempo foi passando e ele nunca mais tentou nada, pois não houve
oportunidade. Eu não ficava mais sozinha nem perto dele.
Suspirando um pouco e tentando se recompor, ela prosseguiu logo depois:
Eu criei um objetivo. Queria estudar, pois sempre achei que aquela não era vida para mim. Eu não
gostava daquele "fim de mundo". Masmeu avô sempre foi contra o estudo. Principalmente para as
mulheres.Como eu digo, ele é o "czar" da família. Vive gritando e berrando, quando exige algo. Para eu
continuar estudando depois do primeiro grau foi muito difícil. Ele não queria. A custo, minha mãe conseguiu
convencê-lo.
177
A cidade não ficava perto e, para estudar, eu teria que ir a cavalo.Não sei se você sabe, mas isso
é comum no interior. Esse meu tio tinha uma caminhonete e sempre fazia entregas ou recebimento de
produtos e mercadorias na cidade. Aí aconteceu que, um dia, sem mais nem menos, quando eu cheguei,
meu avô foi logo tirando o cinto e me batendo.Eu nem mesmo sabia por quê. Fiquei de cama depois da
surra. Maistarde, minha mãe me contou que meu tio disse ter me visto com umnamoradinho na cidade, e
isso foi o suficiente para meu avô me espancar daquele jeito.
Meu pai, praticamente inerte sobre a cama, nem imaginava o queestava acontecendo. Minha
mãe se intimidava e não dizia nada. Nessa época, meu irmão, o Marcos, por ter brigado com meu avô
inúmerasvezes, decidiu ir embora da fazenda. Ele havia estudado, pois anos antes já tinha nos deixado, e
se especializou em torneiro-mecânico, o que oajudou a arrumar um emprego. Marcos pegou Alice e os
meninos epartiu. Pouco nos dava notícias. Meus outros irmãos acreditaram no que meu tio falou e não me
defenderam, nem foram conversar comigopara saber, por mim, o que aconteceu. Nós não fomos criados de
maneira unida, meus irmãos não me davam muita atenção. Nesse instante a voz sensível de Raquel
embargou e ela quase chorou novamente, masprosseguiu: Porém, aconteceu o mesmo outras vezes,
pois meu tio inventou a mesma coisa e meu avô novamente me bateu, ou melhor, me espancou.
Alexandre a interrompeu e perguntou curioso:
E era verdade? Você tinha um namoradinho?
Não! Eu nunca namorei afirmou com sua simplicidade natural. Acontece que minha família
é um tanto preconceituosa, racista,e havia um rapazinho, bem moreno, que parecia gostar de mim, euacho.
Estudávamos juntos e, quando saíamos da escola, sempre conversávamos um pouco, mas, eu juro, nunca
tivemos nada! Não por ele sernegro, é que eu tinha planos. Iria estudar, arrumar um emprego e
deixaraquela vida miserável e aquele lugar maldito. Eu queria fazer como oMarcos. Lágrimas rolaram,
ela continuou, mas começava a ficar aí li-
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ta novamente: Quando eu tinha dezessete anos e voltava da escola, com a sua caminhonete meu tio
assustou o cavalo, que me derrubou e depois correu em galope. Caída no chão, fiquei atordoada, confusa.
Meu tio se aproximou, me pegou pelo braço e me levou para o carro. Soluços e lágrimas embargavam
sua voz e seu olhar exprimia uma revolta triste sem igual, breve pausa se fez e ela continuou com voz
vacilante: Ele travou a porta automática e eu não consegui sair. Ele me bateu e fiquei tonta, não
consegui reagir, acho que desfaleci. Acordei num casebre abandonado, no interior da fazenda mesmo e...
amarrada. Fiquei presa lá por uns três dias, eu acho...
Raquel não aguentou, caiu em choro compulsivo e Alexandre a envolveu num abraço. Não suportando a
amargura que sentia, ele chorou junto, sem deixá-la perceber. Com a voz abafada, escondendo o rosto no
peito do amigo, Raquel, às pressas, desesperada, relatou com extremo pavor, aflição:
Eu tentei lutar... Juro que tentei!!! Ele me amarrou, fez o quequeria e foi embora, me deixando lá.
Voltava no dia seguinte e... no outro, e fazia o mesmo...!
Nova crise de choro a dominou por alguns segundos. Ele beijou-lhe os cabelos, pedindo baixinho:
Calma, está tudo bem agora Alexandre tremia e chorava também.
Ele me levava água e algum alimento prosseguiu. A águaeu bebia, mas não conseguia
comer e ele me batia por isso. Conseguime soltar... Quase não achei o caminho de casa. Andei muito... o
diatodo.
Afastando-se de Alexandre, ela continuou apesar do choro:
Cheguei a custo na Casa-Grande. Todos já sabiam, por meu tio,que eu havia fugido com o tal
namoradinho e ainda previu que, nomomento em que eu me desse mal, voltaria para casa. Raquel
começou a falar rápido e em desespero, com muita emoção: Aos gritos, eucontei toda a verdade! Contei
o que meu tio tinha feito comigo! Que me violentou!!! Mas ninguém acreditou! Ninguém! Imagine, ele, um
ho-
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mem tão íntegro e com três filhas da minha idade! Minha tia, esposa dele, disse que eu queria destruir seu
lar e afirmou que já havia me visto com namorado. Ela acabou inventando muitas outras coisas sobre eu
me encontrar às escondidas... Meu avô me espancou como nunca. Fiquei mais machucada do que já
estava... Isso tudo foi na frente de todos da fazenda.
E sua mãe? interferiu Alexandre comovido.
Minha mãe ficou em choque. Ela parecia incrédula. Não reagiu,não disse nada. Somente mais
tarde eu entendi por quê. Meu avô meexpulsou de casa. Já era noite e, quando eu caminhava pela estrada
sem saber o que fazer, o capataz e sua esposa, que ficaram penalizados, me recolheram para sua casa só
por aquela noite, sem que meu avô soubesse. Na manhã seguinte, bem cedo, ele me deixou em uma
cidade vizinha. Eu não tinha nada. Muito mal a roupa do corpo. Fiquei perambulando... não sabia o que
fazer. Estava machucada, com muita dor...Quando a noite chegou, juntei-me a uma mulher que era
indigente.Ela me ofereceu abrigo em suas cobertas, só que eu não poderia chorar.Amélia se incomodava e
brigava.
O tempo foi passando. Essa indigente acabou se acostumando comigo; apesar de seus modos rudes,
grosseiros, era a única pessoa que me protegia contra aqueles que queriam mexer comigo. Mas exigia que
a ajudasse e nós tínhamos que buscar alimento até no lixão da cidade, além de sermos pedintes também,
porém eu não conseguia muita coisa ao mendigar por causa da minha aparência. Diziam que eu tinha que
ir trabalhar, que era nova e bonita, mas quem é que me oferecia emprego? Ninguém queria saber da minha
história nem de me ajudar. Com o passar dos dias, percebi que estava grávida... Raquel entrou em nova
crise de choro e, quando o amigo tentou abraçá-la, ela não permitiu. Com a voz embargada, continuou a
narração angustiosa: Eu quis morrer! Precisava de ajuda! Precisava da minha mãe! Queria vê-la
novamente e foi então que me lembrei de procurar por ela na igreja, pois, aos domingos, bem cedinho, ela
sempre estava lá. Eu não poderia aparecer, muitos na cidade me conheciam.
180
Contei para Amélia e ela me ajudou. Conseguimos carona até a cidade onde eu morava e eu me escondi
enquanto Amélia aguardava o final da missa, pois eu já havia lhe apontado, a distância, minha mãe. E foi
com o propósito de mendigar que ela se aproximou de minha mãe e disse: "Tenho notícias da Raquel".
Furtivamente, minha mãe seguiu Amélia, que a levou até onde eu estava. Nunca tinha visto minha mãe
daquele jeito, ela ficou assustada demais quando me viu. Depois que perguntou onde eu estava, ela tirou
de sua bolsa uma carta que Marcos havia lhe escrito, a qual acabara de pegar na cidade. Tirou a carta,
deu-me o envelope e pediu que eu procurasse por ele naquele endereço. Não queria magoá-la, mas tive
que contar que estava grávida. Ela ficou em choque, pálida. Incrédula!
Imediatamente pediu que eu jurasse que estava dizendo a verdade sobre ter sido o meu tio que fizera
aquilo comigo. Eu jurei.
Foi então que ela se afastou de mim, olhou-me de um jeito muitoestranho que jamais vou esquecer.
Empalidecida, com os olhos arregalados, ela disse friamente, sem piedade: "Seu tio é seu pai."
Fiqueiparalisada. Passei muito mal. Achei até que ia desmaiar. Minha mãeparou de chorar e ficou me
olhando. Sem dizer nenhuma palavra, ela foise afastando mecanicamente andando para trás. Eu queria
falar, queriaperguntar, mas não conseguia.
Nesse instante, Raquel parou de falar, secou as lágrimas que rolavam, ergueu os olhos para Alexandre que
perguntou em tom de compaixão:
O que aconteceu depois? Ela não te ajudou?
Não respondeu exaurida de forças, parecendo desalentadacomo se vivenciasse novamente
aquela situação. Minha mãe nuncame ajudou. Amélia, apesar de seus modos um tanto rudes, foi a
únicacriatura que ficou do meu lado e me abraçou, tirando-me dali. Nósvoltamos para a outra cidade. Eu
fiquei atordoada, debilitada de reações e fazia tudo de modo meio automático. Não queria acreditar no que
acontecia. Só me alimentava porque Amélia insistia, praticamente
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exigia. A única coisa que fiz foi guardar com a vida o envelope com o endereço do meu irmão. Dias depois,
o inverno chegou rigoroso e, numa noite fria, muito fria em que nevava, policiais passaram socorrendo para
um albergue os desabrigados. Deitada num canto escondido, eu estava com muito frio e me encostava em
Amélia. Nessa noite eu a achei muito quieta, não me preocupei, porque ela bebia, sabe como é...
Um policial se aproximou, cutucou-me e chamou para entrar num caminhão. Quando fomos ver, Amélia
estava morta. Chorei como se tivesse perdido a minha mãe. Amélia morrera de frio, talvez. Entrei em
verdadeiro desespero. Eu não tinha mais ninguém. Amélia agia como minha mãe. Às vezes eu penso que
ela fez mais por mim do que... Ela me defendia de ataques. A rua é muito dura, ninguém imagina como...
Alexandre, a essa altura, segurava a própria cabeça com as mãos, apoiando os cotovelos nos joelhos.
Estava perplexo, triste, incrédulo, e não sabia o que fazer ou dizer.
Raquel, agora sem tanta emoção, continuou:
Fui levada para um albergue. No dia seguinte, ao passar pelatriagem, viram que eu estava
grávida. Foi então que uma assistente social me encaminhou para um abrigo de gestantes desamparadas.
Nesse lugar, fui bem tratada. Havia médicos, freiras e voluntárias, gentis eeducados. Psicólogos, com certa
frequência, tentavam conversar comigo. Mas eu não conseguia falar nada, nem me lembro direito como
foi esse período. Muito mal informei meu primeiro nome. A única coisaque disse foi que não queria aquele
filho.
Quando a criança nasceu... Sua voz embargou e ela quase não conseguiu continuar, mas por
fim falou, desesperada: Eu queriamorrer! Eu me odiava! Aliás, quase morri no parto porque tive
complicações. Depois, soube que era uma menina porque a irmã Clarice me falou. Eu me recusava a pegá-
la, mal olhava para ela... confessouparecendo arrependida. Muitos conversavam comigo, mas a
partirdaí eu emudeci completamente.
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Assim que me recuperei, pois estava muito fraca, abandonei o lugar sem olhar para trás e deixei lá a minha
filhinha. Raquel chorou exibindo um grande remorso que parecia castigá-la. Procurei meu irmão.
Marcos estava preocupado. Por carta, minha mãe lhe contou quase tudo e disse que eu o procuraria. Só
que demorei muito tempo desde quando ela havia lhe dito e, quando apareci, eu estava sem o bebé. Meu
irmão me recebeu. Ele sempre quis saber onde deixei a criança.
Alexandre ergueu a cabeça e perguntou:
Você sabe onde está sua filha? Lágrimas rolaram no rosto de Raquel, mas ela não respondeu, e
ele insistiu: Você sabe, Raquel,onde ela está? Novo choro se fez. Ele a abraçou mesmo sentindo-
aamedrontada e tornou a perguntar com generosidade na voz: Sabeonde fica esse albergue? Sabe onde
ela está?
Raquel se afastou do abraço, respondendo chorando:
Sim...
Você nunca a procurou? quis saber compadecido.
Sim, mas eu não contei para o Marcos. Há poucos meses, antes de ir morar com ele agora, entrei
em contato telefônico com o abrigo.Lembrei que a irmã Clarice me disse para chamá-la de Bruna
Maria.Então, todos a conheciam como Bruna Maria, a filha de Raquel. Quando liguei, pedi informações, me
falaram que ela havia sido levada paraum orfanato. Anotei o endereço, telefonei, mas me disseram que
sópoderiam dar maiores informações pessoalmente. Eu não tive coragemde ir até lá, eu...
Depois de pequena pausa, Alexandre perguntou:
E quando você voltou sem sua menina, como foi, seu irmão atratou bem?
Sim, sempre. Precisei de médicos e ele me forneceu tudo, até queeu me recuperasse bem. Fiz
tratamentos psicológicos... Eu tinha medos,entrava em pânico, sofri muito com os pesadelos. Marcos me
ajudava emtudo. Ele me arrumou emprego na recepção de uma fábrica, principalmente para me ajudar a
entrar em contato com as pessoas. Depois de umtempo, a fábrica fechou e eu arrumei serviço em outro
lugar. Então,
183
voltei a estudar e fiz alguns cursos. Minha mãe mandou a documentação que eu precisava e eu fui me
refazendo em todos os sentidos. Só não queria falar na minha filha. Nesse período, Alice fazia da minha
vida um inferno. Ela nunca me suportou, mesmo quando morávamos na fazenda.
Marcos me ajudou a alugar uma casa pequena e até pagava parte do aluguel para mim. Foi aí que comecei
a ficar independente. Numa conversa com meu irmão, descobri que minha mãe jamais lhe disse que meu
tio era meu pai. Nem o que ele havia feito comigo e que minha filha era filha dele. Marcos pensava que a
filha que eu tive era do tal namorado. Então, contei a meu irmão o que nosso tio havia feito, só não revelei
que ele era meu pai.
Depois de tudo isso, quando abriu concurso para operadores de computação na empresa aérea, eu
consegui uma das vagas e me tornei mais independente devido ao salário melhor, pois passei a me
sustentar sozinha. Marcos perdeu o emprego que tinha e arrumou esse outro onde está até hoje e... o resto
você sabe.
Olhando firme para Alexandre, encarando-o nos olhos, ela afirmou com sua peculiar voz delicada, mas
demonstrando imensa dor em seus sentimentos:
Essa é toda a verdade, Alexandre. É a primeira vez que eu a conto assim, na íntegra, como agora. Você
é a primeira pessoa a saber de tudo isso. Como vê, não é uma história que eu possa sair por aí relatando.
Tenho muita vergonha. Você nem imagina o que passei, como sofri, nem imagina...
O silêncio reinou por longos minutos.
O rapaz estava atordoado, perplexo e estático com toda aquela revelação. Ele jamais poderia imaginar que
tudo aquilo pudesse ter acontecido com Raquel. Por amá-la, aquilo também lhe doía muito. Agora entendia
algumas reações estranhas que percebia nela, compreendia seus sentimentos, suas aflições e fragilidade.
Alexandre a encarou, fitando-a por longo tempo, sem dizer nada. Raquel, visivelmente fragilizada, não lhe
fugia ao olhar, como quem aguardasse uma resposta e ele se explicou com voz terna, triste e piedoso:
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Perdoe-me por tê-la feito contar tudo isso. Mas eu precisavasaber.
De seus tristes olhos, ele viu brotar lágrimas que não demoraram a rolar em sua linda face sofrida.
Alexandre, observando-a, não conseguiu controlar seus sentimentos e, ao perceber seus olhos se
aquecerem, tentou reagir, mas sua emoção foi mais forte e ele chorou sem se constranger.
Raquel tremia talvez aflita de medo pelas traumáticas recordações com um misto de vergonha. Ele se
aproximou, envolveu-a em um abraço sem se importar com seu choro compulsivo que se fez
repentinamente. Ajeitando-a como quem aninha uma criança no colo, ele a embalou por algum tempo,
confortando-a. Afagando-lhe os cabelos sem dizer nada. vez e outra ele a beijava na testa. Ao sentir sua
fragilidade, seu pavor, ele percebeu que a amiga nunca tivera um carinho, ela parecia um bichinho coagido,
buscando conforto no seu fraco coração e abrigo no bálsamo de sua amizade ao esconder o rosto em seu
peito. Pelo longo tempo, que nem Alexandre percebeu passar, Raquel adormecera em seus braços.
Deus rogou , dê-me força e saúde. Raquel precisa de mim eeu dela. Não será fácil,
principalmente com a minha família. Ajude-me,Pai. Ajude-me.
Alexandre sentiu-se mais sereno e Raquel ainda dormia em seus braços. Cuidadoso, ele a pegou no colo e
a levou para o quarto sem acordá-la. Colocou-a sobre a cama, cobriu-a e acariciou-lhe a face por algum
tempo, fitando-a pensativo.
"Como Raquel é bonita!", pensava ele admirando-a. "Por que tudo aquilo tinha que acontecer? Tem que
haver uma explicação. Confio tanto em Deus. Ele não pode ser injusto."
Alexandre gostava cada vez mais de Raquel. Principalmente agora por sua lealdade em contar-lhe toda a
verdade mais dolorida que ela queria esquecer. Não seriam as dificuldades do seu passado, tampouco a
filha que tivera, que serviriam de empecilho para ele naquele momento. Determinou-se a ajudá-la e só não
ficaria com ela se ela não o quisesse.
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Com carinho, ele a beijou na testa e foi se deitar. Por tanta emoção, Alexandre estava cansado e
adormeceu logo. Minutos depois, pela emancipação que ocorre durante o sono, ele se viu no plano
espiritual envolvido por aquela generosa entidade que sempre lhe acolhia no estado de sono. Alexandre
não era adepto de nenhuma religião, mas possuía uma fé inabalável em Deus.
Seu caráter íntegro, seu coração bondoso o inclinavam a consolidar bases espirituais em nível superior.
Nem sempre havia sido assim. Tempos antes Alexandre era um rapaz vaidoso, que se orgulhava de sua
aparência, de suas dádivas naturais, da inteligência que possuía.
Sendo de uma família financeiramente bem estruturada, nunca tivera grandes dificuldades, não sabia o que
era isso. Nunca levou a sério nenhuma namorada, mesmo porque as moças que se interessavam por ele
não se davam valor ou respeito. Ele também não se preocupava em ter uma qualidade religiosa de vida.
Com o tempo, conheceu sua ex-noiva e, por gostar muito da moça, começou a ficar mais responsável.
Nessa época, acreditou que era sério. Sandra era importante para ele. Estava apaixonado por ela. Mas a
decepção com a traição que sofrera levou-o a tentar o suicídio, que quase se consumou. Alexandre
vivenciou uma terrível experiência que jamais poderia esquecer e nunca conseguira, com palavras,
descrever.
Algo mudou nele. Tudo o fez despertar para a vida, despertar para Deus.
Mas ainda lhe faltava algo. Passou a ser mais calmo porque seu problema cardíaco exigia isso. Começou a
lembrar de Deus, não só nos momentos de insegurança como também para agradecê-Lo pela segunda ou
terceira oportunidade de vida que ele acredita ter. Poderia ter desencarnado com a parada cardíaca ou com
as tentativas de suicídio, mas não.
Alexandre realmente fora envolvido, principalmente agora, pela sua fé, sua gratidão ao Pai e por sempre se
religar a Ele através da conversação que soava como uma prece.
Mas ainda havia algo a fazer. Alexandre precisava ter conhecimento. Talvez ele não tivesse sofrido tanto se
buscasse Deus em seu coração há
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mais tempo, porém agora, após passar por dificuldades incríveis, estava refeito, pronto para o
entendimento das verdades sublimes e, consequentemente, para as provas com o trabalho redentor.
Esse era o momento.
Com carinho inenarrável, próprio de entidades superiores de elevada envergadura, aquele ser que sempre
o socorria quando ele, pelos pensamentos elevados em prece, buscava Deus, punha-se novamente a
enternecê-lo nos braços, tal qual a mãe que agasalha em seu aconchego o filho querido que lhe pede
amparo.
Acariciando Alexandre, que ainda estava um tanto adormecido naquela emancipação, essa criatura o
observava com ternura e amor.
Alexandre chamava-o. Sou eu, filho.
Como que assonorentado, ele sorriu ao vislumbrar tão grande beleza.
Meu querido, sei o quanto seu coração está dolorido. Sei tambémdo seu amor verdadeiro, das suas
dúvidas, dos seus medos. Enfrentará situações difíceis, mas continue com fé. Busque, Alexandre, busque
oconhecimento dos fatos. Procure entender o porquê da vida. Nada é por acaso, meu filho. Quando
entender e aceitar, estará pronto para trabalhar e, só assim, será verdadeiramente feliz.
Alexandre a fitava, até que tranquilamente argumentou:
Eu a amo tanto disse referindo-se a Raquel. Não quero vê-la sofrer. Preciso protegê-la.
Você vai conseguir entender a vida, se aceitar os ensinamentos deJesus.
Quero ficar com ela...
Terá que conquistá-la, filho. Eis o seu desafio. Mas somente atarefa produtiva pode oferecer
recompensas. Ensine-a sobre o porquê davida, dê-lhe razões para ocupar a mente de forma produtiva e
oportunidade para o trabalho útil. E, para isso, terá que aprender primeiro. Euinsisto, procure conhecer os
ensinamentos de Jesus.
Nesse momento, até que tudo se tranquilize, vamos envolvê-la. No entanto, Raquel terá que vencer as
dificuldades por si mesma, despertando sua fé e acreditando na justiça de Deus. Raquel não crê. Não
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como deveria. E, por ter descido seu nível de pensamento a ponto de se deixar envolver por criaturas
espirituais tão ignorantes, ela mesma, pelas próprias forças, tem que reverter esse quadro. Você pode e
deve ajudá-la, afinal, foi a isso que se propôs diante de quaisquer dificuldades que pudessem ocorrer nesta
experiência encarnatória. No entanto, somente ela poderá se erguer.
Às vezes tenho medo... Tenho dúvidas.
Você sempre terá amparo, meu filho, enquanto estiver agindocorretamente.
E meus pais? Minha família?
Isso é algo que você terá que resolver. Aja sempre com bons propósitos. Tenha fé e não seja
insolente, não precisa disso, não é? Beijando-lhe na testa com imenso carinho e como despedida, ainda
argumentou: Precisa de repouso, filho querido. Cuide de sua saúde. Epassando-lhe a delicada mão
sobre o rosto de Alexandre, completou: Agora adormeça, você está protegido e amparado por causa da
sua fé.Eu o amo muito.
Adormecido e recolocado em seu leito para a devida recomposição, Alexandre teve um sono tranquilo e
reconfortante.
Na manhã seguinte, ele acordou cedo e, sentindo-se muito bem, ficou algum tempo em sua cama
pensando em tudo o que acontecera com Raquel. Alexandre não se recordava de nenhum sonho.
Lembrou-se então que prometera para sua mãe que iria almoçar com ela. Mas, e Raquel? Ele precisava
falar com sua amiga e explicar que tinha de conversar com sua família, mas ela não poderia se sentir um
incômodo.
O rapaz pulou da cama sem se importar com o frio, sentia-se animado e disposto. Às vezes ele era abatido
por algumas lembranças sobre as dificuldades que Raquel relatara. Quanto sofrimento! Como ela deveria
padecer moralmente pelo que lhe ocorrera. Que constrangimento! Que humilhação! Como poderia haver
homens tão indecentes, tão cafajestes, capazes disso?
Alexandre estava indignado, tanto que se pegava, vez ou outra, com um nó na garganta que o fazia chorar.
Queria apagar das lembranças
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de Raquel aquele sofrimento. Mas como poderia? Ele próprio não parava de pensar. De repente, acreditou
ter ouvido um barulho e foi ver o que era.
Raquel? chamou ao se aproximar da porta do quarto.
Alexandre...! exclamou a moça com a voz chorosa.
O que foi? O que aconteceu? perguntou ao entrar ligeiro nasuíte e se sentar na cama ao lado
dela. O choro não a deixava falar.Levantando-se, o amigo abriu a janela do quarto fechando o vidro parao
frio não invadir o recinto e puxou parcialmente as cortinas para que aluz entrasse. Ao retornar, observou
que ela já se refazia.
Veja, já amanheceu. Acho que estava sonhando. Não é nada. Esse sentimento já vai passar.
Com ternura na voz, pediu: Levante,tome um banho, vamos nos alimentar e... afastando-lhe os
cabelos lindamente desalinhados, falou: Espero por você na cozinha, tá? Raquel disse que sim e ele a
deixou só.
Após tomarem a primeira refeição, Alexandre falou:
Raquel, ontem eu pedi para que não atendesse o telefone, pelofato de ninguém saber que você
está aqui e, diante de tanto para realizare esclarecer, me fariam muitas perguntas às quais eu nem teria
respostas,no momento. Mas é o seguinte: minha mãe é exigente, preocupa-se muito comigo. Isso não tem
jeito de mudar, até já me acostumei. Ela vai querer saber quem você é, de onde veio, por que está aqui,
como estamos envolvidos. Só que, tudo isso, ela vai querer saber de uma vez só.
Espere, Alexandre interrompeu Raquel , talvez você nemprecise dizer. Quero sair daqui o
quanto antes. Vou arrumar umacasa e...
Como? Como você vai arrumar uma casa? perguntou friamente, porém muito educado.
Você tem alguma reserva em dinheiro?Tem móveis e utensílios necessários e básicos? Perdoe-me a
franqueza,Raquel. Sejamos racionais. Pelo que vejo vai precisar ficar aqui por umbom tempo. Não que isso
me incomode! De jeito algum! Aliás, devolembrá-la que essa proposta eu já lhe fiz tempos atrás, certo? E
não mudei de ideia.
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Vou incomodá-lo...
Não! Não vai. Eu só tenho que tomar algumas providências paraque não experimentemos
surpresas desagradáveis. Já imaginou: minhamãe ou minha irmã entrando aqui, num domingo de manhã, e
nospegando tomando café? O que vão pensar? Sou maior de idade, sou independente financeiramente,
mas ligo-me a eles no lado moral, por isso seria um desrespeito eu trazer uma "mulher qualquer" para
minhacasa e expor minhas irmãs ou meus pais a se depararem com uma cena dessas. Jamais fiz ou farei
isso. Emocionalmente, preciso de minha família. Eles são importantes para mim. Devo-lhes certas
satisfações porque os amo muito. Nem para minha irmã, Rosana, de quem nuncaescondi nada, falei sobre
você. Aconteça o que for, garanto que a Rô vai nos dar a maior força.
Eles não vão entender, Alexandre. Ninguém entenderia!
Você não é "uma qualquer", entendeu? Quando eu disse para virmorar aqui comigo, Raquel, foi
por apreciar sua índole, sua moral. Mas eu pensei em avisá-los antes, evitando alguma surpresa. Mesmo
que não gostassem da minha decisão estariam cientes de que você moraria comigo por algum tempo, e
pronto! Eu já tinha isso em mente! O que mudou é o fato de você estar aqui, eu não tê-los avisados por
falta de tempo, pois tudo foi muito rápido e, a qualquer hora, eles poderem chegar aqui sem saber o que
está acontecendo. Não quero que você se sintaconstrangida, nem que eles a julguem mal. Tenho certeza
que você entraria em pânico numa situação desse tipo por se sentir humilhada, ou coisa assim, entende?
Vou falar com eles. Ou melhor, vou avisá-los queestá morando comigo. Se vão entender ou não, se vão
aceitar ou não essa situação, é problema deles. Tenho que fazer a minha parte.
Por que está fazendo isso, Alexandre? ela perguntou.Seus olhos se encontraram e ele,
sinceramente, falou decidido:
Porque eu gosto muito de você, Raquel.
Você não pode... murmurou ela.
Por quê? questionou seguro de si, inalterável.
Não quero que se magoe comigo.
190
Como é que você me magoaria? Por acaso pretende me trair?Mentir para mim? Ofender-me com
agressões ou palavras? Somente essas coisas me decepcionariam muito.
Raquel tinha um nó na garganta. Com a voz trêmula, argumentou acanhada:
Não quero que se apegue a mim... Não quero que se apaixone,jamais poderei corresponder à
nobreza dos seus sentimentos.
Olhando com firmeza e austeridade, ele afirmou:
Raquel, quero que uma coisa fique bem clara: jamais eu farei algopara você ou por você com algum
interesse próprio ou segundas intenções. Quem pensar isso estará me ofendendo. Não faço isso nem
porvocê, nem por ninguém, entendeu? Se eu a ajudar, será por vontade própria e não para ter algo em
troca. Se você acredita que eu tenho algum sentimento nobre, deve reconhecer que a nobreza de um
amorfica evidente pela falta de interesses que escravizam. Tomando coragem, admitiu imperturbável:
Não vou negar que gosto muito devocê, Raquel. Não posso mentir para você, que foi tão sincera
comigo.Um dia, se descobrir que gosta de mim e quiser ficar comigo, será porsua livre escolha, jamais irei
pressioná-la e aproveitar-me da situação por precisar da minha ajuda. Isso seria agredi-la. Quando estiver
bem estabilizada, se quiser, sinta-se à vontade para ir embora daqui, entretanto só gostaria que
continuássemos amigos, se essa também for sua vontade.
Alexandre silenciou.
Ela ficou parada e quase incrédula. Não sabia o que pensar. Como poderia haver alguém como ele? Como
ele poderia querê-la consigo, enfrentando dificuldades com a própria família, em troca de nada? Raquel
sentiu nos olhos de Alexandre uma ternura sem igual e, acima de tudo, um grande respeito. Seus olhos
brilhantes se concentravam na imagem do rapaz, que agora se nublava por causa das emoções. Sem
alternativa e constrangida ela chorou muito.
Entendendo seus sentimentos, ele a deixou expressar as emoções o quanto foi necessário. Alexandre era
capaz de compreender sua dor, seu
191
desespero, em meio a tantas dificuldades. As decepções, os maus-tratos, as baixezas das atitudes alheias
e tudo mais, machucavam o coração sensível de Raquel, que não conseguia alívio, não conseguia
esquecer. Vendo-a mais recomposta, ele perguntou:
Você está melhor? Ela respondeu com um balançar de cabeça e Alexandre propôs mais
animado: Lave o rosto e arrume-se. Nósvamos sair um pouco.
Eu não quero... avisou com voz fraca.
Sorrindo docemente para vê-la disposta, avisou procurando brincar:
Se não quer, vai morrer de fome. Porque não tem comida pronta e eu ia levá-la para almoçar.
Pizzaria não funciona no horário do almoço.
Procurando sorrir agora, ela falou:
Eu sei cozinhar. Posso preparar algo.
Com o quê? Já olhou a despensa? Após rir, explicou: Sabe,eu não dou muita importância
para a comida, sozinho eu nunca me preocupo. Bem, isso é algo que precisamos resolver e eu quero a
suaajuda. Agora, vamos! Vá se arrumar para sairmos, tá? Vamos dar umavolta, depois almoçamos. Mais
tarde eu a deixo aqui e vou até a casa dosmeus pais para conversar, certo?
Raquel concordou e foi se aprontar.
192
Capitulo 9
Sequelas de um trauma
Bem mais tarde, ao retornarem para o apartamento, durante o trajeto Alexandre percebeu que Raquel,
apesar de mais animada, ainda não se sentia à vontade com ele. Muito falante, o rapaz não oferecia trégua
ao silêncio.
Assim que chegarmos em casa, eu a deixarei lá e vou até a casa dosmeus pais. Você acha que
pode ficar bem?
Claro. Após pequena pausa, ela revelou triste e tímida: Alexandre, estou inconformada com
a ideia de morar com você. Tudo foi muito rápido. Sinto-me envergonhada...
Ora, meu amor, por quê? perguntou ele com expressão carinhosa, que não se deu conta, a
princípio, percebendo somente depois o que havia falado. Disfarçando, continuou como se nada tivesse
dito, só que procurava ser ponderado e vigilante. Sabe, Raquel, eu penso quemuitas vezes a maldade
está nos olhos daqueles que a vêem. Tem umapassagem de Jesus em que Ele diz: "A luz do corpo são os
olhos. Se seus olhos forem bons, todo o seu corpo será luz. Se seus olhos forem maus,todo o seu corpo
será tenebroso". Existem pessoas que só conseguem enxergar malícia, maldade. Essas são criaturas com o
coração tenebroso e sem valor. Não devemos nos preocupar com elas, temos coisas mais importantes para
fazer.
Não consigo parar de me preocupar.
Não pare de se preocupar, somente mude o foco, mude o objetivo da sua preocupação. Pense:
o que você tem de fazer primeiro na suavida agora?
Não sei direito.
Que tal tirar os documentos que roubaram?
É mesmo sorriu ao lembrar.
Então, mãos à obra! Verifique o que você vai precisar, onde terá deir... Isso é importante e é uma
preocupação saudável.
Vai dar tanto trabalho lamentou a moça.
Que nada! Pense diferente. Tenho certeza de que você não gostavada foto que tinha na sua
identidade, ou que a assinatura não saiu comodeveria. É a oportunidade que tem para mudar tudo isso.
Então, fique feliz com esse trabalho.
Raquel sorriu ao perceber que Alexandre tirava, de qualquer dificuldade, um bom proveito e com humor.
Dirigindo, vez ou outra ele a olhava sorrindo, enamorado com o jeitinho de Raquel. Ao chegar bem próximo
do prédio em que morava, ele exibiu primeiro um semblante sério, depois, vendo que não teria alternativa,
sorriu pela situação que iria enfrentar.
Teremos que ser calmos, rápidos, práticos e objetivos!
Por quê?
Está vendo aquele carro, ali? perguntou, apontando. É ocarro do meu pai. Eles têm as chaves
do meu apartamento e já subiram.
Raquel estremeceu. Pálida, não sabia como reagir, nem o que fazer. Alexandre, mais ponderado e racional,
avisou:
A essa altura devem ter olhado todo o apartamento. Viram acama montada no outro quarto, viram
as suas roupas... Minha mãe éágil nisso.
Raquel parecia ter empalidecido mais ainda, sentia-se tonta e ensurdecia. Alexandre, equilibrado,
disfarçava suas preocupações. Ele queria falar com seus pais sobre Raquel, mas longe de sua casa e sem
a presença dela, a fim de não constrangê-la, pois sabia que sua mãe faria inúmeras perguntas à "queima-
roupa".
Após estacionar o carro na garagem, indo em direção de Raquel, olhou-a nos olhos brilhantes, que exibiam
preocupação, e falou firme:
Aconteça o que acontecer, não tome nenhuma decisão precipitada. Não se desespere. Estarei do
seu lado, entendeu?
Raquel parecia aterrorizada, nem imaginava o que a esperava.
194
Vamos subir? pediu ele.
Ao entrarem no apartamento, Alexandre jogou propositadamente as chaves do carro sobre um console,
anunciando a sua chegada. Indo ao encontro de seus pais, ele os beijou, cumprimentando-os, em seguida
apresentou a amiga:
Essa é a Raquel!
Ela os cumprimentou com extrema timidez. Todos se sentaram e Raquel não parava de tremer, sentia-se
sufocada e passava mal. A fisionomia da mãe de Alexandre denunciava que ela já havia olhado por todo o
apartamento e, com certeza, encontrado as coisas de Raquel. Essa surpresa a incomodava, fazendo-a
sisuda ao conversar com o filho.
Fiquei preocupada, Alexandre. Disse que iria almoçar conosco!
Eu disse que avisaria se fosse, mãe respondeu resoluto.
Você não telefonou. Então eu liguei para cá e ninguém atendeu.
Eu saí com a Raquel, nós fomos almoçar fora.
Dona Virgínia olhou firme para a moça medindo-a com seriedade. Sem vencer a timidez, Raquel fugia ao
olhar, procurando socorrer-se em Alexandre. Ela esfregava as mãos suadas e não conseguia se acalmar,
sua aflição podia ser percebida.
A senhora, virando-se para o filho, comentou:
Liguei para o seu celular e a ligação só caía na caixa postal.
Ah! Veja disse consultando o aparelho , esqueci de ligá-lo.
Então foi isso! interferiu o pai, senhor Claudionor, mais ponderado e observador, pois já
percebera o desespero da jovem. Você sabe como sua mãe é, fica preocupada e faz uma tempestade
por nada.Num belo domingo de frio, quando eu poderia tirar uma soneca depoisdo almoço, ela fez questão
de me arrastar até aqui.
Querem um refrigerante? perguntou Alexandre, levantando-se e indo em direção da cozinha.
Não. Almoçamos quase agora respondeu a mãe.
Você aceita, Raquel? perguntou ele.
Não. Obrigada falou baixinho.
Voltando-se para a moça, a mãe de Alexandre argumentou:
195
O Alex ainda não nos falou de você.
Interferindo no assunto que se iniciara, Alexandre respondeu:
Eu não tive oportunidade, mãe. Aliás, hoje eu ia lá para falar sobre isso.
Não estou entendendo, filho disse a mãe. O que você quer dizer?
Raquel ia passar mal. Sentia-se gelar e um suor frio umedecia seu rosto e suas mãos. Seus lábios ficaram
brancos e Alexandre percebeu que algo estava errado com ela. A passos rápidos, ele foi até perto da amiga
e, sentando ao lado, segurou seu rosto pálido e frio, perguntando:
O que foi, Raquel?! Não está se sentindo bem?!
Ela não conseguia falar e ensurdecia, parecendo largar o corpo, cerrou os olhos. Amparando-a em si,
estapeando-lhe o rosto delicado vagarosamente, ele a chamava exibindo carinho, apesar da preocupação:
Raquel?... Abra os olhos. Raquel?
Dona Virgínia ficou assustada, sem saber o que fazer. O pai de Alexandre foi até a cozinha e retornou com
um copo com água, dizendo:
Dê-lhe isso.
Ela não vai conseguir beber, pai. Percebendo que Raquel não reagia, ele decidiu: Vou levá-
la para o quarto. É melhor que se deite.
Para o quarto?! exclamou a mãe em voz baixa, que o rapaz nempôde ouvir.
Tomando-a nos braços, Alexandre a levou para a suíte, colocando-a na cama. Sua mãe parecia confusa e
indignada com o que via. Seu pai se preocupou e foi atrás deles, procurando ajudar em alguma coisa.
Deitada, após alguns minutos, Raquel começou a se mexer vagarosamente, enquanto sua cor tornou a
voltar. O senhor Claudionor tirou-lhe os sapatos e ainda a cobriu com uma manta.
Alexandre, preocupado, ficou ao seu lado esperando que melhorasse, fazia-lhe um carinho vez ou outra. Ao
ver que Raquel tomava consciência, mais calmo, Alexandre falou:
Fique tranquila, Raquel. Está tudo bem agora.
Onde estou? perguntou desorientada e com leveza na voz.
196
No meu quarto tornou Alexandre.
Beba isso, filha pediu o senhor Claudionor, oferecendo-lhe ocopo com água. Homem
experiente, examinou-a com o olhar já reconhecendo sua fragilidade e delicadeza. Logo vai ficar melhor,
vocêficou nervosa.
Raquel pareceu só molhar os lábios, que agora começavam a ficar rosados.
Obrigada senhor... agradeceu ainda estonteada.
Raquel, preste atenção disse Alexandre firme. Está tudo bem. Fique aqui e se recupere. Eu
vou ali na sala. Preciso conversar com meus pais. Acredito que você teve um mal súbito de origem
emocional.Não é nada sério, mas qualquer coisa é só me chamar. E voltando-separa seu pai, ele pediu:
Pai, vem comigo, por favor.
Alexandre não percebeu, mas o homem, sem que Raquel visse, nas costas do filho, deu um largo sorriso e
esfregou as mãos, como quem prevê encrencas.
Ao chegar à sala, sua mãe o recebeu dizendo:
Alexandre, você tem que me dar uma explicação! O que está acontecendo aqui?! Não adianta
querer apresentá-la como sua namorada.Antes de chegarem eu encontrei bolsas com roupas dela lá no
seu armário! Vocês estão vivendo juntos?
Não.
Como não? Não minta!
Não estou mentindo, mãe. A Raquel está com problemas, não tem onde morar e vai ficar aqui por
uns tempos, só isso.
Ficar aqui?!
Calma, Virgínia. Nosso filho deve saber o que está fazendo.Inconformada, a mãe tornou firme:
Que moça aceitaria ficar morando na casa de um rapaz sozinho? De súbito, ela lembrou: E
ela desmaiou, por quê? Por acaso estágrávida?
Ora, mãe!...
Está? E, se estiver, tem certeza que é seu?
197
Mãe, por favor!
Alexandre! Onde você está com a cabeça?! Você sempre foi ajuizado e agora vai andar com
qualquer uma?!
Encarando sua mãe, ele revidou firme:
Raquel não é "qualquer uma" revidou, agora bem firme, encarando sua mãe. E quando eu
acreditei ter encontrado uma "moça defamília", como você dizia, fui traído, agredido, difamado e ainda
quase morri!
Isso é um absurdo! dizia a mulher, andando de um lado para o outro. Meu filho coloca para
dentro de casa "uma qualquer"!
Alexandre não suportou, respondendo veemente e firme:
Primeiro: esse apartamento é meu e eu me sustento. Segundo:eu, infelizmente, não tenho nada
com a Raquel. Terceiro: não admito ser recriminado dentro da minha própria casa. Sou bem crescido,
mãe.Ainda não percebeu?
Você merece coisa melhor!
Eu não tenho nada com ela! Dá para entender?! gritou Alexandre irritado.
Calma, Alexandre interferiu o pai. Não fique assim. Não adianta.
O rapaz começou a ficar alterado. Ele percebia seu coração acelerar descompassado. Sentando-se no
sofá, esfregou o rosto com as mãos, pois se sentia gelar. Enquanto dona Virgínia não parava de falar.
Aproximando-se, o senhor Claudionor perguntou-lhe em voz baixa:
Você está bem?
Estou, pai. Eu estou bem respondeu o filho quase sussurrando.Sua mãe nem percebeu, o outro
assunto era mais interessante para ela.
Virgínia, por favor, abaixe o volume da voz pediu o marido,mais ponderado. A mulher considerou
e o esposo tornou ainda maiscalmo: À primeira vista essa situação também me surpreendeu. Mas eu não
sei o que está acontecendo, não posso opinar. Não temos o direito de deixar o Alex mais irritado. Será
melhor irmos embora e deixar essa conversa para outro dia.
198
Como você pode ser tão frio?
Não sou frio, sou cauteloso, Virgínia. A moça está fragilizada evocê não dá nenhuma
oportunidade para que nosso filho se explique.Em uma coisa o Alex tem toda razão: ele já é bem crescido e
você não percebeu.
Essa moça não pode ficar aqui! insistiu a mãe.
Alexandre se levantou quase enfurecido e perguntou com voz baixa, pausada e forte, em grave tom,
encarando sua mãe:
Quem é que vai tirar a Raquel daqui?! Você?Incrédula, sua mãe se calou boquiaberta.
Acalmem-se vocês dois interferiu o pai, firme. Isso estáindo longe demais. E virando-se
para a esposa, decidiu: Virgínia,vamos embora. O Alex já está muito alterado por hoje e você precisa
se tranquilizar. Desse jeito vocês nunca vão se entender.
Isso é um absurdo! exclamou a mulher, agora chorando, saindo do apartamento sem se
despedir do filho.
Alexandre baixou o olhar, sentou-se no sofá e ficou calado. Aquela situação o deixou magoado, não queria
que aquilo acontecesse. Sentia-se mal. O senhor Claudionor se aproximou e disse bem calmo:
Outra hora, quando tudo se acalmar, conversaremos melhor, certo, filho?
Certo murmurou Alexandre, parecendo exausto. Em seguida argumentou: Pai, não pense
que estou sendo irresponsável. A Raquel está passando por uma situação difícil e eu quero ajudá-la. Eu
não poria dentro da minha casa uma moça inconsequente, volúvel e leviana. Acredite.
O pai pensou e perguntou, com modos simples:
Ela está grávida?
Não... respondeu agora, quase rindo^ porém angustiado.
Você gosta dela, filho?
Gosto muito, pai. Só que, infelizmente, não temos nada. Nunca se quer a beijei. Nem namorados
somos... Infelizmente, pois eu a queromuito, mesmo.
199
Vocês não se envolveram, por quê?
Agora não é um bom momento para eu explicar e... Sabe, a história é longa. Outra hora eu conto
tudo.
Só mais uma coisa. Preciso saber, pois me preocupo com você,com sua segurança.
Pode perguntar, pai.
Ela é casada ou teve algum companheiro de quem está fugindo?Alexandre sorriu e respondeu:
Não. Ela não tem família aqui. Brigou com o irmão, por causa dacunhada, e teve que sair da casa
deles. A Raquel trabalha comigo, eu aconheço bem. Acredite se quiser, mas ela nunca teve namorado,
não tenho motivo para me preocupar com isso.
Apesar de ser bem jovem, é difícil de acreditar que não teve umnamorado. Ela é muito bonita.
Bonita e delicada comentou o paisorrindo.
E, quando ia se retirando, ao beijar o filho, este ainda falou:
Obrigado, pai. Mas pode acreditar sorriu.
Você deve saber o que está fazendo, Alex.
O rapaz caminhou até a porta e observou o pai ir embora. Ao vê-lo partir, ele entrou e foi atrás de seus
remédios, pois acreditou que precisasse deles.
E Raquel, como estaria? Indo até o quarto, entrou chamando por ela. Raquel saía do banheiro com uma
toalha que segurava, secando o rosto.
Raquel, o que você tem? Está pálida!
O almoço voltou... Sentando-se na cama, ela falou desolada: Eu escutei quase tudo.
Desculpe-me, mas não teve como não ouvir.
Eu sei.
Alexandre, que também se sentou, jogou-se para trás e ficou olhando para o teto, sem saber o que fazer.
Aos poucos o sono o arrebatou. Ao vê-lo dormindo, Raquel não quis incomodá-lo. Cobriu-o com uma
manta, foi para a sala onde se encolheu no sofá e, por algum tempo, ficou chorando em silêncio.
200
Bem mais tarde, recomposto, mas ainda chateado, Alexandre se levantou e eles ficaram na sala
conversando e procurando se distrair com a televisão. O rapaz, não suportando a curiosidade que lhe
assaltava a mente, perguntou:
Raquel, desculpe-me tocar nesse assunto novamente, mas... vocêtem vinte e um anos e...
Vinte e dois. Completei vinte e dois na semana passada ela respondeu, interrompendo-o.
Você fez aniversário e não me falou nada?! Só por vingança, não vou avisá-la sobre o meu
brincou sorrindo e surpreso.
Não fui acostumada a comemorações no dia do meu aniversário revelou com meio sorriso.
Sempre foi uma data comum lá emcasa. Ninguém nunca se importou.
Ele lamentou em pensamento o modo como ela havia sido criada, mas não disse nada. Aos poucos
percebia que Raquel tivera uma vida sem carinho, sem compreensão e com muitos maus-tratos. Isso era
uma pena, pois via em Raquel uma pessoa meiga e atenciosa. Abandonando aqueles pensamentos,
perguntou o que era de seu interesse:
Com quantos anos sua filha está?
Três. Na véspera do Natal ela completará quatro anos.
Falar sobre ela a magoa? tornou após breve pausa.
Não respondeu com modos simples. Se bem que não estouacostumada a conversar sobre
isso. Mas não fico triste quando penso naBruna,
Se você tivesse a oportunidade de vê-la, aproveitaria?Ela ficou em silêncio, refletiu, depois
respondeu:
Tenho medo.
Do quê?
Não sei, Alexandre. Às vezes penso muito nisso. Desejo vê-la e...Quando isso acontece com
intensidade, tenho sonhos ruins.
Que sonhos?
Eu a vejo no casebre, sendo agredida por ele... revelou deprimida.
201
Já pensou em procurá-la e saber como ela está?
Sim, muitas vezes. Mas não sei como vou encará-la, eu... Não seise tenho forças, coragem.
Atualmente não estou conseguindo nem suprir as minhas necessidades, se a tiver comigo então...
Ela tem boa saúde?
Não sei. Às vezes imagino que não, por ser filha do avô.Alexandre acreditou que sua posição de
arrimo a obrigava responder
às suas perguntas. Ao perceber que a amiga se entristecia, mudou de assunto, mas começou a se
determinar a aproximar Raquel da filha.
Amanhã, lá no serviço, não se manifeste. Finja que nada aconteceu. Nem olhe para Alice.
Nem sei como vou me comportar. Você viu hoje, aqui com seuspais? Além da maior vergonha,
eu o deixei numa situação difícil.
Aquilo ia acontecer de qualquer forma. Não tem problema.
Sua mãe está magoada.
Ora! Eu também. Por que ela não foi mais ponderada para ouvir e acreditar em mim? Após
pequena pausa, ele prosseguiu com o outro assunto: Mas, sabe, lá no serviço, aja normalmente. Vão
fazerperguntas. Talvez a Alice faça fofocas ou nos vejam chegando juntos...
E se alguém fizer perguntas?
Quando queremos as coisas não vamos pedir a ninguém, certo?Então não temos satisfações a
dar. Se alguém perguntar, diga: "Estamos morando juntos. Por quê?". A pessoa vai ficar sem graça e não
terá mais o que falar.
Que situação chata!
Ora! Por quê? Se prepare, pois é isso o que vou dizer, tá? E não vejo a hora! Raquel arregalou
os olhos e ele riu gostosamente, se divertindo com a situação. Ainda afirmou: Sou capaz de dizer
que vamos nos casar só para ver a cara do pessoal.
Não! Ficou louco?!!!
Ah! Fiquei, sim! afirmou ele sorrindo, desfechando com umagargalhada e completando: Aos
loucos ninguém pede satisfação. Pode ter certeza de que não vão nos incomodar se eu falar assim.
202
Não faça isso, Alexandre. Já estou tão constrangida por estar aquicom você e... pediu
preocupada.
Está sendo difícil me acostumar e encarar a todos, por favor.
Isso é só no começo. Depois passa.
Raquel estava inquieta, enquanto ele a olhava sorrindo e com ternura.
Na manhã seguinte, ela achou estranho sair de casa com Alexandre.
Chegando ao serviço, ela exibia-se nervosa ao pensar que teria de assumir uma vida incomum que os
outros julgavam e que eles tinham. Pela manhã tudo fora normal. Na hora do almoço, Alexandre esperou-a
para que fossem juntos, mas outra colega, sem pretensões, convidou-se para fazer companhia. Essa moça
não sabia o que estava acontecendo. E no restaurante, enquanto almoçavam, a colega perguntou:
O que houve com seu rosto? Você caiu, Raquel?
Fui roubada contou cabisbaixa.
Quando?!
Sexta-feira.
Como?
Alexandre percebeu o embaraço de Raquel, que olhou para ele pedindo socorro, e interferiu:
Ela ia para casa, dois pivetes puxaram sua bolsa e um deles bateu-lhe com algo que não pôde
nem ver.
Nossa! Também, hoje em dia não temos sossego em lugar algum.Sabe, eu também já fui
roubada. Puxa! Que sensação horrível! Fiqueitão traumatizada que não queria sair mais de casa. Eu
pensava que iaacontecer de novo. Ai, que horror! Você também está assim, não é?
É. Dá um medo... Fiquei muito abalada, sim.
Ah! Então foi por isso que pegou carona com você, não foi, Alexandre?
203
Os olhos de Raquel se alteraram e em seu brilho via-se a preocupação da moça ao saber que a colega os
viu chegarem juntos. Alexandre, prazerosamente, como se aguardasse por aquela pergunta, alardeou sem
se constranger:
Não. A Raquel não pegou carona por causa disso. Sabe o que é,Laura, eu e a Raquel estamos
morando juntos. A partir de agora você vainos ver sempre próximos.
Estampando um sorriso que não conseguia conter, Alexandre ficou observando o susto que a colega levou
com a notícia, quase se engasgando com a comida. Raquel enrubesceu e não conseguiu dizer nada.
Juntos?! Você e a Raquel?!
Sim, claro! Por quê? indagou Alexandre, com ar irônico.
Ora, Alexandre, desculpe a sinceridade disse sorrindo e atrapalhada , mas acreditávamos
que você seria inconquistável! E, voltando-se para a colega, completou: Você, hein, Raquel! Quem
diriaque, tão recatada, conseguiria conquistar o Alexandre.
Talvez seja por isso mesmo, por ela ser recatada revidou ele.
Esta nada respondeu nem mesmo sabia como agir. Alexandre rapidamente mudou o rumo do assunto e a
conversa continuou por mais tempo até terminarem a refeição. Depois, quando se viu sozinha com o amigo,
Raquel advertiu sussurrando:
Ficou louco? Você não deveria ter dito isso.
O que eu falei de errado? Nós não estamos morando juntos? Ao vê-la sem resposta e tímida,
ele esclareceu: Raquel, se você ficaroferecendo explicações e dizer que não há nada entre nós, que só
estamosnos ajudando, ninguém vai acreditar e vão ficar falando mais ainda.Assim como fiz, assumindo
tudo, de uma vez, o pessoal vai fazer menos alarido. Acredite em mim.
Ela não gostou da atitude do colega, não estava preparada para aquilo, mas não disse nada.
Mais tarde, Alice e Rita conversavam a respeito da situação.
Viu só? reclamava Rita, inconformada. Sua ideia atirouRaquel nos braços do Alexandre.
204
Calma, Rita. Você não perde por esperar. Eu já disse o que precisava dizer ao Alexandre. Talvez
ele não tenha me levado a sério, masquando souber da verdade... E para isso você terá de colaborar.
O que você disse a ele?
A Raquel tem uma filha e...
Filha?! A Raquel?!
Viu? Até você pensava que a moça fosse santa? Percebe agora que ela engana todo mundo?
Vem cá e me conta essa história, direitinho! pediu Rita interessada.
Do seu jeito e com a sua versão, Alice contou para a colega o que ocorrera com Raquel, deixando dúvidas
sobre a sua moral.
Então ela vem dizendo que a menina é filha do tio. Se for, o queeu duvido muito, só se ela o
seduziu. Ele é um homem tão digno,íntegro! Ninguém pode duvidar dele. Sabe, a Raquel foi burra, ela
poderia acusar qualquer um, menos aquele homem. Eu o conheci. Acho que nem em sonho ele faria algo
desse tipo.
E aí? O que podemos fazer?
Calma, Rita. Primeiro, vamos deixar a Raquel bem irritada. Eledisse que fará qualquer coisa por
ela. É agora que vamos ver se ele écapaz de suportá-la dentro de casa, com as crises emocionais, com
ospesadelos. Eu já vi isso acontecer. Quando Raquel fica nervosa, acordaaos gritos. Fica inquieta e
chorosa. Alice riu sarcasticamente e alertou: Depois, se ela perder o emprego...
Nossa!
Claro, Rita! Pense comigo, ela vai infernizar a vida do Alexandre.Ele vai se encher dela. Assim,
quando ela arrumar outro lugar para trabalhar, logicamente vai arrumar outro lugar para morar e o
caminhoestará livre para você. Temos que fazer o Alexandre ficar envergonhado por estar com ela.
Como?
Quem é que quer uma mulher com uma filha? Independente elivre como ele sempre foi, ao se ver
com encargos...
205
E como faremos isso?
Siga as minhas instruções e seja paciente. Só que precisaremos da ajuda do Vagner.
As duas confabularam por longo tempo. A insegurança de Raquel contava pontos positivos para Alice e
Rita. Raquel sempre se sentia temerosa, esperando que alguém a criticasse. Alexandre, por outro lado,
parecia gostar daquela situação.
Na primeira noite em que eles saíram juntos do serviço, eles foram ao mercado para suprir a despensa do
apartamento, pois estavam necessitando de algumas coisas. Juntos, ao fazer as compras, Raquel sentia-se
mais àvontade, sorria e correspondia a algumas brincadeiras de Alexandre, que não ficava quieto. Ele
estava encantado. Intimamente sentia-se satisfeito e feliz por tê-la consigo, imaginando, em seus
pensamentos, como se fossem casados. Aliás, quem os via pensava que fossem marido e mulher.
Chegando em casa guardaram as compras e jantaram. Sem ter mais o que fazer se sentaram no sofá e se
entreolhavam sem dizer nada. O rapaz exibia-se satisfeito e não conseguia tirar o sorriso do rosto,
enquanto ela se sentia encabulada ainda. Algum tempo depois a moça quebrou o silêncio e lembrou:
Não seria bom você ligar para sua mãe? Creio que ela se sentiriamelhor, não acha?
Alexandre concordou e, ao telefonar, foi atendido por sua irmã Rosana.
Alex? E aí?
Tudo bem! E você?
Estou jóia! respondeu a irmã, com ar de riso ao perguntar: Quanto a você deve estar bem
mesmo! Melhor do que eu, não é, seu safado?!
Alexandre ficou embaraçado por ter Raquel a seu lado e respondeu com meias palavras:
Não, Rô. Não é nada disso.
206
Meu!!! exclamou rindo ao se divertir: A mãe tá uma fera!Você nem imagina.
Sábado vou aí e te conto tudo respondeu sem jeito.
Se você não vier, vou até aí acordá-los!!! Entendeu? Quero saber dessa história, direitinho. Seu
safado! Mentiroso! tornou Rosana.
Eu?!... perguntou Alexandre não suportando e rindo.
Você mesmo! Disse que não queria mais ninguém na sua vida eeu, idiota, acreditei.
Alexandre ouvia e sorria se divertindo com os comentários de sua irmã mais nova. Rosana ria também e o
acusava, pois sabia que ele não poderia responder:
Seu sem-vergonha! Cachorrão! Safado! Até chorei por sua causa,por sua desilusão, e agora, que
está aí numa boa, nem me diz nada, fuia última a saber. A tristeza você divide, mas a alegria não quer
dividirnão, né? Canalha!
Alexandre gargalhou, pois não podia revidar. Depois respondeu:
Você não sabe de nada, Rô. Cale a boca, vai!
Ah! Sei sim! O pai até falou que ela é bonita!!!
É mesmo? Mas façamos o seguinte: sábado eu vou aí e a gente conversa, tá? Sem esperar
pela resposta, perguntou: E a mãe, está aí?
Não. Ela e o pai saíram à tardinha para ir na casa do tio Rômulo.Até agora não voltaram. Você
sabe como é, quando eles vão lá...
Ah! Eu sei. Então deixa. Outra hora eu falo com ela.
Se ela deixar. Porque normalmente é só ela quem fala.
Está bem, Rosana. Um beijo!
Outro. E manda um beijo para a Raquel também!O irmão se surpreendeu e perguntou:
Já sabe do nome, é?
Ô!!! Não parei de ouvi-lo desde que chegaram de sua casa.
A mãe está chateada?
Ela ficou magoada por causa da surpresa pela forma como faloucom ela. Mas, você sabe, isso
passa. Daqui a pouco ela esquece. Ela émãezona e tem um coração enorme.
207
Está certo, então, Rô. Outra hora eu ligo. E, pode deixar, voumandar seu beijo para ela. Após
desligar, Alexandre disse: Minhairmã te mandou um beijo.
Raquel ficou sem jeito. Ele começou a fitá-la com suave expressão no semblante que o fazia quase sorrir.
Enrubescida e encabulada, a colega perguntou baixinho:
O que foi?
Ele alargou o sorriso e respondeu:
Estou imaginando como será sua filha.
Como assim?
Acho que a Bruna Maria deve ser muito parecida com você. Pausa se fez e ele concluiu:
Traços finos, suaves... Delicada. Raquel abaixou a cabeça e ele falou sorrindo: Envergonhada.
Pare, Alexandre pediu Raquel com modos simples.
Deve ser tão gostoso ter um filho ou filha disse, agora parecendo sonhar. Acho que quando
temos uma criança de quem cuidamos,orientamos, ensinamos, nos preocupamos... Amamos, estamos
transmitindo a ela a nossa herança moral.
Como assim?
Eu penso que a herança genética pouco importa, mas o que transmitimos a alguém de bom, de
útil, de amor é o que podemos chamar deherança moral, isso será perpétuo. Os bons princípios, a auto-
estima, o respeito a si próprio e aos outros são coisas importantes e marcantes para a evolução de alguém.
Você seria um bom pai.
Eu vou ser! Gosto muito de crianças e pretendo ter filhos.Raquel esboçou leve sorriso forçado e
abaixou o olhar.
E você, Raquel, gosta de crianças?
Gosto respondeu, cabisbaixa. Ajudei a cuidar de meus sobrinhos quando eles eram
pequenos...
Alexandre não se intimidou e prosseguiu:
Por isso eu estava imaginando agora como sua menina deve ser umagracinha! Poucos
segundos e ele tornou: Não quer vê-la, Raquel?
208
Ao perceber a amiga escondendo os olhos que estavam embaçados pelas lágrimas que quase rolaram,
Alexandre foi para o sofá em que ela estava e colocou-se a seu lado. Curvando-se, tentando olhar em seus
olhos, falou com ternura:
Desculpe-me, Raquel. Não fique assim.Com a voz embargada, ela respondeu:
Eu tenho vergonha, Alexandre. Não me acostumo...
Como assim? perguntou o amigo, generoso.
Secando as lágrimas com as mãos, ela respondeu com a voz pausada pelo choro:
Solteira... com uma filha, resultado de um... Um soluço a fezparar, depois continuou: Agora,
morando de favor com um homem que mal conheço, que humilhação!
Alexandre tentou abraçá-la ao puxá-la para perto de si, mas Raquel ofereceu resistência e o empurrou.
Respeitando sua vontade, ele não a forçou, mas acariciou-lhe o cabelo e, tentando confortá-la, falou:
Raquel, um filho, vindo por quais meios for, é uma bênção.
Não... não é assim...
Como, não? Sua filha deve ser uma menina linda. Deve ser umacriaturinha delicada, frágil e que
necessita da sua atenção, do seu carinho, do seu toque, contato. Como deveria ser gostoso poder abraçá-
la... E sorrindo, ele admitiu: Deve ser bom pegá-la no colo, fazê-la rir,beijar, morder devagarzinho...
Eu me arrependo... respondeu chorosa perdendo as palavras.
Por tê-la deixado no orfanato?
Sim. Mas quando eu penso...
Se você se arrepende por tê-la deixado, você é uma criatura maravilhosa e, por ser assim, sua
filhinha merece tê-la como mãe. Vejo quenão fica pensando em como a concebeu. Isso significa que a
Bruna é sósua. Você a quer bem?
Como assim?
Sente algo bom por ela? Quer que a Bruna seja feliz?Sem titubear, Raquel respondeu:
209
Lógico! Encarando o amigo nos olhos, ela completou: Não quero que ela tenha a vida que
tive!
Então ela precisa de você, Raquel. Só assim será verdadeiramente amada. Poderá ensiná-la,
orientá-la. É tão importante termos uma boa mãe. Você mesma sabe disso.
Lágrimas copiosas desciam pela face de Raquel sem que ela pronunciasse palavra alguma. Seus
pensamentos eram de arrependimento por ter abandonado a filha. Agora as palavras de Alexandre a
faziam desejar a filhinha consigo, mas tinha medo pelo futuro incerto. Percebendo que a amiga estava
atordoada e com o coração oprimido, instintivamente ele a puxou para um abraço. Raquel não o repeliu,
mas estava chorando, trêmula de medo. Alexandre percebeu que ela era carente, nunca fora acostumada
ao contato carinhoso que socorre e conforta o coração. Afastou-a de si e beijou-lhe o rosto, momento em
que ela abaixou a cabeça. Abordando outro assunto para distraí-la, ele avisou:
A Rosana quer conhecê-la, Raquel.
Ai, meu Deus! Estou tão envergonhada. Todos pensam que estamosvivendo juntos.
Ora! E não estamos? perguntou rindo com gosto.
Estamos, mas... Não é assim como estão pensando.
Preciso, o quanto antes, arrumar uma casa, e...
Como? riu novamente.
Ora, Alexandre, não me confunda disse mais à vontade.
Raquel, fique tranquila. "Dê tempo ao tempo." Você nem existe para alugar uma casa.
Como assim, "eu não existo"?
Dê-me sua identidade!
Ah, eu vou tirar outra.
Mas agora, já, nesse exato momento, você não tem. Isso significaque não adianta pensar em
uma casa sem antes ter o principal.
O principal mesmo é o dinheiro.
Viu? Então primeiro cuide de tirar seus documentos, depois faça uma reserva em dinheiro e a
casa fica na fila.
210
Falando em dinheiro, amanhã acertamos as despesas das com-
pras.
Você não ficou sem o cartão do banco?
Não. Não costumo andar com cartão nem cheque. Estão aí, naquela pasta que a Alice colocou
entre as minhas coisas. É uma pasta dedocumentos.
Que sorte! ele exclamou.
Então, amanhã acertamos as despesas...
Raquel, se falar isso novamente... interrompeu-a franzindo o semblante de brincadeira.
A semana foi passando calmamente. No sábado, Alexandre decidiu ir até a casa de seus pais.
Vamos comigo, Raquel?
Só se for carregada! exclamou imediatamente descontraída.No mesmo instante, Alexandre
correu em sua direção e a agarrou
com força, levantando-a do chão, ao mesmo tempo que fazia um barulho com a garganta, como se
rosnasse, tentando brincar como se fosse carregá-la no colo. Sem esperar, Raquel deu um grito
horrorizado. Empurrando-o com toda sua força, entrou em desespero, acreditando estar sendo atacada.
Alexandre a largou rápido, dizendo:
Calma, Raquel! É brincadeira. Perdoe-me, pelo amor de Deus.
A moça empalideceu pelo susto, seus joelhos dobraram, ela se sentou sobre as pernas e em seguida no
chão, chorando muito. Ajoelhando-se ao seu lado, Alexandre não sabia o que fazer.
Você está se sentindo bem? perguntou preocupado. Raquelnão conseguia falar, seus lábios
estavam brancos e ela ensurdecia. Vem, levanta, sente-se aqui.
Não conseguia reagir. Ao tentar levantar, seus joelhos se dobravam e o amigo teve que segurá-la.
Alexandre a pegou e acomodou-a no sofá.
211
Abaixe a cabeça. Segurando-lhe na nuca, pediu: Force paralevantar. Sua pressão deve ter
caído.
Ele também se sentia mal, mas não disse nada, procurando ficar firme para ajudá-la. Indo até a cozinha,
tomou seu medicamento sem que ela percebesse e voltou em seguida para a sala, levando um copo com
água açucarada para ela. Ao pegar o copo, suas pequenas mãos tremiam e mal conseguia segurá-lo,
devolvendo-o após poucos goles. O restante Alexandre virou e tomou quase num só gole, largando-se, em
seguida, no sofá ao lado da amiga. Raquel nem percebeu, ela estava muito abalada. Debruçando-se sobre
o braço do sofá, ela escondeu o rosto entre os seus braços e procurou se acalmar. Ao se recompor ele se
aproximou e perguntou:
Você está melhor?
Estou. E com voz fraca, pediu: Por favor, me desculpe,Alexandre. Devo ter-lhe assustado
também.
Sou eu quem lhe devo desculpas. Eu estava brincando, tentei...Perdoe-me, não pensei que fosse
assustá-la. Estou acostumado a brincarassim com minhas irmãs e...
Tudo bem. Já passou sorriu meiga. Mas ao percebê-lo pálido,preocupou-se: Você está
bem?
Estou, sim.
Não sei como aconteceu. Tudo foi tão rápido, instintivo.Alexandre, arrependido por ter brincado
daquela forma, apiedou-se
ao lembrar do estado de pavor que ela exibiu em desespero aflitivo, que parecia custar a passar. Comovido
ele tentou abraçá-la, mas ela o recusou:
Por favor... sussurrou.
Levantando-se e tentando fazê-la reagir, perguntou sorrindo:
Não quer mesmo ir comigo à casa dos meus pais?
Raquel, usando seu senso de humor pela primeira vez com o amigo, perguntou:
Você tem um revólver em casa?
Por quê? respondeu desconfiado, tentando entender a brincadeira.
212
Porque eu ia responder: só vou lá morta.
Por isso não! avisou sorrindo. Estamos no sexto andar. Aqueda é boa e ainda me poupa de
carregá-la lá para baixo.
Eles estavam mais tranquilos e ele perguntou:
Vai ficar bem aqui sozinha?
Sim, eu vou. Não se preocupe afirmou com sorriso doce.
Ligue o rádio ou assista à televisão. Se ocupe com alguma coisa.Precisando, ligue-me.
Sorrindo, lembrou: Ah! Por favor, atenda otelefone, viu?
Sim, senhor! brincou mais à vontade.
Antes de sair, Alexandre se aproximou e, ao se despedir, deu-lhe um beijo no rosto. Ela se sentiu surpresa,
mas não disse nada, fora rápido demais.
Ao vê-lo partir, sentindo-se só, ficou preocupada e confusa. De imediato uma saudade lhe apertava o
coração. Seus pensamentos lutavam com o preconceito no qual fora acostumada, com a situação
humilhante em que se reconhecia e com a nobre sinceridade de Alexandre, que a fazia acreditar no amor
verdadeiro e incondicional. Raquel haveria de vencer seus medos e passar a deixar fluir suas emoções.
Mas como? Sóconhecera o desprezo, a solidão e as agressões que lhe cravaram profundas marcas
dolorosas.
Seu coração, apesar de tudo, era repleto de bondade. Ela não tivera a oportunidade de sonhar e conhecer
alguém que a amasse realmente, que, com generosidade e ternura, traduzisse seus sentimentos em
carinho, delicadeza e atenção.
Após a saída de Alexandre, sensibilizada, Raquel chorou por não conseguir vencer os traumas que lhe
castigavam os mais íntimos resquícios das lembranças, vivos a todo instante.
Já na casa de seus pais, Alexandre foi recebido com muito entusiasmo, como sempre, por sua irmã mais
nova. Apreensivo, cumprimentou
213
sua mãe, que agora parecia não estar tão nervosa como da última vez em que a viu. Após conversarem
um pouco, dona Virgínia perguntou sobre sua amiga:
E a Raquel?
Está bem. Eu a convidei para vir até aqui, mas ela não quis respondeu cinicamente,
aguardando a reação de sua mãe.
Rosana, que estava próxima, escondeu o rosto, que estampava um riso. Demonstrando-se calma, a mãe
argumentou:
Até agora, Alex, não consigo entender.
Virando-se para sua irmã, que se entretinha com algo desnecessário naquele momento só para ficar ali,
Alexandre pediu gentilmente para ficar mais à vontade com a mãe ao conversar:
Rô, eu precisava falar um pouco com a mãe, pode nos dar umtempo? Depois a gente conversa.
Já estou saindo! avisou a moça, sem ressentimento.
Na cozinha, sentando-se em frente de sua mãe, Alexandre explicou:
Mãe, a Raquel trabalha comigo há quase dois anos. Ela sempre foi uma moça quieta e bem
comportada. É difícil encontrar alguém assim.
Dona Virgínia ouvia atenta, sem o interromper, apesar dos pensamentos intrigantes que lhe ocorreram, e o
filho continuou:
Sabe, acho que a Raquel foi a única moça que não quis me conquistar lá na empresa, porque o
resto... Breve pausa e ele continuou: Bem, aconteceu assim: a família dela mora em uma fazenda no
RioGrande do Sul. Aqui, ela morava com o irmão e a cunhada. A Raquel,nos últimos tempos, não vinha se
dando muito bem com a cunhada.Eu a conheço também, ela trabalha lá com a gente e é uma
pessoaterrível. Houve uma discussão e a Raquel precisou sair da casa deles. Acunhada inventou certas
calúnias sobre ela e... Bem, eu acabei levandoa Raquel para morar comigo até ela arrumar um lugar para
ficar. Nós somos só bons amigos. Sempre fomos. Eu quero ajudá-la, e é sem interesse algum. Acredite.
Não somos namorados, não somos nada. Pra vocêter uma ideia, nunca sequer nos beijamos.
214
Ora, Alex!
Segurando o rosto de sua mãe, ele tornou a dizer, olhando-a nos olhos:
Nós nunca nos beijamos. Eu não mentiria para você. Por quefaria isso? Seria até mais fácil eu
dizer que estamos vivendo juntos. Masnão. Isso é, junto nós estamos, mas não temos nada. Eu respeito
muitoa Raquel e a quero muito bem.
Ela não está grávida?
Ora, mãe! Que absurdo! Claro que não! De onde tirou esta ideia?
Então por que passou tão mal a ponto de desmaiar?
Raquel é muito sensível, frágil e também não está de acordo com essa situação. Sua criação não
foi liberal, ela veio do interior. Não pense que ela está feliz ou à vontade por estar lá em casa. Está é
muito constrangida, aflita principalmente depois de tudo o que aconteceu entre ela e o irmão, de quem ela
gosta tanto. Além disso, ela foi roubada, uma situação dessa sempre é traumatizante, lhe bateram e até
machucaram seu rosto. Acho que pôde ver.
Quantos anos ela tem?
Vinte e dois.
Alex, você não está mentindo para mim?
Não, mãe afirmou categórico ao encará-la.
E se de repente essa menina fica grávida? E se ela disser que ofilho é seu?
Ele riu e falou:
Hoje em dia existem exames excelentes para confirmar a paternidade. Mas esse não será o
problema, tenho certeza. E outra... Quer saber a verdade mesmo? Para ser sincero, estou gostando muito
da Raquel. Gostando mesmo! falava baixo, mas com inflexão firme. Você entrou lá em casa e eu sei
que examinou meu apartamento, por isso deve ter visto, no outro quarto, a cama armada em que estou
dormindo. Não temos nada, e sabe por quê? Porque é ela quem não quer.Há tempos eu gosto da Raquel
e... Por mim... Alexandre deteve aspalavras suspirando profundamente ao exibir certa decepção.
Refletin-
215
do um pouco e demonstrando seus mais íntimos sentimentos, concluiu: Como eu disse, não temos
nada, infelizmente.
Como assim? Como é que ela não o quer?
Eu me sinto muito atraído pela Raquel. Não é pelo fato de ela serbonita, é seu olhar, seu jeito
meigo, seu modo recatado de ser. Não seise você vai entender... Acontece que ela não se permite, ela...
Como assim? Por que alguém iria recusá-lo, Alex? Você é jovem,bonito...
Mãe, mãe, não é nada disso. Acontece que ela não é uma moçafácil, tem boa moral e não sai
com rapazes como muitas outras. Pronto!É isso.
Será, Alex?
O filho olhou para ela sentindo que seria difícil fazê-la entender. Até que conseguira muito por tê-la feito
ouvir tanto.
Vamos fazer o seguinte, mãe: procure conhecê-la e tirar as suaspróprias conclusões. Após
poucos instantes, mais animado, argumentou: Pronto! Agora que já expliquei tudo, deixe-me ver a
Rosana,preciso falar com ela.
Dona Virgínia ficou intrigada e insatisfeita com aquela situação, mas decidiu não brigar mais com o filho,
isso iria afastá-lo dela.
Ao entrar no quarto de sua irmã, Alexandre foi logo lhe atirando uma almofada e dizendo, descontraído e
animado, brincando como sempre fazia:
Safada! Sem-vergonha! Você sabia que ela estava do meu lado ecomeçou a falar aquilo tudo, né!
Rosana se encolheu e caiu na gargalhada, enquanto o irmão se atirou sobre sua cama rindo junto.
Conte-me, como ela é?!
Ele, abraçando um travesseiro, com o olhar brilhante e perdido, parecendo sonhar ao esboçar um sorriso,
respondeu com uma única palavra:
Linda!
Loira? Morena? Baixa? Alta?
Adivinha?
216
Morena?
Errou respondeu animado e logo continuou: Seus cabelossão loiro-escuros.
Ela tem muito cabelo ou é como esse "cabelo de milho" que eutenho?
O irmão riu e falou:
Os cabelos são longos e um pouco ondulados nas pontas, muitobonitos!
O que mais? perguntou Rosana, sorridente e interessada.
Ela não é muito alta. Deve ter 1,60... Ah! É baixinha...Rosana atirou-lhe uma almofada, dizendo:
Cachorro! Tá me chamando de baixinha, é?Ele riu e continuou:
E delicada, doce, recatada, fala baixo, tem um sorriso bonito...Lindo! Seus olhos são castanhos
bem claros, cor de mel ou de amêndoas.
Ah!... Eu quero conhecê-la!... disse Rosana, com modos manhosos, rolando sobre algumas
almofadas que estavam num canto.
Você vai conhecê-la avisou sorrindo.
O que mais? Você falou das qualidades, diga o que você não gosta. Ou ainda não encontrou
nada?
Alexandre parou e refletia, quando a irmã falou:
Você está com uma cara de safado!
Já sei do que eu não gosto!
Do quê?
De não poder me aproximar dela, de não poder abraçá-la quando quero e como quero. Você sabe
o quanto sou "grudento".
Deixe de ser mentiroso! Vivendo juntos, lá, sozinhos... Quer queeu engula essa história também?
Só estamos dividindo o apartamento, Rô, nada mais.
Nada?!!! Você?! Impossível!
Não temos nada, Rô. Mais uma vez vou repetir: Eu nunca abeijei, nunca tive nada com ela...
sussurrando a seguir: Infelizmente.
217
Por que, Alex? Ela é casada?
Não, Rô. Não é, não! Respirando fundo, pediu: Não diga nada para a mãe. Eu não disse
tudo para ela. Foi assim... Após contarque Raquel brigou com o irmão e teve de ir morar com ele por
falta dealternativas, Alexandre revelou: Fora isso, ela passou por alguns problemas, bem graves, e isso
a inibe de qualquer contato... Intimidade...
Mais séria Rosana perguntou:
Verdade? Vocês não ficaram? Nem namoram?
Não respondeu firme, encarando-a sério.
Que problemas graves foram esses, Alex? preocupou-se.
Imagine o pior.
Nesse instante, os olhos do irmão marejaram com lágrimas que quase rolaram. Ele se deitou e ficou
olhando para o teto para impedir o choro. Rosana se levantou de onde estava, sentou-se ao seu lado e o
abraçou, dizendo:
Alex, por que você está assim?
Rô, fecha a porta, por favor. Preciso desabafar com alguém, estoutão mal.
Alexandre confiava em sua irmã. Em poucos minutos lhe contou tudo sobre Raquel. Abraçada ao irmão,
muito comovida, ela chorou sem que ele percebesse. Fazendo-lhe um carinho no rosto, Rosana perguntou:
Você está gostando muito dela, não é? perguntou delicada.
Eu a amo, muito. Nunca senti isso tão forte confessou lamentando.
Alex, não fique assim.
Não consigo conquistá-la. Poucas vezes eu a abracei. Na maioriaela se nega, me repele. Se eu a
beijar, Raquel é bem capaz de gritar e saircorrendo. Você ouviu o que lhe contei sobre a brincadeira infeliz
que fiz hoje de manhã, não esperava que ela fosse reagir daquele jeito. Como ela sofre, Rô! Que trauma!
Não fique assim. Vamos dar um jeito nisso. Temos muitas coisas a seu favor.
218
O quê?
Rosana sorriu e disse cinicamente:
Se ela não tem onde morar, deixe-a começar a pagar as contasjunto com você, aí ela não fará
nenhuma economia e ficará mais tempo lá.
Que absurdo, Rosana!
Absurdo nada! Sem dinheiro, sem casa! Sem casa, ela continuacom você. Assim teremos mais
tempo para agir, certo?
Você é louca!
Ah! Sou sim! E você é certinho demais para o meu gosto. Precisade alguém como eu para ter
equilíbrio. Alexandre riu e ela avisou: Conte comigo! Vou ajudá-lo no que for preciso. Eu entendo, o
que a Raquel passou foi muito cruel. Psicologicamente falando, isso só poderá ser vencido com a sua
atenção, com a sua paciência... com o seu amor.
Isso ela terá.
Eu sei. Você é maravilhoso, Alex.
Pare com isso. Lembrando-se Alexandre revelou: Estoupensando em fazê-la entrar em
contato com a filha.
Hum!... Não sei se isso seria bom agora. É melhor você esperar.
Você acha?
Não. Tenho certeza! Pense comigo: Raquel não me parece disposta ainda a encarar a menina.
Ela não sabe se verá a filha, a irmã ou seu sofrimento no passado. Aguarde, Alex. Seja paciente. Às vezes
você émuito precipitado. Agora disse Rosana bem animada, estampando um sorriso e dando-lhe um
beijo como a chantageá-lo , dê-me umsorriso que só você sabe dar e me leve para conhecê-la, vai.
Alexandre sorriu largamente, levantou-se e disse, tomando a iniciativa de já ir saindo do quarto:
Vamos!
Espere! Deixe-me pôr um ténis!
Alexandre saiu às pressas do quarto e, a fim de deixá-la agitada, falou:
No dez estou indo embora. Um, dois, três...
219
No caminho, Rosana instruía seu irmão de como deveria fazer para conquistá-la:
Não seja daqueles caras pegajosos, que vivem agarrando. Isso enjoa. Trate-a com gentileza.
Quando chegar ou sair de casa, dê-lhe umbeijinho no rosto, acostume-a como fazemos lá em casa.
Alexandre ria e não dizia nada. Quando estiver com ela em casa, comporte-se normalmente. Faça-a se
sentir à vontade com você. Dependa dela e faça-a se acostumar com seus hábitos, mas procure entendê-la
também,toda mudança é difícil.
O irmão achava graça por Rosana, bem mais nova, o aconselhar e ajudar com a nova situação.
Ah! E nada de ficar parado, feito bobo, olhando para ela. Raquelficará constrangida e não vai
querer ficar perto de você. E lembre-se: não seja "grudento", viu?!
E assim foi por todo o caminho até estacionarem diante do prédio.
220
Capitulo 10
Rosana a nova amiga
Chegando ao apartamento de Alexandre, Rosana, muito espirituosa, reparou com ar de espanto:
Não estamos no apartamento errado!?
Por quê? perguntou o irmão, com simplicidade.Sussurrando com um jeito engraçado e ar de
deboche, ela falou:
Tudo está tão arrumado!... Tem certeza que é o seu?Alexandre, que era acostumado a brincar,
deu-lhe um leve tapa na
cabeça, empurrando-a suavemente e dizendo baixinho:
Cale a boca! Entre logo.
Já na sala, nem sinal de Raquel. Espiaram na cozinha, e nada! Lembrando-se do susto que lhe dera pela
manhã, ele logo se preocupou e foi até a suíte, seguido por sua irmã. Ao encontrar a porta entreaberta,
acabou de empurrá-la ao chamar baixinho:
Raquel...?
A moça estava deitada e encolhida sob algumas cobertas. Lentamente ela se voltou para a porta e viu
Rosana, alegre, que entrou animada. Raquel se sentou rapidamente, ajeitando-se. Rosana, mostrando-se
muito à vontade, se sentou na cama, abraçou e beijou Raquel como se a conhecesse de longa data.
Raquel exibia constrangimento pela situação e principalmente ao receber, no rosto, um beijo de Alexandre,
que a cumprimentou pela sua chegada, agindo naturalmente ao se curvar e perguntar:
Tudo bem?
Raquel enrubesceu, mas Rosana agia muito natural, comportando-se como se estivesse acostumada,
procurando não deixá-la envergonhada. Observando-a melhor, Alexandre perguntou:
Você está bem, Raquel? Está pálida.
Estou com uma dor de cabeça horrível avisou quase sussurrando.
Tomou alguma coisa? perguntou ele preocupado.
Não. Não encontrei.
Alexandre foi até o armário onde guardava a caixa de medicamentos, procurou, mas também não
encontrou.
Puxa! Acabou mesmo.
Vá comprar, Alex! sugeriu Rosana. Eu fico aqui com ela. Virando-se para Raquel, Rosana
pediu: Você deita. Não se incomode comigo.
Não...
Que, "não", o quê! exclamava com seu jeito irreverente. Pegando as pernas de Raquel,
Rosana a colocou sobre a cama e puxou ascobertas, dizendo: Eu sei o que é estar com dor de cabeça e
ter queficar aturando os outros.
Segurando-a pelos ombros, a fez se deitar. Tudo foi muito rápido e a nova amiga nem
pôde reagir.
Alexandre, que olhava da porta, achou graça, sorriu satisfeito e saiu para comprar o remédio. Ele sabia
que, com Rosana, Raquel estaria bem.
Rosana sentou-se na cama de casal e, colocando um travesseiro sobre as pernas cruzadas, pediu, ao
estapeá-lo:
Coloque sua cabeça aqui. Vou te fazer uma massagem nas têmporas. Será ótimo.
Não precisa argumentou Raquel, envergonhada.
Deixe de ser boba, Raquel. Aproveita, não é sempre que me douao luxo de ser boazinha. Elas
riram e Rosana, puxando Raquel, a fezdeitar na posição adequada.
A irmã de Alexandre ficou longos minutos massageando as têmporas da moça, que acabou adormecendo.
Olhando-a por algum tempo, Rosana lembrou-se do que seu irmão contara e ficou comovida ao observar
Raquel. A irmã de Alexandre não podia acreditar! Uma moça como ela? Se agora era frágil, imaginava
como deveria ser anos antes. Rosana decidiu que iria fazer de tudo para ajudá-los, afinal ela gostava
222
muito de seu irmão. Alexandre merecia ser feliz! Além de ser uma pessoa maravilhosa, ele já havia sofrido
muito. Ela sabia que depois de tudo o que aconteceu com seu irmão, ele jamais havia confiado em alguém
e não acreditava que pudessem existir pessoas fiéis. Agora, com Raquel seria bem diferente. Ela o
respeitaria... Eles precisavam um do outro.
Nesse instante, Alexandre entrou sorrateiramente e sua irmã, levando o dedo aos lábios, fez sinal pedindo
silêncio. Com muito cuidado, ela ajeitou Raquel, que estava com a cabeça sobre o travesseiro em seu colo,
e, saindo daquela posição, Rosana se levantou.
Gesticulando ao irmão para irem até a sala, saíram do quarto.
E aí? perguntou Alexandre, ao se ver mais à vontade.
Ela adormeceu. Encarando-o, Rosana falou: Fiquei olhando para ela e lembrando do que
me contou. Sabe que me deu umacoisa... emocionou-se. Estou com o coração dolorido e uma
vontade de chorar.
Não é fácil, Rô. Inúmeras vezes eu me pego pensando nisso. Se eu um dia encontrar esse
homem, eu o mato! afirmou Alexandre,exibindo indignação.
Não, Alexandre. Um cara desse é imundo, você não merece sujarsuas mãos nele. Deixe-o. Ele é
vítima dele mesmo.
Lá vem você... resmungou o irmão.
Pense, Alexandre. Você acha que um camarada desse não vai pagar pelo que causou a outro?
Raquel era praticamente uma menina, indefesa! Você viu comoela é frágil? Esse cara é um
animal!!!
Nascemos, morremos, mas sobrevivemos, meu irmão. Um dia,pode estar certo, esse homem vai
reparar ou experimentar o que fez o outro sofrer. E não acredite que ele é o único. Como eu já li em
algumlugar, acredito que "hoje sofremos o efeito do que causamos ontem, eamanhã seremos, ou
sofreremos, o que causarmos hoje". Por que vocêacha que alguém nasce sem a mão? Lembra-se, Jesus
falou que: "Se suamão te faz tropeçar, corte-a e lança-a longe de ti; pois te é melhor que seperca um dos
teus membros do que vá todo o teu corpo para o inferno".
223
O que você quer dizer? Não entendi.
Ao ver o irmão se interessar, Rosana, mais animada, ajeitou-se no sofá para poder explicar.
É assim, suponhamos que em uma vida a pessoa furtou. Então sua mão o fez tropeçar. É bem
certo que na próxima existência ela tenhaque trabalhar com as mãos em serviços duros, braçais, ou até
com artesanatos, para harmonizar. Dentro desse trabalho com as mãos, é importante que ela faça também
a caridade.
Como assim?
Bem, se ela faz artesanatos, deve doar algumas coisas a bazaresbeneficentes que tenham a
renda revertida para instituições filantrópicas. Se ela realiza trabalhos braçais, poderá ajudar na construção
deobras também beneficentes. Vamos supor que uma pessoa que furtoureceba essa oportunidade, mas,
sendo preguiçosa, mesquinha, avarenta,despreocupada, não realizou a caridade que deveria. Então, talvez
em uma próxima vida ela venha sem a mão para sentir a falta de realizar eharmonizar o que deveria. E a "lei
de causa e efeito".
Tá bom, então eu tenho esse problema cardíaco e você vai me dizer que eu esfaqueei alguém no
coração?
Não necessariamente. Aqueles que destroem o corpo dos outrospodem voltar como cirurgiões. E
você não tem o dom para ser médico,coitado dos pacientes se o fosse! Mas Deus é piedoso, bom e justo
respondeu ela, sorrindo ironicamente.
Engraçadinha!... retrucou Alexandre com o rosto franzido demodo engraçado.
Você deve ter esse problema como algo que sinaliza o limite das emoções. Provavelmente, você
foi um cara muito agitado, nervoso, implicante e que magoou os outros, não dando oportunidades a
algunspara se explicarem, não perdoou... Hoje tem que trabalhar esses sentimentos para que não chegue
ao extremo da emoção. Observe, o seu tipo de problema cardíaco não tem muita ligação com a alimentação
ou o sedentarismo, seu coração é fraco. Quando se emociona, quando fica nervoso, seu coração se altera e
você tem que se virar para procurar a
224
calma, a harmonia, certo? Ou então poderá ter uma parada, não é? Se analisarmos bem, podemos ver o
coração como sendo o órgão do amor, dos sentimentos elevados, incapaz de sentir ódio, pois o ódio só
existe quando nossos pensamentos, extremamente racionais e impiedosos, permitem. O ódio é gerado pelo
nosso egoísmo, pela nossa falta de perdão e o coração bondoso não se importa com os pensamentos
exigentes, o coração bondoso sempre se comove, sempre compreende, aceita incondicionalmente e isso é
amor. Você sabia que o coração é o único órgão que o câncer* não ataca? Ou melhor, é o único órgão que
não tem câncer?
Por que será? perguntou o irmão.
Porque o câncer é uma doença corrosiva. Eu acredito que é umadoença para a pessoa trabalhar
a avareza, o egoísmo sobre o que é material, trabalhar o cuidado pessoal, cuidando bem do corpo que lhe
foi emprestado, principalmente obedecendo a todo o tratamento.
O câncer consome ou corrói, em muitos casos, e nada se pode fazer. O câncer é egoísta, você já notou?
Hoje, com o avanço da ciência, a cura é comum em vários casos; acho que isso tem algo a ver com a
espiritualidade da pessoa. Outros, no entanto, sofrem por anos. E há os que experimentam a doença
fulminante, sem muito padecimento. Só Deus pode explicar.
E, sendo o coração o órgão símbolo do amor, dos elevados sentimentos, verificamos que o amor só doa, só
trabalha para o bem, o amor perdoa, aceita, eleva, renuncia, oferece...
O coração não é só o símbolo do amor, ele é o órgão do amor. Repare que ele é o único que trabalha em
benefício de todos os outros órgãos, em prol de todos os tecidos, todas as células. Tudo no corpo humano
depende do coração. Ele só doa.
O que foi feito para realizar tanta obra boa não pode ser corroído, não vai se infectar por algo egoísta como
o câncer, mas pode reclamar a
* N.A.E. Nenhum músculo experimenta o câncer, pois, a princípio, o músculo não tem secreção de
hormônio. E sendo o coração, propriamente dito, um músculo, o câncer não acontece nele. Entretanto, nas
regiões proximais, como membranas, tecido fibroso, glândulas, esôfago, pulmões etc., o câncer pode
ocorrer e obviamente prejudicar a função desse órgão.
225
falta de trabalho na área do perdão, ele reclama a falta do amor incondicional, falta de controle dos
sentimentos eufóricos, nervosos, reclama a falta de calma, de harmonia. Ele sinaliza o seu "não-trabalho de
amor".
Então aquele que tem câncer deveria trabalhar se doando na caridade para não ser corroído?
Espere! Não foi isso o que eu disse. Ê assim, essa pessoa já deveriacomeçar a trabalhar na
caridade, não pelo egoísmo pessoal, ou seja, pelointeresse de não ser "corroído" por essa doença, mas
para começar adespertar o verdadeiro desinteresse material.
Em outra vida, ou até na atual, ela pode ter querido tudo para si, ou ter maltratado o próprio corpo com
drogas, álcool, fumo, tatuagem etc. Tudo isso que estou falando são só exemplos, não são regras, pode
haver inúmeros feitos que a pessoa necessite harmonizar ao sofrer um câncer. O egoísmo e o maltrato ao
corpo são só dois exemplos deles.
Hoje essa pessoa pode trabalhar para ajudar o bem-estar físico de algum doente, compensando ou
harmonizando o que deixou de fazer por si, ou, então, doar ou trabalhar em prol da doação para que outros
se conscientizem. Isso é um bom começo para se elevar.
Sabe, Alex, há pessoas que dizem assim: "Estou com câncer e vou começar a ser voluntária em alguma
coisa, para que Deus me recompense". Isso é querer negociar com Deus. Ela estará sendo egoísta do
mesmo jeito.
A pessoa deve procurar tarefa produtiva, caridosa, não para negociar com Deus, mas para trabalhar o seu
lado humano que ficou esquecido. Ela deve procurar a caridade, para se ocupar com serviços benéficos,
superiores e com o coração alegre, não pela obrigação de ter que fazer. Aí, sim, ela começa a se livrar das
marcas negativas das quais deve estar impregnada.
Assim ela terá menos tempo para se preocupar com a própria doença, se voltar para o amor e não ser
depressiva.
Aliás, não se deve fazer caridade nem trabalhar em algo beneficente somente quando as doenças ou os
problemas aparecem na nossa vida. Todos podemos fazer algo em benefício de alguém, isso é muito
impor-
226
tante para se ter paz, pois os primeiros a serem socorridos são os tarefeiros úteis. Esses nunca podem
parar.
Você falou que a pessoa deve procurar trabalhos caridosos para não ser depressiva. No caso do
câncer, é impossível a criatura ter essa doença e não ser depressiva.
Impossível não é! Pode ser difícil. Mas, com uma tarefa de bondade e amor, em que se preocupe
com aqueles que têm poucas condições,são necessitados, ela vai se manter ocupada e esquecer um
pouco a doença. Não terá muito tempo para ficar curtindo as dores de tristeza e depressão. Você se lembra
do Herbert de Sousa, o Betinho?
Claro!
Ele sempre lutou pela ética política, pelos direitos humanos, pela reforma agrária, pelo controle da
Aids. O que o fez conhecido e respeitado mundialmente foi sua luta contra a fome. Você sabia que esse
mineiro foi tuberculoso, teve uma hemorragia quase fatal, viveu três anos enclausurado num quartinho nos
fundos de um quintal, isolado do mundo por causa da doença?
Não.
E sim! O Betinho, quando se recuperou, começou a participar dajuventude estudantil mineira
católica. Formou-se em Sociologia e Política. Teve de se exilar no Chile durante o regime militar, onde
lecionoue assessorou o presidente Salvador Allende. Depois ele viveu na Escócia,no Canadá e no México.
Quando voltou para o Brasil, participou dafundação do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e
Econômicas. E numa transfusão de sangue, pois era hemofílico, ele contraiu o vírus da Aids, isso em 1986.
E você pensa que isso o fez parar? Não! O Betinho tornou-se presidente da Associação Brasileira
Inter disciplinar da Aids, e foi dele a mais importante atuação na campanha que exigia maior controle sobre
os bancos de sangue. Você imagina quanta gente deve agradecer a ele por não ter pegado o vírus da Aids.
Eu acredito que todos nós devemos muito a essa criatura, o Betinho, que se usou como campanha de
informações e protestos para a orienta-
227
ção e a vigilância. Poucos sabem o que é isso. E tudo aconteceu quando ele estava doente. Esse foi o
período em que mais trabalhou em favor dos outros. Quer caridade maior?
O irmão ficou calado e Rosana prosseguiu:
Por ele ter lutado em favor dos índios e da reforma agrária, ganhou do Programa das Nações
Unidas o Prêmio Global. No ano seguinte, em 1992, ganhou o prêmio Nacional de Direitos Humanos.Criou
ainda a Ação da Cidadania contra a Miséria, mais conhecida comoCampanha Da Fome, liderada por ele.
Betinho morreu em agosto de1997. Que perda lamentável tivemos. Sabe, até no leito ele lutava pelo ideal
da caridade e pela população carente.
Você não vai me dizer que decorou tudo isso só para me dizer?
Claro que não. Até porque você não merece! retrucou a irmã,brincando. Alexandre riu e
Rosana contou: Tive um trabalho paraapresentar na faculdade e escolhi falar sobre o Betinho. Que
exemplo deforça atuante podemos tirar de suas lições de vida!
É, mas nem todo mundo tem essa força.
Temos a força que queremos ter. Para tudo temos que nos esforçar.Não digo que temos de fazer
como o Betinho, como a irmã Dulce, comoa Madre Tereza de Calcutá, mas não somos indigentes a ponto
de não podermos reservar uma única hora como voluntário para uma ação caridosa. Paulo de Tarso disse
que das três virtudes: fé, esperança e caridade, a maior é a caridade. Outro dia eu estava lá no centro e
uma mulher procurou um dos diretores e falou mais ou menos assim: "Eu sou pobre e preciso receber cesta
básica. Não tenho nada para doar e gostaria muito de fazer caridade. Será que eu estarei fazendo caridade
se vier aqui ajudar a limpar o salão e outras dependências?". Sabe, ela é uma pessoa muito simples, mas
que coração! Que caridade ela estava fazendo! Não para umapessoa, não para uma família, mas para as
centenas de pessoas que passam por ali todas as semanas! Doar-se, de qualquer modo, é uma caridade.
Isso é verdade concordou Alexandre.
Você mesmo me disse que encontrou muitos doentes de coração que, com qualquer
cardiopalmia, achavam que estavam tendo um ataque.
228
Alexandre sorriu e ela perguntou:
Não é mesmo? A pessoa fica tão preocupada consigo mesma,reagindo de forma tão egoísta que
passa até a sofrer com o que não tem.
Alexandre, olhando para sua irmã, sentiu vontade de lhe fazer uma pergunta, mas se inibiu:
Rosana, adivinhando-lhe os pensamentos, revelou:
Já sei! Você quer saber como fica o caso da Raquel? Ele se surpreendeu, mas não disse nada,
e ela continuou: Sabe, nem tudo de ruim que te acontece é porque você tem que sofrer aquilo. Muitos por
aí andam dizendo isso, mas, se assim fosse, Jesus não teria sido tão torturado. Então, aí nós temos um
espírito elevadíssimo passando pormissão de caridade ou provas por caridade a nós, e não por expiações.
Por que provas?
Provas porque era um espírito preparado e não se importou com os riscos que certamente
correria. No caso de Raquel, podemos ter duas coisas acontecendo. Primeiro: ela pode estar expiando o
que fez erroneamente no passado. Isso não a isenta de culpas e o seu mal feitor de hoje não será poupado
de expiar, experimentar ou harmonizar futuramente o que fez com ela. Jesus disse: "Quem com a espada
fere, com a espada será ferido".
E assim: o cara estava determinado a fazer aquilo, então a pessoa que tem de expiar, ou seja, passar por
essa experiência, fica na sua linha de ação.
A outra hipótese é a seguinte: se Raquel é um espírito com entendimento, com certa elevação, e tem nessa
vida algo que se determinou a cumprir, antes de ela reencarnar, quando lhe apresentaram os planos ou os
projetos reencarnatórios mostrando-lhe os riscos de sofrimento que ela poderia correr, para cumprir a sua
tarefa, ela certamente não teve medo e decidiu aceitar.
Isso não é injusto diante das Leis de Deus?
Não. Por exemplo: se Raquel, no caso, é um espírito com entendimento, ela não é inocente. Isto
é, ela tem entendimento, conhecimento. Vai sofrer, vai experimentar a dor, mas vai se elevar e superar
229
tudo. Seria injustiça se isso ocorresse com um espírito sem elevação, sem entendimento e que não
necessitasse dessa experiência de sofrimento. O espírito elevado tem conhecimento, entendimento, não é
um espírito inocente e aceita correr o risco da experiência para ajudar ou ensinar a muitos, mesmo que
essa experiência seja abominável ou traumática.
Então essa vivência amarga lhe servirá como uma prova que, ao superar seus temores, e a criatura
elevada supera, ao perdoar o seu ofensor, ela terá tirado nota dez. Um espírito que não é inocente, que tem
entendimento, não se preocupa com o corpo físico, com o cultivo da vaidade, para ele o corpo físico é como
uma roupa.
Eu vou lhe dar um livro que se chama O Livro dos Espíritos, e nas questões 738a e 738b, apesar de
estarem falando sobre os flagelos destruidores que vitimam o homem de bem, nos ensina que, mesmo sem
precisar, a criatura pode sofrer como vítima por uma consequência que não necessitaria, mas que, depois,
pela justiça de Deus, ela terá uma compensação para o seu sofrimento se souber suportar sem reclamar a
Deus os seus direitos e sem julgá-Lo injusto. É mais ou menos isso.
Resumindo, sempre devemos nos preparar para perdoar nossos ofensores e estar dispostos à prática da
caridade sem julgar ninguém.
Para perdoar um ofensor desse, é preciso ser muito elevado!
Lembre-se do que Jesus falou: "Reconciliai com seu inimigo enquanto estiver no caminho com
ele, porque depois será difícil".
Alexandre estava sentado, curvo e com as mãos cruzadas na frente do corpo, olhando firme para sua irmã;
em dado momento ele reagiu, dizendo:
Esse cara nunca cruzou meu caminho e eu quero quebrá-lo ao
meio!
Está aí! É por isso que você é cardiopata alertou imediata. O irmão arregalou os olhos e ela
continuou: Já reparou, Alex? Você critica muitas coisas criando para você mesmo vibrações ruins. Tudo,
para você, é motivo de bater, quebrar ao meio... Isso é falta de compreensão, falta de amor, falta de
perdão. É por isso que seu coração reclama. Enquanto não compreender, não perdoar, criando um amor
incondicional
230
para com aqueles que ainda não evoluíram, você será um preocupante cardiopata.Veja, você fica nervoso,
irritado, magoado, e o que acontece? Aquele órgão, símbolo do amor, reclama!
É simples.
Quer dizer que eu tenho que compreender, perdoar e amar a falta de amor e de compreensão dos
outros?
Isso mesmo. Além de controlar suas emoções irritadiças.
E o outro, que praticou o mal?
Alex, compreenda que a vida dos outros a eles pertence junto com tudo o que eles fazem. Você
tem que cuidar e vigiar as suas atitudes, os seus sentimentos. Se nem de você mesmo você dá conta,
como quer cuidar da vida alheia?
Onde você aprendeu isso? sorriu entendendo a filosofia dairmã.
Antes que ela respondesse, Raquel, um tanto assonorentada, surgiu na sala e ambos voltaram a atenção
para a moça.
Oi, Raquel! Melhorou? perguntou Rosana alegremente, levantando-se e indo em sua direção.
Nossa! Acho que dormi demais. Mas melhorei, sim.
Venha, sente-se aqui! Virando-se para o irmão, Rosana pediucom modos dengosos:
Alexandre, faz uma pipoquinha pra nós, faz.E sabe aquele chazinho? Ou até um chimarrão cairia bem com
esse frio!
Alexandre se levantou e Rosana, ao vê-lo na direção da cozinha, falou em voz alta:
Pipoca queimada é horrível, viu?
Lembrando-se que Raquel reclamara de estar com dor de cabeça há uma hora atrás, Rosana encolheu os
ombros, franzindo o rosto de um jeito engraçado, e falou:
Desculpe-me. Esqueci que estava com dor.
Não se preocupe, já passou.
Mas você nem tomou o remédio.
Verdade, passou, não sinto mais nada. Estou bem.
O silêncio durou alguns segundos, mas Rosana não perdeu tempo e se aproximou de Raquel,
perguntando:
231
E então? Está gostando daqui?
Como não poderia gostar? Só que me sinto muito constrangida.A situação é difícil... Creio que o
Alexandre deve ter te contado.
Ele contou que você trabalha com ele e foi ajudar seu irmão, porfim não se deu muito bem
porque sua cunhada inventou calúnias a seu respeito. Isso não é motivo para você se envergonhar. Pode
acontecercom qualquer um.
Mas a situação é muito delicada. Alexandre é homem e eu, morando aqui... Isso não fica bem. As
pessoas estão julgando o que não estáocorrendo.
Não veja dessa forma, Raquel. O Alex quer ajudá-la. Dê-lhe essa oportunidade e agradeça a
Deus por tê-lo encontrado num momento tão problemático de sua vida.
Por minha causa ele brigou com a mãe...
Já está tudo bem! Hoje mesmo eles conversaram e o Alex tem umjeitinho todo especial para lidar
com ela. Por ser muito amoroso e atencioso, ele a conquista com a maior facilidade.
E como ela está?
Ótima! Você vai conhecê-la. Não fique com uma má impressão,dona Virgínia é uma criatura
maravilhosa. Tem um coração!... Sabe,Raquel, você tem mais é que aproveitar o momento e não ficar se
torturando. Acho que o Alex já contou que é cardiopata, não contou?
Sim, contou.
Desde então, minha mãe ficou super protetora com ele. Além do mais, ele sofreu uma decepção
muito grande.
Ele me contou isso também e até que tentou se matar.
Ê verdade respondeu Rosana, com voz meiga e piedosa. Depois disso, nossa mãe se
preocupa demais com ele. Não só ela, mastodos nós temos medo. Entende?
Não posso tirar a razão de sua mãe. No lugar dela talvez eu agisse do mesmo jeito.
Então não se importe com isso. Se ajudá-la está sendo bom para meu irmão, será bom para nós
também.
232
É que vão falar coisas que não estão acontecendo.
Ei! Ei! E se estiverem acontecendo? Qual é o problema?
Mas não estão... defendeu-se Raquel, delicada.
Preste atenção. Não perca tempo preocupando-se com os outros.Se não acreditam na amizade
verdadeira entre duas pessoas que se ajudam, problema deles. Vocês são grandes amigos e isso é tão
bonito.
Raquel sorriu, parecendo mais calma. No olhar de Rosana ela encontrou compreensão e em suas palavras
o conselho reconfortante que aliviava seu coração aflito. A irmã de Alexandre retribuiu com um sorriso e
argumentou:
Nunca deixe acabar a amizade entre vocês dois. Converse com ele, ouça-o quando for preciso.
Sejam verdadeiros um com o outro. Issoé o que mais importa. Sabe, Raquel, às vezes eu fico preocupada
empensar que o Alex está aqui sozinho. Vai saber o que passa pelos pensamentos dele. Como será que se
sente só? Sem um objetivo para lutar,sem ter alguém com quem dividir. Quando eu soube que você
estavaaqui, e que ele a estava ajudando, pensei: que bom! Acredito que quem está sendo ajudado nessa
história toda é o Alex, e não você.
Por quê?
Porque as pessoas precisam se sentir úteis, fazendo algo que gostam. Ajudá-la é algo que o
satisfaz, ele gosta. Isso o mantém com amente ocupada. O faz se sentir útil. Ele tem um motivo, um
prazerbenéfico.
Com o olhar preso ao chão, Raquel ainda parecia em dúvida. Aproximando-se mais da nova amiga,
Rosana pegou-lhe as mãos e perguntou:
Fala. O que a perturba?
Seus olhos se encontraram e Raquel permaneceu pensativa. Ela não poderia confiar à irmã de Alexandre
os seus mais íntimos pensamentos. Principalmente pelo fato de elas terem acabado de se conhecer.
Entretanto, conversavam como se fossem amigas há muito tempo.
Eu... tentou dizer Raquel.
Você...? perguntou Rosana diante do silêncio.
233
Aconteceu muito rápido. Tudo isso é novo e estranho para mim.Não fui acostumada a esse tipo
de situação em que vivo hoje. Tenho medo. Vergonha.
Medo do que, Raquel? Medo do Alexandre?
A moça ficou em silêncio e abaixou o olhar, que exibia preocupação. Sem perceber, ela apertava as mãos
de Rosana. Acreditando entender Raquel e conquistando sua confiança, generosa, Rosana perguntou
baixinho:
Você tem medo do meu irmão, é isso?
Não... Não é bem isso.
Raquel, o Alexandre a respeita.
Eu sei!
Ele a quer muito bem.
Olhando-a com firmeza, Raquel respondeu:
Talvez seja esse o problema.
É problema ele gostar de você?
Sim, é respondeu a amiga, abaixando o olhar.
Alexandre surgiu na porta e, no ângulo em que Raquel se encontrava, não poderia vê-lo. Esperta, Rosana
fez-lhe um gesto rápido com a cabeça e o olhar, indicando que voltasse para a cozinha. Virando-se para
Raquel, ela falou:
O Alex gosta de você e a respeita. Não creio que haja segundas intenções nesse apoio que ele
está te dando.
Eu sei. Ele já me disse isso.
Confie nele, Raquel sugeriu com brandura.
Eu confio sussurrou sensível.
Então qual é o problema?
Sou eu o problema respondeu Raquel com voz baixa, escondendo o olhar.
Como assim? questionou Rosana, com delicadeza.
Um minuto de pausa se fez até que Raquel resolveu tentar esclarecer:
O Alexandre é uma criatura muito nobre, Rosana. Eu jamaispoderei corresponder aos seus
sentimentos. Não da maneira como ele merece e... deseja.
234
Pegando no queixo de Raquel, Rosana a fez olhá-la e perguntou, mesmo se lembrando do que seu irmão
lhe contara:
Por que, Raquel? Por que, se meu irmão te amar, você não poderácorresponder? Você não gosta
dele? esperta, desconfiou.
Sentindo seu coração apertar, a jovem Raquel não conteve as lágrimas que correram em seu rosto.
Desconfiada, Rosana perguntou com jeitinho e observando a reação da amiga:
Raquel, você gosta do Alexandre? Sem que Rosana esperasse,a amiga abraçou-a chorando.
Ela correspondeu ao abraço carinhosamente, enquanto dizia: Calma, Raquel. Fique tranquila. Que
bom que é isso.
Não... disse, com a voz abafada pelo abraço e rouca pelo choro. Isso não pode ser. Tem
muita coisa que você não sabe.
Você quer me contar? pediu Rosana após pequena pausa.Pensando um pouco, ela
respondeu:
Talvez outro dia.
Raquel se afastou do abraço e Rosana passou a secar suas lágrimas aparando-as com as mãos ao dizer:
Seremos grandes amigas, Raquel. Pode confiar em mim. Gostei muito de você. Admiro sua
sinceridade, seu coração puro.
Não...
Não o quê? Não teime comigo! respondeu Rosana brincandoanimada. Agora, vamos lá
para o quarto para lavar esse rosto, escolher uma roupa bonita e sair para passear um pouco.
E a pipoca?
Que pipoca?! Não está sentindo o cheiro de queimado, não? Essa pipoca já era! Agora vamos.
Elas foram para o quarto e Rosana, com seu jeito descontraído de ser, arrancou gargalhadas até de Raquel
contando seus casos. Pouco depois, enquanto Raquel acabava de se aprontar, a amiga foi para a cozinha
à procura de seu irmão.
O que vocês conversaram tanto? perguntou Alexandre, curioso.
Ah! É assunto de mulher. Não vou contar. Não posso trair minhaamiga.
235
Pare com isso, Ro!
Nós vamos sair para dar uma volta. Empresta seu carro?
E eu?!!! reclamou o irmão, incrédulo e se sentindo rejeitado.
Você vai a algum lugar? Se for, nós o deixamos no seu destino e,de lá, sairemos nós duas.
Não! Eu vou junto com vocês!
Não mesmo!!! riu.
E o Ricardo? Não vai ver seu noivo hoje?
Ele foi para o Rio a serviço. Estou livre e desimpedida e a Raquel também.
Alexandre não acreditava no que estava ouvindo, o jeito irreverente da irmã o incomodava naquele instante.
Andando de um lado para o outro, Rosana falava de um jeito brincalhão e mais debochado:
Vai, Alex! Dê-me a chave do carro. Preciso ensinar a Raquel a se divertir.
Ah, não! Vocês não vão, não.
Tudo bem! Só vou usar o telefone um pouquinho, tá? Preciso chamar um táxi.
E eu?!!!
Estou falando sério. Sairemos só nós duas! Se o levarmos, você vai nos constranger... Ih! Isso
não vai dar certo. Você fica, meu filho!
Dizendo isso, Rosana foi para a sala onde Raquel acabava de chegar.
Você está ótima, Raquel. Vamos!
Voltando-se para o irmão, que estava parado à porta, incrédulo e com os olhos arregalados, Rosana
perguntou como se fosse pela última vez:
Você vai ou não vai dar a chave do carro?
Suspirando profundamente, exibindo-se contrariado, Alexandre falou:
Toma. E cuidado, hein! Meu carro é novo.
Você não vem? perguntou Raquel, que não sabia o que estavaacontecendo.
Não pergunte novamente, Raquel. Vem você, ele fica. Empurrando Raquel porta a fora,
Rosana foi falando, enquanto ele ouvia
236
sua voz sumir: Come toda a pipoca, viu, Alex! Pipoca fria, murcha e queimada é horrível! E não fique
nervoso, olha o seu coração!
Sem concordar com a situação, por se sentir excluído, Alexandre, percebendo que não adiantava ficar
irritado com Rosana, começou a rir sozinho. Sua irmã parecia não ter juízo. Rosana era uma excelente
pessoa. Maravilhosa! Sempre alegre e extrovertida. Nunca a via triste nem deprimida. Alexandre confiava
muito nela. O engraçado era que, quando pequenos, eles brigavam muito, mas logo, na adolescência da
irmã, eles passaram a ser grandes companheiros. Perdido em seus pensamentos, ele começou a analisar o
que ouvira dela há pouco. De onde seráque sua irmã tirara aquelas reflexões tão lógicas?
Ele nunca se preocupara com religião, principalmente por não gostar de ter que seguir normas
pré-estabelecidas e rituais sem entender o motivo, ou sem ter uma razão lógica e proveitosa. Ao mesmo
tempo, ele acreditava em Deus, nas oportunidades positivas da vida. Ele mesmo podia dizer que enfrentara
situações em que pudera escolher entre o bem e o mal, seguindo qualquer um dos caminhos por vontade
própria, mas não havia pensado em ter que resgatar, com experiências próprias, os resultados do que
escolhera fazer.
Quando esteve internado, pensou muito em Deus, em Sua existência e pediu por uma oportunidade.
Parece que Deus havia lhe dado essa chance, se não por merecimento, fora por misericórdia. Ele sempre
quis entender por que, tão novo e com uma vida inteira pela frente, fora sofrer aquele problema cardíaco.
Por que fora traído por Sandra e por seu melhor amigo?
Essas perguntas começavam a ter explicações com a filosofia que Rosana lhe apresentara.
Mas por que Raquel, tão simples, tivera que provar aquela experiência tão amarga?
A forma e o raciocínio lógico que Rosana usava foi algo que o fez compreender o significado da vida, ou
então ele teria que acreditar que Deus não é justo. Onde ela aprendera aquilo?
Os pensamentos de Alexandre vagavam agora sedentos de mais conhecimentos. Largado no sofá, em
meio àquelas ideias, o rapaz foi se
237
entregando lentamente ao sono e, já emancipado do corpo físico, na espiritualidade, despertou
suavemente. Com outra consciência agora, procurou por aquela entidade que sempre o assistia.
Aproximando-se dele, aquela bela criatura o chamou:
Alexandre, que bom que o interesse já desperta em você.
Ainda tenho dúvidas respondeu ele.
E sempre as terá. Mas, com boa vontade, vai se esclarecer.
Tive explicações que, pela primeira vez, fizeram sentido para mim.
Que bom, filho.
O que faço?
Siga os seus desejos. Procure conhecimento, mas tenha paciência.
E a Raquel?
Ela, apesar dos obstáculos que terá de vencer, vai seguir o seu exemplo. Ela vai precisar de você.
E eu dela.
Raquel vai precisar da sua compreensão, da sua paciência e da suafirmeza em determinados
momentos.
Ela tem todo o meu amor.
Então tenha paciência e fé. Você quis e prometeu ajudá-la diante dos imprevistos antes dessa
existência. Agora aproveite beneficamente essaoportunidade. Muitos abalos hão de surgir. Seja arrimo de
Raquel. Controle seus impulsos. Será uma ótima oportunidade de aprender e ensinar o perdão. O perdão é
uma caridade para consigo mesmo, Alexandre.
Mas existem pessoas que...
Que são crianças. E das crianças não podemos exigir muito. Perdoe sempre, não importa a
quem, não importa o quê.
Vou me esforçar.
Eu sei. Você é perseverante.
E minha filha? Posso vê-la? perguntou Alexandre.
Ela está bem. Mas agora não é um horário adequado. Entenda.
Eu a quero tanto perto de mim. Preciso reparar...
Tudo tem seu tempo e sua hora, Alexandre. Seja paciente.
E que eu a amo.
238
Ela também. Aguarde.
Nada mais foi dito. Alexandre sentia-se refeito e extasiado.
Subitamente o toque do telefone o assustou. Aqueles poucos minutos de sono pareceram valer por uma
noite inteira. Ele não se lembrava de nada, sentindo somente um bem-estar.
Alo? atendeu assonorentado.
Oi, Alex! Sou eu, o Ricardo.
Olá! Tudo bem?
E aí? Como estão as coisas?
Se não fosse o tempo estaria tudo melhor. E aí, está frio?
Que isso, cara! É difícil fazer frio aqui no Rio de Janeiro, né? Otempo aqui está ótimo. Deu até
para pegar uma praia hoje.
Ainda bem. Aqui está um gelo. Nem dá para crer que moramos no mesmo país!
Quem mandou querer morar no sul? riu. Escuta, e a Rosana,está aí?
Não, cara! Ela acabou de sair. Ela foi acho que ao shopping junto com uma amiga minha.
Puxa! A Rosana não pára mesmo! lamentou Ricardo.Alexandre riu e falou:
Nossa mãe costuma dizer que a Rosana "tem rodinha nos pés".Após rir, Ricardo disse:
Então diga que eu liguei. Já falei com sua mãe e foi ela quem me disse que a Rô estava aí. Diga
que mandei um beijo e que estou com saudade. À noite eu telefono lá para a casa do seu pai.
Pode deixar que eu falo.
Obrigado, Alex! Tchau!
Tchau, Ricardo.
Alexandre se levantou e foi consultar o relógio.
Puxa! reclamou ele, falando sozinho. Deveria ter lembrado de dar o celular para aquela
maluca!
Resolvendo, foi tomar um banho e depois passou a jogar no computador que havia no outro quarto. Bem
mais tarde, Rosana e Raquel
239
voltaram. Sua irmã, como sempre, alegre e brincalhona. Raquel, entretanto, mesmo dentro de sua timidez,
estava um pouco mais animada.
Pronto! anunciou Rosana. Raquel está entregue, sã e salva!
Puxa! Vocês demoraram, hein!
Nem tanto, Alex. Agora é o seguinte: terão que me levar para casa.
Ah! Antes que me esqueça, o Ricardo telefonou.
Rosana pareceu arrependida por não estar para atendê-lo, depois falou:
Não sei como nos conhecemos.
Por quê? perguntou o irmão.
Vivemos nos desencontrando. Não temos tempo para ficar juntos. Quando não é o horário dele,
são as viagens. Mais animada, ela pediu: Vamos, Alex, me leva para casa, vai.
Fica! Vamos pedir uma pizza?
Não. Quero ir embora.
Mesmo?
Mesmo.
E observando as sacolas, Alexandre, curioso, perguntou indo espiar:
O que compraram?
Dando-lhe um tapa na nuca, Rosana falou:
Deixe de ser curioso. Isso não te interessa!
Ai! Ô! gritou o irmão, esfregando a cabeça.
Não é da sua conta! tornou ela. Agora me leve embora.Raquel ria da cena entre eles. Ela
nunca vira tamanha amizade entre
irmãos.
Com licença pediu Raquel, risonha. Deixe-me levar isso lápara o quarto.
Aproveitando por estar sozinha com seu irmão, Rosana alertou:
Idiota! sussurrou ela.
O que é, ô?!
Você, querendo que eu fique aqui. Se manca e convida ela para irconosco. Depois vocês dão
uma volta, vão comer fora, se distrair. Não vai querer ficar aqui socado.
240
Tá, tudo bem, mas e aí? O que tanto vocês conversaram?
Enquanto estávamos na rua, só passeamos. Fomos ao shopping,tomamos um suco, fizemos
pequenas compras. Dando ênfase, ela completou: Mas aqui, antes de sairmos!...
Os olhos de Alexandre brilhavam tamanha era a sua expectativa. Não suportando conter sua curiosidade,
perguntou:
O que vocês falaram?
Não vou contar! respondeu com prazeroso sorriso irônico.
Eu mato você, Rô!
Fica frio! Olha o seu coração, hein! aconselhou debochada ecom um jeito muito engraçado.
O irmão começou a rir, era impossível ficar sério ao lado de Rosana. Mas para não deixá-lo ansioso, ela
falou mais séria:
Vem cá na cozinha.
E já no recinto indicado, mais à vontade, após se sentarem, ela continuou:
Gostei muito dela. Pareceu-me uma pessoa sincera, honesta. Eutenho o dom de conhecer alguém
quando vejo. Raquel é muito legal.
Alexandre sorriu e respondeu tranquilo:
É, eu sei.
Pegando em sua mão, olhando-o nos olhos, Rosana alertou:
Sabe, Alex, parece que a Raquel nunca teve um amigo verdadeiro,alguém em quem pudesse
confiar mesmo.
Vocês conversaram?
Sim. Mas ela não me contou tudo, lógico. Não poderia falar dafilha, nem do tio... Nós nos
conhecemos hoje.
Claro concordou o irmão.
Ela tem medo.
Eu sei.
Não. Você não sabe, Alex.
Como assim?
A Raquel tem medo dela mesma.Alexandre a encarou sério, aguardando o desfecho.
241
Sabe, Alex, Raquel o ama. O medo que ela sente é esse.
Espera! Ela não me ama.
Aí é que você se engana. Raquel o ama, sim. É por isso que vive em conflito. O seu medo é de
não poder corresponder. Ela o respeita, oadmira imensamente, acha que você é uma pessoa nobre e vê a
si própria como uma "coisa". Raquel se subestima, ainda se sente humilhadapelo que sofreu no passado,
sem contar os traumas que vive.
Alexandre ouvia atento, procurando se orientar pelas palavras da irmã que continuou:
Só que, ao mesmo tempo que ela se atrai por você, vive o pesadeloda experiência do passado.
Analise comigo, qual o exemplo que Raquel pode ter ou lembrar de carinho entre um casal? Que vivência
pôde ter,como experiência, de um relacionamento amoroso feliz? Que visão, que sonho ela pôde ter?
Raquel só tem lembranças amargas por ter sido tão subjugada. Alexandre, pensativo e amargurado,
abaixou a cabeça,enquanto ouvia: Agora é o seguinte: você tem que ser forte e tranquilo, compreensivo
e prudente se quiser passar e transmitir para ela esses exemplos bons. Raquel tem que aprender que isso
existe. E pode aprender com você.
Rô, ela está traumatizada.
Eu sei. Mas, se você a ama, proponha-se a reverter esse quadro.
Para isso ela precisa me amar.Perdendo a paciência, a irmã reagiu:
Você é um burro! Caramba! Preste atenção, Alexandre. Você pode imaginar o quanto ela teve que
se superar para vencer o medo que sente e te dar um abraço? E ela só faria todo esse esforço por alguém
que significasse muito para ela.
Ele se lembrou que, na maioria das vezes, a amiga o rejeitava. Mas quando se deixava ficar em seus
braços, parecia que tinha de vencer um medo terrível para se deixar envolver.
Alex, você entendeu? Entende o que ela sente?
Às vezes me vejo como um menino inexperiente. Eu nunca sei o que fazer.
242
Você não é um menino, mas é totalmente inexperiente com uma garota assim. E sabe por quê?
Porque todas as mulheres quevocê teve, até hoje, não te deram trabalho, nem o prazer da conquista. Elas
foram muito fáceis, não foram? Coisa fácil não tem valor. Rosana, sorrindo, completou: Você é um
menino no amor, Alex.Creio que nunca amou alguém como agora. É por isso que se pega sonhando,
imaginando, preocupado e pensando: por que eu me sujeito a uma situação como essa? Vivo fantasiando
que Raquel é minha esposa, que quando eu chegar em casa ela estará lá me esperando, arrumará meu
jantar, saberá dos meus gostos, contará sobre suascoisas, seu dia...
Alexandre olhou assustado, pois Rosana havia lido seus mais secretos pensamentos.
Não é isso, Alex? Sem esperar pela resposta, continuou: Sefor isso, verdadeiramente você
a ama. Faça com que Raquel não só oame, mas também sonhe com você, fantasiando assim como você
faz.
Como farei isso?
Não seja precipitado, não a aborde. Seja natural, deixe-a se acostumar com você. Creio que já
estou ganhando a confiança dela comoamiga. Aos poucos conversaremos e aí eu vou falando a ela sobre o
seudespertar para as coisas boas da vida, que ainda desconhece.
Um barulho os fez perceber que Raquel se aproximava. Os irmãos se levantaram e Alexandre falou:
Obrigado, Rô.
A irmã simplesmente sorriu. Ao irem para a sala, Rosana olhou para Raquel, dizendo:
Vamos?
Eu?!
Claro, estávamos esperando por você para nos acompanhar. OAlex vai me levar em casa,
vamos.
Não, eu...
Puxando Raquel, alçando seu braço, Rosana a conduziu em direção da porta, dizendo:
243
Não se preocupe. Nem precisam entrar. Do portão mesmo vocês voltam.
Após deixarem Rosana em casa, Alexandre propôs que fossem jantar fora, agindo naturalmente, conforme
sua irmã sugeriu.
Eles conversaram sobre o passeio que elas fizeram naquela tarde e Alexandre contou-lhe coisas
engraçadas que lembrou de sua infância. Voltaram tarde para casa.
Ele queria ficar conversando por mais tempo, porém observou que Raquel exibia cansaço e decidiu seguir
a recomendação de sua irmã e deixá-la livre para fazer o que quisesse.
244
Capítulo 11
A preocupação dos pais
Alice, a cada dia, arquitetava novo plano para se destacar na empresa em que trabalhava. Agora, por
prestar serviços para a diretoria, fazia tudo para ser chamativa. Aos poucos, ela foi conseguindo atrair a
atenção de um dos diretores, o senhor Valmor. Eles iniciaram um romance e começaram a sair juntos, mas
por ter que chegar em casa no horário de costume, quando possível, saíam mais cedo do serviço para seus
encontros.
Alice não respeitava o marido nem os filhos. Eles nem podiam desconfiar. Em casa, como mãe, quase não
dava importância aos meninos, que necessitavam de seu acompanhamento e atenção.
Nilson, o filho mais velho, arrumou um emprego em um supermercado como repositor. Certo dia, Elói
procurou por ela e disse:
Mãe, o Nilson está fazendo coisa errada.
O que é?
Ele traz para casa algumas coisas do mercado. Isso não é certo.
Sabe, Elói, gente honesta nesse país não tem valor, não sobe navida, nem dorme tranquila
porque vive preocupada com o despejo.
Mas mãe, a senhora não vai falar nada?Com ar de desprezo Alice perguntou:
Falar o quê?
Apesar da pouca idade, Elói sentia que algo estava errado, ele tinha discernimento.
Contrariado, mais tarde, quando se viu sozinho com o irmão, perguntou, ao vê-lo:
Onde achou isso?
Não é da sua conta.
Vou contar para o pai!
Vai nada!
Os adolescentes iniciaram uma briga que após poucos minutos foi separada por Marcos, que chegou para
ver o que estava acontecendo.
Parem com isso, vocês dois!
Foi ele quem começou alegou Elói em sua defesa.
O que está acontecendo aqui? perguntou o pai veemente.Elói contou o que ocorria, enquanto
Nilson o fuzilava com o olhar.Indignado, Marcos inquiriu firme:
Isso é verdade?
Alice, que se aproximava, interrompeu-os.
O que foi?
O Nilson está furtando no serviço. Ele está trazendo mercadoriaspara casa. Eu nem posso acreditar
numa coisa dessas!
Tranquila, a esposa respondeu em tom irônico e voz debochada:
É! E o que você pensa em fazer? Bater nele? Sabe, Marcos, seufilho é mais esperto do que você.
Ele já aprendeu que se a sociedade não lhe dá uma oportunidade, ele tem que fazê-la.
Você ficou louca, Alice?! gritou o marido. Se ele não está contente com o que tem, que
estude e trabalhe muito para ter mais. A sociedade não é culpada pelo fracasso de alguém. No mercado de
trabalho existem vagas, sim, mas não tem pessoas capacitadas para as ofertas deemprego que exigem
qualificação profissional, estudo, conhecimento.Ninguém está a fim de estudar, de se esforçar para
aprender e depoisreclama que não consegue emprego. Quando muito, arrumam um serviço; em vez de
agradecer a oportunidade, respondem, são malcriados, preguiçosos, vivem reclamando do chefe, do dono.
A culpa não é da sociedade, não. Mas tenha em mente uma coisa: eu não vou criar um ladrão!
Ladrão, não. Mas esperto, sim!
Marcos não podia crer no que estava vendo e ouvindo. Alice lhe tirara toda a autoridade, além de não
oferecer ensinamentos morais adequados ao filho. Voltando-se para Nilson, Marcos o repreendeu,
segurando-o pelo braço:
246
Não quero mais saber disso aqui em casa. Dou-lhe uma surra sevocê trouxer novamente para casa
qualquer coisa que não tenha pagopor ela.
O menino abaixou a cabeça sem dizer nada, mas em seu olhar podia-se notar uma expressão de
insatisfação pela bronca, principalmente pelo apoio que a mãe lhe dava.
Após ir atrás da esposa, Marcos a repreendeu:
Nunca mais diga aquilo. Você está incentivando nossos filhos aagir errado. O que lhe deu, Alice?
Quer criar um criminoso? Se muitos pais repreendessem e orientassem os filhos quando notassem algo
estranho, logo na primeira vez, teríamos menos marginais nas ruas. Jamaisdevemos aceitar algo duvidoso
em casa, é assim que eles começam.
Alice não respondeu e Marcos continuou:
Acho melhor você parar de trabalhar para tomar conta direito desses meninos.
Enrubescida, ela mirou o olhar enraivecido e quase gritou:
Não sou sua empregada, nem dos seus filhos! Não vou me escravizar só porque você quer. Não
se esqueça que sustento essa casa tanto quanto você. Eu tenho capacidade para trabalhar.
Trabalha porque minha irmã a encaixou em um bom emprego.
Canalha! Você duvida de minha capacidade, ainda? Pois eu voulhe provar quem é incompetente
aqui. Se perder esse seu empreguinho,não terá onde arrumar outro, tamanha é a sua desclassificação.
Quantoà sua irmãzinha, ela também não perde por esperar.
Por que você odeia tanto a Raquel?
Nunca a suportei! Nojenta, toda cheia de querer ser coitada! Canseide ouvi-lo só falar dela. Foi
bem feito o que aconteceu, você viu a cobra que estava agasalhando.
Cale a boca, Alice!
Se eu cometi um erro algum dia, foi o de ter me casado com você!
Por que não pega suas coisas e vai embora?
Alice não disse nada, virando as costas e saindo logo em seguida. Mais tarde, ao conversar com a amiga
Célia, ela desabafava:
247
Então foi isso. Ai! Que ódio!
E seu caso com o tal Valmor?
Fale baixo! Alguém pode escutar sussurrou Alice. Estamosbem. Ele entende meus
problemas.
Ele a ajuda?
Claro. Onde você acha que arrumei dinheiro para me vestir assim? O Valmor é muito bom,
generoso. Ele me leva a lugares chiques.Parece exibir-me quando está comigo.
Ele fala alguma coisa sobre deixar a mulher para viver com você?
Não. Mas isso não importa. O que eu quero é que monte umapartamento para mim e me dê todo
conforto que necessito e mereço.
Você tem coragem de largar o Marcos e os meninos?
Do Marcos eu não quero nem saber. Meus filhos já são crescidos.Eles se viram. Minha maior
dificuldade, atualmente, é ter que chegartarde em casa sem levantar suspeitas.
Arrume um longo tratamento odontológico para depois do serviço sugeriu a amiga.
Célia! Sabe que você me deu uma ótima ideia?
Célia não imaginava quantas amarguras estava atraindo para si mesma por oferecer sugestões que
ajudassem atitudes imorais, ilícitas.
Alice, então, em busca de estabilidade e falsa felicidade, não tinha resignação nem renunciava à
imoralidade dos desejos vis. Ela tentava se defender e justificar alegando ter direito de aproveitar a vida.
Comumente ouve-se dizer aquele que cometeu adultério tem o direito de ser feliz. Quem garante a ele que
a felicidade almejada está fora da união jáestabelecida e longe dos filhos que Deus confiou?
Não se constrói felicidade verdadeira em cima das lágrimas dos entes que se deixou para trás e que,
certamente, com o tempo, serão desprezados com pequenos atos, esquecidos ou relegados ao abandono
cruel.
Não se é feliz quando se é irresponsável. Isso explica o sentimento de vazio.
Não encontramos paz e harmonia na consciência, muito menos a tranquilidade de um sono bom, quando
abandonamos um lar, mesmo
248
estando nele e deixando de amparar e confortar o filho que chora, que tem medo, que precisa de
orientação, seja em que fase da vida for.
Aquele que busca fora do lar as falsas alegrias e dentro da vileza a felicidade momentânea tem em si a
predominância do orgulho e do egoísmo.
É dentro do lar que necessitamos usar a nossa força de vontade, o nosso amor verdadeiro para encontrar o
equilíbrio e a harmonia da nossa vida. Não nos unimos a alguém por mera casualidade. Ninguém tem o
direito de separar um casal, seja pelo que for.
Que a piedade invada nossos corações ao pensarmos na infeliz criatura que junto adultera, que, em lugar
de se impor moralmente e se resguardar dos desejos vis de criatura pervertida, promove a desunião e
desfaz um lar, condenando aquele que fica só a assumir em dobro as responsabilidades da família, o peso
de conduzir sozinho o que era para ser dividido por dois, não perguntando se o que ficou só terá forças
suficiente para confortar e harmonizar tudo o que lhe restou, inclusive o coração dos filhos.
Quando Deus acredita que alguém é suficientemente forte para estruturar sozinho um lar e os filhos, retira
um dos companheiros através do desencarne.
O respeito e a sincera amizade entre um casal devem reinar absolutos, traduzidos em mútua compreensão,
afeto sincero e fidelidade.
E todo aquele que incentiva, direta ou indiretamente, uma separação terá muito para harmonizar a duras
penas.
Na casa dos pais de Alexandre, dona Virgínia e o senhor Claudionor conversavam a respeito da vida do
filho.
Não posso concordar com isso, Claudionor dizia a mãe, parecendo angustiada.
O Alexandre já é bem grandinho. Até quando vai pajeá-lo? Aprincípio eu também não gostei,
mas, na verdade, não sabemos direito
249
o que aconteceu. E se ele estiver dizendo exatamente a verdade? De repente ele está somente ajudando
uma moça de boa índole. Não podemos julgá-la. Lembre-se que nosso filho sofreu calúnias e difamações
que não devia. Se por acaso a Raquel fosse um rapaz, nós estaríamos preocupados assim, ou não?
Com o semblante franzido, demonstrando-se insatisfeita, a mãe do rapaz balançou a cabeça contrariada e
falou:
Só você para acreditar nessa história mesmo.
Vamos pensar diferente. Suponhamos que a Raquel fosse nossa filha. Daríamos graças a Deus
por ela encontrar alguém de bem paraajudá-la. O Alex é digno, a trata bem...
Primeiro que, se ela fosse minha filha, não estaria na rua largadadependente de favores.
Segundo, meu filho é digno, mas é homem!Não sei até onde vai esse respeito. Os dois são jovens e... Sabe
que ele chegou a me dizer que está gostando dela mesmo! O que você acha que vai acontecer? Se já não
aconteceu!
E daí, Virgínia? Hoje em dia tudo é tão liberal.
Para as pessoas imorais, sim. Tudo é muito liberal. Mas paraaqueles que se prezam e que têm
amor-próprio, para aqueles que preservam uma boa moral e bons princípios, tudo tem o seu tempo certo e
comportamento adequado. Ainda quero conversar com essa moça direitinho!
E eu quero saber o que está acontecendo, também. Mas vamos devagar.
Eu quero saber tudo sobre ela reafirmou a senhora exigente.
Virgínia, pense bem, não será somente agora que nosso filho está sendo feliz? O Alex já sofreu
tanto na vida.
Sofreu porque encontrou uma mulher mau-caráter, que se disfarçou por muito tempo. Quando me
lembro que ele ofereceu de tudo paraela, montou até a casa do jeito que ela queria! E a sem-vergonha,
além detraí-lo, levantou calúnias dele para Deus e todo mundo. Ordinária!
Veja, nós confiávamos e até valorizávamos tanto a Sandra, conhecíamos a família dela, no fim,
olha o que deu? Quem sabe agora, com
250
essa desconhecida, que nem família tem para zelar por ela, o Alex vai ser feliz? Quem sabe essa moça o
respeite e o valorize, o que a outra não fez? Após breve pausa, ele revelou: Nem conversei com a
Raquel, mas sabe que eu gostei do jeitinho dela.
Dona Virgínia ficou pensativa e não respondeu nada. Aproximando-se da esposa, o senhor Claudionor a
envolveu num abraço pelas costas e, enquanto a embalava nos braços, roçando o rosto no dela com
carinho, ele falou com voz meiga:
Virgínia, uma coisa me comoveu.
O quê?
Uma frase que o Alex disse quando conversamos um pouco, naquele dia em que fomos lá no
apartamento e descobrimos a Raquel.
O que ele disse?
Ele disse, de um jeito tão sensível: "Nunca sequer a beijei. Nemnamorados somos... Infelizmente,
pois eu a quero muito". Isso me deu um nó na garganta. Seu olhar transmitia um sentimento tão verdadeiro!
Ele também me disse isso e até falou que não tem nada com ela porque ela é quem não quer.
Será que está gostando dessa moça, mesmo?
Eu creio que sim. Mas está frustrado por não conquistá-la.
Mas...
Minha velha, isso é coisa para ele resolver.
Se ela abandoná-lo será outra crise.
Vamos aguardar, Virgínia. Vamos aguardar.
Longe dali, numa fazenda no interior do Rio Grande do Sul, prostrada de joelhos diante de um pequeno
altar da igrejinha daquela fazenda, chorava uma mulher em desespero tendo os pensamentos remoídos de
aflições por ignorar notícias de sua filha.
Era Tereza, mãe de Raquel.
Imaginava a filha encarando as misérias do mundo e as mais pesarosas dificuldades. Ela não tinha notícias
de Raquel havia muito tempo,
251
só sabia que ela estava com o irmão, mas as últimas notícias que chegaram não foram boas. Jamais
recebera uma linha traçada pela filha. Raquel não respondera às suas cartas. Tereza acreditava que a filha
deveria odiá-la muito por ter a vida destruída em razão de sua desventura no passado. Pois Tereza,
cedendo às seduções de seu cunhado, que se aproveitou da longa viagem do irmão, concebeu, nesse
envolvimento, a filha Raquel.
Quando o marido, Casimiro, pai de seus outros filhos, voltou, Tereza, já sabendo da gravidez, escondeu-a
por mais algum tempo e a anunciou pouco depois, calculando o nascimento daquela criança para dali a
sete meses, a fim de dizer que ela nascera prematuramente. Não foi difícil ocultar aquele segredo. Foi
então que nascera Raquel. Ninguém soube daquela história, somente Raquel. Talvez o cunhado
desconfiasse, mas não tivera a confirmação.
Raquel deveria estar sofrendo! Como estaria sua filhinha? Como ela era?
Marcos lhe escreveu dizendo que Raquel não estava com a criança. Depois Alice havia escrito informando
que a cunhada não tinha bom comportamento, queria levar uma vida irregular e não respeitava o irmão. O
que houve depois? Ninguém nunca mais lhe escreveu. Nem responderam às suas cartas.
Talvez Raquel tivesse contado ao irmão sobre o seu pai verdadeiro, e Marcos a repudiava por isso. Mas
nem quando avisou sobre a morte do pai ele se importou.
Casimiro! Perdoe-me! gritou Tereza aflita. Perdoe meu pecado que trouxe tanta miséria, tanto
flagelo para a filha que tu amaste como tua. Quero morrer e me entregar ao fogo do inferno, porque
somente assim vou limpar minha consciência pelo mal que fiz.
A mulher se jogava nos poucos degraus da igrejinha, chorando ao clamar por perdão.
Não é correto fazermos pedidos a espíritos desencarnados, uma vez que aprendemos com Jesus a rogar e
a tecer preces somente a Deus, mas, pelo costume religioso, pelo seu envolvimento no desespero e na
252
dor moral, Tereza lembrou-se da sogra, dona Edwiges, mulher bondosa e tolerante que sempre apaziguava
os conflitos com sabedoria e que havia desencarnado logo após o filho. Tereza suplicou-lhe ajuda:
Mãe Edwiges pois era assim que a chamava por costume, mesmo sendo sua nora , proteja a
Raquel. Cubra-a com o manto de Maria, mãe de Jesus! Cuide para que alguém a socorra. Eu tenho
remorso por tratá-la diferente, sempre deixei Raquel longe de mini e dos irmãos porque nela eu enxergava
o símbolo da minha traição cobrando, recriminando constantemente a falta cometida. Por minha causa os
irmãos não a tratavam como deveriam e somente Casimiro, que na verdade era seu tio, a tratava com
carinho. Mas as longas viagens o deixavam ausente e, no fim, a enfermidade roubou-lhe a oportunidade de
defendê-la. Mãe Edwiges, cuide da Raquel, esteja ela onde estiver.
Os pensamentos de Tereza a consumiam na dor do remorso que a culpava por toda a infelicidade da filha.
Espíritos amigos e em condições de ajudar, verificando a necessidade, começaram a trabalhar envolvendo,
a princípio, a mãe, que se encontrava em desespero, e, posteriormente, a amparar Raquel, o que não
estava sendo fácil devido às condições vibratórias que ela apresentava.
A cada dia Raquel se desanimava mais e mais, passando a agir de forma diferente, reclamando de suas
condições, insatisfeita com as colegas de trabalho, com seu salário, com a dependência de estar morando
na residência de Alexandre.
Raquel sempre fora muito sensível; agora, porém, parecia estar com mais facilidade para experimentar e
expressar impressões de melindres, chorando com facilidade e por qualquer motivo.
Até Alexandre, que a adorava e lhe oferecia toda a atenção e paciência, às vezes se magoava com o
comportamento da amiga. A quietude da moça passava a ser depressiva e seus comentários, queixosos e
tristes. O amigo tinha que fazer grande esforço para que ela o compreendesse em pequenos detalhes e
para vê-la animada ou sorridente.
Entretanto, apesar de estar com esse comportamento, Raquel era amável e bondosa. Realizava algumas
tarefas domésticas com boa vonta-
253
de, empenhando-se com certos cuidados e caprichos por prazer, fazendo, sem perceber, daquele
apartamento um caminho aconchegante.
Vez ou outra ele sempre comentava algo sobre Bruna Maria, e Raquel passava a ouvi-lo atenta e desejosa
por saber como estava a filha. Às vezes ele a surpreendia quieta, refletindo e perguntava:
Está pensando na Bruna?
Como você sabe?Alexandre sorria e dizia:
É que você parece brilhar quando fala ou pensa nela.
E assim o tempo foi passando...
Com a ambição de sempre querer mais do que já possuía, sem amar o que tinha, com o desejo de
vingança e ambição, tendo a maledicência como prazer, Alice se sentia insatisfeita com tudo.
Eles haviam se mudado para uma casa um pouco maior por causa da exigência de Alice. Estando a sós,
contemplando suas miseráveis e mesquinhas conquistas, Alice pensava:
"Ainda bem que não terei mais que dar um sumiço nas malditas cartas daquela velha. Era um sufoco ter
que ficar atrás daquelas correspondências antes que Marcos as visse. Ainda bem que a Célia me deu a
maior ajuda, porque, trabalhando, o Marcos poderia pegar aquelas cartas 'lazarentas' antes de mim. Porém,
agora chega", reclamava em pensamento. E após pouco tempo, continuou: "Nas cartas Tereza só sabia
perguntar de Raquel! Raquel! Raquel! Só sabia exigir de nós e da vida. Mulher orgulhosa, prepotente,
avarenta desgraçada! Trouxa do jeito que o Marcos é, seria bem capaz de querer ajudar a mãe ou até
trazê-la para cá. Isso se não quisesse voltar para aquele fim de mundo ao saber das misérias que estão
passando. Prefiro a morte a voltar para lá. Ainda mais agora com o Valmor me ajudando, não volto
mesmo.Tenho certeza de que, em pouco tempo, ele vai me propor para morar longe do Marcos. Estarei
realizada!"
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O espírito Sissa, com extrema satisfação, rodeava Alice, que desejava e realizava tudo a seu contento.
Valmor, o amante de Alice, por não controlar seus impulsos e não tendo moral, ligava-se a companheiros
espirituais que o envolviam, passando-lhe seus desejos e os impulsos mais mundanos. Alice e Valmor
traíram suas próprias consciências e se emaranhavam por amargos caminhos, e, por isso, futuramente,
muito teriam que reparar. Os momentos em que juntos julgavam estar sendo felizes era ilusório e
passageiro. Toda traição conjugal traz, cedo ou tarde, um lastro de dor e de angústia. A situação fica ainda
mais difícil quando se tem de explicar aos filhos o porquê.
Quis Deus que fossem dois a cuidar de um ou mais, para amá-los e tratá-los com carinho e fazê-los
progredir, mas o egoísmo do ser humano não o deixa ver isso.
A criatura que se deixa envolver por paixões efêmeras, que se deixa levar por um relacionamento fora da
união conjugal, traindo não só o cônjuge, mas também os filhos, quando os tem, que foram confiados à sua
guarda, ao seu amparo e à sua proteção, não pode servir de exemplo nem ensinar nada sobre moral, muito
menos reivindicar respeito, atéque harmonize, mesmo que a duras penas, tudo o que desarmonizou e
desequilibrou.
Disse-nos Jesus que: "Qualquer, pois, que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e assim
ensinar aos homens, será chamado o menor no reino dos céus".
Alice não queria acreditar que para tudo o que conseguimos de modo fácil e sem cultivarmos valores
morais elevados, pagamos uma alta taxa de juros nos refazimentos no futuro. Ela sonhava e não via a hora
de conseguir o que chamava de liberdade. O relacionamento com o marido havia tempos não era bom, e a
cada dia piorava.
Alice sempre o criticava, humilhando-o o quanto podia. Agora ela jánão ligava mais para os cuidados com a
casa, como antes fazia, muito menos se preocupava em dar atenção aos filhos, perdendo horas cuidando
de si e em reflexões mesquinhas.
255
Naquele instante, a aproximação de Marcos chamou a esposa à realidade. Parecendo pensar em voz alta,
o marido disse:
Como será que minha irmã está?
Eu nem acredito! respondeu a mulher. Depois de tudo o que aquela safada fez você ainda
se preocupa?!
Fico cada vez mais surpreso com você, Alice! Nem parece que tem sentimento! Afinal de contas
ela é minha irmã!
Mas não deixa de ser mentirosa e sem-vergonha. Agora você sabe quem ela é. Raquel tirou a
máscara e assumiu a "vida fácil" que sempre levou.
Tomara que esteja vivendo bem, mesmo. Faço votos que ele goste muito dela, pois, apesar de
ousado, senti que era honesto. Raquel merece paz.
Quem ouve você dizendo isso vai até acreditar que se trata de uma menina inocente, de uma
donzela! Alice ofendia com palavras ásperas e irônicas e Marcos começava a se irritar.
Raquel, na verdade, nunca teve uma oportunidade. Minha mãe sempre foi uma mulher muito
distante, principalmente com a filha. Eupercebia isso. Quando me lembro da nossa infância, trago sempre
asrecordações de Raquel sendo desprezada por mim, pelos meus irmãos eprimos. Ela sempre ficou com a
pior. Depois foi posta na rua, só Deus sabe o que ela passou. E foi abandonada não só por eles, mas por
mimtambém. Eu me arrependo do que fiz. Aquele dia eu estava "de cabeçaquente"... Hoje, pensando, vejo
que nem a deixei se explicar, e justo ela que sempre me ouviu. Deveria ter ido tirar tudo a limpo e até
procurar aquele rapaz, se fosse preciso, pois minha irmã sempre foi submissa,nunca reagiu... E quando o
moço falou comigo, aquele dia, ele detalhoucoisas que não poderia saber se não tivesse tentado conhecer
melhor a Raquel. Tomara que a esteja tratando bem...
Não seja idiota. Veja que Raquel é que não se adapta com ninguém. Você vai ver, não dou muito
tempo para ela largar o Alexandre earrumar outro trouxa.
Ela pode ser o que for, mas foi a única criatura que nos ajudouquando mais precisamos, Alice
falou sentido. Foi ela quem te
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arrumou os dois únicos empregos que conseguiu em sua vida. Não seja cruel, mulher! Não podemos contar
com mais ninguém. Meus irmãos jamais me procuraram, meu pai está inválido, minha mãe só me escreveu
duas ou três vezes nesses anos todos. Ela nem mesmo respondeu às cartas que tenho mandado. Se a
Raquel não leva uma vida decente, todos temos uma parcela de culpa, principalmente minha mãe, que
nunca se importou com ela. Talvez ela tenha sido coagida por meu avô, quem sabe. Prefiro nem pensar
nisso.
A verdade é que na sua família ninguém presta!Enraivecido, Marcos a segurou pelo braço,
ordenando:
Cale a boca! Não fale da minha família. Não vou mais admitir isso. Nem parente você tem!
empurrando-a completou: Se expulsei minha irmã daqui só com a roupa do corpo naquela noite tão
fria,sem me importar com o que pudesse acontecer, a culpa foi sua! Mesmo se ela se envolveu com aquele
moço, Raquel sempre me respeitou, mas ela era recatada, amedrontada demais para fazer aquilo tudo que
você aacusou de modo tão brutal, tanto que ficou em choque e nem reagiu.Ele mesmo admitiu, não vou
esquecer aquele jeito firme como faloucomigo recordava Marcos, vivamente relatando bem devagar ,
cadapalavra dele ecoa na minha cabeça, bem exata, ele falou: "Não namoramos ou ficamos, nem tivemos
qualquer tipo de relacionamento íntimo.Não consigo me aproximar dela até agora, não por eu não tentar
oudesejar. Adoro a sua irmã, mas a Raquel me esconde algo, ela não sepermite e ainda não consegui
descobrir o motivo". Ele foi muito atrevido, mas sabia do que estava falando quando disse: "alguém que
vive em aflição extrema simplesmente por receber um toque de carinho e nem se deixa abraçar, como sua
irmã, só ficaria grávida por consequência de uma violência! Sou um homem experiente..." Um estranho foi
capaz de ser mais caridoso que você.
Nos olhos de Alice podia-se notar a expressão de ódio que se fez. Ela ficou em silêncio, temendo a reação
de Marcos, mas seus pensamentos vibravam rancorosos contra o esposo.
257
Capítulo 12
As primeiras brigas
Com os dias, Alice e Rita começaram a provocar ainda mais Raquel, para vê-la em desequilíbrio. Rita, por
sua vez, passou a contar para outras colegas que Raquel tinha uma filha e a notícia se espalhou.
Vagner sentia-se contrariado em saber que Raquel e Alexandre estavam morando juntos. Irmanado a Rita
e Alice, ao saber que Raquel tinha uma filha, decidiu tentar ofender e abalar os sentimentos de Alexandre,
pois o considerava traidor, uma vez que este, sabendo de seu interesse por Raquel, não o respeitou,
conquistando-a.
Ao término de uma reunião que ocorrera em uma sala especial para tal evento, enquanto todos recolhiam
seus materiais, Vagner, que estava ao lado de Alexandre, virou e falou-lhe:
Como vai a vida de casado?
Bem respondeu Alexandre, esboçando um sorriso, pois já esperava, a qualquer momento,
alguma argumentação daquele colega.
Já se adaptaram?
Claro! E muito bem.
E o baby, para quando é? Ou não vão querer filhos?
Cínico e irônico, Alexandre parou o que fazia, olhou para o colega e argumentou sorrindo:
Sabe que eu ainda não havia pensado nisso. É uma ótima ideia.Vagner, com olhar vingativo,
desfechou:
Para você será novidade, mas para a Raquel não será uma experiência nova. Que pena, né? Aliás,
porque não levam para morar comvocês a filha dela? Deve estar crescidinha, não dará tanto trabalho.
Alexandre sentiu-se golpeado por aquela ironia. No entanto, mantendo a aparência, respondeu sem
titubear:
Eu e a Raquel já estamos conversando sobre isso. Eu quero a filhada Raquel conosco. Que, aliás,
será minha filha a partir daí. Contudo,Vagner, não pense você que um outro filho não seria uma
novidade muito agradável para a Raquel. Sabe por quê? Porque esse filho será meu! Sorriu. - E isso a
fará muito feliz e realizada. Sem esperarpor um revide, Alexandre pediu: Dê-me licença. Vou almoçar
com aminha mulher.
Ao chegar à seção, Alexandre não conseguia tirar o sorriso do rosto.
Ele sentia-se vingado!
Não poderia ter respondido melhor àquela tentativa de constrangimento que o colega queria lhe impor. Indo
para sua mesa, que ficava próxima de Raquel, ele convidou:
Vamos almoçar agora?
Ao encará-la, percebeu que Raquel estava diferente, encabulada e quase chorando.
O que foi, Raquel?
Nada.
Ele já imaginava! Se Vagner estava sabendo que Raquel tinha uma filha, era porque Alice havia espalhado
para todo mundo esse fato.
Quem foi? perguntou ele, quase irritado.
Quem foi "o quê"?
Quem falou e o que para você ficar assim?Ela começou a chorar e pediu:
Por favor, não vamos falar disso agora. Estou tão magoada.
Tudo bem. Mas vamos almoçar, senão fica tarde decidiu Alexandre insatisfeito com a situação.
Você acha conveniente ainda irmos juntos?
Ora, Raquel, o que é isso agora? Pare de se preocupar com os outros. Vamos logo almoçar!
falou quase exigindo.
Sem dizer mais nada, ela pegou sua bolsa e eles saíram. No caminho ele comentou:
Se não ficarmos juntos, os comentários serão piores. Vão dizercoisas ainda mais desagradáveis a
nosso respeito. Se eu for almoçar com
260
outra colega, dirão que estou te traindo, se for um amigo terei de ficar respondendo a perguntas que não
quero. Você, por outro lado, sofrerápor ter companhias inoportunas, indiscretas.
Ela não dizia nada. Pouco depois, quando quase terminavam a refeição, Alexandre perguntou, ao observá-
la muito quieta:
O que aconteceu para você ficar assim?
E que já estão sabendo contou exibindo-se chateada.
Sabendo o quê? perguntou, com voz mansa e paciente.Raquel abaixou a cabeça por se sentir
envergonhada e ele perguntou
novamente:
Você quer dizer que estão sabendo que você tem uma filha?
E. Como você soube?
Alexandre contou superficialmente o que Vagner lhe falou e omitiu o que deu como resposta.
Além de me ajudar, você ainda tem que se prestar a esse tipo dehumilhação argumentou
Raquel.
Que humilhação?!
A de servir de chacota para os outros.
Não me atingiram. Aliás, já pensei em ver como poderíamos terconosco a sua filha, para...
Não! reagiu Raquel estranhamente.
Alexandre, calmo, a encarou firme e brandamente perguntou:
Por que, Raquel? Você não gostaria de vê-la?
Por favor, Alexandre. Não quero falar nisso.
O amigo achou estranho. Aquele assunto não a perturbava antes, mas agora ela reagia diferente. As ideias
de Raquel estavam confusas. Ela passou a pensar que, por estar morando com ele, Alexandre se achava
no direito de se intrometer em sua vida. Não poderia deixar que isso acontecesse. Teria que dar um jeito de
se tornar independente novamente e sair de sua guarda, mas estava sendo tão difícil, até seus sentimentos
por ele a atordoavam. Tudo o que tentava dava errado. Estava chateada, triste, não conseguindo ver o
auxílio, a proteção digna que estava recebendo. Raquel nem mesmo agradecia a Deus por tudo o que
261
lhe acontecia. Sem elevar os pensamentos, se deixava envolver por companheiros espirituais que se
compraziam com aqueles sentimentos, não conseguia ter auto-estima nem se valorizar mais, acreditando
que nascera para sofrer. Em pequenos detalhes ela começava a demonstrar falta de compreensão.
À noite, ao chegarem em casa, Alexandre ainda a orientava.
Você não pode se incomodar com o que dizem de nós, isso serátemporário. Quando
encontrarem algo mais novo para se importar, issovai acabar.
Mas eu não consigo. Tento, mas não posso. O assunto vive na minha mente e eu me incomodo
com isso, tanto que nem consigo maistrabalhar direito.
Alexandre ficou pensativo e decidiu falar sobre outras coisas que julgava importante e, lembrando-se
imediatamente da novidade que o satisfez imensamente, comentou contente:
Sabe, hoje na reunião solicitaram a minha transferência para outro departamento! Vou assumir um
novo cargo! contou animado e sorridente. Mas se decepcionou ao encará-la.
Raquel empalideceu, ficou paralisada. Nos últimos tempos era ele quem a auxiliava com o serviço. Ela
sabia que, sem ter Alexandre ao lado, passaria por inúmeras dificuldades. Mais sério Alexandre
sócomplementou:
Profissionalmente falando, isso será muito bom para o meu currículo. Terei um salário melhor,
ficarei à frente de projetos. Mas eutambém fico chateado com a mudança, por ficar longe de você.
Ficará na mesma função? questionou disfarçando sua decepção.
Não respondeu cabisbaixo.
Será coordenador? indagou sem ânimo.
Sim, serei afirmou insatisfeito, pois não esperava aquela reação.
Você merece. Esforçou-se para isso. Parabéns! cumprimentou.Percebendo-a triste pela
mudança, aproximou-se e com voz meiga
revelou seus planos:
262
De repente, essa transferência é a melhor coisa a nos acontecer.Como coordenador, daqui uns
tempos, posso solicitá-la para trabalharcomigo.
Enquanto isso não acontecer, vou tolerando a Rita me difamando e o Vagner me assediando
comentou a moça pessimista.
Calma, Raquel. Não é assim.
Eu estou cansada de ser calma! exclamou ela gritando pelaprimeira vez. Fico calma
enquanto observo tudo acontecer errado naminha vida! Chega!
Alexandre tentou envolvê-la para conduzi-la a sentar, mas ela reagiu esquivando-se. Contrariado, ele se
calou. Para não alimentar nenhuma discussão, virou as costas, foi cuidar de seus afazeres. Mesmo se
sentindo magoado com a situação, procurou agir normalmente. Entretanto,
mais tarde, com modos simples,
ele perguntou:
Raquel, você viu meus chinelos?
Eles estavam jogados por aí e eu os guardei na sapateira, por quê?Não deveria?
Ele nada respondeu, mas ficou remoendo seus pensamentos, insatisfeito com o modo de ela lhe responder.
Raquel nunca fora assim. Pouco depois, ela o procurou, questionando:
Estou incomodando você, não é verdade, Alexandre?
Não, não está respondeu firme, encarando-a com seriedade.
Diga a verdade! Você não se sente mais à vontade em sua própria casa.
Raquel, pare. Pare com isso, por favor pediu determinado olhando-a nos olhos. Depois sugeriu
quase veemente: Se vamos conversar a respeito de um assunto sério, nós o faremos como duas
pessoas inteligentes, racionais, e não como rivais.
Mas você está aborrecido, importunado por minha causa disse; porém, agora, se expressava
mais ponderada. Eu altero todo o seu ritmo.
É lógico que uma pessoa altera um ambiente e muda os hábitos da outra. Com você e eu aqui
não seria diferente, mas isso não me incomoda.
263
Tirei você do seu quarto, mexo em suas coisas...
Espere, Raquel. Não se altere. Preste atenção: há alguns meses queestá aqui e desde o início
você não me tirou de lugar algum, fui eu quequis sair daquele quarto. Eu não a vejo mexer em minhas
coisas, vejo-aorganizando, só isso. Não lhe escondi que tenho a mania de largar minhas coisas
espalhadas. Entenda, de uma vez por todas, que você não me aborrece, certo?
Errado. Eu o incomodo, sim.
Você não me incomoda com o que faz em minha casa, nem com o quemexe ou muda de
lugar,
disse inalterável e olhando-a firme. Mas, às vezes, fico magoado com a maneira depressiva e triste de
me responder, de falar alguma coisa. De umas semanas para cá você está muito estranha. Creio que esteja
chateada com tudo o que aconteceu,sim. Mas essa mágoa, essa agonia em que se coloca não a deixa ver
ascoisas boas que estão a sua volta, Raquel.
Que coisas boas? perguntou de modo singular.
O que está lhe faltando aqui em casa, Raquel?! perguntou friamente decidido, sem titubear.
Diante de nenhuma resposta, relatou: Eu a respeito. Procuro tratá-la o melhor que posso. Minha família
não aincomoda. Ofereço-lhe o melhor ao meu alcance em todos os sentidos.Agora me diz: o que está
errado? Tudo isso não são coisas boas?
Raquel ficou calada. Seus olhos brilhantes demonstravam surpresa. Procurando picuinhas para exibir
insatisfação, falou a fim de se defender:
Você mandou a dona Lourdes lavar minhas roupas e eu não queria.
Raquel, deixe de ser boba. Essa mulher vem aqui três vezes porsemana, como você sabe. Ela
limpa o apartamento, lava e passa. Eu não a mando fazer nada, ela sempre fez o que precisava ser feito.
Ela deve ter encontrado sua roupa por aí e a pegou para lavar.
"Por aí", não! Eu não larguei nada jogado!
Demonstrando-se surpreso e contrariado, Alexandre suspirou e alegou:
"Por aí" foi força de expressão. Mas me diga, estragou algumacoisa?
264
Não.
Então qual é o motivo da reclamação?
Não quero que ela lave minhas roupas.
Tudo bem! Como queira continuou ele, sempre inalterável. Vamos falar com ela e aí, no fim
de semana, a senhorita ficará presa, odia todo, na lavanderia.
Você não entende! falou chorosa indo para a sala.Seguindo-a, Alexandre respondia, agora
quase nervoso, gesticulando
com as mãos e dizendo:
Não! Não entendo mesmo, Raquel. Daria para você me explicar?
Eu falo que vou arrumar e limpar a casa e você ainda contrata essamulher explicou-se com
lágrimas correndo e voz embargada.
Não, não estou entendendo aonde quer chegar!
Estou aqui de graça. Você não me deixa pagar nada. Quero contribuir com alguma coisa. Eu sei
cuidar de uma casa! Quando morava sozinha...
Não vou dispensar os serviços da dona Lourdes. Ela trabalha paramim desde que vim morar
aqui. Além do que, não vou usar você comofaxineira. Essa mulher, até hoje, tem sido ótima e de muita
confiança, o que é mais importante. Além disso, ela precisa desse serviço.
Vou sair o quanto antes de sua vida. Não posso ajudá-lo... Vocênão me deixa fazer nada por
você disse chorando magoada, fugindopara o quarto.
Nervoso e sem saber o que fazer, esfregou o rosto e sentou-se no sofáda sala no instante em que o
telefone tocou:
Alo! atendeu secamente, exibindo irritação.
Nossa, Alex! Que "alo"!
Oi, Rosana cumprimentou friamente.
O que aconteceu, Alex?
Nada.
Com essa voz, dizer que não aconteceu nada é assinar certificado de mentiroso riu. Está
tudo bem?
Está respondeu indiferente, mas com certa insatisfação.
265
A mãe está reclamando que você não aparece e nem liga pra ela.
Por que sempre sou eu quem tem de agradar aos outros?! Caramba!Estou cheio! respondeu
ele, agora verdadeiramente irritado.
O que está acontecendo, Alex? perguntou Rosana mais firme.
É a Raquel?
A Raquel está chorando no quarto, pra variar.
Por quê?
Não sei. Quer perguntar para ela?!
Deixe de ser malcriado e me responda direito exigiu Rosana,com veemência. O que houve?
Olha Rô, de uns dias pra cá a Raquel está estranha decidiuexplicar, agora mais controlado.
Parece que não se adapta aqui em casa.Chora à toa, nada está bom para ela, sempre se acha causadora
de algumproblema, sempre acha que está incomodando. Hoje, lá no serviço... Alexandre passou a contar
o que se sucedeu. No final, sua irmã avisou:
Sábado vou aí falar com ela e...
Não interrompeu-a de imediato.
Por quê?
Porque eu não quero, Rô. É melhor não se envolver em meusassuntos.
Então se prepara, porque a mãe disse que vai até aí no domingo.Ela quer conhecer melhor a
Raquel e tirar aquela má impressão do primeiro encontro e...
Fala pra a mãe ficar por aí! Certo?!
Credo, Alexandre! Nunca o vi falar assim!
Pois está vendo agora!
Rosana pensou em brincar com seu irmão como sempre fazia, mas percebeu que ele estava realmente
irritado e decidiu não arriscar.
Alexandre, escute: precisamos conversar melhor.Parecendo um pouco mais flexível, respondeu
ponderado:
Olha Rô, até sábado tem tempo. Depois a gente se fala, tá? Só me faça um favor: vê se a mãe
não vem aqui, não.
Você vai sair neste fim de semana?
266
Talvez. Não estou a fim de ficar socado em casa. Pensei até em ir à praia, mas quero voltar no
mesmo dia. Preciso relaxar um pouco.
A Raquel, vai junto?
Não sei. Se não quiser ir também...
Calma, Alex. Não fique assim.
Rosana conversou por mais tempo com seu irmão, aconselhando e acalmando-o. Naquela noite ele não foi
se despedir de Raquel antes de se deitar, como sempre fazia. Magoara-se muito com ela e queria mostrar-
lhe isso. A amiga, por sua vez, ficou insone e rolando de um lado para o outro, chorando pela distância que
Alexandre manteve.
O fim de semana chegou e nem a irmã ou a mãe de Alexandre compareceram para uma visita. Algo por
demais pesaroso pairou no ambiente e o rapaz não se sentiu animado para sair, muito menos Raquel.
O remanejamento de Alexandre para outro departamento ocorrera conforme o previsto. Isso deixou Raquel
abalada, uma vez que a presença do amigo lhe dava segurança e auxílio. Mesmo trabalhando em outro
andar, ele se preocupava e ligava interessado em saber como ela estava ou se poderia ajudá-la em algum
serviço. Rita e Alice ficaram mais à vontade para deixar Raquel inquieta, importunando-a com provocações.
Isso deixava a moça apreensiva e amargurada, fazendo-a sofrer imensamente. Raquel passou a ter muitas
dificuldades com seu trabalho, provavelmente provocadas pela falta de equilíbrio emocional. Erros
singulares começaram a ser cometidos com frequência, comprometendo seu desempenho.
Era sexta-feira, nesse dia Alexandre estava mais animado e passou no andar onde a amiga trabalhava para
irem embora juntos, como de costume.
Vamos? chamou ele, exibindo-se satisfeito.
Raquel, calada e séria, pegou suas coisas e eles foram embora. A caminho de casa, Raquel não dizia uma
palavra, enquanto Alexandre não conseguia conter seu entusiasmo e contava alegre:
267
Que diferença! Antes o Vagner me "sufocava" e eu não podia pôr em prática minhas ideias, nem
exibir meus conhecimentos...
E durante todo o trajeto para casa ele não parou de falar. Ela, em silêncio, às vezes parecia nem ouvi-lo.
Após algum tempo, Alexandre percebeu sua reação, mas não disse nada. Entraram no apartamento e ele
imediatamente perguntou:
Tudo bem, Raquel?
Surpresa, ela o encarou e não conseguiu responder, pois sentia vontade de chorar. Virando-se,
rapidamente, foi para o quarto sem argumentar nada com o amigo. Contrariado, sem suportar mais aquela
situação que se arrastava há dias, ele a seguiu entrando na suíte e, forçando-se para não se exaltar,
perguntou:
O que está acontecendo, Raquel?! O que está te faltando?Raquel atirou-se sobre a cama e,
chorando, respondeu com a voz
abafada, por estar debruçada com o rosto entre os braços:
Eu estou com dor de cabeça.
Não, Raquel. Não minta. Sente-se, por favor. Vamos conversar.Contrariada, ela obedeceu, mas
escondia o rosto entre os cabelos,
chorando e não conseguindo conter os soluços. Alexandre sentou-se ao seu lado e, procurando olhá-la no
rosto, perguntou mais calmo:
O que está acontecendo com você? Não está feliz aqui comigo? É isso? Não está suportando
mais a minha presença? Não quer a minhacompanhia? Seja o que for, fale, por favor. Não aguento mais
essa situação. Conforme Alexandre falava, o choro de Raquel ficava mais intenso. Sou eu?
prosseguiu brando diante do silêncio. É aminha companhia que a deixa assim, por que não me suporta
mais?
Não respondeu com voz fraca, entre os soluços.
Então o que é? tornou com extrema tolerância.
Lá no serviço estou me sentindo uma incompetente. Não consigofazer nada, e, ainda... contou
com as palavras entrecortadas pelos soluços.
E ainda, o quê? quis saber exibindo apoio.
A Rita e a Alice ficam me provocando. Como se não bastasse, oVagner... Ela não conseguiu
terminar, mas Alexandre já imaginava
268
que, sem sua presença ao lado de Raquel, o colega iria assediá-la. Diante da pausa, ele insistiu
interessado:
O que ele fez?
Não vou te oferecer mais problemas e preocupações.
O que o Vagner fez?! perguntou com sua voz grave, indignado pelo que imaginava.
Não fique assim pediu amedrontada, fugiu ao seu olhar.
Então me conta, ou na segunda-feira vou perguntar a ele.
Na verdade ele não fez nada revelou chorando. Mas sempre fica do lado... Cada vez que eu
erro algo, ou quando tem que me passar algum serviço, ele fica muito perto, falando baixinho e se curvando
em cima de mim...
Ele fez alguma coisa? Tocou em você ou falou algo? Devido ao silêncio, insistiu mais
ponderado: Por favor, Raquel. Diga-me a verdade. Não gosto de surpresas.
Constrangida e secando as lágrimas, ela revelou:
Ele fica dizendo que estou bonita agora... estou melhor que antes... Olha de um jeito... estou com
medo. Com muito medo dele.
Ele a tocou ou tentou algo?
Eu tenho medo. Ele... outro dia... Não consigo... Tenho medo de... tentou dizer entre os soluços
e a emoção forte.
Do que você tem medo, Raquel? O que esse desgraçado fez?! Que medo é esse? Ela
chorava. Desconfiado, mas bem ponderado, Alexandre segurou seu o rosto com carinho e perguntou mais
gentil: Oque ele fez, Raquel? Por que esse medo?
Porque há um tempo atrás contava ela chorosa , eu estavaindo embora, quando passava
pelos carros que estavam no estacionamento... Uma crise de choro se fez, ele foi acalmá-la, mas Raquel
se esquivou do carinho que o amigo tentou fazer em seus cabelos.
O que aconteceu, Raquel?
Vagner me agarrou, com força e... tentou me beijar e... choroucopiosamente.
Desgraçado!!! Infeliz! reagiu Alexandre nervoso, levantando-se, irritado ao andar de um lado
para o outro.
269
Infeliz, sou eu! Estou cansada dos outros se aproximarem de mimcom segundas intenções, com
convites indecorosos, insinuações e... Estou cheia dessa vida! Só vêem que sou bonita, só pensam que eu
lhe sserviria... Outros só sabem me acusar, me caluniar. Ninguém imagina que eu tenho dignidade, que eu
tenho uma alma, um coração, que sou gente e sofro com isso. Maldito instante em que nasci bonita!
Alexandre ficou magoado porque acreditou que Raquel o encaixava no conjunto daqueles que a admiravam
pela beleza e a queria por isso. Sentando-se novamente abaixou a cabeça pensando no que poderia dizer
para confortá-la. Raquel, que parecia disposta a desabafar, mesmo chorando, continuou:
Não suporto mais, a Rita fica falando que eu o roubei dela, que atraí. Quando estamos no toalete,
perto de outras colegas, ela e a Alice me provocam, dizem que sou vadia, ou nomes piores, por ter uma
filha e que não sei quem é o pai. Quando entro, elas falam: "Olha quemchegou!" E dizem um monte de
nomes feios. A Alice fica provocando,repetindo que vou perder o emprego e voltar a ser indigente;
aindapergunta se eu não tenho vergonha em ficar esmolando casa e comida.
Após outra crise de emoções, falou magoada: Todo mundo estásabendo que morei nas ruas.
Enternecido, ele a olhou piedoso, pois era capaz de compreender o que a amiga vivenciava. Sentando-se
mais perto, Alexandre colocou o braço em seu ombro, puxando-a delicadamente para si, dizendo:
Vem cá, Raquel. Não fique assim.
Raquel encostou o rosto em seu peito e chorou ainda. Ele a abraçou com carinho, dizendo-lhe com
tranquilidade e ternura na voz:
Elas querem isso mesmo. Querem que você fique nervosa, irritada. Querem que brigue comigo.
Seja esperta, Raquel. Não correspondaà vontade delas. Não se subestime.
A Alice disse que nunca vou conseguir rever minha filha e que ela vai me odiar por tê-la
abandonado, isto é, se ela tiver saúde para compreender, porque, se for filha do tio... Ela nem sabe que ele
é meu pai
contava com a voz abafada pelo abraço. De outras vezes, Alice afirma que ela já foi adotada e...
270
Raquel chorou escondendo o rosto no peito do amigo. Em poucas palavras, Alexandre rogou para que
pudesse encontrar um meio de confortá-la e tirá-la daquele desespero. Ajeitando-a nos braços, deixando-a
de frente para si, aninhou-a como a uma criança e a embalou, agora argumentando com voz terna para
acalmá-la:
Viu como tudo isso é um complô contra nós? Foi só dizer aoVagner que traríamos a Bruna para
morar conosco e ele já foi contarpara a Alice, agora ela está infernizando você com essa história de que
amenina já foi adotada. Os fatos são diferentes das suposições, Raquel.Não ligue para essas fofocas.
Ocupe sua mente com coisas proveitosas,ideias boas e terá mais harmonia. Após alguns segundos falou
parecendo sonhar: Nós vamos encontrar a Bruna. Ela é linda! É comovocê. Deve estar esperta e
esperando a sua volta. Tenho certeza disso.Sei, de algum modo, que a Bruna Maria quer conhecê-la.
Vocês vão se amar muito.
Raquel, ainda em seus braços, parou de chorar e ficou olhando Alexandre que, entusiasmado, passava-lhe
vibrações felizes e desejos salutares.
Não sei por que prosseguiu ele sorrindo levemente , mas,quando penso na Bruna, imagino o
seu rosto, seu jeito... Ela é perfeita,doce...
O silêncio se fez.
Alexandre passou a olhar Raquel, agora mais tranquila e quase sorrindo, que estava como que aninhada
em seus braços fortes, quase deitada e abraçando-o, também. Ele a envolvia com carinho e ternura. Ficou
olhando-a por longo tempo e Raquel correspondia com semblante inebriado. Não resistindo ao desejo
maior que o dominava, Alexandre, vagarosamente, aproximou-se de Raquel, até que seus lábios se
tocaram e ele, com todo seu amor, a beijou delicadamente. Raquel ficou parada, sem reação. Apertando-a
suavemente junto a si, ele não conteve os sentimentos e beijou-lhe em seguida por várias vezes, no rosto e
nos lábios, acariciando-lhe os cabelos com paixão. Repentinamente, Raquel colocou a mão em seu peito,
impedindo-o. Ele parou imediatamente, dando-se conta da situação, observando-a e sem saber como agir.
Ela exibiu-se aflita, passou a tremer, até seu queixo mostra-
271
va forte estremecimento pelo medo ou pavor que passou a sentir. Ao afastá-lo de si, sentando-se
novamente, às pressas, sussurrando disse ao abaixar o olhar:
O que você fez...?
Perdoe-me, Raquel. É que eu a amo muito e... pediu sem argumentos em sua defesa.
Alexandre se levantou, sentia seu coração descompassado, acreditando ter traído a confiança de Raquel,
não sabia o que fazer. Passando as mãos pelos cabelos, andou um pouco,voltou e parou na frente de
Raquel que estava sentada na cama e não oencarava. Ajoelhando-se, segurou com delicadeza seu rosto e
pediu com voz terna:
Perdoe-me, por favor. Nunca mais vou fazer isso. Nunca mais voutrair sua confiança, se me der
outra chance.
Raquel fugia-lhe ao olhar e não disse nada, abaixando a cabeça em seguida. Magoado consigo mesmo,
Alexandre se levantou e saiu do quarto. Raquel não sabia dizer o que havia acontecido, sentindo-se
confusa, constrangida. Quase automaticamente tomou um banho. Ainda com os cabelos molhados, ao sair
do quarto, foi para a cozinha aquecer o jantar, quando viu Alexandre arrumado para sair, procurando as
chaves do carro. Surpresa, ela não sabia o que argumentar. Sem encará-la muito, após encontrar as
chaves, o rapaz avisou:
Vou sair. Não me espere.
Você não vai jantar? perguntou temerosa.
Não respondeu timidamente virando-se rápido.
Alexandre? chamou-o com voz meiga parecendo amedrontada.O amigo se virou e ficou
esperando, mas sem olhá-la.
Você voltará tarde? perguntou muito constrangida.
Talvez. Não me espere. Jante e vá dormir. Não tenho horas paravoltar, mas, se precisar de algo,
ligue para o meu celular.
A moça não disse mais nada. Vendo-a parada, ele se despediu a distância:
Não se preocupe comigo. Tchau. Dizendo-lhe isso, ele virouas costas e saiu.
272
Raquel se atirou no sofá e teve longa crise de choro compulsivo. Angustiada, remoía seus pensamentos
por conta daquela situação. Sempre desejou serenidade, mas parecia algo distante demais. Não sabia o
que fazer. Tão jovem conhecera tantas amarguras que a impediam de ser feliz. Agora estava em conflito
com os sentimentos e os traumas.
Por volta das quatro horas da madrugada, Alexandre chegou. Procurando fazer silêncio a fim de não
acordá-la, entrou vagarosamente no apartamento. Sentindo um pouco de fome, foi até a cozinha e
observou que a comida não tinha sido tocada por Raquel.
"Será que ela estava me esperando para jantar?", pensava. "Mas ela deve estar chateada com o que fiz,
considerando-me tão cafajeste quanto o Vagner, pensando que eu quis me aproveitar da situação só por
ser o dono da casa, por estar apaixonado por ela, por..."
"Droga! Estraguei tudo. Não fui digno e ela havia acabado de me falar que os outros só se aproximavam
dela com outras intenções."
Alexandre ainda se sentia perturbado, contrariado consigo mesmo. Apesar disso, preparou um lanche,
pegou um refrigerante e, só ao chegar à sala que estava na penumbra, viu Raquel adormecida no sofá.
Não sabia se deveria acordá-la. Se o fizesse, o que teriam para conversar? Deixando sobre a mesinha
central o refrigerante e o prato com seu lanche, foi em direção ao sofá, olhando-a de perto, certificou-se de
que ela estava dormindo. Em seguida, foi até a suíte, arrumou a cama, posicionou o travesseiro e retornou
para a sala. Pegando Raquel no colo, ia levá-la para o quarto com todo cuidado. Mas no caminho Raquel
despertou e quase gritou pelo susto.
Calma, sou eu. Fica tranquila. Sou eu avisou brandamente.Ela o agarrou na camisa temerosa e
ele acabou de levá-la para a suíte,
colocando-a sobre a cama. Observando-a, viu que estava como que assombrada com sua ação. Apesar do
coração dolorido, com modos quase frios, Alexandre justificou:
Cheguei agora. Fui assistir à televisão e você estava no sofá. Não queria incomodá-la, por isso a
trouxe. Desculpe-me pelo susto.
273
Desculpe-me por ter ficado lá, eu... respondeu com voz acanhada.
Não se preocupe com isso. Está tudo bem. argumentou.Quando se virou para sair, Raquel ia
se levantando, ao perguntar:
Você jantou?
Preparei um lanche. Pode dormir sossegada.Ao vê-lo sair, Raquel consultou o relógio.
"Quatro e vinte! Onde ele esteve até essa hora?", pensou. "Alexandre está tão diferente... frio. Que
estranho".
Na manhã seguinte ela se preocupava, eram quase meio-dia e Alexandre não tinha saído do quarto. Não
sabia se deveria chamá-lo, isso talvez não ficasse bem. Lembrou-se de que ele entrava na suíte quando
estava preocupado, ou quando precisava, ela então poderia fazer o mesmo. No entanto, aquele
apartamento era dele, poderia ter toda liberdade. E se Alexandre tivesse levado alguém para seu quarto?
Ele era homem e o dono da casa.
Raquel começou a se envenenar sozinha com inúmeros pensamentos conflitantes. Imediatamente,
lembrando que Alexandre tinha problemas cardíacos, pensou que pudesse ter passado mal. Sim, poderia
ser isso. Além de tudo, ela seria culpada uma vez que o fez ficar nervoso. Inquieta, preocupada e
cautelosa, foi até o quarto e, batendo suavemente, chamou:
Alexandre, tudo bem? Nada. Ele não respondia. Após tentarnovamente, sem obter nenhuma
resposta, Raquel abriu a porta, espiando ao chamar: Alexandre?
Entra... respondeu ele, com voz grave e baixa.
Posso acender a luz? pediu ela, pois apesar de ser meio-dia as janelas fechadas e as cortinas
escureciam o quarto.
Pode sussurrou.
Ao vê-lo mais de perto, notou que estava encharcado de suor. Raquel sentiu um odor horrível percebendo
que ele havia vomitado no chão.
Alexandre! O que é isso?! assustou-se ela. O rapaz se largara sobre a cama, não se importando
com seu estado, e a amiga afirmou: Você precisa de um médico! Ao tocá-lo, falou: Está com febre!
274
Acho que sim murmurou ele falando lentamente.
"Acho", não! Você está queimando! Meu Deus! O que faço?!
Você dirige? perguntou lento e com dificuldade.
Não, mas vou chamar a sua irmã, agora.
Não... sussurrou o rapaz ao vê-la sair.
Vou sim! afirmou caminhando sem lhe dar importância.Pouco depois, após falar com a mãe de
Alexandre, explicando seu
estado, Raquel retornou ao quarto.
Vamos, sente-se pediu ela quase ordenando. Você tem quetrocar essa camisa.
Não precisa... balbuciava.
Precisa, sim. Observando seu estado, perguntou: Você não conseguiria tomar um banho
sozinho?
Acho que não replicou ele, quase se largando.
Com dificuldade, Raquel o levou para o banheiro fazendo-o se sentar em uma cadeira. Tirou-lhe a camisa,
o fez lavar o rosto e passou-lhe, várias vezes, uma toalha umedecida no tronco e braços. Alexandre
encontrava-se tão mal que precisava se amparar na amiga ou ser segurado por ela, mesmo sentado.
Rápida, limpou o quarto antes que a irmã e a mãe dele chegassem e, minutos depois, isso aconteceu.
Onde ele está? perguntou dona Virgínia preocupada.
No quarto.
As três levaram Alexandre ao médico, retornando bem mais tarde. Já de volta em sua casa, ainda com certo
mal-estar mesmo depois de medicado, ele tomou um banho demorado e se deitou no quarto sem ter
condições de se importar com o que acontecia à sua volta. Agora, menos aflita, dona Virgínia procurou por
Raquel que preparava um chá para Alexandre e um café para elas. Entrando na cozinha chamou-a
calmamente ao entrar:
Raquel?
Senhora respondeu Raquel, sentindo-se gelar. Além de ser aprimeira vez que se via sozinha
com dona Virgínia, acreditou que seria advertida.
275
Agora, mais calmas, podemos conversar. O que aconteceu? perguntou mantendo-se tranquila.
Com voz fraca, exibindo-se muito constrangida, Raquel contou:
Nós chegamos do serviço ontem e, bem, o Alexandre não quisjantar dizendo que iria sair.
Você não foi com ele?
Não, senhora respondeu sempre tímida e educada.
Por que, ele não a chamou?
Não admitiu recatada ao abaixar a cabeça.
Aonde o Alex foi?
Não sei dizer, dona Virgínia. Ele não me contou. Quando chegou já era bem tarde e nós não
conversamos direito.
A que horas ele chegou?
Por volta das quatro informou com educação peculiar e acanhada.
Após alguns segundos, desconfiada, a mãe do rapaz perguntou:
Vocês brigaram, Raquel?
Raquel demorou de responder, mas por fim disse:
Não.
Sente-se aqui, Raquel pediu com simplicidade.
A moça sentiu-se esfriar ainda mais. Acreditava que a mãe de Alexandre poderia querer desmoralizá-la por
ela estar morando ali e principalmente por aquela situação. Sentando-se no lugar indicado, trazendo as
mãos geladas e molhadas de suor, Raquel exibia nítido nervosismo ao torcê-las.
Calma, filha. Não precisa ficar assim pediu dona Virgíniaobservando sua aflição. Só quero
entender o que está acontecendo edar a minha opinião. Eu estou preocupada com o Alexandre,
Raquel.Não só com o que aconteceu hoje, mas também com tudo o que vem ocorrendo ultimamente.
Gostaria que você se colocasse em meu lugar eprocurasse me entender.
Eu a entendo, dona Virgínia. Aliás, gostaria de já ter conversado com a senhora há mais tempo.
Não quero que pense mal de mim.
276
Então vamos lá. Primeiro, quero saber se vocês brigaram ontem.
Não exatamente. Eu estava chateada com algumas coisas que não estão dando certo no serviço
explicou com sua voz suave e temerosa. Alexandre deve ter contado que estou morando aqui de favor
e temporariamente. Se algo der errado agora e eu for demitida, não sei o quevou fazer. Quero deixar esse
apartamento o quanto antes. Então, ontem, falávamos sobre isso e o Alexandre se irritou. Eu disse que o
incomodava e ele afirmava que não... falávamos de coisas assim. Ele ficouchateado. Depois disso, tomou
um banho, se arrumou e disse que não o esperasse. Perguntei se queria jantar, mas ele disse que não.
Fiqueinervosa, magoada. Após ele sair, passou muito tempo e eu dormi. Acordei depois, quando ele
chegou e...
"E" o quê?
Eu me assustei e o achei meio esquisito. Frio com as palavras ecom as atitudes. Após alguns
segundos, ela revelou sempre sensível etímida: Acho que senti cheiro de bebida. Perguntei se queria
comer alguma coisa, mas ele disse que estava fazendo um lanche. Na verdade,depois disso não dormi
direito. Pela manhã eu levantei e vi que ele nemtinha comido todo o lanche que fez.
O que ele comeu aqui?
Um sanduíche de queijo e presunto. Deu uma ou duas mordidase largou. Achei o resto aqui em
cima da pia. Ele nem jogou fora. Quandoachei que estava demorando muito para levantar, fui ver o que
haviaacontecido, porque comecei a ficar preocupada, ele costuma levantar cedo sempre e como eu sei que
ele é cardiopata... Foi isso o que aconteceu.
Após ouvir a história, a mulher ficou em silêncio por algum tempo e, observando o nervosismo aflitivo de
Raquel. Pouco depois, dona Virgínia perguntou:
Vocês estão juntos há alguns meses. O Alexandre, nesse tempo, jásaiu assim sem dizer aonde ia
e voltou de madrugada?
Não. Ele nunca fez isso antes.
Olha, filha disse a mulher, respirando profundamente , eunão sei direito como vocês estão
se relacionando...
277
Interrompendo-a, Raquel avisou a fim de se defender, mas com modos simples, educados, e foi
categórica:
Não temos nada, dona Virgínia. Infelizmente eu estou necessitando de um lugar para morar.
Passei e passo por uma situação muito difícil e o seu filho está me ajudando. Mas nós não temos nada.
OAlexandre é um grande amigo, me respeita muito. Eu o respeito também. Ontem, foi a primeira vez que
ele saiu e voltou de madrugada.Sabe, não me cabe perguntar aonde ele vai ou de onde veio. Não sounada
dele para fazer isso justificou com voz meiga. Enquanto moro aqui, procuro cozinhar, arrumar,
contribuindo com o que posso e da melhor maneira possível. Sentindo-se ofendida na dignidade,apesar
de temerosa, defendeu-se ao desfechar: Sou grata ao Alexandre, mas não me vendo em troca de nada.
Espere, menina reclamou a mãe de Alexandre, quase ofendida. Eu não disse isso. Você
nem me deixou terminar.
Então me desculpe pediu Raquel, abaixando o olhar. Porémcontinuou: Mas sabe o que é?
Nos últimos tempos só encontropessoas que me julgam erroneamente e não conseguem acreditar em uma
grande amizade entre um homem e uma mulher sem que haja"algo mais", não acreditando que uma
pessoa pode ajudar a outra sem interesse.
Mas, Raquel, você há de convir comigo que é difícil vermos um rapaz jovem, bonito, estabilizado e
que mora sozinho, colocar para dentro de sua casa uma moça, também jovem e muito bonita, sem
queexista algum relacionamento mais íntimo entre eles. A princípio sim,mas com o tempo...
Dona Virgínia... tentou explicar em tom vacilante.
Por favor, Raquel... pediu a mulher, com gesto singular, fazendo-a esperar. Levantando-se em
seguida continuou: Não quero que me prove nada, mas gostaria de entender e acreditar nisso,
se possível. Vou ser sincera, não vejo com bons olhos esse relacionamento, principalmente pelo fato de
você ter surgido repentinamente noapartamento do meu filho. Nunca ouvi o Alex falar de você. Não sei se
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antes se conheceram o suficiente ou se namoraram. Contudo, nessas alturas dos acontecimentos, isso não
me importa mais. Entretanto, Raquel, ninguém pode me impedir de zelar pela segurança e pelo bem-estar
do meu filho! Meu Alex já passou por sérios problemas, você sabe disso. Não quero vê-lo sofrer
novamente. Meu filho nunca teve que sair de casa à noite, e ainda sem jantar, para fugir de algum tipo de
conflito que não quisesse encarar, voltando só de madrugada. O Alexandre é racional, equilibrado e
determinado! Se ele fez isso éporque alguma coisa séria aconteceu. Se dentro da opinião do Alex você,
Raquel, não é um problema na vida dele, que seja uma solução. Olhando-a bem nos olhos, dona
Virgínia quase a intimou: Trate bem o meu filho, por favor. Se você o respeita, se o considera por tudo o
que vem te fazendo e ajudando, faça-o feliz! É o mínimo que ele merece! Pense bem no que você fez ou
deixou de fazer para ele sair de sua própria casa.
Após dizer isso, dona Virgínia deixou Raquel sozinha. A moça sentia-se ofendida e humilhada. Pensando
bem, ela não poderia tirar a razão daquela mãe, principalmente pelo fato de ela ignorar muito do que estava
acontecendo.
No instante em que esclareciam os fatos, espíritos sem instrução e dispostos a comprometer
negativamente a conversa envolviam a mãe de Alexandre a fim de fazê-la maltratar Raquel. Dona Virgínia,
mulher que sempre fora educada e compreensiva, apesar de procurar se conter a fim de não magoar a
moça, acabou se deixando levar pelo envolvimento que sofria. Mesmo não tendo se extrapolado, uma vez
que o objetivo dos desencarnados era o de vê-la excessivamente irritada e nervosa, dona Virgínia passou
péssimas impressões e criou pesarosas vibrações para Raquel. Agora, a amiga de Alexandre estava se
sentindo incrivelmente perturbada, como se não bastasse tudo o que sofreu e sofria, fora ofendida e estava
magoada. A jovem teve de criar forças para não chorar naquele momento.
Levantando-se, pegou o chá e o café que havia preparado e levou para Rosana e dona Virgínia, que
estavam no quarto junto com Alexandre.
279
Após servi-los, deixou-os imediatamente. Pouco depois, Rosana foi à sua procura e Raquel, com os olhos
vermelhos, se encontrava na lavanderia.
O que está fazendo? Ora, deixa isso para a Lourdes!
De jeito nenhum respondeu escondendo o rosto entre os cabelos para que a outra não visse.
Raquel, o que foi?
Prefiro não falar... Sua mãe está aí e... respondeu cabisbaixa.
Não fique assim. Depois conversamos argumentou compreendendo.
Raquel não respondeu nada, continuando com o que estava fazendo. Rosana, ignorando ser sua mãe a
causadora daqueles sentimentos, preferiu deixá-la só. Mais tarde, quando se despediam, a mãe de
Alexandre comentou:
Raquel, desculpe-me se fui tão sincera com você. Mas eu disse o que meu coração pedia.
Do que você está falando, mãe? perguntou a filha sem entender o que se passava.
Nada. Depois conversamos respondeu-lhe. Voltando para Raquel, continuou: Você fez bem
em ter nos chamado. Lembre-se, oAlexandre não pode tomar qualquer medicamento. Por favor,
qualquercoisa, nos avise imediatamente.
Pode deixar, dona Virgínia, cuidarei bem dele tímida, mas firme.Depois que elas se foram,
Raquel voltou ao quarto para confirmar se
ele estava bem ou se precisava de algo. Ao vê-la, Alexandre deixou um largo sorriso iluminar o seu rosto
pálido e pediu:
Vem cá. Sente-se aqui.
Você me assustou comentou após aceitar o convite.
Você vai sobreviver a isso brincou rindo.
O que comeu para lhe dar um problema gástrico infeccioso? Você teve até febre! Nossa!
Deram o nome de "enterite".
Pouco importa o nome. O que comeu? tornou com simplicidade.
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Nem sei. Não comi muita coisa respondeu ao recostar-se nos travesseiros. Até cheguei com
fome. Preparei um lanche e nesta horacomecei a me sentir mal. Nem terminei o lanche.
Aonde você foi? perguntou automaticamente, sem se dar conta de sua curiosidade.
Não quero falar sobre isso fugindo-lhe ao olhar sem perceber.Raquel, parecendo magoada,
quase irritada, ia se levantando ao dizer:
Desculpe-me por ser indiscreta. Não tenho nada com isso. E...Rápido, Alexandre a segurou pelo
braço e falou sério, encarando-a
firme:
É importante para você saber aonde eu fui?
Preocupo-me com você. Gostaria de saber. Só isso afirmouacanhada.
Ele simulou um sorriso com o canto da boca, respondendo:
Eu não estava com nenhuma outra mulher, não. Segurando-lhe com delicadeza, completou
meigo: Eu não poderia traí-la, Raquel. Se você quer saber, eu digo. Fui a um barzinho. Fiquei sozinho
otempo todo. Algo que não fazia há muito tempo fiz. Tomei uma bebida,o que não deveria. Comi algo que
nem sei direito o que era, mas sentigosto de maionese. Angustiado, confessou: Sabe, eu não
parava de pensar rio que aconteceu. Desrespeitei você. Traí sua confiança. Aomesmo tempo fiquei confuso.
Fiz o que mais desejava... Você entende?Entrei em conflito comigo mesmo. Apesar de tudo, quero que me
perdoe. Raquel, com olhar baixo, tentou se levantar, mas ele não a largou, insistindo: Você me
perdoa, Raquel?
Não vamos falar sobre isso. Vou preparar sua alimentação.
Não quero comer nada. Responda-me, você me desculpa?Ela ficou em silêncio, depois
argumentou:
Não tenho que desculpá-lo. Você não me ofendeu.
Mesmo?
Eu me assustei, não esperava. Fiquei com medo, eu...Alexandre percebeu algo estranho nos
sentimentos de Raquel que
parecia estar cedendo, se revelando timidamente, ele sentia. Sua irmã
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tinha razão, ela gostava dele, só não admitia, não sabia como agir nem como tratá-lo.
Perdoe-me se eu a assustei pediu o amigo com olhar suplicante e voz terna, tentando envolvê-
la. Ela abaixou o olhar novamente e ele pediu: Você pode me dar um abraço?
Raquel o encarou, ficou temerosa, confusa, mas por fim aproximou-se e o abraçou com cuidado. Ao tê-la
junto de si, ele sussurrou-lhe:
Obrigado, Raquel. Obrigado por cuidar de mim.
No dia seguinte, quando conversava com sua irmã que fora novamente visitá-lo, Alexandre contava:
Ela agiu diferente. Sorrindo afirmou: Estava quase irritadapara saber aonde eu tinha ido.
Rosana já estava sabendo o que acontecera entre Alexandre e Raquel no dia anterior.
Ciúmes! anunciou a irmã com ênfase. Só pode ser isso.
Mas é tão difícil conquistá-la, Rô. Eu nunca sei o que fazer.
Você não acha que ela precisaria da ajuda de um psicólogo? Quemsabe uma terapia?
Ironicamente o irmão respondeu:
Certo! Perfeito! Chegarei nela e direi: "Raquel, querida, vamos aum psicólogo porque eu quero te
namorar! Quero beijá-la e você não deixa". Ora, Rosana! Isso não tem cabimento.
Também não é assim, né! respondeu a irmã se defendendo econcluiu: Aos poucos você
pode indicar uma terapia. Diz que você aajuda, a apoia.
Nem namorados somos, Rô. Como eu poderia? Raquel não se permite. O silêncio se fez por
alguns instantes, mas logo Alexandreavisou: Estou pensando em falar com ela sobre trazer a filha
parajunto de si. Já há algum tempo venho conversando sobre a menina,fazendo-a se acostumar com a
ideia. Como eu sei que um profissional
282
dessa área será necessário para a readaptação da Bruna, posso sugerir que ela aproveite a oportunidade.
Vai devagar, Alex. Eu não entendo muito de lei, mas o caso de Raquel é um tanto complicado. Veja,
ela abandonou a filha ao nascer,não a procurou depois e nem sabe como a menina está hoje, ou
comquem.
Alexandre, em defesa, lembrou:
Mas ela tem o direito de ter a filha, Raquel é a mãe.
E o abandono, não conta? avisou a irmã.
Mas Raquel abandonou a filha por seu estado emocional. Ela sofreu abuso sexual intrafamiliar e
agressivo, era menor de idade, foi coagida, intimidada, sua gravidez não foi planejada e não aconteceu
por irresponsabilidade dela ou por prostituição. Além disso, teve problemas graves com a família, que a
expulsou de casa. Depois, quando procurouapoio da mãe, ela virou-lhe as costas e a deixou com o peso de
saber quea criança que ia nascer era filha de seu próprio pai. O que mais vocêquer? Há inúmeros
atenuantes a seu favor.
Calma, Alexandre. Lembre-se de que falaram que Raquel tinhaum namoradinho e depois de
expulsa de casa foi morar na rua. Primeiro podem dizer que ela se relacionou com o namorado ou que se
prostituiu quando morou na rua e daí concebeu a filha.
Mas ela não namorou o rapaz.
Será a palavra dela contra a dos outros. A família pode acusá-la delevar uma vida irregular. Não
sei como é isso, mas creio que haveráinvestigações. Não vão entregar uma criança para alguém que diga
ser amãe. Mesmo hoje, ela precisa ter uma vida íntegra.
Isso eu sei avisou o irmão.
Mas em que condições se deu o abandono? Raquel já era maiorde idade?
Quando a menina nasceu, sim. Mas quando concebeu, não afirmou.
Ela reconheceu a filha, ou melhor, registrou-a e depois entregoupara a adoção?
283
Não. Raquel mal disse o seu nome. Ela estava em choque. Não conversou nas entrevistas e nem
pegou a filha no colo. Só sabe dizer quechamavam a menina de Bruna Maria. Depois disso ela fugiu do
lugar.
Cuidado para você não dar esperanças a ela em uma situação complicada. Veja, houve ruptura
da filiação no nascimento e Raquel era maior de idade. Psicologicamente falando, será que houve um
trabalho de luto por essa separação? Será que ela sofreu por ter que deixar a filha?
Pelo amor de Deus! Raquel concebeu essa filha num estupro!!! alterou-se defendendo.
Você não pode exigir algo de uma pessoa que sofre uma violência dessa! Considero-a até uma vitoriosa por
hoje estarfalando da filha sem rancor, mágoa ou coisa assim.
Tudo isso está a favor dela, Alex, sem dúvida. Mas e depois, como passar dos anos, ela foi
procurar pela criança? Sabe onde ela está? Se tem problemas de saúde física ou mental?
Há pouco tempo ela telefonou e pediu informações. A meninahavia sido transferida para outro
orfanato logo após o abandono.
Eu estou te alertando para que vocês não sofram. Vamos primeiro saber o que diz a lei. Após
pequena pausa, Rosana perguntou: Não quero desanimá-lo, mas você sabe me dizer se essa menina já
foiadotada ou não? Alexandre arregalou os olhos e Rosana continuou: Será que o abandono da mãe,
que caracterizou ruptura após o parto,não fez com que Raquel perdesse o pátrio poder sobre a filha?
Isso não acontece!
Claro que sim. Principalmente que, diante dos assistentes sociais e dos psicólogos a, Raquel te
contou que nunca disse nada, ficou muda.Não falou sobre os problemas que viveu, não contou que
engravidounum estupro, não relatou seus medos e não disse que a filha era suairmã. Eles não sabiam
nada sobre a Raquel e ela simplesmente desapareceu após o parto. O juiz pode tê-la destituído do pátrio
poder e passado o mesmo a um casal que quisesse adotar a menina.
Contrariado, Alexandre não se conformava com as possibilidades que a irmã alertava. Preocupado, ele
alegou:
Mas nenhuma mãe perde tão facilmente a guarda de um filho.Raquel tem esse direito.
284
Aí é que você se engana disse Rosana encarando-o. Nãoentendo muito bem, mas vida
imoral e prostituição fazem com que amãe perca, sim. O que Raquel fez depois que abandonou a filha?
Obviamente haverá uma avaliação psicológica e social de tudo o que aconteceu a ela e o que fez. Por que
ela nunca foi procurar a menina? Porque somente agora? Quando houver uma investigação, o que a
cunhada vai dizer como referência?
Como assim?
E se Alice aparecer e informar que a Raquel se prostitui? Não foiisso que ela disse ao marido e,
por isso, Marcos chegou ao ponto deexpulsar a irmã de casa? Eles não disseram que ela chegava de
carro"com um e com outro"?
Mas era eu! Eu havia trocado de carro. O resto é mentira da Alice.
Prove isso! Prove que era você! Além do mais, por maldade, lá no serviço não a acusaram de
"jogar no outro time"? Podem continuar dizendo isso para prejudicá-la, pois a moça, a tal de Rita, que diz
ter sido"cantada" pela Raquel, gosta de você, não é?
Terão que provar isso irritou-se Alexandre.
Olhando-o e percebendo que o irmão não havia se dado conta da situação, Rosana foi mais realista:
E você, Alex? Como você fica na vida da Raquel?
Como assim?
Como vai ficar a sua situação com a Raquel? Vocês vivem como dois amigos, mas ninguém vai
acreditar. Acreditando, o que é difícil,verifica-se que não há uma estabilidade, ela vive aqui de favor,
nemconcubinato é. Provavelmente haverá visitas de assistentes sociais, entrevistas com psicólogos, como
vai ser? Eu acho que vai existir um período de adaptação, em que a criança será entrevistada. Ela tem
quatroanos, não é? O que ela vai dizer de vocês dois?
Vai fazer quatro anos em dezembro.
Então, se for uma menina esperta, vai falar que cada um dorme num quarto, ou coisa assim. O
que vocês são um do outro? São pequenos detalhes que formam um estudo psicossocial que pode ou não
lhe sser favorável. Isso tudo, claro, só depois de vocês entrarem com um
285
pedido de guarda na Vara da Infância e da Juventude para o juiz da comarca de onde o orfanato se
encontre.
Alexandre ficou decepcionado. Ele não imaginava que teria tanto trabalho.
E se prepare alertou Rosana lamentando, mas, porém, realista.
Por quê?
Com três anos falou meiga , se essa menina já tiver sidoadorada, vocês vão precisar de
muita coragem para tirá-la desses verdadeiros pais que a assumiram, que a ampararam, cuidaram,
amaram, atéagora. Diga-me uma coisa, você terá coragem de fazer isso, Alexandre?Você vai ajudar a tirar
a menina dos pais?
Empalidecido, ele a olhou sem dizer nada. Não tinha pensado nisso. Rosana se aproximou do irmão,
sentou-se a seu lado, envolveu-o com um abraço e, com jeito meigo e ternura na voz, perguntou:
Eu sei que você tem uma memória excelente. Lembra-se muito bem de quando era pequeno. Por
acaso, se quando você tivesse quatroou cinco anos sua mãe verdadeira aparecesse e quisesse levá-lo
embora,como você reagiria, Alexandre? Como você acha que o papai se sentiria? E a mamãe? Eu e a
Vilma? Eles morreriam, Alexandre! Imagine:advogados e juizes não respeitando a sua vontade, o seu amor
e arrancando-o dos braços de sua família querida para entregá-lo a uma estranha. Como ficariam os
nossos corações?! questionava com lágrimas a correr-lhe na face. Fitando-a com seriedade, ele a
encarava firme, e airmã continuou: Perdoe-me por lembrar disso.
Não tem problema. Eu me esqueço disso e está sendo bom parapensar no que estou a fim de
fazer.
Então pense bem. Procure, antes de oferecer esperanças, informações e esclarecimento dos
fatos. Alexandre, mãe verdadeira é aquela que assume, que passa noites em claro, que fica alegre com as
primeirasgracinhas e que se preocupa quando elas não ocorrem. Mãe mesmo éaquela que corrige, orienta,
fica brava e até dá um castigo para a gente aprender. Não sei o que você faria, mas se fosse eu e hoje
aparecesse umamulher me dizendo "Eu sou sua mãe", eu lhe daria um grande abraço e
286
diria: "Obrigada por você ter me deixado encontrar a minha verdadeira mãe. Eu a respeito e posso entender
todas as suas decisões, mas minha mãe de verdade é a dona Virgínia". Vendo-o com a cabeça baixa,
ela completou: Alex, por favor, perdoe-me por falar disso.
Emocionado, abraçou-a com força, balançando-a com carinho, ao dizer:
Eu amo vocês. Agradeço muito a Deus por eu ter essa família. Foibom você ter se lembrado disso.
Não terei coragem de seguir adiante caso a menina já tiver um lar. Não sei como não pensei nisso.
Afastando-se do abraço, Rosana alertou:
Alex, pense bem. Prepare a Raquel para o caso de a filha já ter uma família e para algumas
dificuldades que podem surgir. Faça-aencarar a realidade. Pense nisso, meu irmão. Alexandre a
abraçounovamente com carinho e Rosana falou: Eu o amo tanto, Alex. Não posso imaginá-lo longe de
mim. Não quero vê-lo sofrer nem em dificuldades.
Eu também amo você, Rô. Obrigado. Conte comigo, sempre.Sempre, entendeu?
Eles ficaram abraçados por alguns minutos entregando-se às fortes emoções que os levaram às lágrimas.
Raquel, que havia saído do banho, bateu levemente na porta entreaberta, mas os irmãos não a ouviram e,
ao entrar, ela parou logo após os primeiros passos e ficou sorrindo, contemplando a cena tão bela. Ao se
afastarem, Alexandre secou as lágrimas teimosas que rolaram e voltando-se para Raquel, pediu:
Sente-se aqui pediu batendo sobre a cama onde estava.
Vim só saber se precisa de alguma coisa.
Sente-se e faça companhia para a Rô. Vou tomar um banho e jávolto.
287
Capítulo 13
O reconforto em uma prece
Raquel chamou Rosana para a cozinha, onde foi preparar um lanche para elas e um chá para Alexandre,
que estava restrito a alimentações leves. Não suportando o silêncio da amiga, Rosana comentou:
Ontem falei com minha mãe e soube o que ela conversou comvocê. Eu queria dizer que...
Rosana interrompeu a moça , não tente argumentar a meufavor. Sua mãe tem toda razão.
Minha mãe é um tanto conservadora. Ela ainda não consegue entender o que se passa, mas com
o tempo...
Não haverá muito tempo afirmou decidida. Pretendo sairdaqui o quanto antes. Nesses
últimos meses, reservei uma quantiasatisfatória e creio que já seja o suficiente. Na próxima semana vou
procurar uma casa e...
E com o coração partido deixar o homem que você ama, respeita e que gosta de você, Raquel?!
Rosana, imediatista e verdadeira, deixou Raquel sem palavras. Sensível, a amiga abaixou a cabeça,
procurando controlar a voz que vacilava:
Você não entende. Jamais poderei ser feliz...
Por que, Raquel?
Tenho medo sussurrou triste.
Medo do quê? E, Alex jamais iria maltratá-la.
Mas eu não posso.
Por quê? O que aconteceu, Raquel?
Pergunte ao seu irmão. Ele sabe e por isso me compreende respondeu acanhada ao esconder
o rosto.
Não disse Rosana, sentando-se ao seu lado e segurando seu rosto para olhá-la melhor. Quero
ouvir de você. Se confiar em mim,vai me contar.
Mesmo chorando, Raquel contou tudo o que Rosana já sabia, inclusive sobre sua filha. A irmã de Alexandre
ouviu como se não soubesse de nada, observando e sentindo o desespero, a angústia e a tristeza da
amiga por tudo o que lhe acontecera. No final estavam abraçadas e Rosana emocionada com o relato dizia
com sensibilidade e brandura:
Raquel, tudo isso já passou. Você tem o direito de ser feliz ao lado de alguém que lhe quer bem.
Meu irmão a ama. Acredite!
Eu não disse à sua mãe, mas o Alex ficou nervoso e saiu de casaporque...
Porque...
Raquel contou sobre o beijo que houve antes de o irmão de Rosana sair de casa, como se esta não
soubesse. Ela ignorava que a amiga já sabia de tudo por Alexandre.
Você também o ama, Raquel. Isso é certo.
Não...
Como não? Você só não está admitindo isso porque sofreu muito no passado. Diga-me uma
coisa: ele a tratou com carinho? Raquelafirmou com a cabeça. Rosana aproximou-se perguntando quase
sorrindo, com um jeitinho delicado e muito especial: Não foi bom sentir-se amada?
É tão gostoso ficar
nos braços de quem a gente ama e confia,não é?
Pare com isso, por favor pediu com leveza na voz.
Por que, Raquel? Estamos falando de algo bonito, verdadeiro.Não é nada indecente. O que tem
de mais falarmos sobre amor, sobre uma troca de carinho meigo, puro? Ela não respondeu, e
Rosanacontinuou: Por que você não se deixou envolver mais?
Eu não consigo.
Como não? Se no começo se deixou beijar foi porque se sentiubem. Sentiu-se segura ao ficar
nos braços dele e o desejou, também.
Eu não sei o que aconteceu, Rosana.
290
Eu sei. Você só tem lembranças tristes, lembranças que a magoam.Eu imagino o quanto deve
sofrer quando as recordações amargas surgem.Toda moça tem um sonho. Quer ser amada, protegida, bem
tratada por um "príncipe encantado". Só que seu sonho, Raquel, é um pesadelo.Você não foi amada, foi
violentada, não foi protegida, foi agredida, nãofoi bem tratada e não respeitaram a sua vontade. Raquel
caiu em umpranto compulsivo e Rosana falou, ao abraçá-la com carinho: Chore,minha querida. Coloque
para fora, de uma vez por todas, essas lembranças tristes. Depois abra seu coração para a oportunidade
feliz de hoje. Se alguém destruiu seus sonhos, não o deixe vitorioso. Reconstrua-se, Raquel! Permita-se, no
mínimo, ter um carinho, um amor.
Não consigo disse entre os soluços.
Tente quantas vezes forem necessárias. Eu sei que meu irmão éum homem bom, decente. Além
disso, por amá-la, ele vai entender eajudar sempre. Procurando olhar nos olhos da amiga, Rosana
perguntou: Você o ama, não é?
Acho que sim... eu... admitiu com voz baixa e amedrontada.Rosana sorriu satisfeita, envolveu-a
novamente, e falou:
Então fale a ele sobre o seu amor. Diga o que sente e converse sobre seus medos e limites. O meu
irmão a compreende e a respeitamuito. O Alex a ama. quer tanto tê-la a seu lado que vai ajudá-la avencer
esses temores e traumas. Se for preciso procurar a ajuda de umprofissional, pode contar que o terá a seu
lado.
A chegada de Alexandre na cozinha interrompeu a continuação da conversa. Ao ver Raquel chorosa e
abraçada à sua irmã, ele perguntou preocupado:
O que foi, Raquel? O que está acontecendo?
Nada respondeu Rosana firme e insatisfeita com a aproximação do irmão.
Raquel secou as lágrimas e tentou se recompor, meio sem jeito pela presença do amigo. O toque do
interfone os surpreendeu. Alexandre atendeu e depois informou:
É o Ricardo. Ele está subindo.
291
Ah! Nem deveria tê-lo mandado subir. Já estou indo avisou Rosana.
O que é isso, Rô? Mande-o entrar. Vamos tomar um lanche.
E ficar noivando aqui?! respondeu ela, com seu modo irreverente e brincando como sempre.
Não mesmo! Além disso, vocês têm muito que conversar. Raquel precisa falar com você.
A amiga sentiu-se corar e Alexandre ficou na expectativa, curioso. Despedindo-se rapidamente de Raquel e
de seu irmão, ao toque da campainha Rosana abriu a porta e disse:
Ricardo, esta é a Raquel.
Oi, Raquel! Tudo bem? cumprimentou animado.Interrompendo-o, com seu jeito especialmente
alegre e irreverente,
Rosana falou:
Tá tudo bem com ela. O Alex nem precisa cumprimentar. Ele está ótimo e sob os cuidados da
Raquel ficará melhor ainda.
Enquanto cumprimentando Ricardo, Alexandre reclamava para a irmã:
Deixe de ser maluca, Rosana!
Mas Rosana se fez de surda e puxou o noivo, saindo do apartamento. Alexandre olhou para Raquel,
balançou com a cabeça negativamente e disse:
E bom se acostumar com ela. Rosana não tem jeito.
Eles riram. Logo Raquel foi buscar o chá que havia preparado junto com as torradas e levou para
Alexandre. Ele a olhou e curioso perguntou:
O que minha irmã quis dizer sobre termos algo para conversar?Raquel se viu coagida e não sabia o
que responder. Sentando-se ao
lado dele, ela ensaiava para falar a respeito da conversa que teve com Rosana. Porém, ideias
contraditórias começaram a invadir seus pensamentos, fazendo-a perder a coragem, até que Alexandre
perguntou:
O que está acontecendo, Raquel? Você não está satisfeita aqui?
Não é isso. Ainda não me acostumei com a ideia de morar aqui.Creio que sou tão conservadora
quanto sua mãe. Você me trata muito bem, sempre me respeitou, mas não posso continuar vivendo desse
modo.
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Nesses últimos meses reservei certo valor e creio que na próxima semana vou procurar um lugar para
morar. Preciso levar a mesma vida de antes. Acho que você entende, né?
Alexandre sentiu como se estivesse levado uma punhalada, mas não demonstrou. Ele não conseguia
aceitar a ideia de ficar sem Raquel. Amargurado, tentando fazê-la refletir, arriscou:
Saindo daqui, você sabe que terá de enfrentar muitos comentários desagradáveis sobre essa
suposta separação, não é? Abaixando oolhar Raquel não disse nenhuma palavra e ele continuou:
Acredito que você vai querer procurar sua filha. Sua conduta moral, seu comportamento contarão pontos a
seu favor ou não. Além disso, terá custos com os honorários de um bom advogado, precisará de apoio,
amigos e...
Não é assim acreditou com simplicidade. A filha é minhae eu poderei pegá-la quando
quiser.
Lamento, Raquel, mas não é bem assim, não. Conforme o caso,será necessário atestado de
saúde física e mental, atestado de idoneidade moral, comprovação de residência e domicílio, estabilidade
familiar etalvez até situação financeira estável. Pelo menos é assim que funciona no caso de adoção. Como
a Bruna foi abandonada e você nunca a procurou, eu acho que talvez não seja diferente. Haverá, inclusive,
exames para a comprovação da maternidade. Creio que será um processo longo,principalmente se sua filha
já estiver...
Alexandre começou a passar para Raquel todas as informações que acreditava, principalmente o fato de
Alice oferecer pareceres negativos sobre sua moral. Raquel ficou desalentada. Inúmeros pensamentos
chegaram com ideias catastróficas sobre seu futuro. Ligada pelo seu nível de pensamento a espíritos
ignorantes, se deixava desanimar e contaminar com as piores reflexões.
Alexandre, que estava sentado no sofá e a observava atento, chamando-a para perto de si, pediu:
Sente-se aqui. Vamos falar sério. Raquel obedeceu quase quemecanicamente. Ele colocou o
braço sobre seu ombro e falou: Eu
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quero lhe oferecer toda a minha ajuda, todo meu apoio. Farei tudo o que puder por você. Confie em mim.
Parece que vivo só para sofrer. Eu não deveria ter nascido chorou.
Não diga isso.
Nunca tive sorte. Nunca consegui ser feliz. São poucos os momentos que me lembro de ter
experimentado alguma alegria. Tenho tanta vontade de morrer.
Alexandre a deixou desabafar, percebendo que ela necessitava disso. Raquel agora não chorava mais,
comportava-se diferente, parecia fria, fatigada.
Não perca seu tempo comigo. Você é uma pessoa vitoriosa e demuita sorte. Sua família o ama, o
respeita. Eles se preocupam com o que te acontece. Quanto a mim, nem mesmo minha mãe se importa...
Meus irmãos jamais me procuraram. Hoje mesmo, quando vi você e a Rosana,abraçados, emocionados, eu
lembrei que nunca tive um abraço de um de meus irmãos. Você sabia? Eu vi o quanto sua mãe se
preocupou porcausa do seu estado. Só hoje ela já ligou três vezes por não poder vir atéaqui, por causa de
seus parentes que chegaram lá e ela não queria trazê-los. Não tenho o direito de ficar aqui na sua casa
estragando sua harmonia, sua tranquilidade. Como sua mãe falou...
Não se importe com minha mãe! Ela não sabe o que diz interrompeu, quase irritado. A
Rosana me contou que vocês duas conversaram. Minha mãe sempre foi ciumenta e...
Ela tem todo o direito de ser assim! cortou-lhe Raquel, sem deixá-lo terminar. Ela demonstra
o seu amor de mãe. Mas, comoela me disse, "Se eu não faço parte do problema, devo fazer da solução". E
isso eu não estou conseguindo fazer. Por essa razão eu tenho que ir embora. Alexandre abaixou o olhar
e, sentindo um nó nagarganta, decidiu não dizer mais nada. Raquel estava ferida e pareciadecidida
também.
294
Mais tarde, por não conseguir conciliar o sono, Alexandre se levantou, foi até próximo da porta da suíte.
Certificando-se de que Raquel estava dormindo, voltou até a sala e foi telefonar para sua irmã.
Alex? atendeu Rosana.
Que bom que foi você que atendeu, Rô. A mãe está aí perto?
Não. Ela está dormindo. Estou no meu quarto. Ela deve ter desligado o telefone do quarto dela,
pois às vezes alguma colega, ou mesmoo Ricardo, me liga um pouco tarde e eles acabam acordando. Mas
me conta, o que aconteceu? Você e a Raquel conversaram?
Conversamos. É sobre isso que quero falar com você.
Rosana estava certa de que as coisas entre seu irmão e Raquel estavam bem, uma vez que Raquel admitiu
gostar dele e, após a conversa que tiveram, a amiga parecia ter concordado em receber sua ajuda.
Contando com isso, Rosana alegremente perguntou ao irmão:
Eu já sei! Ela disse que o ama!
Não. Que história é essa? sussurrou.
Como não?!!!
Raquel está decidida a sair daqui.
Como assim?! assustou-se a irmã. Conversamos e ela confirmou, para mim, que gosta de
você. Que achava que o ama...
Raquel admitiu isso?! indagou Alexandre incrédulo.
Claro! Eu pedi a ela que conversasse com você e aceitasse suaajuda. Disse o quanto você gosta
dela e a respeita e que, com toda certeza, iria ajudá-la a vencer esses desafios.
Raquel não me disse nada disso. Quando lhe perguntei o quevocê disse que íamos conversar,
ela se embaraçou e veio com a históriade querer sair daqui. Rosana ficou em silêncio refletindo sobre
tudo o que ouvia de seu irmão, e ele continuou: Eu já contei a você, outro dia, que a Raquel está muito
diferente. Ela anda triste, depressiva e até irritada, coisa que nunca demonstrou. Em alguns momentos eu a
percebo tranquila, calma, doce como sempre foi, mas um segundo depoisela parece se transformar. Fica
chorosa, descontente, abatida.
Ela reclama de alguma dor? perguntou Rosana.
295
Alguns dias ela tem se queixado de dor de cabeça, dor na nuca,mas creio que seja por causa do
travesseiro ao qual não se acostumou.Nós compramos outro e trocamos, mas não adiantou muito.
Por acaso, quando esteve com dor de cabeça, ela tomou algumanalgésico e a dor não passou?
Sim. Acho que sim. Por isso pensamos que o motivo era o travesseiro.
Como Raquel se sente? Está desanimada, inapetente, enjoada,fraca?...
Alimenta-se mal, sim. Mas parece que é de sua natureza alimentar-se pouco. Fraqueza, não. Não
a vi reclamar disso, aliás ela vive arrumando esse apartamento, cuida de algumas coisas e deixa tudo em
ordem, até demais. Desanimada, sim. Mas isso é com o serviço lá na empresa.
Enjoo? tornou Rosana a questionar.
Creio que sim. Uma ou duas vezes achei que ela não estava bem.Eu a vi fazendo um chá e
tomando com alguma coisa. Perguntei, mas ela disse não ser nada. Não insisti em saber por que achei que
seria indelicado, poderia não ser da minha conta e, como almoçamos em restaurantes, acreditei que algum
alimento não lhe fez bem.
Sabe o que eu acho, Alex? Lembra que você me contou que ela ea cunhada foram a um "tal
lugar" pedir ajuda para os espíritos?
Lembro.
Eu acredito que a Raquel esteja com algum envolvimento espiritual.
E daí?
Daí que, se nos deixamos envolver por espíritos ignorantes, sofredores, quem não tem
pensamentos firmes, não tem opinião própria nemvoltada para o bem, para a elevação moral e espiritual,
passa a definhar,em todos os sentidos. Raquel se volta para o bem, tem uma boa moral,mas no que diz
respeito a ter pensamentos positivos, firmes e opinião própria, ela deixa a desejar. Quando envolvida por
espíritos sem instrução, fica preocupada com qualquer coisa, fica triste e depressiva, temmaus
pensamentos, às vezes pesadelos, sonhos ruins, sono perturbado.
296
Pesadelos ela tem! interrompeu Alexandre. Já acordei com ela chorando, até gritando. Fui
ver o que era e como estava e ela ficavachateada, envergonhada por ter me acordado. Sabe, algumas
vezes tive que acordá-la de pesadelos horríveis.
Então: pesadelos, dormir mal, alguns problemas de saúde quenão têm justificativa são comuns
em caso de envolvimento por espíritos ainda inferiores. Mas espere aí! advertiu Rosana. Também não
ésó você ter uma ou outra dor, junto com uma noite mal dormida ou um enjoo, que é o caso de você estar
envolvido. Esses sintomas podem ser os gritos de socorro do seu organismo que reclama de uma má
alimentação ou coisa do gênero, e não envolvimento espiritual. Porém, diante detudo o que você me contou,
e principalmente pelo fato de a Raquel ter se envolvido, junto com a cunhada, em lugares ou situações que
as colocaram em ligação com espíritos brincalhões, pseudo-sábios e ignorantes, ela pode estar sofrendo o
assédio de um obsessor.
Alexandre ficou confuso, ele não estava acostumado àqueles nomes.
Espere aí. O que é espírito pseudo-sábio e obsessor?Rosana refletiu um pouco e respondeu:
Vou lhe dar um livro chamado O Livro dos Espíritos, de AllanKardec. Quero que leia da questão
100 até a... deixe-me lembrar... acho que 113, mais ou menos. Não desanime. Leia tudo! Aí você vai
entender e aprenderá os riscos que corremos quando nos propomos a solicitar ajuda de "qualquer um".
Resumindo perguntou o irmão , não devemos pedir ajudaaos espíritos?
Você deve orar, fazer preces e conversar com Deus disse Rosana sabiamente, dando ênfase à
frase. O Pai Criador sabe o que vocêprecisa. Quando você pede só para outros e roga por ajuda, você
está deixando de acreditar em Deus.
E obsessor? O que é isso?
Olha, Alex, esse assunto é muito extenso. Você precisa ler bonslivros a respeito, mas bem de
longe eu vou te dar uma ideia do que é.Obsessor é o nome dado a um espírito sofredor e sem evolução
que fica
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ao lado de uma pessoa, passando-lhe suas dores, seus pensamentos, seu sofrimento e a pessoa se sente
como que torturada mentalmente. É algo ferrenho, ostensivo e vingativo. Ou então o espírito passa seus
desejos no mal, seduções, pensamentos conquistadores, ambiciosos, sempre voltados para o lado imoral,
ilícito, também de maneira ostensiva, para vê-lo em situação difícil no futuro. Se a pessoa, por si só, já é
ambiciosa, gosta de prejudicar os outros, as suas companhias espirituais serão de espíritos que sentem
prazer com esses feitos. Esses espíritos também têm pesares, dores, sofrimentos, e aqueles que se
deixam ligar a eles também vão sentir esse tipo de vibração. Todos nós temos defeitos ou vícios. Podemos
ter o vício de não ser paciente, de ser orgulhoso, de não desejar o bem dos outros, podemos ter o vício da
preguiça, da má vontade. Podemos ter os vícios materiais, como o do cigarro, das drogas, do sexo, do
álcool, com isso, vamos atrair para perto de nós espíritos que tenham prazer nisso, pois, quando
encarnados, eles praticavam as mesmas coisas.
E no caso da Raquel, como pode ser um obsessor?
Por causa das inúmeras dificuldades que ela provou, Raquel sempre foi uma pessoa sofrida,
calada, triste, depressiva, pois tudo o que experimentou nunca pôde comentar, é algo pavoroso, aflitivo...
Então,pode ser que um espírito que é triste e depressivo, mas daqueles depressivos de aterrorizar qualquer
humor, qualquer ânimo, por vê-laquieta, triste e por encontrar condições de pensamentos favoráveis
aosseus, passou-lhe suas vibrações.
A Raquel não reagiu e, inconscientemente, concordou com os pensamentos que chegavam, não os
mudando. A partir daí, o espírito, a cada dia, a envolveu mais e mais com a sua tristeza, com o seu desejo,
com os seus pensamentos. Quando ela não reage, isto é, quando não pensa diferente, não fica otimista,
não faz uma prece a Deus pedindo orientação e ajuda, mudando os pensamentos e procurando enxergar
ao seu redor as coisas boas da vida, ela se entrega a essa obsessão. Olha, Alex, isso tudo eu só estou
ensinando de maneira muito superficial. Existem inúmeros tipos de obsessor. Nesse exemplo que dei
agora, os
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obsessores são compatíveis com o tipo de pensamentos que temos. Nem sei se deveriam ser chamados
de obsessores. Coitadinhos! Pois a culpa, nesse caso, não é deles, é nossa. Somos nós que normalmente
facilitamos e aceitamos as ideias que esses espíritos nos passam. Assim, nós sofremos e os ajudamos a
sofrer. Há outros casos em que o obsessor é um inimigo do passado e quer se vingar de algo que
tenhamos feito a ele. Pode-se tê-lo prejudicado, então ele vive perseguindo você, encarnado ou
desencarnado, por vingança. Mas isso pode ser resolvido e não convém explicar agora.
O que eu faço, Rô?
Teremos que despertar a Raquel para que se religue a Deus. Façapreces, lembre-se de
agradecer, tenha fé...
Ela não consegue ter bons pensamentos.
E claro que não. As ideias dela são invadidas como pot flash instantâneo de pensamentos
depressivos de um espírito sofredor.
E o que podemos fazer?
Primeiro envolvê-la, despertá-la para que reaja com pensamentosbons e instruí-la para que se
desligue desse nível de pensamentos tristes. Existem, em bons Centros Espíritas, assistência espiritual e
orientação que nada mais são do que palestras evangélicas que vão esclarecer aspessoas a reagir e agir
diferente no seu dia-a-dia.
Ela não vai aceitar ir conversar com espíritos. Ela não gostouquando o fez um dia e disse que se
sentiu muito mal.
Mas quem falou que ela vai lá pra conversar com espíritos?! Centro Espírita é aquele que se
propõe a ensinar o que Jesus deixou, que é o Seu Evangelho. Centro Espírita, Sociedade Espírita se
propõem a divulgar conceitos dentro da Luz da Doutrina Espírita, codificada por Allan Kardec em 1857.
Espiritismo é Jesus. O Espiritismo ensina oEvangelho do Cristo. Você não vai a uma Sociedade Espírita ou
a umCentro Espírita para conversar ou pedir nada para espírito nenhum.Você vai lá para se melhorar,
ganhar conhecimento, para evoluir. Paramudar o comportamento que o faz sofrer, que o faz ser triste.
Atravésdas palestras evangélicas, através dos estudos, você se eleva, se ajuda, se
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liberta. Ninguém fará isso por você para que depois, num futuro próximo, tenha que sofrer e fazer tudo
novamente porque não teve mérito. Jesus disse: "Não dê o peixe ao seu filho; ensine-o a pescar". E é isso
o que a Doutrina Espírita faz, ela lhe mostra a luz no caminho correto para que siga, ela ensina ?. ter
forças, perseverança, pois só assim evoluímos e nos livramos dos pesares terrenos. Através de tudo o que
conhecer no Evangelho de Jesus, sem dogmas, sem rituais, pois o Espiritismo não tem isso, você se
descobre como criatura capacitada e não se prenderá mais na felicidade falsa, temporária e mundana.
Conhecendo o Espiritismo, Alex, você vai se esforçando e consequentemente conseguindo se reformar
intimamente. Reformando-se, mudando os seus hábitos, deixando os vícios, vai pensar diferente e agir
melhor, para que o seu futuro seja mais promissor e feliz.
Como faço para a Raquel ir a um lugar desses?
Não é um lugar qualquer, é uma Sociedade de Estudos Espíritas,ou um Centro Espírita. Mas nós
vamos conversar com ela. Agora, exata-mente, estou com tanto sono que nem consigo raciocinar direito.
Pensando um pouco, Rosana falou: Amanhã, ou melhor, hoje vocênão vai trabalhar, não é?
Não. O médico me deu três dias de convalescença.
Então eu passo aí depois que sair da faculdade. Creio que terei sóas duas primeiras aulas.
Poderemos conversar bastante.
Obrigado, Rô.
Não por isso. Desculpe-me não conseguir dar maiores informações no momento, é que estou
"trincando" de sono.
Conversaremos depois.
Após se despedirem, Alexandre ficou pensativo sobre tudo o que estava fazendo.
Será que agira corretamente querendo que sua amiga continuasse ali? Afinal, Raquel tinha o direito de ser
livre e de fazer o que quisesse. Ele não podia prendê-la a si só pelo fato de gostar dela. Em meio a essas
ideias que começaram a envolvê-lo em tristes conclusões, Alexandre começou a pensar, conversando
como que em prece sincera:
300
"Deus, ajude-me a fazer o que é correto. Não quero magoar a Raquel nem quero que ela sofra. Preciso de
orientação e amparo. Dê forças para que ela reaja, seja mais animada, procure ver o que de bom há em
sua volta. Tenho medo de que decida mesmo sair daqui e se envolver em situações piores. Ela está
decepcionada, confusa... Proteja sua filhinha."
Em meio a essa prece, que mais era um diálogo de fé, Alexandre adormeceu. Passada mais de uma hora,
acordou ao ouvir Raquel. Confuso e assonorentado, foi até o quarto onde ela se revirava no leito,
parecendo ainda estar dormindo. Aproximando-se, sentou na cama e a segurou, chamando-a com
brandura:
Raquel, acorda. Você está sonhando.
Ela se debateu e, mesmo abrindo os olhos, parecia não reconhecê-lo. Raquel segurou os braços de
Alexandre com força e, com o semblante assustado, tentava falar algo que era entrecortado por soluços.
Sou eu, Raquel! Acorda insistiu ele.
Ela gritou assustada, parecendo, só então, ter despertado. A princípio o empurrou, mas depois, chorando,
abraçou-o em desespero.
Calma, Raquel. Foi só um sonho avisava calmo acariciando-a.
Eu quero morrer! rogou ela em aflição e com a voz abafada. Deus! Por que eu não morro de
uma vez? Acaba com isso logo!
O amigo se lembrou do que sua irmã havia falado pouco antes e disse, ao ampará-la.
Vamos pensar em Deus, Raquel. Há quanto tempo você não reza? Raquel chorava muito,
parecendo não ouvi-lo. Mas, sem se importar, Alexandre continuou: Você sabe rezar, Raquel?
Aprendeu?
Ela escondia o rosto em seus braços e Alexandre só obtinha como resposta os soluços aflitos.
Vem cá pediu ele, ajeitando-a e também se acomodando melhor. Fique assim para não se
sufocar aconselhou ao abraçá-la não se importando com o choro. Sabe, quando eu era
pequeno,minha mãe me ensinou a rezar imaginando uma grande luz clareando todo o ambiente em que eu
estava. Eu tinha medo do escuro, apesarde ter meu próprio quarto e ser o filho mais velho, muitas vezes
tinha
301
que ir dormir com a minha irmã, a Vilma, por causa desse medo. Para eu começar a ir dormir no meu
quarto, minha mãe me pedia para fechar bem os olhos e procurar imaginar essa luz enquanto rezava. Eu
não sabia direito no que pensar, por isso sempre imaginava o sol. Sabe que funcionou? - disse ele
brandamente, esboçando um leve sorriso ao se lembrar. Raquel parou de chorar e prestava atenção no que
ele contava. Então, Alexandre prosseguiu: Deixei de ter medo e aprendi a buscar Deus e me socorrer
Nele cada vez que eu tinha algum medo, alguma dificuldade na vida. Foi tão importante minha mãe ter
despertado a minha fé, ter me ensinado a rezar. Passei por momentos difíceis e sempre busquei a escora
de Deus. Por isso, agora continuou ele com voz meiga , vamos imaginar que Jesus nesse momento
nos oferece um raiozinho da Sua Luz. Alexandre mantinha o semblante sereno, a voz pausada e mansa.
Raquel ficou atenta e se deixava envolver pelas palavras suaves do amigo. E ele continuou: Essa Luz de
Jesus está nos envolvendo como se fosse um grande abraço. Podemos até senti-la. Essa Luz clareia a
todo esse quarto e o deixa repleto de harmonia e paz. Essa Luz invade os nossos pensamentos, nos deixa
tranquilos, bem tranquilos. Nós nos sentimos seguros e amparados porque temos a Luz de Jesus nos
protegendo. Agora, Raquel, vamos fazer a prece que o próprio Jesus nos ensinou e ternamente quase
sussurrou:
"Pai Nosso, que estás nos céus. Santificado seja o Teu nome; venha a nós o Teu reino, seja feita a Tua
vontade, assim na Terra como no céu. O pão nosso de cada dia nos dá hoje; perdoa-nos as nossas
dívidas, assim como nós também temos perdoado aos nossos devedores; e não nos deixes entrar em
tentação; mas livra-nos do mal. Porque Teu é o reino o poder e a glória, para sempre. Obrigado Senhor."
Raquel, sem dizer uma única palavra, sentia-se anestesiada. Um êxtase a dominava em ternas bênçãos.
Aos poucos, não conseguindo se dominar, adormeceu.
302
Capítulo 14
Assumindo os sentimentos
Com a claridade que penetrava suavemente no quarto, ele despertou tranquilo, mas surpreendeu-se por ter
dormido ali. De bruços, Raquel estava em sono profundo, deitara sobre o braço de Alexandre, que o sentia
até dormente, pois ela fizera seu ombro de travesseiro e ainda o abraçava pela cintura. Alexandre, sorrindo,
admirou-a por alguns segundos, mas logo ficou aflito; ela poderia acordar e, do jeito que se melindrava com
tudo ultimamente, pensaria que ele fizera aquilo de propósito. À custa de muito jeito, o rapaz se livrou do
envolvimento com Raquel sem acordá-la. Levantou-se vagarosamente, mas quando ia saindo do quarto, o
rádio-relógio ligou e ela despertou. Alexandre pensou rápido e, ao invés de sair, virou-se como se estivesse
entrando na suíte. Antes de cumprimentá-la, pensou:
"Que sorte! Mais alguns minutos..."
Raquel o olhou e ele disse:
Bom dia! Você está bem? Vim ver como passou o resto da noite.
Bom dia. Nossa...!
O quê?
Parece que estou anestesiada. Não me lembro de já ter experimentado um sono tão profundo
assim afirmou a amiga, ao se sentarna cama.
Dormiu mal?
Não! Ao contrário afirmou sorrindo docemente.
Que bom! Antes de sair ele ainda falou: Vou arrumar ocafé. Depois vou levá-la para o
serviço, só que voltarei para casa. Vou me dar ao luxo da convalescença.
Não precisa me levar respondeu Raquel, mas Alexandre não lhe deu atenção.
Depois de teimar um com o outro, Alexandre, vitorioso, levou Raquel até o trabalho e retornou para seu
apartamento, onde a senhora que prestava os serviços de limpeza já havia chegado.
Que surpresa, seu Alexandre! Não esperava o senhor aqui.
Não me chame de senhor, Lourdes. Mas hoje estou em casa porque não me senti bem. Precisei
ir ao médico, que deu três dias para me recuperar.
Sem saber direito como se referir a Raquel, pois fora da noite para o dia que percebeu as coisas da moça
no apartamento, sem que alguém a informasse, a senhora falou:
Sabe, seu Alexandre, estou meio sem graça, mas...
O que foi, Lourdes? perguntou ele atencioso.
Sua mulher... Sabe, não quero falar nada contra ela. Mas, seuAlexandre, estou preocupada.
Alexandre sorriu ao ouvir Lourdes se referir a Raquel como sendo sua mulher, apreciando o tratamento,
mas não disse nada, perguntando com prazer:
O que tem "minha mulher"?
Ela foi muito educada comigo. Não posso reclamar. Mas é que,sabe aquele dia que eu cheguei e
vocês não tinham ido trabalhar? Porque no dia da faxina eu sempre chego cedo, né?
Sei, sim. O que tem? tornou interessado.
Então, a dona Raquel me chamou e, com aquele jeitinho delicado dela, pediu para eu não lavar
mais as suas roupas pessoais, só as do senhor e lençóis da casa. Fiquei tão preocupada que nem dormi
direito.Será que estraguei alguma coisa, seu Alexandre? Olha, se eu...
Não! Não foi nada disso. É que a Raquel foi acostumada a cuidar de suas coisas. A mãe a
ensinou assim e ela gosta de fazer a seu modo.
Isso eu percebi assim que ela veio pra cá. Nunca mais lavei louça e a casa sempre está
arrumadinha.
O bagunceiro então sou eu mesmo, não é, Lourdes? perguntou rindo.
Não! Eu não disse isso, seu Alexandre. Mas é que percebi que ela é uma moça ordeira. Isso é
difícil hoje em dia. Sabe, eu também traba-
304
lho no apartamento de duas irmãs que moram aqui perto e os pais delas vivem no interior. Puxa! Elas não
são nada caprichosas. A dona Raquel, ao contrário, é muito prendada.
E sim, eu sei afirmou Alexandre, que agora folheava o jornal que havia comprado.
Ela é muito educada também. Mesmo conversando poucas vezes com ela, vi que é uma moça
muito comportada. O senhor teve sorte.
Alexandre riu e começou a ficar desconfiado. Ele percebeu que Lourdes estava curiosa e puxando
conversa para saber o motivo de se ter uma cama de solteiro preparada no outro quarto. Intimamente, ele
achava graça da senhora, que não sabia como lhe perguntar. Mas não ofereceu oportunidade, não saberia
o que responder e foi para outro cômodo.
Mais tarde, quando se entretinha com o computador, Rosana chegou.
Oi Lourdes! Tudo bem?
Tudo, "fia". E você?
Estou ótima. Cadê o Alex?
Lá dentro! informou a mulher, apontando para o quarto.
Valeu! disse bem animada saindo à procura de seu irmão. Ao encontrá-lo, após se beijarem,
ela o abraçou perguntando: E aí,Alex? Melhorou?
Meu organismo está um pouco sensível e ainda tenho que correrde vez em quando riu.
Mas sua aparência está melhor. Até que você se recuperou rápido.
Não me lembro de ter passado tão mal assim, Rô! Credo!
Rosana sentou-se em uma cadeira e o irmão se voltou para dar atenção. Alexandre, querendo brincar com
sua irmã, que era espirituosa e muito curiosa, fez um semblante malicioso e desfechou rápido:
Eu dormi com a Raquel esta noite.
Rosana fez uma feição descrente e silenciou. Ele a encarou e não conseguiu deter o riso por longo tempo,
gargalhando. Sem suportar ficar calada, a irmã perguntou:
Você bebeu de novo e sonhou? É isso?!
Não. É verdade, eu juro. Eu dormi com a Raquel, sim.
Alexandre, é verdade?! E a Raquel?
305
Ela não sabe que isso aconteceu revelou o irmão dando risada.
Como assim? Você está brincando comigo?
Alexandre deu uma gargalhada gostosa e depois contou o que aconteceu.
E ela não sabe? admirou-se a irmã se divertindo.
Não. Foi por um triz que o rádio-relógio não me colocou numafria. E ainda sorrindo, concluiu:
Raquel, assim que acordou, disse que dormiu tão bem que nem se lembra de uma noite tão boa de
sono assim. Mas ela não sabe que isso aconteceu porque dormiu sobre meu ombro e me abraçando
gabou-se brincando muito alegre.
Deixe de ser exibido! Mas viu como a prece sincera funciona?Alexandre, com semblante feliz,
porém mais sério, ficou parado e
olhando para sua irmã sem saber o que dizer.
Alex, temos que dar um jeito de dizer para a Raquel o quanto éimportante ela se desprender de
pensamentos, de sentimentos perversos, tristes, melancólicos. Encarando-o, Rosana afirmou:
Vocêdeve amá-la mesmo. Eu sei o quanto detesta melancolia, tristeza e depressão.
Nunca tolerei ninguém assim. Tenho que confessar que, às vezes,a Raquel me tira do sério.
É
difícil, mas nem sei como ainda me controlo. Não sei até quando. Preciso de muita força.
Rosana o interrompeu.
Olha, aqui está O Livro dos Espíritos de que falei e ainda trouxe esse: O Evangelho Segundo o
Espiritismo disse entregando-os nasmãos do irmão. Você é um cara racional, lógico e inteligente.
Não terá dificuldade para entendê-los. Leia primeiro as perguntas de 100 a113, que falei, em O Livro dos
Espíritos, para você entender melhor a nossa conversa. Este é um livro que você pode abrir em qualquer
páginapara ler. Se bem que será bom lê-lo desde o início.
Enquanto o irmão olhava os livros que tinha nas mãos, Rosana aproveitou:
A propósito, espera aí que eu vou ligar para a mãe. Saí da faculdade e vim direto pra cá e não a
avisei. Não quero que ela fique preocupada.
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Rosana foi até a sala e ao tentar telefonar não conseguiu, pois a ligação anunciava que sua mãe usava o
telefone. Indo até a cozinha e procurando algo para beber, observou que Raquel havia deixado a
alimentação adequada para Alexandre, que se recuperava ainda e não podia comer qualquer coisa.
Rosana ria sozinha quando Lourdes a surpreendeu revirando a geladeira.
Viu como a dona Raquel é preocupada? Deixou até a comidaarrumadinha pra ele.
É mesmo.
Sabe prosseguiu a empregada , não é que estou reparando,mas antes quase não se via
boa coisa para comer aqui. O seu Alexandreparece que comia fora ou passava com qualquer coisa.
A Raquel cozinha, e muito bem afirmou a moça.
E, quando ia saindo levando um refrigerante, a senhora falou:
Rosana, não é da minha conta, mas por que a cama no outro quarto?
A irmã de Alexandre se surpreendeu, mas não se intimidou. Para não alongar explicações, pensando
rápido, falou:
Meu irmão ronca muito alto, você nem imagina. Para que a Raquel não fique sem dormir, pois ela
tem o sono leve, ele dorme no outroquarto.
Dizendo isso, Rosana se retirou, segurando o riso por sua molecagem. Ao tentar telefonar novamente,
conseguiu avisar sua mãe que estava no apartamento de Alexandre, para que ela não se preocupasse.
Quando ia em direção do quarto, o telefone tocou.
Atende, Rô! gritou Alexandre, de onde estava, que não queria se dar
aquele trabalho, pois
naquele quarto não havia extensão do aparelho.
Alo!
Rosana? perguntou Raquel.
Oi, Raquel! alardeou Rosana.
Rô... disse a moça, interrompida por um soluço.
O que foi, Raquel?! A amiga emudeceu e Rosana percebeu que ela abafava o choro.
Raquel, o que aconteceu? insistiu.
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Alexandre aguçou a audição e percebendo tratar-se de Raquel foi atéa sala procurando saber o que era.
É a Raquel? perguntou para ter certeza.
Rosana sinalizou que sim e perguntou novamente, devido o silêncio que se fez do outro
lado:
Raquel, não chora. Fale o que aconteceu.
Dá aqui pediu o irmão sem muito rodeio, pois estava preocupado. Raquel, sou eu. O que
aconteceu?
Eu... eu fui demitida avisou gaguejando pelos soluços.
Calma! Tudo bem! disse ao ouvi-la chorar. Para ter maiores informações e saber como deveria
agir, perguntou: Você ainda estáno serviço?
Estou.
Fique aí. Eu vou pegá-la. Ele sentia-se gelar, imaginando comoestaria.
Não...
Raquel, não seja teimosa disse ele firme.
Não vou ficar aqui para todo mundo ficar me olhando.
Então faça o seguinte. Vá para o estacionamento e me espera láonde eu sempre deixo o carro.
Ela não disse nada e Alexandre insistiu: Raquel, você me ouviu?
Ouvi... murmurou.
Então vá para o estacionamento. Daqui a uns vinte minutos eu estarei aí.
Ela desligou. Os irmãos se entreolharam e Rosana perguntou:
Ela foi demitida?
Foi respondeu Alexandre chateado. Raquel deve estar péssima. Vou buscá-la. Você vem
comigo?
Claro!
No caminho, procurando ver algo bom em tudo o que acontecia de maneira desordenada, Rosana lembrou:
Sabe, Alex, foi bom isso ter acontecido. De repente esse desemprego foi para ajudar a Raquel.
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Como assim?
Ela não queria alugar uma casa e se mudar?
Queria.
Fazendo isso, a Raquel sairia da sua guarda, da sua proteção, sabe lá Deus o que poderia
acontecer com ela. Agora, desempregada, não terá como sair de lá. Assim teremos uma oportunidade
maior, um tempo maior para erguê-la, para despertá-la e tirá-la desse processo obsessivo, se houver. Se
for um envolvimento espiritual que a faz agir assim, a instrução, a evangelização tornarão Raquel menos
acessível às impressões do espírito que a influencia. Foi bom isso ter acontecido.
Ora, Rô! Não podemos ficar satisfeitos com uma situação dessas.
Não estou satisfeita, estou vendo o lado lógico das coisas. Se aRaquel se mudar e sair da sua
casa, você acha que terá alguma chance deajudá-la? Alexandre ficou pensativo e nada respondeu. Mas
Rosanacontinuou: Alex, essa é uma oportunidade abençoada. Enxergue o bem no suposto mal que está
acontecendo.
Ela deve estar triste. Sentindo-se humilhada...
Sim, é claro que está. E sabe aonde ela vai chorar a perda doemprego? rindo, Rosana
concluiu: Em seu ombro, seu bobo!Deixe de ser tonto!
O irmão não disse que estava preocupado. Chegando ao estacionamento ele não viu Raquel. Após algum
tempo de espera, Alexandre pediu:
Fique aqui. Vou subir e se ela aparecer diga que já venho.
Ele foi até o departamento onde Raquel trabalhava e após cumprimentar uma colega, perguntou:
E a Raquel? Você a viu?
Faz mais ou menos uns vinte minutos que ela saiu. Aliás, foi apóstelefonar. Foi para você que ela
ligou?
Foi, sim.
Então, em seguida ela saiu daqui.
Você sabe me dizer se ela pode estar no "recursos humanos"?
Creio que já passou por lá e já assinou toda a papelada. Fiquei tão chateada...
309
Ele, que estava com aspecto preocupado e um tanto abatido, perguntou:
Você falou com ela, Carla?
Tentei. Mas não tinha muito que dizer. Você sabe, num momento desses... A Raquel é calada,
ela não disse nada. Abaixou a cabeça e sódepois percebi que estava chorando. Quando se virou e foi
saindo, acreditei que nem deveria ir atrás.
Após se despedir da colega, Alexandre passou por outros departamentos procurando por Raquel. A certa
distância percebeu que Rita o acompanhava com os olhos. Ao esperar pelo elevador, encontrou com
Vagner que somente o desafiou com o olhar. Alexandre estava inquieto e nervoso. Procurou Raquel em
todos os lugares mais prováveis e nada.
Claro! Na portaria! Se ela saiu da empresa certamente passou porlá! lembrou falando sozinho.
Ela foi embora, perguntei até na portaria avisou à Rosana.
Será que ela não entendeu errado quando falou sobre o local quedeveria esperá-lo?
Não. Eu fui bem claro. Disse que ficasse aqui. Pegando ocelular Alexandre ligou para o
apartamento. Raquel também não estavalá nem havia telefonado. Se ela telefonar, Lourdes, diga que
me ligue o quanto antes, tá? Após desligar, olhou para sua irmã e perguntou: Onde posso procurá-la?
Rosana nada respondeu. Alexandre começou a pensar que Raquel poderia tentar algo contra si mesma,
havia dito que queria morrer, chegando a pedir a Deus por isso. Ela estava desiludida com a vida, sentia-se
perdida, triste e só. Seu caminho, até hoje, sempre foi solitário, ela sobreviveu utilizando as garras do
desespero e trazendo em seu coração as mais profundas marcas de sofrimento que alguém podia
experimentar. Sem esperanças, Raquel não tinha onde buscar a felicidade.
Que felicidade?
Ela jamais conhecera o significado real dessa palavra. Jamais a experimentara! Não poderia confiar nele,
pois não acreditava que pudesse existir um ombro amigo. Pelo que Raquel lhe contou, nunca tivera um
310
abraço de mãe ou o carinho de um irmão. Raquel não conhecia os preciosos instantes onde o medo nos
faz esconder no seio da família, no lar. Sua infância sempre foi confiscada de liberdade e emoção, pois
temia o carinho repugnante que recebera e odiava do tio. Na adolescência, viu seus sonhos brutalizados
pelas práticas agressivas e hediondas de um homem sem caráter, sem decência e sem moral. Quando
gritou por socorro, ninguém a ouviu ou acreditou. Quando procurou na mãe o miraculoso abraço que
conforta e orienta, que talvez agasalhasse seu coração despedaçado, encontrou pesarosa revelação cruel
e o abandono definitivo que dilacerou, completamente, todas as esperanças, transformando tudo em
pesadelo.
Estranhos não conseguiram reavivar-lhe o ânimo. O irmão, que parecia tê-la acolhido melhor, duvidara de
seu caráter, acreditando nas maledicências que macularam sua moral. O sonho de ter sua filha junto de si
haveria de vencer o próprio medo e as razões mais dolorosas da sua alma. Decepcionada pelas leis que
poderiam impor e exigir, Raquel se desiludira antes de pleitear, sequer, a primeira vez, para ter a doce filhi-
nha consigo.
Quanta dor! Quanto esforço para se vencer e se entregar a um simples abraço, a um beijo que nem
correspondera. Quantos traumas! Quanta tristeza teria de enfrentar para amar e ser amada.
Ignorante dos motivos reais da existência da vida, Raquel parecia nunca ter se socorrido em Deus. Como
poderia confiar Nele depois de tudo? Não tinha quem a orientasse por isso. Ela nunca tivera o apoio de
ninguém, perguntando sempre: Para que viver?
Chorando intimamente ao pensar tudo isso, Alexandre, em silêncio, rogou a Deus que protegesse Raquel e
lhe desse forças para encontrar um meio de esclarecê-la e ampará-la.
Rosana, agora muito preocupada, sentada no carro ao lado dele, ficava calada e em prece, respeitando o
silêncio do irmão. Até que ele disse:
Vamos até a casa do Marcos.
Decorrido algum tempo, chegaram ao antigo endereço e uma vizinha informou que Marcos e a família
haviam se mudado.
311
Desgraçada! disse Alexandre irritado ao retornar para o carro. Alice é uma ordinária! Nem
pra falar que havia mudado. Afinal,Raquel e Marcos são irmãos.
Não fique assim, Alex! advertiu a irmã. É hora de vocêcomeçar aprender a se controlar.
Essa raiva é que lhe faz mal. Controle-se.
O irmão passava as mãos pelos cabelos exibindo-se inquieto, desesperado.
Não há nenhum outro lugar onde ela possa estar? Na casa dealguma colega? perguntou
Rosana preocupada.
Não. Eu tenho certeza.
Voltaram ao apartamento e nem sinal de Raquel. Sem demora ele avisou:
Vou levá-la pra casa.
Não mesmo! Vou ficar com você.
Para a mãe ficar desconfiada e vir me encher perguntando o queestá acontecendo?! Não!
afirmou ele com voz grave. Você vai pracasa. Deixe que eu cuido disso. Depois eu telefono e dou
notícias. Nemfique me ligando pra a mãe não desconfiar.
Está bem. Mas, por favor, me avisa! pediu contrariada.
Após deixar a irmã em casa, ele voltou para o serviço a fim de encontrar Raquel no local onde combinaram.
Para sua grande surpresa, Alexandre pôde observar, a certa distância, Alice e Valmor abraçados trocando
beijinhos e carícias.
O que é isso?!!! assustou-se ele que chegou a falar sozinho.
Por estar mais preocupado com a amiga, procurou saber dela, tirando informações novamente na portaria.
Diante da negativa, retornou ao estacionamento e ficou lá até escurecer. Sem esperanças voltou para seu
apartamento. Ao chegar, viu que a empregada já havia ido embora, e nem sinal de Raquel.
Por volta das nove horas da noite a campainha tocou. Era ela. Alexandre precisou se conter, não sabia se
brigava ou se a abraçava. Decidiu primeiro saber o que se passava.
312
Raquel entrou abatida e desalentada. Parada, após dar os primeiros passos, ela esperava alguma reação
de Alexandre, mas isso não aconteceu. Ele fechou a porta, olhou-a de cima a baixo e ficou à sua frente
aguardando algum comentário. Ela abaixou o olhar e não disse uma única palavra.
Não resistindo, Alexandre rendeu-se para envolvê-la num abraço. Raquel o abraçou forte como nunca e o
amigo a levou para que se acomodasse no sofá. O rapaz não perguntou absolutamente nada e ela, mesmo
com as lágrimas correndo pelo rosto, pediu:
Por favor, podemos conversar depois? Ainda estou atordoada epreciso de um banho.
Claro. Vou preparar algo para você comer.
Raquel, envergonhada, se retirou para o quarto. Após se recompor fisicamente ela se sentia melhor e foi
para a sala, percebendo que Alexandre estava no banho. O telefone tocou e, mesmo sem vontade,
atendeu:
Raquel! Que bom falar com você! anunciou Rosana, ao ouvir avoz da amiga. Você está
bem?
Mais ou menos. Sinto-me péssima.
E o Alex? perguntou Rosana.
Está no banho.
Vocês conversaram?
Não.
Rosana estava pouco à vontade para fazer perguntas, pois sua mãe estava em outro
cômodo e poderia
ouvir a a conversa.
Isso é uma fase, Raquel. Vai passar, acredite. Tudo muda.
Vamos ver, Rosana.
Sei como se sente, mas tenha ânimo. Converse com o Alex. Ele ficou muito preocupado com
você.
Vou conversar. Obrigada pelo apoio.
Conte comigo, Raquel!
Obrigada. Após uma pequena pausa, Raquel perguntou: Quer que eu diga para o Alexandre
ligar para você?
313
Não. Eu só estava preocupada com você. Sabendo que está bem,fico tranquila. Amanhã eu falo
com ele.
Após Rosana desligar, dona Virgínia ficou intrigada com o pouco que ouvira daquela conversa. Sem
demora procurou pela filha e perguntou:
O Alex está bem?
Está.
É, não deu para eu ir vê-lo e eu liguei para lá, a Lourdes atendeue disse que vocês haviam saído.
Saímos mesmo.
Almoçaram fora com ele daquele jeito?
Não. Na verdade nem almoçamos. Rosana não mentia para suamãe e vendo que não
adiantaria esconder-lhe a verdade, pois esta viria àtona a qualquer momento, resolveu contar: Sabe
mãe, assim que falei com você que estava na casa do Alex, o telefone tocou, eu atendi e era aRaquel. A
mãe ouvia demonstrando paciência, apesar de ansiosa parasaber o que acontecia e Rosana prosseguiu:
É... bem, ela estava chorando... Sem trégua, anunciou: A Raquel foi demitida.
Demitida?! admirou-se dona Virgínia.
Sim, foi. Ela estava péssima. O Alex disse que iria buscá-la. Eles marcaram um lugar, mas
quando chegamos lá, nos desencontramos epor fim ele me trouxe. Acho que a Raquel chegou bem depois
ao apartamento.
E o Alex? preocupou-se a mãe.
A princípio, creio que ficou aflito pela dificuldade da Raquel,pela decepção que ela enfrentava.
Mas, depois, sabe como é... Depois que conversamos, acho mesmo é que o Alex ficou contente.
Por quê?!
Ora, mãe! Não adianta querer "tapar o sol com a peneira", como o papai diz. Está na cara que o
Alex gosta da Raquel. Ele está apaixonado mesmo! Só você não quer ver isso. Aí é o seguinte: sem
emprego serádifícil ela arrumar um lugar para ficar e, consequentemente, até arrumar outro serviço, terá
que morar com ele.
Isso é um absurdo. Filha, estou preocupada com essa história.
314
Aproximando-se de sua mãe, Rosana a abraçou com carinho, dizendo:
Mãe, a Raquel é uma boa moça. Conversei muito com ela e sei oquanto de dificuldade já passou.
Afastando-se, Rosana a olhou nos olhos e completou: Mãe, por favor, procure compreender a
situação e conhecer essa moça, procure ver Raquel como a uma filha. Pense, se acaso não me tivesse
gostaria de ter uma companheira, uma amiga aqui dentro de casa e a Raquel pode ocupar esse lugar, ela
tem a índole que você gosta. É bem capaz de gostar mais dela do que de mim brincou. Mas, por favor,
procure conhecê-la e terá certeza do que estou falando. O Alex gosta muito dela, mãe, e há muita coisa
que você e o papai não sabem e eu sei que, quando souberem, ficarão comovidos, passarão a respeitar e a
entender o que o Alex está fazendo.
O que não sabemos, Rosana?
Não posso trair a confiança do meu irmão. Na hora certa, o Alexvai contar, mãe. Acredite nele e
não destrua a realização dos seus sonhos, ele precisa dela. Confie em seu filho e não faça julgamentos
precipitados.
Olhando para Rosana, a mãe perguntou:
Estou achando você pálida. Está tudo bem?
É só um pouco de dor de cabeça. Quando você me der um beijinho vai passar brincou a filha.
Sorridente, a mãe se aproximou, a abraçou carinhosamente e com ternura deu-lhe um demorado beijo na
testa, como sempre fazia com os filhos quando se queixavam de alguma dor.
O senhor Claudionor, que acabava de chegar ali, abraçou as duas embalando-as vagarosamente com
generosidade e, antes de se afastar, beijou cada uma.
Tudo bem? perguntou esboçando felicidade pela amorosa cena.
Quase tudo, meu velho. A Rô está com dor de cabeça e...
Precisa ir ao médico, filha. Isso não pode ser normal alertou o pai.
Estou preocupada também com o Júnior. A Vilma ligou hojedizendo que ele teve febre alta e está
com a garganta inflamada informou dona Virgínia.
315
Isso é coisa de criança.
Eu sei prosseguiu a esposa , mas não consigo ficar tranquila.
Papai, isso é coisa de avó coruja. Eles riram e depois Rosanaavisou: Vou
tomar um
remédio e me deitar.
Dizendo isso, a filha saiu e dona Virgínia continuou, agora bem séria:
Claudionor, fiquei sabendo, pela Rosana, que a Raquel perdeu oemprego. O homem ficou
pensativo e a esposa prosseguiu: Vocênão acha que é o momento de termos uma boa conversa com
nosso filho?
O que diríamos?
Você não acha que essa moça o está usando?
Não quero julgar, Virgínia. Mas, por outro lado...
Rosana me disse que o Alex gosta dela.
Isso é óbvio!
Mas, e ela? Será que o respeita? Será que não o está enganando?Que moça é essa que não
tem ninguém da família que a apoia? Nenhuma amiga?
Façamos o seguinte: na sexta-feira você liga para o Alex e diga queeu quero conversar com ele.
Peça para que venha aqui no sábado ou nodomingo.
E se ele trouxer a Raquel?
Daremos um jeito. Vou tentar pegá-lo a sós para conversar. Isso éfácil.
Indo em direção da esposa, o marido a envolveu, beijou-lhe e a apertou contra si, procurando deixá-la
segura, dizendo-lhe, sem palavras, que ele a estaria apoiando.
Naquele momento, no apartamento de Alexandre, Raquel estava muito deprimida ao arrumar a cozinha
depois do jantar. Eles não conversaram e ela mal havia tocado na comida.
316
Raquel chamou Alexandre , deixe isso e venha aqui, porfavor. Precisamos conversar. Ela
obedeceu e foi para a sala, onde ele aesperava. Sente-se, por favor.
Ocupando o lugar indicado gentilmente, ela aceitou, mas não o encarava, abaixando o olhar. Controlando-
se para não mimá-la, Alexandre procurou ser generoso, porém firme e direto, perguntando o que mais
interessava:
Por que não me esperou no estacionamento conforme combinamos?
Não sei respondeu com voz fraca sem olhá-lo.
Fiquei de um lado para o outro procurando você feito um louco.Que falta de consideração,
Raquel! Nem para me telefonar!
Permanecendo ela não o encarava. Mas, insistente, ele perguntou:
O que você tem para me dizer?
Após longa pausa, ela respondeu reprimida:
Não sei o que dizer. Eu não queria ser despedida. Desculpe-me,mas não pude fazer nada. Sei que
sou um estorvo, por isso vou dar umjeito de sair daqui.
Alexandre começou a ficar nervoso com a maneira de vê-la encarar a situação, pessimista e sem visão
lógica da realidade. Aumentando o volume da voz perguntou:
Quem falou que você vai sair daqui?!
Ninguém. Eu...
Irritado, ele a interrompeu levantando-se ao falar:
A primeira coisa que você vai fazer é parar com essa história de que me incomoda e é um estorvo!
E outra, entenda, de uma vez por todas, que você vai ficar aqui! Não forçada por
mim, mas pelas
própriascircunstâncias da vida! Caramba, Raquel! Pare de se subestimar! Procure ver que você não está
sozinha nessa situação. Estou com você. Na minhacasa estará segura, amparada. Para onde irá se sair
daqui?
Sem pensar, ela respondeu:
Para a rua, de onde vim. Lembra-se? respondeu sem pensar. Você não me encontrou em um
bom lugar. Foi da rua que vim para cá.
317
Alexandre estava incrédulo! Procurando controlar sua impulsividade, ele moderou a voz, parou à frente
dela, abaixou-se e perguntou:
Por que você faz questão de me agredir assim, Raquel? Já paroupara pensar o quanto me ofende,
me magoa, dizendo isso? Observe o que está jogando fora! Sei que teve dificuldades horríveis, no
entanto,Raquel, quem mais a está maltratando, deixando-a na penúria, é vocêmesma! Seu coração está
sendo vaidoso por não aceitar o pouco que posso oferecer. Seus sentimentos estão sendo orgulhosos por
não poderse sensibilizar com aquele que ainda se preocupa com você. Agindo desse jeito, está se
auto flagelando, Raquel.
Nesse instante, devido ao silêncio, ela ergueu o olhar lacrimoso encarando-o. Alexandre, que estava
abaixado na sua frente, acreditou ser aquele o momento decisivo. Tomando coragem, continuou
impassível:
Eu a amo, Raquel ele afirmou sem conter as lágrimas. Eu aamo como nunca amei alguém.
Não posso crer que você não sinta nadapor mim, nem mesmo consideração ou respeito.
Raquel caiu num choro copioso e ele teve que se fazer forte para não abraçá-la, mantendo-se na mesma
distância. Pouco depois, continuou:
Hoje, fiquei feito um louco, aflito, procurando-a em todo lugar que pude imaginar. Você nem para me
telefonar e dizer: "Estou dando uma volta. Quero ficar só, não se preocupe". Puxa, Raquel! Posso não ser
nada seu! Posso não significar nada para você, posso não ter importância alguma, mas acho que mereço
um pouquinho de consideração e respeito da sua parte. Você pode não sentir nada por mim, mas, pelo amor
de Deus! Eu sei que tem educação, eu sei que é atenciosa!
Raquel chorava muito. Estava confusa por não saber como se defender. Alexandre, ainda de joelhos,
olhando-a firme, decidido e sem perder a postura, prosseguiu:
Eu disse a você que vou ajudá-la, aconteça o que acontecer. Estoudisposto a isso para que se
estabilize, consiga vencer seus desafios, possa trazer sua filha para junto de si e muito mais. Acredito que é
o fato devivermos juntos, assim como estamos, que a incomoda tanto e, por saber que eu a amo, vive em
conflito. Então preste atenção, para provar
318
que quero ajudá-la mesmo e que a amo de verdade, amanhã eu estarei deixando esse apartamento.
Raquel ficou paralisada em choque e ele continuou: Estou saindo daqui e indo morar, a princípio, na
casa dos meus pais. Você receberá todas as provisões que necessitar e pode ficar aqui o tempo que for
preciso. Se sou eu que a incomodo com minha presença, com meu jeito, com meu amor, estou indo
embora para que tenha tranquilidade.
Alexandre se levantou e quando ia se virando Raquel se ergueu e agarrou-o pela camisa, desferindo um
grito:
Não! implorando aflita: Pelo amor de Deus, não me abandone! Raquel abraçou-se ao
amigo, em desespero. Com a voz entrecortada pelos soluços, confessou: Eu não posso ficar sem
você...Há algo errado comigo... mas eu também te amo!
Alexandre a abraçou, fazendo-a se sentar novamente, não acreditando no que ouvia. Acomodando-se ao
seu lado, tirando-lhe os cabelos do rosto ao fazer-lhe um afago e, generoso com voz terna, perguntou
incrédulo:
Você disse que me ama, Raquel?
Sempre o amei confirmou em meio ao choro. Escondendo o rosto em seu peito, ela continuou
com a voz abafada: Sempre te amei, Alexandre. Sempre senti algo muito forte por você, mas não sabia o
que era... Desde quando começamos a trabalhar juntos, mas eu não queria... mas foi mais forte que minha
vontade. Só que eu tenho medo...Eu... Eu não sei o que é...
Ele a apertou com força, sussurrando-lhe ao ouvido:
Calma. Está tudo bem. Eu a amo muito, Raquel. Muito!
Não saia daqui... Fique comigo, por favor implorava sem controlar as emoções.
Não. Eu não vou sair. Cuidarei de você. Eu prometi isso e querofazê-lo.
Raquel, escondendo o rosto em seu peito, abraçava-o e ainda aflita chorava. Enternecido, ele beijou-lhe os
cabelos, trazendo em seus sentimentos um misto de surpresa, alegria e tristeza por conseguir tê-la perto de
si, mas com tantos obstáculos a transpor e traumas a superar.
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** página em branco **
Capítulo 15
Turbulência inesperada
Na manhã seguinte, Alexandre levantou bem cedo e, preocupado com Raquel, telefonou para sua irmã e
pediu:
Depois da faculdade vem pra cá e fica com ela? Não quero deixá-la sozinha, entende? Tenho
que ir trabalhar e não quero ficar telefonando à toa.
Tudo bem, eu vou aceitou Rosana. Mas, e aí? Como foi?Vocês conversaram?
Tenho muita coisa pra contar, mas agora não dá. Falaremos depois.
Tudo bem.
Tchau, Rô. Agora preciso ir.
Após desligar o telefone, Alexandre percebeu a aproximação de Raquel que parecia estar um pouco
desorientada. Acostumada a se preparar para ir ao trabalho, aquela manhã estava sendo muito diferente.
Você não está esquecendo o atestado de convalescença, está? perguntou.
Não. Já peguei avisou tranquilo arrumando sua pasta.
Acho que amanhã vou com você. Preciso passar pela entrevista e pelo exame médico que exigem
para a demissão. Mais tarde vou telefonar para confirmar.
Claro, iremos juntos, sim. Após pequena pausa, ele perguntou: Raquel, tem certeza de que
vai ficar bem aqui sozinha?
Vou, sim. Não se preocupe sorriu ao responder acanhada.
A Rosana, depois da faculdade, virá pra cá ficar com você.
Isso é bom. Preciso conversar com alguém.
Ao vê-lo pegar as chaves, ela colocou-se a sua frente e falou:
Alexandre, desculpe-me pelo que fiz ontem, por fazê-lo sofrertanto. Eu nunca imaginei que
alguém pudesse ficar assim por minhacausa.
Desculpe-me você por ter sido tão firme argumentou com leve sorriso , quando fico assim
parece que estou insensível, mas não é.
Eu precisava ouvir aquilo. Não vou dizer que meus pensamentos estão livres de perturbações ou
de ideias terríveis, porém, estou bem melhor.
Alexandre a abraçou forte e beijou-lhe a testa. Afastando-se, teve o impulso de beijá-la nos lábios, instante
em que percebeu que Raquel, por medo, parecia tremer prevendo sua intenção. Alexandre deu um sorriso,
passou-lhe a mão carinhosamente pelo seu belo rosto, apertou seu queixo beliscando-o levemente, como
quem brinca, e falou:
Agora preciso ir. À noite conversaremos.
Tchau disse Raquel, estampando um sorriso emocionado.
Alexandre foi embora satisfeito, sentindo-se feliz. A caminho do serviço não tirava o sorriso do rosto.
Lembrou, porém, que teria muito trabalho com Raquel, pois sabia que ela precisava vencer seus medos,
seus traumas. Mas isso não importava, pensava, ele seria paciente. Iria tratá-la com todo carinho e
respeito. O principal já sabia, Raquel o amava.
Sim! O amor dos dois haveria de vencer todas as barreiras, todos os medos, triunfando.
Por um instante ele riu e lembrou-se de como a vida era engraçada. Todas aquelas mulheres que
praticamente se ofereciam, ele não quisera, agora estava apaixonado e disposto a tudo para conquistar a
mais difícil que já vira.
Que ironia do destino!
Mais tarde Rosana chegou ao apartamento do irmão e foi recebida por Raquel, que lhe ofereceu um abraço
demorado e muito apertado. Ela ficou surpresa ao observar o ânimo da amiga e disse:
322
Fico feliz em vê-la! Você está bem?
Vem cá! pediu Raquel sorrindo. Sente-se aqui.Acomodadas, Raquel pegou as mãos da
amiga, que se sentara ao seu
lado e, curiosa, estava com grande expectativa, pois sentia que algo tinha acontecido. Sem demora Raquel
contou-lhe tudo.
E aí?! interessou-se Rosana em saber mais.
Foi só isso. Sabe, apesar de decepcionada com muitas coisas, conversando com ele e dizendo
que o amava... Senti-me tão... Sei lá.
Você está apaixonada afirmou Rosana rindo.
Raquel ofereceu meio sorriso tímido. Depois, mais séria e temerosa, confeçou:
Tenho medo, Rô.
Medo do quê? perguntou a amiga com voz terna.
Raquel abaixou a cabeça e recostou-se nela. Afagando-lhe, Rosana falou:
Alexandre é tão bom.
Eu sei... murmurou
Ele é carinhoso, compreensivo. Vai ajudá-la. Saberá lidar com essa situação.
Após pensar um pouco, Raquel lembrou:
Sabe aquele dia em que ele me beijou?
Sei.
Não esqueço. Não consigo contou Raquel, com o olhar perdido.
Então! Deixe que aconteça novamente! incentivou Rosana,entusiasmada.
Mais séria, encarando-a, Raquel admitiu angustiada:
Rosana, você não pode imaginar o drama que vivo. Ao me deitar,por um minuto recordo meu
primeiro beijo, porém, por uma hora, vivoo horror da violência sofrida no passado.
Comovida, Rosana perguntou:
Faz cerca de quatro anos! Não dá para esquecer? É assim mesmo?Os olhos de Raquel se
nublaram e ela, se encolhendo, exprimindo
medo, falou:
323
Sim, é. Abraçando a amiga, escondendo o rosto em seu peito,continuou: A cena é viva, Rô. É
como se tudo acontecesse novamente. Após pequena pausa, com a voz fraca e embargada, relatou:
Eu escuto aquela risada sarcástica, aquelas palavras sujas... É como se pudesse sentir aquele toque
violento... nojento... O silêncio se fez poralguns minutos, mas, enquanto Rosana afagava-lhe os cabelos,
ela argumentou mais pausadamente: Que humilhação, escárnio... É como se eu pudesse sentir a dor
física... moral. Eu gritei!... Chorei! Pedi aDeus, mas Ele não quis me ajudar. Por isso nunca mais rezei.
Aquele homem bruto e violento me amarrou, machucou... muito... Raquel agora parava de chorar e se
afastou do abraço. Exibindo angústia no olhar que sempre fora dócil completou, fitando lugar algum:
Vivoapavorada, Rosana. Relembro vivamente esses momentos, que não ocorreram uma única vez e
acreditando que tudo pode acontecer de novo.Vivo em constante medo. Adoro seu irmão, mas, quando ele
me abraça,essas lembranças voltam, é como se ele fosse fazer o mesmo... Não consigo controlar. É uma
aflição constante. Fico perturbada, tenho medo de... Quero gritar. Raquel chorou e, voltando ao abraço,
completou: Ainda fui saber que ele era meu pai.
Rosana, que não conteve as lágrimas, apertou-a contra si afagando-lhe com carinho ao dizer:
Eu imagino, Raquel. Entendo o quanto você sofre.Em meio ao choro sufocado, a amiga
perguntou:
Como eu poderei fazer o Alexandre feliz? Como vou amá-lo assim?
O Alex é um homem muito bom, compreensivo, paciente. Permita, aos poucos, que ele apague
esse passado triste, Raquel. Ele saberácomo fazer isso, o Alex é carinhoso e a respeita muito, além de te
amardemais. Troque seus pesadelos pelo sonho de ter o Alex perto de você.Sei que não vai conseguir isso
da noite para o dia. Haverá momentos em que vai se melindrar, sofrer, mas ele vai ajudá-la. Ele a ama,
Raquel.
Eu tenho tanto medo sussurrou.
Olha, por que você não procura ajuda profissional? Um psicólogovai orientá-la, ajudá-la a vencer
isso. Leve o Alex com você.
324
Não!
Por quê?
Tenho vergonha.
No amor não pode haver segredos ou vergonha.
Às vezes penso que o Alex merece coisa melhor.
Raquel, acorda! O que tem "aí fora" ele não quer. O Alex quer você!Mas numa coisa você tem
razão. Ele merece coisa melhor, sim. Merece que você melhore, que busque se ajudar para que possam ser
felizes juntos. Prometa uma coisa pra mim? pediu Rosana, perguntando.
O quê?
Tente.
Raquel a encarou sem nada dizer e ficou pensativa.
Ei, menina! continuou a amiga, animada. Se você teve todas as razões para ser triste,
aproveite todas as oportunidades para serfeliz! Sabe aquele pedido que fez a Deus e acreditou que Ele não
a ouviu? Ele está lhe respondendo agora, colocando no seu caminho alguémdigno, que a respeita, que a
ama.
Após alguns minutos, Raquel argumentou:
Alexandre não vai me tolerar. Não tenho emprego, tenho umafilha, não tenho onde ficar, tenho
meus medos...
Mas o ama, o respeita, o valoriza, não vai traí-lo e isso basta paraele! Tenho certeza de que o
Alex é bem forte para assumi-la com todas assuas dificuldades. Contudo, Raquel, preste bem atenção, meu
irmão écapaz de suportar todos os problemas que vocês tiverem, mas talvez ele não tolere depressões,
insistência em pensamentos catastróficos, climastristes, brigas, mentiras e intrigas. Mude seus
pensamentos.
É tão difícil.
Você acredita em Deus, Raquel? A amiga ficou em silêncio e Rosana insistiu: Acredita em
Deus?
Com o olhar perdido, Raquel paralisada, argumentou:
Quando mais rezei, mais precisei, fiquei só.
Rosana, como que inspirada por amigos espirituais de elevado nível, impostou a voz dizendo brandamente:
325
"As raposas têm seus covis e as aves do céu têm seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem
onde reclinar a cabeça..." "Pai, se é possível,afasta de mim este cálice, porém, não se faça a minha, mas a
Tua vontade..." Raquel, até Jesus experimentou o cálice amargo que não precisavabeber. Então, quem
somos nós, míseros pecadores, para exigir pão emel? Jesus ficou sem abrigo, mas você, Raquel, mesmo
depois de tudo,tem a quem recorrer, tem onde ficar. Agradeça a Deus por isso, poisquem a acolhe hoje não
o faz por dever ou obrigação pelos laços consanguíneos. Quem a acolhe e ampara o faz por amor.
Raquel abaixou acabeça como que envergonhada e Rosana continuou: Dê uma chance a você mesma.
Faça preces. Liberte-se desses pensamentos negativos quea acorrentam às antigas misérias
experimentadas. Sabe, Raquel, a pronúncia de palavras imorais, os chamados palavrões, os pensamentos
negativos, as fofocas, os julgamentos errôneos que fazemos precipitadamente nos prendem às tristezas, às
flagelações e a tudo o que de ruim podemos imaginar. Se você quer mudar, vencer e se elevar,
comece melhorando os seus pensamentos.
Eu tento, mas...
Você gosta de ler?
Gosto.
Já leu a Bíblia, ou o Evangelho?
Um pouco.
Gostaria de ouvir comentários sobre os ensinamentos de Jesus?
Creio que sim.
Então, amanhã à tarde eu venho aqui e iremos a uma reunião evangélica para ouvir uma
explanação dos ensinamentos de Jesus numCentro Espírita.
Desculpe-me, Rosana disse a amiga meio assustada e tímida. Jurei a mim mesma que
nunca mais vou num "lugar" desses. Já fui e...
Não! Você não foi, não! Centro Espírita é um lugar de instrução.Nesse "lugar" que você foi ouviu
alguma palestra sobre o que devemosfazer para nos melhorar? Alguém disse que você precisava mudar
seus
326
pensamentos para o bem, as suas palavras para a fé e o amor e as atitudes para a gentileza e a alegria?
Não.
Então você não foi a um Centro Espírita. Se você foi a um "lugar"que informou que você é
invejada, precisava levar isso ou aquilo se não iria perder o emprego, que deveria fazer um "trabalho
espiritual" paraconseguir alguma coisa, ou que de algum modo os espíritos iriam ajudá-la, você não foi a
um Centro Espírita, nem a uma Sociedade Espírita.Doutrina Espírita, Espiritismo, não é isso.
O que é Espiritismo? perguntou Raquel, com modos simples.
Espiritismo é Jesus. O que Jesus falou, o Espiritismo, a DoutrinaEspírita codificada por Allan
Kardec, fala e explica. O Espiritismo não admite a fé cega. Para tudo há uma explicação. O que Jesus fez e
usou,o Espiritismo faz e usa.
Raquel pensou e perguntou:
No Espiritismo não tem velas, nem flores, nem incenso queimando, nem imagens para adoração?
Rosana sorriu e respondeu com uma pergunta:
Você mesma pode e vai responder. Jesus usou velas, flores, incensos ou imagens para
adoração?
Não.
Viu como é fácil distinguir? Espiritismo é Jesus. Esse MestreAmigo orientou através de palavras.
Ele ensinou através da lógica, dafé, da razão, do amor. A Doutrina Espírita continua orientando domesmo
modo. Isso não significa de devemos repugnar as flores, a natureza, adornos bonitos que enfeitam e não
apreciar um perfume, um aroma gostoso. Vamos lembrar que tudo isso é criação de Deus. Adoro ter flores
em casa, meu quarto limpinho e perfumadinho... com minhas coisinhas prediletas no lugar... Isso me
agrada, me faz sentir bem e faz parte da minha evolução. Não posso crer que no plano espiritualbem
elevado, espíritos superiores repudiem flores, aromas celestiais...Não estamos aqui vivendo nesse
"planetinha" por acaso. Temos um objetivo, um propósito a cumprir: nossa evolução. Se não possuímos o
327
que desejamos, ou o que ambicionamos, há um motivo e uma explicação lógica para isso.
Se quisermos o que não nos pertence e conseguimos por meios não corretos, teremos que ressarcir os
danos que oferecemos aos outros, além de muito refazimento pela frente.
Mas isso você vai aprender com o tempo. No momento, o que precisa é de conforto para o seu coração
dolorido, sofrido. Depois vocêadquire, aos poucos, o conhecimento através dos livros da Codificação
Espírita, começando pelo O Livro dos Espíritos, e, lá na frente, vai aprender a não sofrer mais. Resumindo,
você fica livre, independente de superstições e cumpre sua tarefa, leva sua vida de modo mais tranquilo e
sem julgar ninguém. Aprendemos isso com a Doutrina Espírita.
Existe coisa que nos liberta assim?
Para quem tem boa vontade e desejo no bem, sim. Depois depequena pausa, Rosana
perguntou: Quer conhecer?
Estou um pouco receosa ainda e... admitiu sem jeito.
Está certo. Quando se sentir preparada, nós vamos, tá?
Tá certo.
Rosana disse aquilo para que Raquel não ficasse preocupada e temerosa com o que ela iria propor. A
amiga planejava, no dia seguinte, aparecer lá e levá-la para a Sociedade de Estudos Espíritas que
frequentava, mas não disse nada e lhe abordaria de surpresa, a fim de que Raquel não tivesse tempo de
pensar.
Na tarde do dia seguinte, Rosana foi até o apartamento de seu irmão sem avisar, mas não encontrou
ninguém. Esperou por longo tempo e nada. Raquel havia ido fazer a homologação de sua dispensa do
serviço e passara o dia fora. Cansada, olhando no relógio, acreditou que seu noivo poderia ir buscá-la. Indo
até o telefone público, Rosana ligou para Ricardo e acertaram o encontro.
328
Você teve sorte! Eu não ia sair nesse horário avisou o noivo sorrindo.
Não vem com essa, não! disse Rosana com um jeito engraçado. Eu sei que você sai às três
da tarde.
Quero levá-la ao nosso apartamento. Você tem que ver uma coisa!
Ah, não! O que saiu errado agora?...
Você vai ver afirmou com jeito insatisfeito.
Pouco depois, não muito longe dali, o casal entrou no apartamento, que estava mobiliando para o
casamento.
Feche os olhos por que você não vai acreditar pediu Ricardo.Conduzindo a noiva, ele a fez
entrar e disse: Pronto!
Está pronto! Eu não acredito que terminaram! gritou admirada.
Pensei em trazê-la para ver só no sábado, mas como tivemos tempo hoje...
Abraçando o noivo, distribuindo exagerados beijos por todo seu rosto, ela exclamou:
Amo você! Que lindo!
Lindo quem? Eu ou o apartamento? perguntou ele brincando.
Seu bobo. Claro que é o apartamento!
Eles riram e Rosana foi verificar os quartos e depois a cozinha.
Gostou? indagou Ricardo.
Menos eufórica, Rosana agradeceu mais romântica:
Obrigada, bem. Está lindo! Do jeitinho que planejamos.
Ainda precisamos ver o colchão, as cortinas e os tapetes.
Ah, não! Tapete não. Dá muito trabalho.
Você quem sabe concordou o noivo. Se também não quiser,nem precisamos de colchão.
Assim você não terá roupa de cama paralavar.
Estou tão feliz! disse abraçando-o.
Mesmo?
Lógico!
O que você acha de marcarmos uma data? perguntou o rapaz.
Para o nosso casamento?!
329
Não. Só para o meu.
Seu bobo. Claro! Só que eu gostaria de terminar este ano da faculdade. O que você acha?
Ótimo. É o tempo que precisamos para ver alguns detalhes. Vocêquem sabe concordou
Ricardo satisfeito.
Ah! Eu já escolhi meus padrinhos.
Já sei! anunciou ele. A Vilma e o marido.
Não. O Alex e a Raquel.
Será que eles aceitam?
Terão que aceitar!
E eles, como estão?
Estão indo disse Rosana, meneando a cabeça. O Alex terá um grande trabalho com a
Raquel.
Por quê? Você não disse que ela era legal?
Sim. Claro que é. Mas acontece que a Raquel tem problemas e ele terá grande dificuldade para
conquistá-la.
Conquistar?! Rô, olhe bem pra a cara do seu irmão! O Alexandreganha qualquer uma! Você não
vai vir para cima de mim dizendo queacreditou naquela história de eles não terem nada, de serem só
amigos?Nem sua mãe acreditou!
Séria e pensativa a noiva avisou:
Não julgue, Ricardo. Você não conhece "um terço dessa missa".
Qual é, Rô? O Alex é o maior safado!
Não fale assim. Ele gosta muito dela e a respeita. Eles realmente não têm nada. Estou torcendo
para que tenham.
Ora, qual é! Conta outra.
Então vou contar falou bem séria e decidida. Rosana resolveu esclarecer o noivo sobre tudo o
que aconteceu com Raquel. No final, ela perguntou: Entendeu agora por que digo que será difícil
ele conquistá-la?
Estou chocado. A Raquel...? Coitada... comoveu-se surpreso.Levantando-se, pois estavam
sentados no chão, Ricardo caminhou vagarosamente pela sala, parou exibindo uma expressão indignada, e
dissse:
330
Estou até me sentindo mal com essa história, talvez por ser alguém que eu conheça, admiro sua
sensibilidade, seu jeito. Nossa!...
Eu sei compreendeu Rosana, que ainda sentada no chão, o seguia com os olhos. Eu
também me senti assim.
Sentimos aversão quando ouvimos contar casos assim, mas quando conhecemos a vítima é um
sentimento muito pior. Dá vontade de pegar o cara e... Após ligeira pausa, perguntou: Foi ela que te
contou?
Primeiro foi o Alex que me disse tudo. Olha, sofri muito ouvindo o relato dramático dele que se
afligia a cada palavra por gostar tanto dela. Mas depois, quando a própria Raquel me contou... Ouvindo
aquela voz doce detalhar o abuso repulsivo que viveu... Tive que ser forte para não entrar em desespero e
chorar junto. Ainda ontem, quando conversávamos, ela praticamente narrou minuciosamente como
foitraumatizante... algumas coisas disse reviver com frequência, como seestivesse acontecendo. Falou da
dor física, do nojo que sentia... Nossa,Ricardo! Que horror! angustiou-se Rosana extremamente
comovida,e depois continuou: Eu adoro meu irmão e a Raquel também. Euquero ajudá-los. Você se
importa?
Não! Claro que não. Vamos ajudá-los, sim. Pode contar comigo.
Só vou lhe pedir uma coisa.
Fale.
Não brinque mais com o Alex daquele jeito. Ele me contou que outro dia, por telefone, você ficou
perturbando e... Você sabe.
Puxa, Rô, é mesmo! Que brincadeira infeliz. É coisa de homem,entende? Se eu soubesse... Mas
ele não disse nada, eu não poderia imaginar.
É lógico que não iria dizer. Agora, porém, fique mais atento.
Pode deixar prometeu sentando-se a seu lado novamente.
E não conte nada para a minha mãe!
Claro que não!
O noivo enternecido a abraçou e beijou-a com carinho, dizendo:
Você tem um coração tão bom, Rosana. Tão compreensivo, sensível...
331
Ela sorriu e o beijou novamente.
No sábado pela manhã, os primeiros raios do sol invadiam, sem convite, o apartamento de Alexandre. Ele
acordara cedo e ao se levantar percebeu que Raquel ainda dormia. Decidiu tomar um banho e fazer o
desjejum. Acreditando que não iria incomodar Raquel, Alexandre foi até o outro quarto e, tomando nas
mãos o velho amigo violão, sentou-se em uma almofada que estava no chão e começou a afiná-lo. Após o
som estar em harmonia, ensaiou as primeiras notas de uma linda canção e, impostando a voz somente
com a garganta, fechou os olhos para acompanhar aquele solado suave e doce que ecoava quase como
um lamento. Não demorou muito e Raquel despertou. Ela seguiu a música até encontrar no outro quarto
Alexandre sentado a tocar e cantar. Quase de costas para porta, ele não a viu. Sem se deixar perceber, ela
se retirou, não interferindo naquele agradável momento. Indo se cuidar, tomou alguns afazeres até que,
bem depois, Alexandre silenciou.
Nesse instante ela decidiu ir vê-lo. Encontrando-o abraçado ao violão, com a cabeça baixa e os olhos
fechados, Raquel arrebatou-o das reflexões ao dizer com sua voz suave e meiga:
Estava tão lindo! Continue, por favor.
Alexandre sorriu e estendeu-lhe a mão, convidando-a para que se sentasse a seu lado. Raquel assim o fez.
Sentindo-se orgulhoso pelo elogio, ao empunhar o instrumento, dominando-o, disse:
Esta canção é para você.
Roubando as mais belas notas e arranjos que podia, ele executou outra linda canção para Raquel. No final
ainda afirmou:
Há tempos eu não a tocava.
Que linda! Obrigada.
Sorrindo, Raquel se aproximou e beijou-lhe o rosto. Quando ela ia se sentar novamente, Alexandre a
segurou pela cintura, impedindo-a de se afastar dele. Colocando o violão no chão, procurou envolvê-la com
332
um abraço suave. Raquel, paralisada, quase resistente, exibia uma aflição parecendo ter perdido a cor,
mas resistia e deixava-se conduzir.
Alexandre, bem sério, observando suas reações, trouxe-a para junto de si, deitando-a sobre suas pernas,
que estavam cruzadas. Olhando-a por longo tempo, acariciou-lhe os cabelos, desalinhando-os, enquanto
inúmeros pensamentos corriam por sua mente. Receosa, Raquel encolhia-se em seus braços pelo temor
que sentia e parecia nem respirar, fitando-o, apreensiva. Alexandre sorriu piedoso e pensativo ao
compreender o pânico que ela vivia e, para distraí-la, comentou:
Você está gelada. Raquel esboçou um sorriso forçado e ele completou com voz generosa, quase
sussurrando: Confie em mim.Eu te amo tanto!
Os lábios de Raquel tremiam, mas, procurando vencer-se, com voz baixa, pronunciou murmurando:
Eu também te amo.
Alexandre curvou-se ainda mais roçando seu rosto naquela face macia, mas, quando encontrou seus
lábios, ele a percebeu chorar. Seu coração apertava, jamais Alexandre experimentara tanta dor, tanta
piedade por alguém. Olhando para Raquel percebera como era miúda, frágil, delicada e indefesa. Ela não
podia reagir contra ninguém, não teria forças. Com carinho, ele a abraçou contra seu peito, embalando-a e
dizendo:
Meu amor, não tenha medo. Eu vou protegê-la enquanto viver.Desfeito o abraço, ao se afastar,
Raquel quis se ajeitar e ele a ajudou.
Novamente sentada a seu lado, secando as lágrimas e constrangida, escondia o rosto ao pedir:
Desculpe-me.
Alexandre ficou de joelhos, ajeitando seus cabelos e acariciando-lhe o rosto falou generoso:
Não peça desculpas. Você não tem culpa alguma. Segurando-lhe as pequenas mãos, ele
completou com voz terna: Preste atenção,meu amor: não tenha medo ou vergonha de chorar perto de
mim, nemtenha medo de me pedir para parar. Por favor.
333
Raquel o encarou e ameaçou abraçá-lo. Num impulso ele a envolveu como amigo fiel e parceiro para todas
as horas. Procurando animá-la, convidou-a:
Vamos na casa dos meus pais comigo? Preciso ir lá.
Acho que não devo respondeu com jeitinho.
Vamos, vai?
Por favor. Além de envergonhada por estar aqui, ainda perdi oemprego e...
Vou levá-la comigo, sim afirmou, levantando e erguendo-aconsigo. E ainda vou apresentá-
la como minha namorada.
Não!
Então o que somos?
Nós... tentou dizer confusa ao raciocinar.
"Nós" o quê? Pare de enrolar e vamos logo. Aliás, você quer se arrumar ou vai assim mesmo?
Não vou.
Olhando de um jeito esquisito, brincando e com sorriso no rosto, falou:
Vou carregá-la no ombro, se for preciso, hein!
Ela sorriu e ficou sem jeito, decidindo não resistir. Antes de sair de casa, Alexandre telefonou para sua mãe
avisando:
Mãe?
Oi, filho. Tudo bem?
Tudo.
Você não vem pra cá? Estou esperando.
Mãe, tem almoço para dois? A Raquel vai comigo.Mesmo surpresa, ela respondeu:
Claro! Traga-a, sim.
Daqui a pouco estaremos aí. Um beijo.
Outro, filho. Vem com Deus.
334
Minutos depois, Alexandre estacionava o carro em frente da casa de seus pais e observava que sua mãe
conversava com alguém.
Eeeeeh...! ele reclamou, sentindo-se incomodado.
O que foi, Alex? perguntou Raquel, que já estava nervosa einquieta.
É aquela mulher ali conversando com minha mãe.
Quem é?
Fazia muito tempo que não a via.
Quem é ela, Alexandre? insistiu Raquel.Ele a olhou sério e avisou, pausadamente:
Ela é a mãe da minha ex-noiva. Raquel sentiu-se gelar e ele continuou: Olha, aconteça o
que acontecer, fique perto de mim.
Por quê?
Eu não sei. Vamos nos prevenir.
Após dizer isso, Alexandre desceu do carro. Alcançou Raquel na calçada e pegou-a pela mão.
Aproximando-se de sua mãe, ele a cumprimentou com um beijo e Raquel imitou-o, quase sem perceber.
Voltando-se para a mulher, educadamente a cumprimentou, dizendo:
Tudo bem, dona Otávia? Como vai a senhora? perguntou ele sério e trazendo a mão de
Raquel presa à sua.
Que surpresa, Alex? Há quanto tempo!
Observando que a mulher logo olhou para Raquel, que estava um tanto constrangida, Alexandre
apresentou com firmeza:
Esta é a Raquel. Minha namorada.
Raquel enrubesceu, mas com um simples e simpático sorriso, estendeu a mão delicada e cumprimentou a
senhora. Sem demora Alexandre voltou-se para sua mãe, que também ficou surpresa ao ouvi-lo, e
perguntou:
A Rô está lá dentro?
Está sim. Entre! Tem uma surpresa lá pra você!
O que será?! perguntou ele sorrindo e adivinhando sem que amãe dissesse. Mas antes,
virando-se para a mãe de Sandra, pediu: Dê-nos licença, dona Otávia.
Claro, filho. Pode ir.
335
Vamos! Venha, Raquel disse ele colocando a mão no ombro da moça.
Até se chegar na casa havia um belo e grande jardim gramado e contornado com altas árvores e flores
alegres. No estreito corredor, ladeado de delicada cerquinha de madeira branca, caprichosamente alinhada,
eles caminhavam, quando Raquel sussurrou:
Eu mato você.
Alexandre riu gostosamente, parou e a fez ficar na sua frente, perguntando baixinho e com ar de riso:
Então me fala: o que você é minha?
Raquel sentiu-se corar. Envergonhada, ficou parada sem saber o que dizer. Com um impulso, ele roubou-
lhe rapidamente um beijo, tomando sua mão, continuou a andar. Raquel, surpresa e confusa, não disse
mais nada.
Ao entrarem na grande sala muito bem decorada, Alexandre gritou:
Tem alguém em casa?!
Vilma, sua irmã casada que morava no Rio de Janeiro, veio correndo e se atirou sobre ele. O irmão a
segurou e giraram em meio ao riso gostoso que podia ser ouvido por toda a sala.
Alex! Que saudade! avisava a irmã, após ser posta no chão.Vilma o contemplou de cima a baixo
e depois voltou a abraçá-lo.
Após abrandar a grande euforia, ele apresentou orgulhoso:
Esta é a Raquel, minha namorada.
A irmã de Alexandre recebeu Raquel com carinho, abraçando-a com mesma alegria.
Oi, Raquel! Prazer em conhecê-la!
O prazer é meu respondeu com o coração apertado.
Sinta-se à vontade, por favor pediu Vilma bem-educada.
Onde está a Rosana? perguntou Alexandre.
Lá nos fundos com o papai e o Júnior.
O Valter, não veio? estranhou o irmão.
Veio sim. É que a Priscila quis sorvete e eles saíram para comprar.Não quero que o Júnior veja
porque ficou doentinho há pouco tempo com problema de garganta e não quero arriscar.
336
Rosana, eufórica, entrou e admirou-se:
Raquel!!! Que bom que você veio! disse abraçando a amigademoradamente e meneando-a com
alegria. Segurando em suas mãos,Rosana disse: Preciso te contar uma novidade. Vem comigo!
Ao conduzir Raquel para seu quarto, ouviu da irmã:
Ô! Mal-educada! Vai arrancá-la assim, é? Espere! Deixe-me conhecê-la melhor!
Vão conversando aí, tenho de falar muito com ela.Enquanto Alexandre e Vilma, que não se viam
com frequência,
atualizavam as novidades e matavam a saudade, Rosana, animada, levou a amiga para seu quarto para
contar as novidades::
Ai!... Deixe-me contar! Meu apartamento ficou pronto.
Que bom!
Vamos marcar a data do casamento.
Fico tão feliz por você! afirmou emocionada ao abraçá-la.
Você e o Alex serão meus padrinhos! anunciou Rosana.Raquel sentiu uma surpresa gostosa.
Sem ter nenhuma palavra que
expressasse sua emoção, ela se abraçou novamente a Rosana e, quase chorando, perguntou:
Tem certeza? Eu?
Não! Você sozinha, não! O Alex tem que ser o padrinho.
Ah, Raquel! Estou tão feliz! exclamou após rirem.
Posso imaginar disse a amiga sorrindo docemente.
Sabe, tenho que comprar algumas coisinhas ainda. Quero te fazer um pedido.
Diga!
Você vai comigo para ajudar a escolher?
Eu?!
Por que não?
Bem, não sei se tenho bom gosto. Não estou acostumada a escolher ou decorar.
Isso é simples. Quando eu mostrar uma coisa, você diz: gostei!Ou: não gostei! Elas riram e
fizeram brincadeiras, mas na primeiraoportunidade Rosana perguntou: E você e meu irmão, como
estão?
337
Oferecendo um leve sorriso, Raquel abaixou o olhar e revelou:
Tenho muito que me recompor, Rosana.
Olha, o Ricardo tem um primo que é psicólogo e...
Mas eu...
Espera! pediu Rosana continuando: Esse primo trabalhaem uma empresa e à noite numa
escola. Ele não tem consultório, não lida com esse tipo de caso. No entanto, ele tem um colega,
tambémpsicólogo, que é especialista em terapia de casal. Por favor, marque umaconsulta.
Raquel ficou pensativa e a amiga insistiu:
O Alex vai acompanhá-la, tenho certeza. Terá a ajuda dele e aminha também.
Tenho medo de decepcionar o Alex.
Irá decepcioná-lo se não tentar. Tente!
Hoje eu o ouvi tocando e cantando... começou contar.
O Alex?!!! surpreendeu-se Rosana.
É. Por quê?Rosana sorriu e contou:
Desde quando ele teve aquela série de problemas nunca maisalguém o ouviu cantar ou tocar. Eu
mesma já cansei de pedir, mas não fui atendida.
Então ele anda ensaiando às escondidas, porque se saiu tão bemcomo se houvesse treinado
muito sorriu Raquel ao comentar.
E aí? Conta! O que aconteceu?
Quando o Alex terminou, não sei bem dizer como aconteceu,mas... Ele me abraçou e me
segurou, ficou olhando e... Ah, Rosana... Eutive que fazer um esforço tão grande para não gritar, para não
reagir, ou...
Diante da pausa, a amiga perguntou:
O que aconteceu?
Nada. O Alex passou seu rosto no meu e acho que notou que euestava em pânico. Lágrimas
rolaram no rosto de Raquel e ela continuou: Ele me abraçou forte e pediu para que não tivesse medo.
Queconfiasse nele...
338
Oh, Raquel. Vem cá disse a confidente abraçando-a, depoiscontinuou: Não fique assim.
Nesse instante, dona Virgínia entrou no quarto. Raquel se afastou e se recompôs, enquanto Rosana,
esperta, puxou um assunto qualquer para disfarçar aquela cena. Vilma chegou logo atrás de sua mãe e
Rosana perguntou:
Onde está o Alex?
Lá no quintal. Foi ver o papai.
Naquele instante, Alexandre beijava o pai cumprimentando-o e após o seu sobrinho, que se divertia.
Passaram a observar o garoto, que correu na direção do balanço para brincar.
A mãe falou que você queria conversar comigo.
É. Quero sim respondeu o pai, um pouco sem jeito.
O que foi? Aconteceu alguma coisa?
Sem muito rodeio, o senhor Claudionor o chamou para que ficassem a certa distância do menino e indicou
ao filho que se sentasse num banco que ficava jeitosamente acomodado sob uma frondosa árvore.
Sentando-se ao lado, falou:
Filho, eu queria deixar esse assunto para mais tarde, mas já queestamos à vontade aqui... Eu e sua
mãe estamos preocupados com você e a Raquel.
Alexandre se curvou, apoiou os cotovelos nos joelhos, cruzou as mãos na frente do corpo e inclinou a
cabeça para ouvir já adivinhando o assunto.
Sei que você vai dizer: "Sou maior. Independente", mas, Alex,você não pode nos tirar o direito de
amá-lo ou de nos preocuparmoscom o que te acontece. Você é nosso filho!
É por causa da Raquel morar na minha casa, pai?
Nós estamos acreditando que essa moça está usando você.
Pai, eu...
Espere, Alexandre. Deixe-me terminar, filho. Depois você fala. Ele suspirou fundo, ficou em
silêncio, e o pai prosseguiu: Filho,essa moça apareceu do nada. Trabalhou com você, descobriu que
mora
339
sozinho, é independente e estabilizado. Reparou, por acaso, que ela não tem uma amiga para ajudá-la? Já
que perdeu o emprego, por que não volta para o interior, onde está a família? O que ela fez, de tão grave
assim, para o irmão não querê-la na casa dele? Você tem que pensar em tudo isso, Alex. Após
pequena pausa, em que o rapaz não reagiu, o pai continuou: Eu e sua mãe somos experientes.
Sabemos que estágostando dela e... Sabe, Alex, por ter se saído muito ferido da experiência com a Sandra,
talvez esteja se sentindo só e tenha se apegado a Raquel para...
Não! Não é isso, pai.
Alexandre, espere. Eu sei que a Raquel é muito boazinha, educada,mas primeiro essa moça foi
morar com você porque não tinha ninguém que a ajudasse, depois perdeu o emprego e agora você ficou
com o encargo de ajudá-la ainda mais. Todas as evidências mostram que ela estáte usando, filho. Ela está
se aproveitando dessa situação e se acomodando lá.
Não diga isso. Não é a verdade.
Não se iluda novamente, Alexandre. Ela é muito bonita, sim.Mas...
O filho estava irritado e quase ofegante. Ele nunca desrespeitara o pai, que sempre fora seu amigo. Agora,
com aquelas colocações, o pai o agredia.
Enxergue a realidade, Alexandre! Essa moça está enganando-o equando você acordar vai se
decepcionar tanto quanto da última vez. Eu e sua mãe vamos conversar com ela e...
Com os olhos brilhantes, enrubescido pelos sentimentos que se afloravam, Alexandre se levantou, o
interrompeu. Com a voz pausada, falou firme mesmo com lágrimas a correr em sua face:
Espere, pai. Eu sei que você cuidou de mim a vida inteira. Ofereceu-me educação, amparo,
orientou, deu-me a oportunidade de estudar, de ter uma boa profissão... Perdoe-me, pai, mas isso tudo não
pode lhe dá esse direito. Vocês não sabem o que está acontecendo e não vão falar com ela! Eu amo a
Raquel e estou disposto a tudo. Alexandre
340
virou as costas, após alguns passos, voltou-se e completou: O que mais me magoa, pai, é que jamais,
jamais pensei que, um dia, eu pudesse ser obrigado a falar assim com você.
Alexandre olhou para seu pai por alguns segundos, secou o rosto com as mãos e depois entrou. Enervado,
saiu procurando por Raquel. Após ouvir as vozes que vinham do quarto de Rosana, a passos rápidos, foi
até lá e disse, firme:
Vem, Raquel. Preciso ir embora.
Todas ficaram em silêncio e sem entender o que estava acontecendo. Alexandre, com tom grave na voz,
repetiu o pedido, franzindo o semblante ao estender a mão, e chamando:
Venha, Raquel. Preciso ir!
Surpresa e assustada, a jovem se levantou, olhou para as outras sem saber o que fazer. Alexandre a
tomou pela mão e, sem dizer nada, conduziu Raquel quase a puxando.
Alex! chamou Vilma, que se levantou e foi atrás do irmão.
Espere, Alex! O que aconteceu? perguntou Rosana seguindo-os.No meio da sala, Alexandre se
virou e, parecendo mais branco, exibindo mágoa em seus sentimentos, falou magoado:
Eu não gosto de surpresas. Tão menos de ser enganado. Quando me chamaram aqui deveriam
ter dito o motivo.
O que está acontecendo? perguntou Rosana apreensiva.
Pergunte para a nossa mãe!!! vociferou. Olhando para donaVirgínia, que parecia desapontada,
falou mais brando: Mãe, eu aamo muito, mas tenho o direito de ser feliz a minha maneira. Gostaria de ser
respeitado por você, mas...
Filho! Você não entendeu!
Entendi, sim. Eu falei com o pai. Você não precisa me explicarmais nada.
Num impulso, por estar contrariada devido à tensão do momento, e por ignorar os fatos, dona Virgínia
quase gritou:
Que inferno, para todos nós, essa moça ter aparecido na sua vida!Alexandre não disse nada;
virando-se, foi embora.
341
A caminho do apartamento, o silêncio imperou. Raquel não se sentia bem. Novamente aquele mal-estar
junto com pensamentos cruéis. Acreditava ser um incômodo para todos. Isso a torturava imensamente e ela
precisava fazer grande esforço para se dominar. Ao estacionar o carro na garagem do prédio, Alexandre
debruçou-se no volante por alguns minutos.
Você está bem? perguntou Raquel com voz enfraquecida.
Não sussurrou ele.
E seus remédios?
Alexandre não respondeu nada. Pálido, o rapaz desceu do carro e amparou-se em Raquel até chegar no
apartamento, onde ela o levou para a suíte. Ajudando-o a se deitar, tirou-lhe os sapatos e abriu-lhe a
camisa, pois ele parecia não respirar normalmente. Imediatamente, aflita, perguntou:
Onde estão os remédios?!
Não sei murmurou ele.
Raquel saiu à procura dos medicamentos. Após alguns minutos voltou trazendo os vidros nas mãos,
perguntou, em desespero:
Qual?! Alexandre estava tonto, fraco, sentindo-se como se fosse desmaiar e não respondia,
quando ela gritou em pânico: Qual,Alexandre?!!!
Os dois balbuciou ele.
Raquel o ajudou a se curvar para beber a água com os comprimidos. Depois, falou:
Vou chamar uma ambulância!
Não disse ele baixinho.
Então vou ligar para a Rosana.
Vem cá pediu ele estendendo-lhe as mãos.
Alex murmurou Raquel sentando-se a seu lado e segurando sua mão. Estou com medo.
Nunca o vi assim.
Por favor, não chame ninguém. Isso vai passar.
Mas...
Faça o que estou pedindo, pelo amor de Deus! Não chame ninguém... sussurrou ele
novamente. Por favor, não chame.
342
O nervoso a fazia tremer. Aflita, Raquel afagava-lhe vagarosamente os cabelos e resolveu fazer sua
vontade, não chamando ninguém. Por um instante, Alexandre ficou quieto e pareceu ter perdido os
sentidos. Quando o viu naquele estado, Raquel gritou:
Deus! Ajude-o, por favor!!! Raquel entrou em pânico. Curvando-se e agitando-o, ela implorou
chorando: Pai do céu! Salve-o! Tome minha vida pela dele!
Pegando o rosto de Alexandre e segurando em desespero, apertou-o contra si enquanto chorava. Breves
minutos se passaram e ele fez leves movimentos. Com lágrimas correndo em sua face, Raquel o
amparava, chamando-o:
Alexandre, você está me ouvindo?
Vagarosamente ele abriu os olhos, fitou-a por poucos segundos, depois tornou a cerrá-los suavemente.
Sua respiração já parecia quase normal. Em soluços, banhada de lágrimas, Raquel encostou sua face na
dele e beijou-o no rosto seguidas vezes, dizendo baixinho:
Não faça isso comigo.
Aos poucos Alexandre reagia vagarosamente. Talvez ele demorasse a se exibir animado porque nunca
tivera Raquel tão perto e acariciando-o como naquele momento. Bem depois, ela perguntou ainda chorosa:
Alex, você está melhor?
Estou afirmou ele com voz fraca.
Raquel o olhou por algum tempo, depois perguntou:
O que aconteceu?
Não sei. Fiquei nervoso. Talvez seja por isso.
Vamos ao médico pediu ela.
Agora não. Na próxima semana eu tenho horário no especialista.
Passado alguns minutos o rapaz sentou-se na cama e Raquel, olhando-o e sentindo-se ainda angustiada,
não conteve o impulso e o abraçou chorando novamente.
Não faça mais isso comigo pediu ela entre o choro comovido. Pensei que fosse morrer.
Alexandre sorriu, levantou seu rosto com carinho, e disse:
343
Ainda não é a hora. Lembre-se, eu tenho :você.
Raquel o fitava, parecendo invadir sua alma com aquele olhar. Nervosa, ela aproximou seu rosto de
Alexandre e o beijou rapidamente nos lábios. Alexandre ficou parado, não sabia como deveria agir,
temendo assustá-la, caso expressasse seus sentimentos com algum gesto de afago. Procurando se
aproximar delicadamente, ele se curvou e conseguiu retribuir igualmente àquele carinho. Fugindo-lhe ao
olhar, Raquel acanhou-se.
Fica aqui perto de mim, Raquel pediu com voz generosa.
Você está melhor? perguntou.
Mesmo sentindo que ainda não estava bem, ele afirmou que sim. Nesse instante o telefone começou a
tocar. Alexandre pediu à Raquel que não atendesse e ela assim o fez.
344
Capítulo 16
Compreensão e amorfilho adotivo
A situação ficou um pouco difícil na casa dos pais de Alexandre. Para sua mãe, era impossível deter o
choro. O pai, nervoso e inquieto, sentia-se culpado pela reação do filho e, preocupado, telefonava para o
apartamento, a fim de ter alguma notícia. Vilma e Valter, seu esposo, eram colocados a par de toda a
situação pela versão de dona Virgínia, que ignorava boa parte da história e falava de suas desconfianças
sobre a moral e as intenções de Raquel.
Ricardo havia chegado. Ele e Rosana, em outro cômodo da casa, olhavam as crianças, enquanto
conversavam a respeito do assunto.
Eu acho que vou contar, Ricardo. Vou esclarecer tudo, pois somente assim eles vão entender por
que Raquel não tem onde ficar.
Não sei, não. Se o Alexandre quisesse que soubessem, ele mesmoteria contado tudo. Hoje teve
uma oportunidade para isso, lembre-se de que ele conversou com seu pai e não disse nada.
Rosana ficou pensativa, depois decidiu:
Fica aqui com eles pediu ela indicando os sobrinhos , vouaté a sala de jantar para ver como
estão.
Rô, pense bem... advertiu o noivo.
Deixe comigo.
Ao chegar onde todos estavam, Rosana se comoveu ao ver a preocupação dos pais.
Ninguém atende reclamava o pai de Alexandre, aflito.
Deixe o telefone desocupado, Claudionor pedia dona Virgínia , ele pode tentar nos telefonar.
Será que não chegaram em casa? Deve ter acontecido alguma
coisa.
Nosso filho nunca mais vai nos procurar chorava a mãe.Rosana, não suportando mais assistir
aquela aflição, resolveu:
Sente-se aqui, papai pediu ela indicando uma cadeira na grande mesa da sala de jantar, onde
todos os outros já estavam acomodados.Após isso, Rosana ocupou um lugar e disse: Preciso conversar
comvocês para que entendam a situação, não julguem mal a Raquel e compreendam o Alex.
A mãe chorava sem conter os pensamentos contrariados, argumentando:
Como não julgá-la? Essa moça está se aproveitando da ingenuidade do Alexandre!
Espere aí, mãe! contestou Vilma bem ponderada. Ingénuoo Alex não é, não! Ele é bem
grandinho. E ela me pareceu uma pessoa bem recatada, humilde...
Essa moça apareceu do nada! prosseguiu a mãe. Diz quenão tem família, que o irmão não
a quer. Boa coisa ela não é!
Posso falar? pediu Rosana. Todos silenciaram e ela começou: Eu acredito que seria bom
que o Alex contasse a vocês o que vou revelar agora. Mas, para que todo esse conflito termine logo...
Após dizer isso,Rosana narrou, sensibilizada, descrevendo exatamente tudo o que sabia a respeito de
Raquel. Todos ficaram perplexos, assombrados. No final, ela disse: Não sei qual a opinião de vocês
depois de saberem de tudo isso.Creio que podem entender agora por que ela não volta para a família,
nem fica com o irmão e quais os motivos que a fazem não ter amizade ou não confiar em mais ninguém. Eu
estou acompanhando-os de perto e conhecendo bem a Raquel, por isso sei do que estou falando. Respeito
demais oAlex para julgá-lo e dizer o que ele deve ou não fazer. Ele adora a Raquel e,por amor, está a fim
de ajudá-la a qualquer preço. Por outro lado, quando vocês a conhecerem melhor, verão, ou seja, sentirão o
quanto essa moça já sofreu, o quanto é meiga, fiel e que merece, de todos nós, respeito e auxílio.
O silêncio se fez absoluto por algum tempo.
346
Vilma, que estava com a cabeça baixa, falou:
Mamãe, pense bem. Se Raquel fosse eu ou a Rô, você gostaria que"um Alexandre" aparecesse em
nossa vida, não é?
O senhor Claudionor, que estava chocado com aquela revelação, se pronunciou:
Por que o Alex não me contou? Após alguns segundos, questionou: Por que ele precisa
passar por tudo isso?
Valter, que até então não dissera nada, acreditou:
Ele passa por isso porque amadureceu, é um homem consciente,determinado, forte e que assume
seus sentimentos, não se acovardando como muitos outros fariam. Nesse instante, ele se levantou,
aproximou-se da esposa, que estava sentada e, abraçando-a pelas costas, completou: No lugar dele, se
fosse você, eu faria o mesmo.
Dona Virgínia, por fim, comentou:
Que Deus me perdoe se eu estiver errada, mas tenho que sersincera, eu ainda pergunto: por que
tudo isso? Sabe, com tanta moça no mundo e meu filho tem que sofrer novamente? Tem que se
sacrificarnovamente? Após pequena pausa, ela admitiu: Estou morrendo de dó dessa moça. Ai, meu
Deus! O que eu fiz com ela?! Como ela deve estar por minha causa?!
Valter tomou a palavra novamente e disse:
Se o Alex a ama e está disposto a apoiá-la, a ficar com ela, ele estácorretíssimo no que está
fazendo. Lembrem-se do seguinte: essa tragédia, essa violência poderia acontecer a qualquer mulher
casada, comoacontece, e por isso vocês acham que o marido deveria descartá-la,abandoná-la e procurar
outra? Claro que não. E nesse momento que o homem tem que ser digno e se mostrar amigo, parceiro. O
fato de eles não serem casados, não é diferente. Se o Alexandre gosta dela, não deve abandoná-la por isso.
Ele terá todo o meu apoio e, acima de tudo, omaior respeito de minha parte!
Rosana aproveitou a oportunidade e argumentou:
Agora é o momento de decidirem. Ou vocês ficam do lado do Alex e,
consequentemente, apoiam a
Raquel, ou não. Quanto a mim,
347
sem dúvidas, eles terão toda minha ajuda para o que for preciso. Eu gosto muito da Raquel e adoro meu
irmão.
Eles se entreolharam e Vilma, levantando-se, anunciou:
Estou com o Alex. Virando-se para o marido, pediu: Leve-me agora lá na casa dele, por favor.
Valter concordou, mas o senhor Claudionor decidiu:
Não. Esperem. Deixe que eu e sua mãe façamos isso. Será melhor.Somos os pais e... Se formos
todos, a Raquel não vai se sentir muito bem. Estou preocupado com ela que parece bem sensível, frágil.
Se fosse minha filha...
Todos concordaram e assim foi feito.
No apartamento de Alexandre, Raquel preparava uma refeição enquanto conversava com ele, que se
sentara na cozinha. O rapaz ainda não se sentia normal, mas para que ela não se preocupasse, não dizia
nada sobre isso e falavam de outro assunto:
Nossa! A casa dos seus pais é linda!
Ele sorriu e reparou a simplicidade de Raquel que não estava acostumada àquele tipo de residência.
Lembrando-se de repente de uma curiosidade que tivera, perguntou, mudando o sentido da conversa:
Diga-me uma coisa, Raquel. A Bruna tem olhos claros? Azuis?
Sim, tem surpreendeu-se.
Como os meus?! Não é?!
Sim, como os seus. Como você sabe, se eu nunca falei?
Sonhei com ela.
Como tem certeza de que era a Bruna? perguntou Raquel.
Porque ela é a sua cara. No sonho, só os olhos mudavam. Quegracinha!
Não olhei muito para ela quando a vi. Eles a colocavam do meulado e eu não a pegava. Não me
recordo mais dela, porém me lembrodos seus olhos muito bonitos... bem azuis.
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Alexandre decidido a mudar de assunto para não vê-la melancólica, pois sentia que Raquel se arrependera
do que fizera, mudou o rumo da conversa:
Não ligue para o que aconteceu hoje na casa dos meus pais.
Ainda me sinto tão mal. Sou culpada por aquilo! lamentou triste.
Não. Você não é culpada por nada! Eu os conheço, vão nos entender, tenho certeza! Minha
família é amorosa, não ficarão muito tempolonge de mim.
De quem você herdou esses olhos? São tão lindos! sorriu docemente.
Sabe que não sei? respondeu ele, de modo muito simples.
A Vilma se parece com sua mãe. A Rô tem um pouco de cadaum, mas você... Ainda não sei
direito.
Deixe-me contar uma coisa revelou sorrindo , sou filhoadotivo. Raquel se surpreendeu e,
antes que se recompusesse, ele contou bem descontraído: Houve uma oportunidade, eu era um
bebê
recém-nascido e meus pais me adotaram.
Como foi? indagou educada. Em seguida reconheceu: Desculpe...
Não me incomoda falar sobre esse assunto, hoje. Mas isso compessoas íntimas. Acho que não
preciso fazer alarido explicou comnaturalidade. Depois contou: Acreditam que logo após uma
mulher ter dado à luz, coisa de horas, me abandonou envolto em panos e ainda com os resíduos do parto.
Onde? perguntou ela quase em choque.
No lixo respondeu sorrindo ao encará-la.
Alexandre...! exclamou Raquel boquiaberta.
Nessa oportunidade meus pais me assumiram. Depois tiveram aVilma e a Rosana, filhas deles
mesmo. Diante da perplexidade daamiga, ele avisou: Sabe que até me esqueço disso.
Deve esquecer mesmo. Seus pais o amam, Alex! Adoram você!
Quando perguntam a origem da minha família eu esqueço que sou adotivo e acabo dizendo que
tenho antecedentes italianos, comomeus pais, mas na verdade não sei.
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Você conhece sua mãe biológica?
Não.
Importa-se em falar sobre isso?
De modo algum. Só evito perto da minha mãe. Ela não gosta desse assunto. Para ela, sou filho
dela e acabou.
Você nunca quis conhecer sua mãe?
Sabe, Raquel revelou com espontaneidade , não vou dizer que nunca tive curiosidade de
saber como ela era, ou quem foi meu pai.Mas o amor, o carinho e a atenção que recebi de meus pais
supriram todas as minhas necessidades. Eu amo meus pais!
Raquel ficou em silêncio por alguns minutos, depois lembrou:
E eu o fiz se desentender com eles. Estou me sentindo tão mal por isso!
O que aconteceu hoje foi falta de esclarecimento da minha parte.Mas eu não poderia fazê-lo sem
antes falar com você.
Como assim?
Eu disse a meus pais que gosto muito de você. Nunca escondinada deles, por isso queria contar
tudo a seu respeito. Eles a vêem como uma intrusa interesseira, por ignorarem os fatos, não saberem os
motivos e as razões que a deixaram nessa situação. Só um bom esclarecimento iria fazê-los nos apoiar e
entender. Eu pensei em contar, mas queria sua aprovação...
Não... murmurou o pedido como um lamento amedrontado.Ele se levantou, aproximou-se dela e
a encarou dizendo com brandura:
Essa é a única maneira de eles entenderem e acreditarem no queestá acontecendo, Raquel.
Tenho certeza de que vão tratá-la como filha. Sorrindo, ainda completou: Vão adotá-la.
Não vou me sentir bem. Tenho vergonha. Pálida e preocupada, ficou ofegante e aflita pedindo:
Por favor, Alexandre, não conte ainda.
Tudo bem, meu amor concordou ao ir abraçá-la. Pedindo: Não fique assim. Não vou contar.
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Raquel, deprimida e temerosa, não retribuiu o carinho. Alexandre compreendeu sua vergonha devido à
delicada exposição de sua intimidade. Nesse instante, a campainha tocou. O rapaz a encarou avisando:
Para subir assim sem o porteiro avisar, só pode ser a Rô ou meus pais.Ele foi atender e ao abrir a porta
sua mãe o abraçou forte, sem dizer
nada. Após entrarem, o pai fechou a porta e abraçou-se a eles. A distância Raquel espiava em silêncio,
sem ser percebida. Dona Virgínia não detinha as lágrimas. Alexandre os fez se sentarem na sala e quando
o senhor Claudionor estapeava as costas do filho, pediu:
Desculpe-me, Alex, por tudo o que disse. Não tinha o direito de...
Ora, pai! interrompeu Alexandre. Pare com isso. Olhando para a mãe, que estava sentada a
seu lado, pediu: Pare com isso vocêtambém, mãe. Não precisa ficar assim.
Sorrindo em meio ao choro, a mulher começou a passar a mão no rosto do filho, acarinhando-o, depois o
abraçou com ternura.
Onde está a Raquel? perguntou o pai.
Na cozinha. Ela está preparando o almoço para nós.
Estou com fome. Nós não almoçamos e pelo cheiro a coisa é boa! exclamou ao se levantar e ir
na direção da cozinha.
A Raquel cozinha bem avisou o filho contente e vaidoso, semse inibir. Vocês almoçam
conosco, tá?
É lógico! aceitou respondendo a certa distância. E, na cozinhachamou um tanto temeroso:
Raquel?
Senhor respondeu a moça, trazendo grande expectativa e medo.
Vem cá, filha! exclamou alegre estendendo-lhe os braços eenvolvendo-a num abraço antes
que ela pudesse perceber.
Imediatamente Raquel começou a tremer assustada, não conseguindo corresponder ao apreço. O senhor
Claudionor percebeu a resistência da jovem e seu pânico aflito ao vê-la
trêmula e chorando ao encolher-se
rígida em seus braços. Raquel parecia deter a respiração. Ele se afastou um pouco, segurou-a pelos
ombros e perguntou preocupado acariciando-lhe o rosto meigo:
O que foi, Raquel?
351
Alexandre e dona Virgínia entraram na cozinha e presenciaram a cena. O rapaz já tinha entendido o que
ocorrera. Sabia que todos de sua família jamais conseguiam ficar sem um toque de carinho e afeto. Com
jeito simples ele pediu:
Solte-a, pai. Não toque em Raquel. Está tudo bem.
Eu não sei o que fiz! justificou-se o pai assustado e sem jeito.Alexandre se aproximou,
conduziu-a para que se sentasse e Raquel,
envergonhada, começou a secar as lágrimas, sem encará-los.
Raquel, o que foi? perguntou dona Virgínia comovida ao aproximar-se dela e afagando-lhe os
cabelos.
Não foi nada, mãe respondeu Alexandre. É melhor não falarmos nisso que já passa. Raquel
está bem. Tentando oferecer outro rumo para a atenção de todos, Alexandre pediu: Bem, vamos
lá!Pai, pega os copos aí nesse armário atrás de você e leva para a mesa da sala. Mãe, pegue os talheres, e
Raquel sorriu , vamos lá! Sejamosbons anfitriões.
Os pais procuraram seguir o proposto a fim de também melhorar o ânimo da moça. Só bem mais tarde,
após almoçarem, o senhor Claudionor e o filho conversavam na sala, enquanto Raquel e dona Virgínia
arrumavam a cozinha.
Alex perguntava o pai , por que não me contou?
"Contou" o quê?
Sobre a Raquel.
Do que você está falando, pai? insistiu desconfiado.
A Rosana me contou tudo.
"Tudo"? perguntou Alexandre, para ter certeza.
Tudo! Tudo, sim. Inclusive sobre a filha da Raquel, que você pretende fazê-la reaver.
Alexandre sentiu-se gelar, Raquel não queria que soubessem. Perplexo, o rapaz respondeu contrariado:
A Rosana não podia...!
Ela fez o que você deveria ter feito, filho. Passados alguns segundos, o pai argumentou:
Apesar de saber das reações de Raquel,
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pois a Rô contou, eu não imaginava que fosse assim. Assustei-me lá na cozinha, eu só queria
cumprimentá-la...
Eu sei, pai. Não é fácil gostarmos de alguém e não poder tocar,abraçar, beijar, envolver com
carinho...
Deixe-me fazer uma pergunta. Talvez indiscreta. Alexandre oencarou e ele prosseguiu: É
assim todo o tempo? Ela não admite sertocada e reage desse jeito, toda vez?
Não. Raquel melhorou muito. Há uns meses atrás, assim que ela chegou aqui, se você fosse
abraçá-la, como deve ter feito agora, na certa ela gritaria em pânico e extrema aflição. Hoje, às vezes, ela
aceita um abraço. Tremendo de medo, apavorada, mas aceita. Há dias em que fica mais apreensiva, arisca
e inflexível.
O que você faz, filho? indagou perplexo, quase incrédulo.
Tenho paciência e tento conquistá-la um pouquinho a cada dia. Sem se constranger, revelou:
A Rosana está me ajudando. Elas conversam muito e a Rô me "norteia".
Pelo que eu o conheço, você deve gostar muito dela, para supor
Fixando seus olhos nos do pai, Alexandre informou convicto:
Muito! Eu a amo, pai. Como nunca amei alguém!
O que vai fazer, Alex?
Farei o que for preciso. Talvez vocês não entendam o quanto eu quero a Raquel comigo.
Depois de alguns segundos, anunciou: Quero procurar orientação profissional. Vou apoiá-la em tudo.
Acho que não conseguiria viver sem ela.
Conte comigo, filho.
Sorrindo, Alexandre o olhou e lhe deu um forte abraço. Sem demora o pai falou, tentando brincar:
Você sempre foi "grudento", vivia agarrado a todos. Não sei como se sente agora. Com tantas
mulheres que "viviam aos seus pés"...
Sorrindo e admitindo a verdade, Alexandre falou:
Aquelas não se valorizavam, não eram leais, se corrompiam... Coisa fácil não tem valor. Sempre
admirei a Raquel no trabalho, antes de conhecê-
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la. Acho que comecei me apaixonar por ela nessa época. Agora, entretanto, tendo-a comigo... e mesmo
sabendo dos graves problemas que deram origem a seus traumas, sinto-me frustrado. Queria tanto poder...
Dona Virgínia chegou às pressas na sala e pediu:
Alex, vem aqui!
O rapaz se levantou e ao chegar à cozinha viu Raquel em crise de choro. Ao sentir a mão de Alexandre em
seu ombro, ela se esquivou vagarosamente, afastando-se.
O que houve, mãe?
Estávamos conversando... Eu não sei. Não sei se disse algo que a magoou.
Raquel, com a voz embargada e abafada, virou-se para Alexandre e falou sentida:
Você me prometeu que não contaria pra ninguém.
Foi aí que o rapaz entendeu que sua irmã não revelara aquela história somente para o pai.
Saia daqui, Alex pediu a mãe com jeitinho. Deixe-me com ela. Eu posso acalmá-la.
Revoltado, ele esmurrou a porta da cozinha e foi para a sala, irritado e sem saber o que fazer.
O que foi, Alex? perguntou o pai, seguindo-o de um lado para o outro.
Para quem mais a Rosana contou?!
Ora... Pra todos nós! respondeu com simplicidade.
Diabo! Por que ela não ficou quieta?! Quem foi que mandou a Rosana dizer alguma coisa?!
Precisávamos saber, Alex! Somos seus pais!
Acontece que eu prometi à Raquel que ninguém mais saberia.Sentando-se ao lado do filho, o
senhor Claudionor também ficou
calado e sem saber o que fazer.
Dona Virgínia, a custo, acalmou Raquel. Abraçando-a, a mulher a balançava com carinho, como fazia com
os filhos em momentos difíceis, ou quando necessitavam de seu afeto, da sua atenção. Raquel serenou
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completamente. Ela nunca tivera um acalento de mãe. Amparando-a em seu ombro, dona Virgínia afagava-
lhe o rosto e, em dado momento, disse:
Você é muito bonita, Raquel. Tão delicada! Parece uma boneca!
Obrigada agradeceu em voz baixa.
Cautelosa, a mulher resolveu fazer-lhe perguntas que não a agredissem.
Você cozinha bem. Onde aprendeu?
Na fazenda. Desde pequena fui criada em meio a tarefas domésticas.
Rosana ainda precisa de algumas aulas de culinária. A Vilmacozinha bem, mas a Rô pouco se
importa em aprender. Pra ela é sólanche.
Raquel, mais recomposta, afastou-se delicadamente do abraço e comentou:
O Alexandre também gosta muito de lanche.
Ah! É verdade. Levantando-se, a mulher perguntou: Quer mais um copo com água?
Não. Obrigada. Encarando a mãe de Alexandre, Raquel, ainda com os olhos vermelhos, falou
com jeitinho: Quero que me perdoe por tudo. Eu não vou estragar a vida do seu filho. Já quis sair
daqui,mas não consigo. Agora perdi o emprego e...
Raquel, por favor, filha! interrompeu a dona Virgínia, com voz lamentosa. Esqueça tudo o
que falei. Quero conhecê-la melhor. Quero tê-la como a uma filha! Aproximando-se novamente,
afagando-lhe o rosto, pediu: Dê-me essa oportunidade?
Verdade? perguntou acanhada olhando-a firme.
Lógico, Raquel! Por que eu mentiria para você?
Elas se abraçaram e Alexandre, que foi ver como as coisas estavam, surpreendeu-se.
Tudo bem? perguntou ele admirado e satisfeito.
Vocês vão almoçar lá em casa amanhã! convidou a senhoraanimada. Alexandre consultava
Raquel com o olhar, e a mãe insistiu: Vamos, Raquel, por favor!
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O Alex é quem sabe respondeu acanhada e sorriso meigo.
Então, vamos! afirmou o rapaz contente pela decisão.
Ótimo! Amanhã conversaremos mais disse a mãe.
Virgínia, vamos logo lembrou o senhor Claudionor. A Vilmaestá lá e só vai ficar dois dias.
Vamos, sim.
Espero vocês amanhã! confirmou o pai. Abraçando e beijando o filho, ele pediu: Se cuida,
hein! Achei você muito abatido hoje. Ecuida da Raquel também!
Pode deixar respondeu Alexandre, com largo sorriso de satisfação pelo rumo que as coisas
tomavam.
Voltando-se para Raquel, o senhor decidiu, rápido:
Vou lhe dar um abraço, sim! Fazendo isso às pressas, ele aindabeijou-lhe o rosto e rápido a
largou, dizendo: Você tem que se acostumar comigo, menina.
Raquel enrubesceu e abaixou o olhar, esboçando um sorriso constrangido.
Tchau! Tchau! disse o pai de Alexandre ao sair.
Dona Virgínia se despediu mais demoradamente, oferecendo várias recomendações de mãe.
No dia seguinte, a caminho da casa de seus pais, Alexandre, que conversava com Raquel, foi interrompido
por ela.
Alex! Olha meu irmão! Marcos caminhava pela calçada de uma rua num bairro vizinho. Ansiosa
ela lembrou: Você me falou que ele havia mudado. Deve estar morando aqui perto.
Quer que eu pare? Raquel titubeou e ele decidido parou.Saindo do automóvel, chamou num
grito: Marcos!
Ele olhou assustado e reconheceu Alexandre, ficando incrédulo ao vê-lo. Caminhando na direção do carro,
Marcos avistou Raquel, que descia do veículo. Alexandre contornou o carro, parou ao lado de
Raquel,
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que se guarnecia na porta do mesmo. Bem perto, Marcos parou e perguntou, temeroso:
Como vai, Raquel? Quanto tempo.
Lentamente ela saiu de trás da porta e foi para perto do irmão, dizendo:
Estou bem. E você? disse tímida.
Com a vida de sempre. Voltando-se para Alexandre, Marcos perguntou apreensivo: E você,
como está?
Bem disse sorrindo e estendendo-lhe a mão ao ser correspondido. Vendo que o silêncio
reinava, Alexandre decidiu perguntar: Apropósito, Marcos, você se mudou? Estive, outro dia, onde
morava e uma vizinha me disse isso.
Alice não lhe deu o endereço?
Não responderam juntos Raquel e Alexandre.Marcos ficou surpreso e tentou justificar.
Vai ver que é por você não trabalhar mais lá, Raquel.
Mas eu ainda trabalho lembrou Alexandre. Observando-o pensativo o rapaz advertiu: Cuidado,
Marcos. Os fatos são diferentes dos boatos.
Nesse instante, o irmão olhou Raquel de cima a baixo e, em tom ponderado de voz, perguntou baixinho:
Você não estava grávida, não é?
Não sussurrou a bela jovem constrangida, abaixando o olhar.
Sabe aquele carro verde-musgo que você viu levando a Raquel para casa? Era meu! Eu o troquei
por esse de cor prata esclareceuAlexandre mais corajoso.
Marcos abaixou a cabeça, envergonhou-se ao lembrar do que fizera com sua irmã, depois disse:
Olha, Alexandre, naquela época eu me vi tão envolvido pelasconversas da Alice que fiquei cego.
Só depois de algum tempo comecei a raciocinar. Não sei dizer o que me deu.
Não faz mal, Marcos disse Raquel, que, ao tentar continuar,foi interrompida por Alexandre.
357
Ah! Faz mal sim! Marcos, eu estou sabendo que foram as conversas da Alice que colaboraram
para a demissão da Raquel. Não que eu me importe com isso, mas foram também as opiniões dela que
fizeram vocêse separar de sua irmã, criando todo aquele clima ruim entre nós dois,inclusive.
Alexandre... murmurou ela vacilante.
Espere um pouco, Raquel pediu com educação. Continuando em seguida: Não quero
envenená-lo contra sua esposa, mas tomecuidado. Fique mais atento. Naquela época eu e a Raquel só
éramosgrandes amigos sorriu ao avisar , hoje namoramos. Só namoramos.
Alexandre parou e decidiu não dizer mais nada. Marcos ficou pensativo até que Raquel logo pediu:
Pode me dar seu novo endereço?
Claro!
Alexandre pegou um bloco de anotações e anotou o novo endereço e o telefone do serviço do irmão de
Raquel, passando-lhe, também, o de seu apartamento. Ao se despedirem, Marcos abraçou a irmã meio
sem jeito, com pouco afeto e nenhum carinho. Gentil e afetuoso, Alexandre ajudou Raquel a entrar no
carro, fechando a porta e, ao se despedir de Marcos, aproveitando os breves segundos que lhe restavam,
lembrou de dizer:
Não se preocupe com ela. Enquanto eu viver, Raquel estará muito bem. Você não imagina como eu
gosto de sua irmã.
Marcos apertou-lhe a mão, sentindo a garganta ressequida e os olhos ardendo pelos sentimentos que
afloraram. Ele não foi capaz de dizer nada a Alexandre que, sorrindo, se virou e foi embora. Parado na
calçada, o irmão de Raquel ficou observando o carro sumir, revolvendo os pensamentos aflitos e
desordenados.
Enquanto seguiam, Alexandre ainda falou:
Fiquei com vontade de falar tanta coisa para o Marcos.
Não! Você não pode contar que viu a Alice com o... Ele vai matá-la!
Não é sobre isso. Queria falar-lhe sobre o destino e a vida.Raquel ficou em silêncio.
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Quando chegaram à frente da casa de seus pais, Alexandre se anunciou pelo interfone e, junto com
Raquel, aguardaram ser atendidos quando uma voz chamou:
Alex!
Raquel se voltou e Alexandre, reconhecendo, ficou parado e sem se virar.
Alex! insistiu.
Ele, lentamente, se voltou e encarou Sandra sem dizer nada, mas seu semblante sisudo exibia insatisfação
ao vê-la.
Como você está? perguntou Sandra.
Ele nada respondeu e virou-lhe as costas novamente. Raquel, que segurava em sua mão, puxou-o
levemente, como que a repreendê-lo. Ela não sabia que se tratava de Sandra que era uma moça alta,
elegante, muito bonita e bem-vestida, exibia-se um pouco abatida, mas de uma ótima aparência. Ela, quase
esboçando um sorriso, contornou-o colocando-se à sua frente e disse com simplicidade:
Alex, eu preciso muito falar com você.
Ele pareceu nem vê-la, mais uma vez não disse nada. Raquel ficou sem jeito e sem saber o que fazer. De
repente o portão se abriu e, praticamente puxando Raquel consigo, Alexandre entrou quase atropelando
sua mãe.
O que é isso? perguntou dona Virgínia antes de ver Sandra.Enquanto o filho seguiu sem olhar
para trás, a mulher, surpresa com
a presença de Sandra, a encarou dizendo:
O que você quer, filha?
Preciso falar com o Alexandre respondeu séria e voz branda.
Não. Não vai, não, filha. Creio que já chega. O Alex está bem enão precisa de mais nada. Agora,
com licença. Dizendo isso donaVirgínia fechou o portão e entrou.
Dentro da casa, cumprimentando a todos, Alexandre já se sentia animado, parecendo não se importar com
o que tinha acontecido. Alegres, eles se confraternizavam muito bem fazendo com que Raquel, com seu
jeito recatado, se acostumasse e se sentisse à vontade.
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Vez ou outra Raquel se intrigava, olhando para Alexandre, observando-o propositadamente, sentia algo
que não sabia explicar e o achava estranho, sem saber o que era, pois o rapaz agia normalmente.
Bem no final da tarde, Alexandre estava sentado no chão brincando com seu sobrinho. Raquel nem
prestava atenção na conversa que seguia entre Vilma e dona Virgínia, das quais estava bem próxima. A
distância, Raquel percebia que Alexandre empalidecera e, ao vê-lo procurá-la com o olhar, ela se levantou
às pressas, assustando a todos quando correu para perto dele e o segurou antes que batesse com a
cabeça no chão.
Alexandre! gritou a moça em desespero, amparando-o nos braços.
Ele a olhou e cerrou os olhos vagarosamente.
O senhor Claudionor e Valter imediatamente prestaram os primeiros socorros a Alexandre, que necessitou
ser ressuscitado através de respiração e massagem cardíaca antes de ser levado para o hospital.
Horas depois, os pais de Alexandre, Rosana e Raquel estavam na sala de espera de um hospital.
Decorrido longo tempo, o médico que cuidava de Alexandre que fora acionado, trazia algumas notícias:
Agora o estado dele é estável. Alexandre está no CTI e vai permanecer lá por alguns dias.
Dias?! exclamou Raquel.
Sim. É por segurança e para avaliação.
Podemos vê-lo, doutor? pediu a mãe.
Só amanhã avisou educado.
Doutor, o senhor pode nos dar um parecer melhor? interessou-se o pai.
Desculpe-me, senhor Claudionor. No momento não tenho muito que dizer. Vocês conhecem o
problema do Alexandre. Somente após alguns exames, que realizaremos o quanto antes, poderei ser mais
preciso.
360
No momento, o que posso dizer é que ele chegou a ter uma parada cardíaca, como suspeitavam, mas
agora, de um modo geral e dentro do quadro apresentado, seu estado é estável, o Alexandre tem que ficar
em observação e monitorado por aparelhos. Amanhã, após examiná-lo novamente, poderão falar com ele.
Os pais de Alexandre voltaram para casa e Rosana levou Raquel para o apartamento, dormindo lá para lhe
fazer companhia. Raquel estava aflita, mas conseguia conter o choro. Ela e Rosana conversaram até bem
tarde e mesmo depois elas não conseguiram dormir.
Na manhã seguinte, Rosana decidiu que não ia à faculdade e, mais tarde, todos foram ao hospital ter
notícias de Alexandre.
Somente duas pessoas para visitar o paciente informou aatendente da recepção do CTI.
Que absurdo! protestou Rosana.
São normas do hospital, meu bem orientou a moça, com gentileza.
Os pais de Alexandre se entreolharam e o senhor Claudionor pediu:
Virgínia, vai você e a Raquel.
Não! exclamou Raquel imediatamente. Não podem fazer
isso!
Filha orientou ponderado , tenho certeza de que o Alex vaipreferir você e não a mim. Faça o
que estou pedindo, é para a recuperação dele. Não tem problema, amanhã eu vou vê-lo.
Assim foi feito.
Ao ver Raquel, Alexandre se emocionou. Ele estava deitado e não podia se mover muito. Mesmo com a
recomendação de não tocar no paciente, Raquel não se conteve, beijou-lhe a testa e lhe fez um carinho no
rosto. O rapaz se apresentava fraco e, com dificuldade, perguntou:
Você está no apartamento sozinha?
Não. A Rô dormiu lá comigo. Lágrimas rolaram pelo canto deseus olhos e Raquel as aparava
com carinho e generosidade.
Não queria estar aqui... disse quase sussurrando.
361
Eu sei. Mas é preciso. Há tempos eu percebo que não vem se sentindo bem e não tomou nenhuma
providência. Agora tem que se cuidar.
Os poucos minutos de visita se escoaram rapidamente. Quando Raquel precisou ir, Alexandre segurou sua
delicada mão com cuidado e pediu baixinho:
Dê-me um beijo.
Ela ficou temerosa, permanecendo parada. Mas, criando uma força que desconhecia, olhou-o nos olhos,
aproximou-se dele e carinhosamente beijou-lhe os lábios por um tempo e falou-lhe ao ouvido:
Fique bom logo. Eu te amo, Alexandre. Preciso de você.
Também te amo, Raquel afirmou ele em voz baixa. Amo muito!
Ela se foi e dona Virgínia entrou. Emocionada, a. mãe não respeitou as normas e abraçou o filho, beijando-
o também. Eles conversaram e, antes de sua mãe ir, Alexandre pediu chorando:
Mãe, cuide bem da Raquel, pra mim, por favor...
Claro, filho. Cuidarei dela como minha filha. Eu prometo.
Ao sair do CTI dona Virgínia abraçou-se a Raquel que ainda chorava. A senhora estava emocionada ao
reconhecer o quanto a moça era importante para seu filho. Rosana as abraçou e Raquel teve uma forte
crise de choro, pois enquanto esteve com Alexandre conteve-se muito para não chorar.
Vamos lá para casa, Raquel pediu a mãe de Alexandre ao vê-larecomposta. Fique conosco.
A Vilma precisa ir embora amanhã. Ficaremos tão sós.
Isso mesmo, Raquel. Vai lá para casa incentivou Rosana. Passaremos no apartamento,
pegaremos algumas coisas e você vemconosco.
Raquel, indecisa, sentia-se só e desprotegida com a ausência de Alexandre.
Acreditando que com eles estaria melhor, ela aceitou o convite.
362
Com o passar dos dias, Alexandre recebeu alta do CTI e foi transferido para um quarto particular, o que
facilitou receber a visita de todos juntos e por um período de tempo bem maior.
Na casa do pai de Alexandre, apesar de haver outros quartos vazios, Raquel ficou junto com Rosana, elas
eram amigas e se entendiam muito bem. Todos se acostumaram com a presença da jovem rapidamente.
Ela parecia já fazer parte da família há tempo. Seu jeito recatado e discreto agradava à mãe de Alexandre
que, a cada dia, se afeiçoava mais à moça. Em pequenos detalhes, a mulher entendia que fora a doçura, a
delicadeza e a generosidade de Raquel que cativara seu filho, que se dispôs a tudo por ela. Mas Raquel
ainda não se sentia tão à vontade.
Sem conseguir um emprego, junto com a impressão de ser dependente por estar vivendo ali de favor,
sentia-se constrangida, mesmo sendo muito bem tratada.
Não fique assim, Raquel consolava Rosana. Gostamos tanto de você! Não quero vê-la
deprimida.
Rosana, veja a situação! Como se não bastasse eu invadir a vida doAlex, de repente me tornei
uma obrigação para vocês!
Eu não vejo desse jeito.
Estou me sentindo tão mal com essa situação.
Pare com isso, Raquel! Meus pais adoram você! Eu então...
Preciso arrumar um emprego.
Você vai arrumar, mas se ficar assim será ainda mais difícil. Omau humor, a falta de fé, a
insegurança e o pessimismo criam vibrações pesadas, ruins, que nos deixam como cegos para as coisas
boas da vida.
Após pensar um pouco, Raquel admitiu:
Eu sei que nos últimos tempos ando deprimida, choro à toa etenho até me irritado, coisa que
nunca aconteceu. Nem sei como o Alexvem me suportando.
Você precisa pensar em Deus, Raquel. Tirar alguns minutos, todo dia para Ele e se deixar
envolver por uma prece sentida, do fundo docoração. Acredito que não conhece o poder da oração nem do
contatoabençoado que fazemos com Deus nesse momento.
363
Eu sei que você tem razão, mas ando sem ânimo. Acabo até esquecendo.
Amanhã vem comigo ao Centro Espírita? sugeriu Rosanaempolgada.
Raquel ficou pensativa e por fim disse:
Vou. Vou sim.
Ah! Que legal! exclamou Rosana eufórica abraçando-a com alegria.
Naquela noite, quase início da madrugada, Raquel, num sono turbulento, revirava-se de um lado para o
outro. Rosana acordou e a ouviu resmungar sem entender o que a amiga dizia. Ela se levantou, sentou na
cama de Raquel e tentou despertá-la.
Raquel, acorda. Por não obter sucesso, Rosana insistiu maisfirme, balançando-a com cuidado:
Raquel, acorda. Você está sonhando.
Não!!! gritou a moça ao se sentar violentamente na cama.Ofegante, com os olhos assustados,
ela fitava Rosana, que procurou
abraçá-la. Raquel recostou-se chorando no ombro da amiga, momento em que dona Virgínia entrou no
quarto para saber o que estava acontecendo, pois ouvira o grito.
O que aconteceu? perguntou a mãe de Alexandre.
A Raquel teve um sonho, mãe explicou Rosana com voz piedosa.
Dona Virgínia se sentou na cama e puxou Raquel para envolvê-la num abraço, qual mãe que aconchega
um filho querido quando assustado.
Vem cá, Raquel. Constrangida, a moça se deixou conduzir entregando-se ao carinho que nunca
tivera e a senhora comovida pediu: Rô, vai arrumar um pouco d'água com açúcar pra Raquel, vai,filha.
Passando a mão no rosto da bela jovem, ela dizia, para confortá-la: Está tudo bem. Já passou. Foi só
um sonho.
Com a voz fraca e trêmula, pausadamente Raquel respondeu entre os soluços:
364
Não, dona Virgínia... isso... nunca passa. Chorosa, ainda revelou: Tenho esses pesadelos até
quando estou acordada... e as lembranças. É horrível.
Apiedada, a mulher argumentou com brandura:
Raquel, se eu puder ajudar, por favor, me diga como, filha.Quando a moça foi se afastando do
abraço, a mãe de Alexandre insistiu:
Não. Fique aqui pediu a senhora, ajeitando-a e fazendo comque Raquel apoiasse a cabeça
em sua perna ao mesmo tempo que, comcarinho, afagava seus cabelos. Raquel, encolhida e amedrontada,
trazia o olhar perdido, com lágrimas que lhe escapavam vez e outra. Comovida, dona Virgínia perguntou:
Desde quando você tem esses tormentos, filha?
A senhora sabe de tudo, não sabe? indagou a jovem envergonhada.
Sim, eu sei.
Então, tenho esses pesadelos desde os quinze anos.
A mãe de Alexandre se curvou e beijou-lhe a cabeça, aparando com as mãos algumas lágrimas de Raquel,
enquanto esta permanecia acuada, apavorada ainda. Depois ela perguntou:
E sua mãe, ela sabe? Contou para ela?
Quando aconteceu... Na primeira vez... Meu pai estava muitodoente e ela pensou que fosse por
causa do acidente que ele sofreu revelou Raquel hesitante. Algumas vezes depois, quando
acordeichorando durante a noite...
Raquel silenciou e, diante da pausa, dona Virgínia perguntou com generosidade, ainda afagando-lhe o
rosto.
O que aconteceu?
Minha mãe não entendia. Ela não tinha muita instrução e... Chegou a me dar tapas fortes no
rosto para eu acordar e... Os soluços ainterrompiam, mas ela prosseguiu: Meus irmãos se irritavam
comigo.
Escondendo o rosto, Raquel chorou ainda mais sentida. Dona Virgínia ficou incrédula. Parada perto já há
algum tempo com o copo
365
com água que fora buscar, Rosana trocou olhares com sua mãe, que trazia os olhos banhados de
lágrimas. Inconformada, mas mantendo uma postura discreta sobre seus pensamentos, a mulher curvou-se
e puxou Raquel sustentando-a num abraço carinhoso, dizendo-lhe baixinho ao ouvido:
Isso não vai acontecer mais, filha. Eu vou cuidar de você. Se aquela pobre mulher não soube ser sua
mãe, eu serei.
Raquel a agarrou num abraço forte e um choro compulsivo se fez de imediato. Rosana, afetuosa, sentou-se
ao lado certificando, em seu íntimo, que sua mãe entendera definitivamente a situação e iria ajudar sua
amiga. Dona Virgínia, a partir de então, se colocaria como mãe de Raquel, pois estava nítido que a jovem
era carente de afeto e jamais tivera a ternura, o contato e o toque de um carinho de mãe, e, se acaso o
teve, fora tão pouco que não lhe significara muito.
A senhora percebeu que Raquel era meiga, atenciosa e educada por índole, por seu coração puro e leal,
não pelo exemplo de vida que tivera.
No dia seguinte, conforme o combinado, elas foram ao Centro Espírita e Raquel, de imediato, verificou a
diferença do que vira e lhe fora proposto em outro lugar. Após passar pelo plantão de orientação, a moça
aceitou a assistência espiritual oferecida, onde haveria de se dispor a uma série de passes magnéticos e a
ouvir palestras especiais em dias específicos.
Raquel sentiu-se muito bem naquela Casa de Oração onde, por todos, foi recebida com carinho e atenção.
Rosana, animada e alegre, fez questão de apresentá-la aos conhecidos como sendo namorada de seu
irmão. Raquel agora parecia não se importar com esse anúncio. Ela conheceu as várias repartições da
casa e Rosana percebeu seu interesse para com o departamento que assistia as gestantes carentes e sem
provisões. A irmã de Alexandre pareceu brilhar com a ideia de ver Raquel como futura tarefeira dessa área.
Contudo, não disse nada, mas ficou
366
pensando: "Como uma tarefa naquela área faria bem a Raquel, que poderia refazer e harmonizar muito de
sua vida ali!".
Mais de quinze dias depois da internação do filho, o pai de Alexandre, que havia sido chamado para ir
conversar com o médico, trouxe a seguinte notícia para casa:
O Alex vai precisar implantar um marca-passo.
Meu Deus! preocupou-se a mãe assustada.
Eu sei que para nós é preocupante, Virgínia, não há como ignorar e não ficarmos aflitos, mas hoje
em dia isso é coisa simples. O cardiologista me disse o seguinte: quando todas as precauções e
manutenções commedicamentos e hábitos de vida se revelam insuficientes para a cardiopatia, que aponta a
insuficiência cardíaca, é necessário que se estimule o coração eletricamente. Para isso eles vão implantar
esse dispositivo, o marca-passo, ou sob a pele do tórax ou na axila. Esse aparelhinho,vamos chamar
assim, tem uma bateria que é conectada a eletrodos que sedirigem ao coração. Creio que o Alex fará essa
pequena cirurgia, para oimplante, em pouco tempo, por isso ainda ficará no hospital por mais alguns dias.
Segundo os médicos, depois disso, vida normal!
Sem aguardar muito tempo, o senhor Claudionor, após ouvir os pequenos comentários que se fizeram e
depois de responder a algumas perguntas, verificando que elas estavam conformadas, pediu:
Raquel, vem comigo até o escritório. Preciso falar com você.Temerosa, a moça o seguiu. Após
entrarem na sala espaçosa, ele fechou a porta e pediu gentilmente:
Sente-se aqui, Raquel, por favor. Ela assim o fez e o senhorClaudionor, após recostar-se na
mesa, quase se sentando sobre ela, prosseguiu: Raquel, eu a chamei aqui porque tomei a liberdade de
expor a sua situação e a da sua filha a um advogado muito amigo e que trabalha em minha empresa há
anos. Hoje mesmo eu conversei com o Alexno hospital e ele me reforçou o pedido de atenção e algumas
providências
367
para o seu caso. Ao advogado, expliquei o que pude sobre sua filhinha, mas ele precisa de maiores
detalhes para as primeiras investigações e levantamentos, a fim de dar início a um processo judicial, de
acordo com a sua vontade, é claro! O que você acha, Raquel? Pretende procurar por sua filha?
perguntou o pai de Alexandre, muito ligeiro. Raquel ficou paralisada, não esperava por aquilo.
Quero, sim, mas estou com tanto medo disse nervosa e ofegante.
O homem contornou a mesa, sentou-se e ficando diante dela, fitando-a nos olhos e esclareceu
imperturbável e racional:
O problema maior, ou seja, minha preocupação maior é se a Bruna Maria já tiver sido adotada por
alguém. Poderemos entrar com uma ação e é bem provável que você ganhe. Mas como arrancaremos essa
criança dos braços dos pais?
Apreensiva e com voz lamentosa, tentando arranjar argumentos em sua defesa, Raquel falou:
Eu sou a mãe dela. Tenho o direito.
Eu sei, filha respondeu o homem calmo e generoso. Mas,para ela, você ainda é uma
estranha.
Para fazer o que fiz tive graves motivos esclareceu Raquel, com a voz tensa e
trêmula, quase
chorando.
Eu não tiro a sua razão, Raquel. Mas Bruna nunca a viu e não sabe nada disso. Aliás, creio que
jamais deverá saber.
Raquel, insegura, pensou e pediu-lhe ajuda.
O que o senhor acha que devo fazer?
O pai de Alexandre refletiu e recomendou:
No seu lugar, eu solicitaria as investigações que vão levantar edescobrir onde está a menina e qual
a sua vida atual. Se Bruna já tiver uma boa família que lhe ofereça bons princípios, amor e estabilidade,por
amor a ela, eu acho que você não deveria aparecer em sua vida.
Raquel engoliu a seco e encheu os olhos de lágrimas, ao deparar com a opinião que pediu. Mas esta era
uma dura realidade. E o senhor Claudionor ainda falou:
368
Um dos meus três filhos não tem meu sangue, mas eu não sei lhe dizer qual
deles tanto que eu os
amo. Se me ocorresse de alguém, um dia,pleiteá-lo, eu morreria, Raquel. Posso lhe garantir. Após
alguns minutos de silêncio, ele perguntou meigamente compreendendo a sensibilidade da moça naquela
situação tão difícil: O que você decide,filha? Quer saber onde ela está, a princípio? Depois você pensa
no quevai fazer?
Amedrontada, ela decidiu visivelmente aflita:
Sim. Eu quero saber onde e como ela está, a princípio.
Ótimo! alegrou-se o senhor Claudionor. Amanhã marcarei um horário com o Xavier e ele virá
aqui.
Raquel estava emocionada. Levantando-se, ela perguntou:
Como posso pagá-lo por tudo?
Com duas coisas, filha ele riu alegremente. Ela ficou na expectativa e o senhor desfechou:
Primeiro, cuide bem do meu Alex, nunca terei como pagá-la por isso, pois ele vai precisar muito de você,
Raquel. Segundo sorriu e pediu: Quero um abraço seu!
Raquel esboçou um sorriso tímido e lágrimas de emoção. Aproximou-se dele o abraçou com força e,
mesmo trêmula, beijou-lhe o rosto, dizendo:
Obrigada, senhor Claudionor, o senhor é um pai para mim. Eu...eu devo confeçar que adoro o
Alex. Nem me precisa pedir isso. Fareitudo por ele. Obrigada mesmo!
Não por isso, filha. Não por isso respondeu ele com lágrimasnos olhos ao vê-la vencer-se com
esforço.
O pai de Alexandre estava emocionado. Dono de um grande coração amoroso, ele fazia por Raquel o que
faria por um dos seus filhos. Aliás, senhor Claudionor e dona Virgínia adotaram, em seus sentimentos,
Raquel como filha.
Ao observarmos certas famílias que transparecem harmonia, união, respeito e amor, que se entrelaçam
pela comunhão de pensamentos, pela identidade de gostos ou aceitações, pela igualdade de ideias,
passamos a entender claramente que os verdadeiros laços de família são os do
369
espírito, porque são duradouros e fortalecidos pela multiplicidade das reencarnações, onde, renascidas,
essas almas queridas se buscam e se afinam para darem cumprimento à evolução individual e em grupo.
É comum constatarmos, no meio deles, criaturas que se irmanam pela amizade sincera e fraternal.
Ainda outras, que mesmo não nascendo da mesma consanguinidade, são tão amadas e tão bem acolhidas
pelos corações amorosos que compõem esses grupos familiares que chegaríamos a perguntar: "Existe
mesmo filho adotivo?".
Sabemos que somos espíritos reencarnantes e que as verdadeiras famílias são formadas pelos laços do
espírito; quem pode então garantir que naquele corpinho do filho adotado não se encerra uma alma querida
e que nos pertença pela afeição espiritual, única e verdadeira?
Que som seria mais agradável aos nossos ouvidos do que o suave chamar: Mamãe! Papai!, não
importando se saiu da boquinha que nosso corpo ajudou a formar ou daquela que o coração elegeu como
filho e que a alma reconhece como seu!
Que alegria seria maior do que reconhecê-los "filhos de alma", que não vieram pelos frágeis laços do físico,
mas pelos inquebrantáveis elos espirituais, para mutuamente se ajudarem a progredir na caminhada
evolutiva.
Nós nos consideramos filhos legítimos de Deus, mesmo Ele nunca tendo reencarnado.
Recusar o pai adotivo é o mesmo que recusar o Pai que está nos Céus, como nos disse Jesus, e que deu-
nos a vida e as oportunidades mais propícias às nossas condições evolutivas.
370
Capítulo 17
O retorno de Alexandre
O Senhor Valmor, concordando com as exigências de Alice, comprou um pequeno apartamento e, após
mobiliá-lo, levou a amante para lá. Marcos ficara desesperado. Sem entender o motivo do abandono e
ignorando, até então, que Alice o traíra, Marcos se desequilibrara tanto que o próprio chefe aconselhou-o a
tirar férias.
Como sempre, toda traição conjugal traz suas dores cruéis, instalando naquele que foi traído a
desconfiança, o medo do futuro, o sentimento amargo da rejeição e do abandono. A separação e o divórcio
súbitos trazem a inevitável pergunta: E agora, o que faço da minha vida? Havendo os filhos queridos,
outra: E aos filhos, o que digo?
Nenhuma explicação consola os corações aflitos.
Que exemplo Alice, que traiu o esposo desde o instante em que pensou em outro homem, poderia passar
aos filhos por se envolver com paixões efêmeras? Que respeito e amor essa mulher poderia ter dos filhos?
Um dia, com toda certeza, a consciência de Alice iria cobrá-la por ter deixado os filhos sem orientá-los, bem
de perto, para saber que caminhos estarão trilhando, se sentiram dores, se estiveram alimentados, se
sentiram sua falta, se choraram no silêncio da noite, se tiveram apoio para prosseguirem nos estudos e
futuros trabalhos. Ela não se preocupou se sua ausência física traria algum abalo emocional capaz de levá-
los a buscarem na rua, nas drogas ou em companhias duvidosas a compensação para essa falta de amor
de que se vêem privados. Mas o egoísmo dessa criatura não a faria renunciar aos
efêmeros prazeres e
ambições vis. Atraindo indescritíveis companheiros espirituais, que se compraziam em satisfações
mundanas do mais baixo nível, o que, consequentemente, a fariam enveredar por amargos caminhos.
Marcos, por sua vez, encontrava-se em total desarmonia e desilusão, mas amparado por amigos espirituais
que procuravam sustentá-lo no bom ânimo e para o bem. A custo ele encontrava nos filhos o motivo e a
razão para não cometer nenhum desatino. Marcos não conseguia entrar em contato com sua irmã quando
telefonava para o apartamento, uma vez que Raquel fora morar na casa dos pais de Alexandre. Raquel,
também tentando contatá-lo no serviço, recebia a informação de que ele estava de férias.
Marcos passou a enfrentar sérios problemas com o filho Nilson, que perdera o emprego no mercado e se
enturmara com péssimos companheiros. Nilson, agora maior de idade, fora preso por tentativa de furto.
Elói, mais tranquilo e sempre amigo, procurava animar o pai. Alice parecia pouco se importar. Ela só se
preocupava com a sua vida.
Um dia, após voltarem da visita que fizera ao hospital para Alexandre, Raquel pediu para Rosana que a
levasse à casa de seu irmão, pois tinha o novo endereço. Ela ignorava a separação do casal. Ao chegarem
à casa de Marcos, ele as recebeu com satisfação, mas Raquel percebeu sua aflição.
Após conversarem um pouco, Raquel contou-lhe sobre Alexandre e o irmão revelou tudo sobre Alice e
Nilson.
O que você vai fazer, Marcos?
Não sei, Raquel. O advogado disse que o Nilson pode sair aqualquer momento e... Não sei. Já
pensei em pegá-los e voltar para afazenda, mas nem sei se posso, porque o Nilson ficará respondendo
oprocesso e parece que não pode mudar de estado, eu acho.
Voltar para a fazenda? estranhou a irmã. Há quanto tempovocê não tem notícias deles?
A última vez que recebi uma carta da mãe foi há uns três anos. Na semana passada escrevi
novamente e pedi, pelo amor de Deus, que ela me mandasse notícias. Vamos ver se assim ela me escreve.
Avisei também do endereço novo.
Gostaria tanto de vê-la comentou Raquel sentida, perdendo oolhar, pensativa.
372
Por que não vai até lá, Raquel? perguntou Rosana.Raquel, tomando uma postura firme, falou:
Não. Daquele lugar só tenho as piores recordações. Seria o último lugar do mundo que eu iria
visitar novamente.
Marcos olhou para sua irmã fitando-a por longo tempo, pensando em toda aquela injustiça que cometera
com ela. Depois ele falou:
Desculpe-me, Raquel, por tudo o que eu te fiz. Por favor, me perdoe.
Marcos, eu...
Não tente dizer nada a meu favor. Fui cruel com você. Minhaprópria irmã... Tenho tanto para
agradecer ao Alexandre. Lamento imensamente saber o que aconteceu com ele, o seu estado...
Sinceramente disse Marcos, comovido ao encarar Rosana , se eu pudesse, doaria meu próprio coração
ao seu irmão, por tudo o que ele tem feito pela Raquel. Respirando profundamente após pequena pausa,
ainda falou: Estou tão desgostoso da vida que morrer agora seria conveniente.
Não fale assim, Marcos argumentou Rosana. Ainda temmuito a fazer. Seus filhos
dependem de você, já que a mãe está incapacitada de cuidar deles.
Incapacitada, não. Ela é uma sem-vergonha, imunda!
Alice é incapacitada moralmente, espiritualmente, prosseguiu Rosana. Quando uma alma
não tem elevação ou grandeza, ela pode ainda agir de modo imoral, leviano, sensual e materialista, sem
respeitar e sem dar importância aos queridos filhos que Deus lhe confiou aos cuidados.
Marcos riu ironicamente e avisou:
Ela alega que o ama. Que o escolheu por compatibilidade.
Na minha opinião, quem não tem respeito aos sentimentos dos outros, quem não tem resignação
e não renuncia a si mesmo não pode amar alguém. Pode ter uma ilusão passageira em uma aventura,
mas amor, não. E sofrerá muito por estar se enganando. Se ela foi capaz de deixá-lo com os filhos, quando
esse encanto, quando essa ilusão acabar, Alice se terá envolvido em tanta dor e desespero que você nem
373
imagina. Ninguém é feliz quando, para isso, alguém chora. Um dia ela vai acordar.
Se não fosse por meus filhos, eu faria uma besteira.
Você é um homem capacitado, Marcos. Não se desrespeite, não se agrida por isso. É o momento
de usar as suas ideias e as suas mãos para construir. Eleve seus pensamentos e tenha fé em Deus. Não
pense em vingança e ore para que Alice seja amparada e desperte para o bem o quanto antes, para a
moralidade que todo espírito deve ter. Pense emcoisas construtivas.
Marcos deu um sorriso forçado e Raquel lembrou:
Precisamos ir. Dona Virgínia pode ficar preocupada. Não avisamos que passaríamos aqui.
Rosana se despediu de Marcos e, na vez da irmã, ele perguntou:
Raquel, você e o Alexandre, como estão? Diante a ausência depalavras, Marcos indagou
ainda: Vocês moram juntos? Têm umavida incomum?
Não, Marcos respondeu Raquel, com modos simples e encarando-o. Nunca tivemos nada.
Não levamos uma vida incomum.Namoramos...
Eu preciso saber, pois queria lhe fazer um pedido. Você quer virmorar aqui comigo?
A moça ficou parada e pensativa. Rosana sentiu-se gelar. Aquilo não poderia acontecer.
"Alexandre morreria!", pensava ela.
Dê-me um tempo para pensar? pediu Raquel. Tem muita coisa acontecendo no momento.
O quê, por exemplo? insistiu o irmão.
Estou tentando reaver minha filha. O senhor Claudionor, pai doAlexandre, está me ajudando.
Você sabia onde ela estava, Raquel?Ela abaixou o olhar e admitiu:
Sabia. Ela foi transferida, de onde eu a deixei, para um orfanato.Eles estão fazendo alguns
levantamentos e ainda não me deram os resulados.
374
Também está sendo aberto um processo. Nem sei se tenho o chamado "pátrio poder" sobre minha
filha e minha situação para pleiteá-la não é muito favorável. Moro de favor, não tenho emprego, fui
difamada, morei nas ruas... Creio que talvez isso complique um pouco as coisas. Estou com muito medo.
Você vai conseguir, Raquel. Tenho certeza! afirmou o irmão,animado. Porém, pense na minha
proposta. Quero que more comigo e traga sua filha para cá. Seremos uma família.
Rosana não podia dizer nada. Insatisfeita, nem conseguia sorrir.
Bem, precisamos ir pediu a irmã de Alexandre, apressando aamiga.
Ao chegarem em casa, o senhor Claudionor avisou, quando elas entravam na sala:
O Xavier acabou de sair.
Ele tem novidades? perguntou Raquel interessada.
Praticamente, não. Ele disse que telefona amanhã.Depois, ao se ver a sós com seu pai, Rosana
perguntou:
Que levantamento demorado. É assim mesmo?
Vem cá pediu o homem, indo até o escritório, enquanto mantinha um certo ar de mistério
mesclado com animação em esclarecer afilha sobre algo surpreendente. É o seguinte: a menina foi
encontrada. Bruna tem saúde perfeita e é a típica criança de maior solicitação para a adoção por causa de
suas características físicas. Admiro-me atéque não tenha sido adotada novamente.
Como assim? Ela foi adotada? perguntou Rosana afoita.
Um casal entrou com o pedido de adoção. Após os procedimentos legais na Vara da Infância e
da Juventude, o promotor de Justiça foi ouvido e o casal, dentro das normas legais, obteve o período
chamado de "Estágio de convivência", porque a Bruna tem três anos de idade.
E aí?! indagou Rosana, quase em desespero.
375
Aí que a menina foi entregue ao casal mediante um termo deguarda e responsabilidade,
enquanto se processava a adoção. Nesse período de estágio e convivência, houve graves conflitos.
Como assim? insistiu Rosana, aflita e curiosa.
Toda criança que passa algum tempo num orfanato traz consigo uma bagagem de vida ignorada
e inacessível, até então, ao casal adotante.Parece que a Bruna revelou uma não-aceitação a eles. Esse
contato inicial que tiveram foi tão desajustado que requereu a intervenção dos técnicos que avaliam esse
período, e estes sugeriram a interrupção temporária dessa convivência.
E agora?
A Bruna foi retirada, provisoriamente, do convívio com a família adotante.
O que eles alegaram para que houvesse essa intervenção, vocêsabe? interessou-se Rosana.
Sente-se porque você não vai acreditar pediu o pai, que, ficando à sua frente, revelou:
Bruna falava, aos choros, por dias seguidos,que a mãe iria buscá-la. Ela contava que tinha sonhos e dizia
que conversava com o pai, descrevendo-o como sendo muito risonho, alto, forte, de olhos azuis, cabelos
pretos e lisos. Falava ainda que a mãe se parecia com ela.
Rosana ficou imóvel e boquiaberta. Sem trégua, o pai prosseguiu:
Fiquei exatamente como você quando ouvi isso do Xavier. Noentanto, tem mais. Com os dias,
Bruna Maria parou de chorar, masfalava que os pais verdadeiros apareceriam e a levariam embora. Isso
era dia e noite, e a mãe adotiva não suportou a pressão.
Surpresa, Rosana sorriu quase espantada com o relato e o pai continuou:
Precisaremos ser rápidos para não ter maiores dificuldades. Porenquanto, não quero revelar tudo
isso à Raquel para não preocupá-la.Combinei com o Xavier que quero pô-la em contato com a filha
sóquando for necessário e tudo estiver certo, sem riscos. Pretendo poupar a Raquel de expectativas
angustiosas até quando puder. Imagino quantas
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dúvidas ela já tem. Bem, é assim, o juiz vai pedir comprovação laboratorial de filiação, serão analisados as
condições e o motivo do abandono, pois Raquel desapareceu após o nascimento. Fora isso, atestado de
saúde física e mental de Raquel.
Ela não tem emprego nem casa própria lembrou Rosana.
Carência e falta de recursos materiais não a farão perder a menina. Problemas morais ou
envolvimento com crimes, sim.
Papai, eu estou preocupada. Passamos hoje na casa do irmão da Raquel e ele quer que ela volte
a morar com ele.
O senhor Claudionor ficou surpreso, depois perguntou:
Você acredita que ela irá?
Não sei. Raquel falou que ia pensar.
Isso me faz ficar preocupado com o Alex afirmou o pai.
O Alex morre se acontecer uma coisa dessa!
Mas, por outro lado, Rô, vejo a Raquel tão preocupada com seu irmão que não acredito que
possa deixá-lo agora.
Sabe o que acontece, por causa dos costumes em que foi criada,Raquel não consegue aceitar
viver daquele jeito com o Alex.
Se a situação se agravar, pediremos que fique morando aquiconosco. Quando for o momento,
vou conversar com ela. Na próxima semana, o Alex deve voltar para casa e, talvez, por ter que lhe dar
atenção, Raquel ainda não pense em ir morar com o irmão.
Pelo que percebi, o interesse em ficar com a filha a prende aqui,pai.
O homem sorriu, parecendo ter alguma ideia, depois falou:
Vamos aguardar, Rosana.
Na semana seguinte, conforme previsto, Alexandre recebera alta.
Acomodado confortavelmente em um quarto na casa de seus pais, ele recebia atenção de todos, além de
muito mimo. Raquel, preocupada, sempre estava a seu lado.
377
Passados alguns dias, Marcos também fora visitá-lo e, antes de ir embora, ao se despedir de sua irmã no
portão, lembrou:
Estou aguardando sua resposta sobre ir morar comigo.
Ainda estou pensando, Marcos avisou Raquel timidamente.Ela estava dividida e confusa.
Encontrara em Alexandre e naquela
família apoio e consideração que nunca tivera antes. Agora, principalmente pelas condições de saúde de
Alexandre, seria difícil deixá-los. Todos a queriam muito bem e demonstravam isso com ternura.
O senhor Claudionor, que assistiu à cena, ficou preocupado. Sem demora, na primeira oportunidade,
quando se encontrou sozinho com Alexandre, falou:
Precisamos conversar sobre a filha da Raquel. E colocando ofilho a par da situação, disse no
final: Eu não gostaria que a Raquel nos deixasse depois que tivesse a filha definitivamente.
Alexandre sorriu e falou com modos marotos:
Também gostou dela, né, pai?!
É fácil conviver com a Raquel. Nós já a temos como alguém dafamília admitiu exibindo largo
sorriso. Em seguida surpreendeu ofilho ao perguntar: E então, quando você vai providenciar isso?!
Providenciar o quê? perguntou Alexandre.
Que ela se torne oficialmente um membro da família, oras!Alexandre, concatenando as ideias com
rapidez, ficou embaraçado,
algo raro de se ver, e respondeu, quase gaguejando:
Não... Não é por não querer, pai. Sem graça, ele sorriu encabulado e confessou: Às vezes,
acho que não terei chances. Você viu, tudo é tão difícil com ela. Mas tem horas que sinto uma esperança
tão grande!
Eu só acho que não pode deixá-la se afastar de você. Daí, sim, a situação fica pior.
Ela não vai se afastar! acreditou Alexandre, seguro de si. Após me recuperar, voltaremos
para o meu apartamento...
Interrompendo, o pai alertou:
O irmão dela, o Marcos, se separou da mulher. Você pode garantir que a Raquel não voltará a
morar com ele? Alexandre silenciou,
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arregalou os olhos e o pai, sem demora, sugeriu: Eu acho que agora você terá sua chance. Ou tudo, ou
nada!
Como assim?
O senhor Claudionor levantou, fechou a porta do quarto para garantir a privacidade e, ao voltar e sentar ao
lado do filho, pediu:
Não tenha outra parada cardíaca. Primeiro me escuta, depoisvocê reage. A Raquel quer reaver a
filha e... Após pequena pausa esuspirando profundamente, ele falou às claras com o filho: Olha,Alex,
a Raquel não conhece nada sobre as leis. Ela quer ter a meninaconsigo. Veja, se conseguir fazê-la
entender que, estando casada comvocê, será mais fácil reaver a filha, vá em frente, filho! Faça-a
entender isso. Ela gosta de você e, pelo que o conheço, sendo cabeça-dura comovocê é, sei que não
desistirá dela. Essa é a sua chance de não ter que ficarcorrendo atrás dela.
Pai, você está me propondo... perguntou surpreso, incrédulo.
Alex, preste atenção! Você a ama, e está disposto a tudo para ajudá-la. Quando Raquel tiver a
filha definitivamente ela vai deixá-lo,fique certo disso, pois acreditará que o estará incomodando em
dobro.Além disso, ela pensará que será imoral viver junto com você sem teremnada, sem serem casados.
Como criará a filha em meio a uma situação dessas? Como vai explicar esse tipo de relacionamento para a
menina?Aproveite que ela ainda não pensou nisso!
Alexandre ficou pensativo e surpreso. Jamais esperava ouvir aquilo de seu pai. Atordoado ele perguntou:
Será que ela aceita, pai?
Ela tem que aceitar! Alex, deixe de ser... Use até sua doença para convencê-la, se for preciso!
Mas tem que fazer isso agora! Enquanto hátempo! Mas, olha, se falar que estando casados será melhor
para que ela tenha a filha... Creio que isso será infalível. Após pequena pausa, o pai completou, com
modos engraçados: Só não conte nada para sua mãe.
Para ninguém! pediu Alexandre agora decidido.
Ótimo! anunciou o pai satisfeito, e sorridente avisou: Vou chamá-la, agora, e você conversa
com ela.
379
Alexandre estava nervoso e inquieto. Depois que seu pai saiu, pensou temeroso: "Como vou fazer isso?".
Em seguida, sorriu refletindo: "Puxa! Quem diria? Meu pai me incentivando a isso! Será que consigo? Será
que Raquel aceita?". Em meio às suas dúvidas, ele rogou: "Deus, me ajude! Não quero mentir para a
Raquel. Eu não gostaria que mentissem para mim. Deus, ajude-me a não mentir. Dê-me palavras e
argumentos verdadeiros para que ela entenda e aceite".
Após alguns minutos, Raquel entrou no quarto e ele pediu, generoso:
Sente-se aqui, por favor.
Você quer falar comigo? indagou com voz peculiarmente meiga.
Quero, sim afirmou ele. Tomando fôlego, encorajou-se e falou: Raquel, é o seguinte: o
doutor Xavier está com o processo pleiteando ao juiz...
Alexandre parou de falar e ela percebeu que ele estava alterado, aflito.
O que foi, Alex? preocupou-se tocando-lhe o rosto com carinho e se aproximando, esperando
que respondesse.
A respiração de Alexandre exibia seu nervosismo, mas, após pequena pausa, prosseguiu controlando seus
sentimentos:
O que eu tenho para lhe dizer é sério. Lembra-se que outro dia,quando nós conversamos, eu
disse que a ajudaria em tudo?
Lembro. Claro! confirmou com sua voz delicada.
Raquel, eu amo você disse, olhando-a nos olhos, e completou: Não quero que se afaste de
mim. Eu morreria! Você entende?
Eu não vou me afastar de você. Quem disse isso? Alexandre, vocêfoi a única pessoa que me
amparou, me sustentou em todos os sentidos. Farei tudo por você! Eu juro! tornou parecendo implorar
paraque ele acreditasse nela. Farei o que for preciso por você. Não vouabandoná-lo.
Nesse instante ele segurou sua pequena mão, olhou firme em seus olhos e desfechou rápido e
determinado:
Então case comigo, Raquel.
380
Ela ficou paralisada, em choque. Acreditando que o silêncio estava longo demais, com voz meiga e ainda
segurando-lhe a mão, que ficou gelada, ele pediu aflito:
Diga alguma coisa, Raquel. Pelo amor de Deus!
Ela empalideceu visivelmente. Seu queixo tremia e sua voz se embargou, quando disse:
Alexandre... peça-me tudo. Menos isso. Se for preciso eu morropor sua causa, mas...
Casamento é menos que a morte. Eu te amo e você também.Ela começou a chorar,
respondendo:
Eu o amo, sim, mas não o farei feliz. Não daria certo.
Preste atenção pediu o rapaz, falando mansamente, enquanto lhe afagava o rosto. Case-se
comigo só no papel, e não nas vias defato. Estou disposto a isso. Você sabe que a respeito muito para
agredi-la ou cobrá-la de alguma coisa. Eu só tê-la quero perto de mim. Quero me sentir seguro disso e o
casamento me proporcionará isso.
As lágrimas rolavam no rosto de Raquel e ela não dizia nada, olhando-o firme e até incrédula, pensando a
que ponto chegava aquele amor que ele sentia.
Raquel, se você me ama, se me considera e respeita, não preciso de mais nada. Após
pequena pausa, ele argumentou: Sabe, odoutor Xavier, como eu comecei a dizer, pode avisar que a
Bruna viráconhecê-la, de uma hora para outra. Aí eu pensei: como ela vai nos ver?Serei só seu namorado?
O que representarei para ela? Eu quero que se case comigo e quero assumi-la como minha filha.
Não... sussurrou.
Por quê?!
Você não é o pai verdadeiro, por que faria isso?
Raquel, não fale para mim sobre pai verdadeiro. Pai não é aquele que dispensa uma carga
genética e nem sabe se existimos, quem somos ou se vivemos. Esse é um irresponsável. Pai mesmo é
aquele que ama,que oferece carinho, atenção, condições de vida, boa moral. Pai é aquele que pensa no
agasalho, no estudo, no lazer, nas noites de medo e solidão.
381
É aquele que sempre está ao lado em qualquer condição de vida e oferece sempre a sua presença e
a sua atenção. O pai não é somente um provedor. Eu não tenho a carga genética do senhor Claudionor,
nem da dona Virgínia, mas eles são meus pais verdadeiros. Mesmo não morando junto com eles, quem se
preocupa comigo? Quem foi lá no meu apartamento quando eu fiquei nervoso e preocupado com um mal-
en-tendido? Quem esteve no hospital, todos os dias, todas as vezes que fiquei internado? Foram os meus
pais, e não o senhor e a senhora que me emprestaram as suas cargas genéticas. Mais tranquilo e
generoso, ele tornou a dizer: Deixe-me cuidar de você, Raquel? Deixe-me ser o pai da Bruna? Em
seguida, ele sorriu e afirmou: Terei dois motivos para viver.
Raquel debruçou em seu ombro e chorou muito. Estava em conflito sem saber o que dizer.
Em outro cômodo da casa, o senhor Claudionor impediu a iniciativa da esposa e da filha, que queriam ir ao
quarto, e para isso teve que dar uma explicação.
Por que, Claudionor? Só vou ver se o Alex quer um suco!
Não vá lá. Eles precisam conversar.
Conversar o quê? Não podem se falar perto de mim, só por um segundo, enquanto pergunto se
querem um suco? reclamou a mãe.
É que o Alex vai pedir a Raquel em casamento. Por isso não devem ser incomodados
anunciou o senhor Claudionor com jeito picante.
Casamento?!!! exclamaram mãe e filha num coro.
Após isso, Rosana, boquiaberta, ficou muda, e dona Virgínia se sentou falando:
Espere aí! exclamou enquanto concatenava as ideias.
Não. Não vou esperar, não. Foi isso mesmo o que você ouviu. O nosso filho, Alexandre, vai pedir
a Raquel em casamento.
Mas a Raquel... tentou dizer a mulher que foi interrompida.
E o único jeito para o Alex não perdê-la. Sejamos frios e racionais.Estamos todos conscientes
dos problemas que ela tem explicou o pai
382
em voz baixa, completando: Eu gosto muito dela, já a considero como uma filha. Sei que o Alex é
cabeça-dura e está disposto a tudo. Inclusive a viver com um casamento não consumado até, sei lá... Um
tratamento, quem sabe. Casados ficará mais fácil.
Deus! clamou dona Virgínia, incrédula. Eu gosto da Raquel. Sei que meu filho gosta dela, mas
nunca pensei que ele chegasse aesse ponto!
Pronunciando-se a respeito do assunto, Rosana falou animada:
Vai dar certo! Deus há de abençoá-los e Raquel vai superar tudo isso. Eles ainda serão muito
felizes, eu tenho certeza!
Deus a ouça, filha. E procurando o marido com o olhar, donaVirgínia ainda falou: Já que
tem de ser assim, assim seja! Vamos ajudá-los. Após pequeno espaço de tempo, concluiu: Eu
querotão bem a Raquel, a adoro. Deus! Como essa menina sofre!
O silêncio reinou por alguns minutos e o senhor Claudionor, estampando um sorriso no rosto, não revelou
que a ideia fora sua. Alexandre chegou vagarosamente à copa e surpreendeu todos reunidos, parados e
olhando-o com uma expectativa impressionante. Desconfiado, ele sorriu e perguntou:
O que foi?
Já contei para elas e estamos aguardando o que você tem para nosdizer falou o pai
empolgado e ligeiro.
Você já contou? perguntou Alexandre com ar de riso.
Sobre o pedido de casamento, sim. Mas até eu vou ter um colapso se não souber logo qual foi a
resposta da Raquel.
Alexandre fez expectativa, depois riu gostosamente e anunciou:
Eu e a Raquel vamos nos casar. Sem demora avisou: Estouassumindo a Bruna como minha
filha desde já.
Rosana correu para o abraço e a mãe também o envolveu. O senhor Claudionor perguntou:
Cadê a Raquel?
Com lágrimas nos olhos e rindo, Alexandre avisou:
Para variar, ela está lá no meu quarto chorando.
383
O pai de Alexandre foi até o quarto encontrando Raquel com os olhos rubros, porém mais recomposta.
Sentando-se a seu lado, ele falou:
Estou feliz por vocês. Tenha certeza de que tomou a melhor decisão, Raquel. Sem demora
avisou: Gostamos muito de você,filha.
Raquel ergueu o olhar encarando-o e tentou esboçar um sorriso que se transformou em choro. O pai de
Alexandre foi abraçá-la, mas, sentindo-a temerosa, como a se encolher, ele compreendeu e beijou-lhe
rapidamente a cabeça, dizendo:
Vai dar tudo certo, Raquel. Tenha fé.
Após saber que se casaria com Raquel, Alexandre pareceu ter ganhado nova vida. Sua recuperação fora
surpreendente! Pouco tempo depois, animado, em uma conversa com Raquel, avisava:
Casaremos daqui a quarenta e cinco dias!
Já! estranhou a moça que sentia seu coração apertar.
Ainda! retrucou Alexandre sorridente e alegre.
Filho, temos que preparar...
Não vai haver festa, mãe. Pelo amor de Deus! Casaremos só nocivil e pronto! Eu não gostaria de
ficar dando satisfações a todo mundo.Só nós aqui de casa está bom. Virando-se para sua irmã, ele
pediu: Rosana, quer ser minha madrinha junto com o Ricardo?
Rosana ficou séria e tomando uma postura de quem estava sem jeito, quase envergonhada, falou
cinicamente:
Não posso, Alex. Sinto muito.
Por quê? surpreendeu-se o irmão.
Ah, é que surgiu um imprevisto.
Imprevisto?!
No mesmo dia vou ser madrinha da Raquel avisou, ao abraçar
a amiga.
Então vou chamar a Vilma! Sua traidora!
brincou Alexandre.
384
Dona Virgínia, preocupada, foi procurar pelo marido para reclamar sobre o fato de o filho não querer uma
festa. O telefone tocou, era o noivo de Rosana e ela saiu para atendê-lo.
Vendo-se as sós com Raquel, Alexandre perguntou:
Quero voltar para o apartamento na próxima semana. Vamos?
Não sei. Estou tão confusa, Alex.
Vamos, vai! Já estou bem melhor e eu quero saber por quantas anda o meu emprego. Isso é, se
eu não fui substituído.
Claro que não! Desempregada já basta eu.
A propósito, Raquel. Você quer convidar sua mãe para o nosso casamento?
A moça ficou temerosa e confusa, depois de refletir um pouco, confessou:
Alex, até agora eu não sei se tomei a decisão certa. Ela securvou sobre a mesa que os
separavam, segurou nas mãos do noivo, e falou: Estou apavorada só de falar nesse casamento. Agora,
chamarminha mãe será outro drama. Por favor...
O semblante de Raquel exibia aflição. Compreendendo-a, Alexandre tentou confortar:
Está certo. Não quero pressioná-la, só lembrei e quis que soubesse que, por mim, tudo bem. Se
quiser chamá-la, eu vou lá com você.
Eu só quero chamar o Marcos.
Lógico! Faço questão!
Nesse momento, o rapaz sorriu e se lembrou do que havia dito ao Marcos, no dia em que foi buscar as
coisas de Raquel, sobre ele fazer questão de ir até a casa dele para lhe fazer aquele convite. Agora ele o
faria, não por vingança, mas por consideração, felicidade e prazer.
Com os dias, Alexandre e Raquel voltaram para o apartamento. Rosana, após convencer Raquel, saiu com
a amiga para comprar objetos, tapeçaria e cortinas a fim de redecorar o apartamento do irmão.
385
Quem diria, hein, Raquel? Você vai casar antes de mim! Não me conformo brincou rindo
gostosamente.
Só de pensar nesse casamento eu passo mal. Quando lembro doacordo que fiz com o Alex,
sobre casarmos só no papel, falto morrer! revelava Raquel aflita, quase em desespero. Prometi a ele
que fariatudo por ele, mas nunca imaginei que me pedisse isso. Onde eu estavacom a cabeça, meu Deus?!
Não pense mais nisso, Raquel. Se é isso o que ele quer e aceita, se você o ama, dane-se o resto.
Não diga mais nada, ou pode deixá-lotriste, deprimido.
Não posso enganá-lo.
Mas você já falou. Agora chega. O Alex sabe o que está fazendo. Apropósito, vocês vão viajar?
Por quê?
Ora, e a lua-de-mel?
Não diga isso, Rô, pelo amor de Deus! Que lua-de-mel?!
À noite, ao conversar com Alexandre, que já havia sido orientado por sua irmã sem que Raquel soubesse,
ela ouviu do noivo:
Raquel, eu gostaria de aproveitar o presente que a empresa oferece aos funcionários que se
casam.
Que presente?
Uma viagem. Após o casamento, como todos fazem, vamos viajar?Ela empalideceu. Com voz
fraca e trêmula, respondeu timidamente:
Eu não sei... falou atordoada.
Decidido, rápido e animado, ele não a deixou reagir nem pensar, dizendo:
Então vamos. Já que eu tenho que ir lá na empresa amanhã, voucuidar disso!
Sem palavras, Raquel sentia-se mal com tudo o que estava acontecendo, mas não disse nada, sofrendo
calada.
386
Rosana havia levado Raquel para a casa dos pais um dia antes do casamento. Pela manhã, com carinho e
alegria, ela ajudou a futura cunhada a se arrumar. Raquel, mais do que nunca, ficou linda!
Ao sair do quarto, dona Virgínia entregou-lhe um buque de orquídeas brancas, que ficou belíssimo em suas
pequenas e delicadas mãos trêmulas.
O juiz de paz aguardava na sala da casa dos pais de Alexandre, que fora especialmente decorada para a
ocasião. Marcos estava presente. Vilma e o Marido estavam como padrinhos e as crianças, graciosamente
bem trajadas, faziam o casal de honras que levavam as flores e as alianças.
No espaço a percorrer até chegar próximo do juiz, do noivo e dos padrinhos, Raquel foi conduzida pelo pai
de Alexandre que, ao lado da bela noiva, parecia desfilar sorridente e orgulhoso como se ela fosse
realmente sua filha. O noivo não tirava o sorriso do rosto e Rosana, perto dele, brincava, falando baixinho:
Não se emocione! Olhe o coração!
Somente alguns tios e primos do rapaz foram convidados para a simples
cerimônia, e um almoço no jardim,
próximo da piscina, comemorou a ocasião. Quando tudo estava quase terminado, Vilma, próxima de sua
mãe, falou quase sussurrando:
Mãe, que coragem o Alex tem!
Dona Virgínia, que começou a entender seu filho, comentou:
Coragem nada. Que amor!
À tardinha os noivos se despediram e voltaram para o apartamento onde, de lá, Rosana e Ricardo os
levariam para o aeroporto. A caminho de casa, Alexandre e Raquel, sozinhos no carro, não diziam nada.
Ela estava muito séria e não parava de tremer.
Ao entrarem no apartamento, Raquel parou e falou baixinho:
Meu Deus! O que eu fiz?!
Alexandre sorriu e respondeu em tom generoso:
387
Casou-se comigo. Agora vamos, daqui a pouco a Rô estará aquipara nos levar até o aeroporto.
Raquel, após se trocar, foi para a sala, onde não encontrou o marido. Ela se sentou no sofá e abaixou a
cabeça. Sentia-se gelada pelo nervoso e trêmula pelos sentimentos fortes que experimentava aflita. Ao se
aproximar, Alexandre ajoelhou-se perto da mulher e, segurando-lhe o queixo ao erguer seu lindo rosto,
perguntou generoso:
Você está bem?
Estou disse encarando-o e falando baixinho.
Não quer comer alguma coisa? Você nem tocou no seu almoço!
Não quero, não. Obrigada.
Está tudo bem, Raquel. Nada mudou. Fique tranquila afirmou Alexandre preocupado com ela.
Nós nos casamos e você diz que nada mudou? perguntou comvoz fraca.
Ele a olhou bem nos olhos e respondeu firme:
Não. Nada mudou. Eu continuo amando você e a respeitandotambém. Sou seu amigo, não se
esqueça disso. Eu só quero o que forbom para você e para mim também. A única coisa que mudou é que,
apartir de agora, você vai passar a assinar meu nome.
Alexandre...
Meu bem, não diga nada pediu ele, carinhoso. Levantando-see estendendo-lhe a mão,
completou: Agora vamos ver se não estamos esquecendo nada. Temos um lindo passeio pela frente.
Vamos aproveitá-lo com alegria.
A campainha tocou e ele disse:
É a Rô!
Já no aeroporto, Rosana reclamava para distrair Raquel, que estava calada o tempo todo.
Mas, Alex, vocês só vão ficar cinco dias?!
388
Você viu quanto tempo eu estou afastado do serviço? Tenho sóesta semana, na outra eu já volto
a trabalhar! O que você está pensando?Não estou de férias, não.
Por que não tirou férias? insistiu Rosana.
Quero deixar mais pra frente. Tenho outros planos avisou oirmão.
Raquel não oferecia um único sorriso, nenhuma palavra e parecia nem ouvi-los. Após se despedirem, os
noivos entraram no avião e partiram.
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** página em branco **
Capítulo 18
Vida nova
Marcos recebera, depois de tanto tempo, uma carta de sua mãe. Dona Tereza dizia que lhe escrevera
sempre esses anos todos, mas dele nada havia recebido. O filho logo entendeu que Alice deveria ter
interceptado as correspondências. Lógico! Sempre que escrevia para sua mãe, por falta de tempo, ele
pedia para a esposa colocar as cartas no correio e é claro que Alice não colocava. Marcos estava furioso
com isso. A mãe pedia notícias de Raquel, dizendo que sempre sonhava com a filha e ficava aflita por não
ter bons presságios. Marcos ficou chocado ao saber que seu pai e sua avó haviam falecido. Alice nem a
isso respeitara. Como ela fora cruel!
Elói, sempre companheiro, confortava o pai de maneira simples.
Não liga não, pai. Daqui uns dias você traz a avó para morar com a gente e acaba de vez com
isso.
Tenho vontade de matar sua mãe.
Para que, pai? Você é moço e vai arrumar outra mulher melhor.
Elói, você não sabe o que está falando. Depois de rir, o paiperguntou: O que você acha,
filho? Escrevo para sua avó dizendo quea tia Raquel se casou? Ou deixo que ela mesma diga quando
voltar deviagem?
Elói pensou e, animado, foi até o quarto buscar papel e caneta.
Dias depois, no interior do Rio Grande do Sul, dona Tereza emocionada lê a carta do filho que, em dado
momento, dizia:
"Mãe, a Raquel está muito bem. Como sempre, linda! Agora parece mais linda ainda. Não se preocupe com
ela, é que não vou adiantar as notícias porque quero que ela mesma lhe conte. Mas, asseguro, ela
estábem. E que no momento viajou a passeio e não sabe que estou mantendo contato com a senhora."
Dona Tereza não cabia em si. Ela se emocionara com o que lia. Seu sogro, homem sempre forte, ativo e
severo, encontrava-se agora em uma cadeira de rodas e dependente de muitos para tudo. Com ar
arrogante e olhar vingativo, Tereza aproximou-se do velho e disse:
Boleslau, meu filho Marcos me escreveu. Lembra-te da Raquel?Aquela guria pequena e franzina
que tu espancastes de coro e colocastespara fora daqui? Marcos escreveu dizendo que minha Raquel está
muito bem. Disse que ela é linda! Uma barbaridade, chê! Veja, Boleslau, tudo o que tu fizestes de mal para
minha filha voltastes para ti, que agora estáaí nessa cadeira e nem falar pode, mas ouvir, vai. Eu sei que tu
me entendes, velho. Após andar de um lado para o outro, ela continuou: Um dia, Boleslau, tu ainda
verás entrando aqui, linda e maravilhosa,a minha Raquel.
E aquele teu filho nojento ainda vai se necrosar todo, chê!
Bah! Mas tu e aquele verme miserável do Ladislau, que também acabou com a minha vida, com o meu
sossego, ainda vão ver a minha Raquel vitoriosa, essa é a minha vingança para tudo o que sofri aqui.
O homem arregalava os olhos e ficava furioso, sem poder responder, pois a doença lhe impedia. Tereza
continuou andando vagarosamente de um lado para o outro enquanto, com olhar exibindo orgulho e
satisfação em poder maltratar o sogro, dizia:
Boleslau, observe como esse mundo dá voltas! Tu já pensaste que a Raquel é a herdeira dessa
fazenda junto com os irmãos? A mulher doLadislau ficou louca e é insana desde que as filhas morreram no
acidente.O infeliz do Ladislau já perdeu uma perna e metade da outra e ainda vai sofrer muito antes de
morrer. Então, a Raquel e os irmãos são os futuros donos de tudo isso aqui! Chê! Quero ainda ver aquele
infeliz numa cama e mexendo só com os olhos, igual a ti, que precisa fazer que nem um verme para te virar.
392
Sem piedade, após torturar o sogro com as palavras mais cruéis que conseguiu pronunciar, Tereza virou as
costas, deixando o sogro a resmungar tentando se comunicar.
Longe dali, Alice e Valmor enfrentavam alguns problemas. A esposa dele havia descoberto a traição e
pedia o divórcio. Valmor teve de ir morar com Alice no pequeno apartamento que lhe havia montado,
enquanto aguardava o processo do divórcio se desenrolar. Os dois às vezes se desentendiam. Alice queria
um apartamento maior e ele não estava acostumado àquelas exigências.
Na empresa em que trabalhavam, o romance entre eles tornou-se conhecido e os demais diretores e até o
vice-presidente, que tomaram ciência do fato, não viam com bons olhos aquela situação.
Alice, tentando prejudicar o quanto podia a Raquel, ainda insistia:
Você tem que mandar o Alexandre embora! Onde já se viu!
Ficou louca, Alice? O Alexandre nem trabalha abaixo da minhadiretoria! Além do mais, ele é
muito bem conceituado com os gerentes e os outros diretores. Não há motivo para eu pedir algo assim.
Sabe esse tempo todo que ele ficou fora com problemas de saúde? Por incrível quepareça, ninguém
conseguiu preencher os requisitos na sua função! Aquele cargo, naquele setor, é uma encrenca!
Ninguém é insubstituível! retrucou a mulher insatisfeita que,pelas maldades em seu coração
odioso, queria prejudicar o marido de Raquel a qualquer custo.
Mas o cara é competente! O pessoal está desesperado, aguardando ele voltar. Soubemos que
ele quase morreu!
Com voz de deboche e irônica, Alice falou:
Se fosse tão grave ele não estaria viajando em lua-de-mel!
Esse é um direito que o assiste. Sorte dele!
Aquela desgraçada não merece isso! Eu, que dei um duro danado a minha vida toda, nunca viajei
de avião. Não me conformo! Raquel casada e viajando! gritou Alice.
393
Esquece a Raquel, Alice! Preocupe-se com você! Não adiantava, tudo o que Valmor dizia era em vão.
Alice se incomodava com a prosperidade da moça, mesmo tendo-a a distância.
Outra pessoa que não se esquecia de Raquel era Rosana. Mostrando ao noivo as peças que havia
comprado para a decoração do apartamento que estavam montando, ela dizia:
Como será que eles estão, hein? O Alex nem para telefonar.
Oh, Rô! O Alex já ligou três vezes. O que mais você quer?
Amanhã à tarde eles chegam ao aeroporto. Você vai comigo buscá-los?
Vou, lógico. Decorridos poucos minutos de silêncio, Ricardoperguntou sem perceber: Como
será que eles estão?
Olha só?! Depois fala que eu sou curiosa!Ricardo riu e comentou:
Não dá para deixar de pensar neles.
Nossa! Eu fico imaginando como ele gosta da Raquel!
Realmente concordou Ricardo. Alexandre gosta muito dela,para se submeter a isso.
Mas veja, só assim mesmo para ele ajudá-la.
É verdade. Após refletir o noivo confessou: Eu faria o mesmo.
Rosana, ouvindo aquilo, abraçou-o com carinho, beijando-o com amor.
Na tarde do dia seguinte, Raquel e Alexandre retornaram e, antes de irem para o apartamento, passaram
na casa dos pais dele. Ela estava um tanto tensa e até constrangida.
Alexandre, mais animado, colocou a fita das filmagens que fizeram para que assistissem.
394
A Raquel, com filtro solar e tudo, no primeiro dia, virou um"camarão". Agora vocês vão vê-la só de
camiseta com manga.
Dona Virgínia, para puxar conversa com a nora, que permanecia calada, perguntou:
Lá é bonito, Raquel?
É sim. É um lugar maravilhoso respondeu ela com timidez.
As piscinas naturais são de água quente. Eu sempre ouvi falar desse lugar em Goiás e sempre
tive vontade de ir lá revelou Alexandre.
É! O Brasil tem lugares maravilhosos! informou o senhor Claudionor.
Vamos, Raquel, coma alguma coisa, filha! insistia dona Virgínia.Rosana, que havia se afastado,
sinalizou de longe para o irmão ir
atrás dela. Alexandre levantou e decidiu ir ver o que era.
Vão assistindo aí que já volto avisou ao sair da sala.Rosana, já em seu quarto, estava curiosa.
O que foi? perguntou Alexandre sorrindo, ao entrar.
Feche a porta pediu ansiosa, mas meio sem jeito. Preciso saber! E a Raquel?
Alexandre se sentou na cama ao lado dela e desabafou:
Que encrenca, Rô.
Está arrependido? surpreendeu-se a irmã fechando o sorriso.
Claro que não!!! Estou preocupado. Jamais arrependido!
Preocupa-se com o quê? Como foi lá no hotel? O irmão fez silêncio e ela insistiu: O que
houve, Alex?
Mais sério, ele relatou sem grandes emoções:
Chegamos, pegamos as chaves e, conforme planejei, já era tarde,não teríamos aonde ir e ela
estava cansada. Deixei que tomasse um banho antes de mim e...
E aí?!
Quando voltei, ela estava sentada na cama. Nitidamente apavorada e chorando.
Já sei! Você foi dormir no sofá.
Não! Eu já tinha planejado tudo. Sou calculista, esqueceu?
395
O que você fez? perguntou Rosana impaciente.
Fui para perto dela e conversei um pouco, dizendo que estavatudo bem e aquelas coisas todas.
Eu a fiz deitar e a cobri. Foi quando ela perguntou, apreensiva: "Aonde você vai dormir?"
O que você disse?!
Dei a volta na cama, me sentei do outro lado e falei: "Só voupedir um direito como seu marido, o
de dormir ao seu lado. Só". Deitei-me, virei de costas para ela e tentei dormir.
E ela?!!!
Sentou, se encolheu, agarrou os joelhos e ficou chorando. Nesse instante da conversa,
Alexandre riu e continuou: Mais tarde,eu acho que dei uma cochilada e, de repente, senti um peso nas
minhascosta. Daí, nem me mexi. Era a Raquel que, de tanto chorar, acaboupegando no sono sentada
mesmo e tombou sobre mim.
E ficou assim?
Não, claro. Ela se ajeitou e foi para a ponta da cama.
E nas outras noites?
Passou a confiar. Deitei do lado e ela não disse mais nada nemchorou.
Ah! Eu fui lá no seu apartamento.
Desmontou a cama de solteiro?
Sem dó! E ainda levei suas roupas daquele quarto para a suíte.Arrumei do meu jeito, depois você
vê lá. Ainda comprei umas frutas,alguns alimentos sorrindo, Rosana completou , coloquei florespor
toda a casa. Ficou tudo tão bonitinho!
Alexandre a abraçou com carinho, dizendo:
Valeu, Rô! Obrigado.
O irmão se levantou e ela ainda falou:
Alex, vai dar tudo certo. Acredite.
Eu creio, Rô.
396
Mais tarde, chegando ao apartamento, Alexandre agia normalmente, mas Raquel parecia um tanto confusa,
mais do que quando fora para lá pela primeira vez.
Ele se aprontou para dormir e, ao vê-lo ir para a suíte, ela perguntou:
Aonde vai?
Vou dormir. Tomei um remédio, estou com um pouco de dor decabeça e muito cansado.
Você está bem? preocupou-se a esposa.
Estou. Isso não é nada. Já vai passar. Raquel assistia à televisão e ele perguntou: Você não
vai dormir agora?
Agora, não respondeu sussurrando e abaixando o olhar.
O marido não gostou do que ouviu, porém não disse nada e foi se deitar. Horas depois, Alexandre acordou
e não encontrou Raquel do seu lado. Ele se levantou, foi até a sala e, ao vê-la encolhida no sofá, com uma
manta sobre as pernas, a televisão desligada, ficou contrariado e sem demora acendeu as luzes
despertando-a, ao dizer tranquilo, mas muito firme:
Raquel, acorda. Ela abriu os olhos assonorentada e o marido falou em grave tom de voz: Vai
dormir lá dentro, agora.
Raquel sentou-se rápido e ficou atordoada. Quando tentou falar, Alexandre a interrompeu, interrogando:
O que você pensa que eu sou? Preciso provar mais alguma coisapara você?
Eu... tentou dizer ela sem saber como se justificar.Muito firme, o esposo a interrompeu
novamente, dizendo:
Você vai dormir lá dentro. Se não for hoje, não será nunca mais!Daí que, quando a Bruna vier para
cá, você tenta explicar a ela por queseus pais dormem separados! Você tentará explicar para os
psicólogos,que eu acho que deverão avaliar o período de adaptação, por que dormimos separados e que
ideia estamos passando para nossa filha. Então,eles haverão de avaliar o seu estado psicológico e as
condições emocionais que você tem, ou não, para cuidar da Bruna.
397
Raquel sentiu-se gelar. Dizendo isso, Alexandre ficou parado, sério, encarando-a.
A esposa se levantou com lágrimas nos olhos, cabeça baixa e foi para o quarto. Após entrar alguns passos,
parou temerosa e ficou olhando o ambiente. Alexandre entrou, fechou a porta e, parecendo bravo,
perguntou:
De que lado você quer dormir? Ela gesticulou com os ombrosdizendo que "tanto fazia". Ele,
ainda firme, sem tentar agradar à esposa,escolheu: Então dê a volta e deite-se lá. Prefiro ficar perto da
porta.
Determinado, deitou-se e apagou o abajur que iluminava o seu lado da cama. Raquel ficou em pé por
algum tempo, parecendo assustada. Sabendo que ela teria que se deitar, a princípio não se incomodou,
porém, devido à demora, pediu mais gentil:
Por favor, Raquel, você poderia apagar a luz. Essa claridade forte me incomoda. Se quiser que a luz
fique acesa, amanhã providencio umalâmpada mais fraca. Agora deita, quero acordar cedo.
Raquel, tal qual uma criança amedrontada, obedeceu. O marido percebeu que ela abafava o choro para
que ele não ouvisse. Alexandre não se sentia bem com o que fazia, aquilo partia seu coração, mas era
preciso. Ele acreditou que não deveria tentar confortá-la, talvez aquele fosse o único meio de ela
compreender e confiar nele.
Na manhã seguinte, Raquel despertou e não viu o marido do seu lado. Ela não ouviu nenhum barulho, mas,
de repente, ele entrou trazendo uma bandeja farta com suco, frutas e o café da manhã. Raquel sorriu sem
jeito e se sentou:
Bom dia, meu bem! cumprimentou ele iluminando o rostocom um sorriso e entregando-lhe a
bandeja; ajudou-a a se acomodarmelhor. Ele agia como se nada tivesse acontecido na noite
anterior.Constrangida, ela perguntou:
Nossa! Para que tudo isso?
Alexandre se deitou de bruços sobre as cobertas ficando ao seu lado e, apoiando-se sobre os cotovelos,
admirando-a, falou:
398
É o seu primeiro café da manhã em nossa casa depois de casados.Acreditei que fosse gostar.
Você é maravilhoso, Alexandre. Obrigada agradeceu terna.
Sabe o que eu estava pensando? sem aguardar pela resposta,anunciou: Vamos dar uma
passada na casa do seu irmão, avisar quechegamos e depois... Sei lá! Almoçamos fora e à tardinha
pegamos umcinema. O que você acha?
Seria bom, eu gostaria de ir ver o Marcos. Quem sabe ele já teve notícias da minha mãe.
Mais tarde, o casal chegou à casa de Marcos, que se sentia constrangido, vez ou outra, pois se recordava
do passado, quando o ofendera. O marido de Raquel mostrava-se à vontade sem se importar com o que
tinha acontecido entre eles. Raquel parecia iluminar-se ao saber notícias de sua mãe, porém ficou triste ao
tomar conhecimento da morte do pai e da avó.
A mãe também disse que o avô está numa cadeira de rodas. Ele não anda nem fala. Você leu aí,
né? perguntou o irmão.
E quem está tomando conta dos negócios? perguntou Alexandre.
Deve ser meus irmãos, Pedro e Tadeu, junto com nosso tio, euacho. Minha mãe não entrou em
detalhes respondeu Marcos.
Raquel ficou contente em ter notícias de sua mãe. Ela jamais a condenara julgando-a culpada por tudo o
que lhe ocorrera.
Raquel chamou o irmão informando , eu escrevi respondendo a ela que você estava muito
bem. Disse que as melhores novidades você mesma contaria.
Você não contou que nos casamos?! admirou-se Alexandre.
E tirar esse prazer de vocês? Lógico que não! Virando-se para airmã, perguntou: Você vai
escrever pra ela, não vai? Quem sabe até mandar uma foto!
399
Claro! concordou Raquel. Sempre quis fazer isso, mas, pornão termos notícias dela, pensei,
assim como você, que a mãe não queriamais saber de mim.
Não é verdade, Raquel disse o esposo. O Marcos já explicou que as correspondências
foram desviadas.
É, agora eu sei. Eu vou escrever, sim, e mandarei uma foto animou-se Raquel.
Raquel disse Marcos , a mãe pergunta sobre a... começou a dizer, mas deteve as
palavras rapidamente porque a presença docunhado o inibiu.
Alexandre entendeu o que seria perguntado e, para demonstrar que o assunto não o incomodava, fez
questão de assumir ao dizer:
Então dona Tereza se interessou em ter notícias da Bruna! Quebom saber disso! Assim que
tivermos uma foto com a nossa filha, eumesmo faço questão de escrever e enviar a ela.
Surpreso, Marcos olhou para a irmã, e Alexandre revelou:
Não sei se a Raquel lhe contou, mas já assumi a paternidade daBruna.
O cunhado ficou perplexo, ele não sabia que Alexandre fosse capaz de tanto. A chegada de Elói, muito
animado, chamou a atenção de todos, que os cumprimentou com satisfação. Empolgado, o rapazinho se
interessou:
Aquele carro lá fora é seu?!
É confirmou o marido de Raquel com simplicidade.
Puxa! Que legal! É um carrão, né?
Compreendendo a carência do adolescente, misto à curiosidade natural, e percebendo que deveria deixar
os irmãos conversarem mais àvontade, Alexandre convidou:
Quer dar uma volta?!
Sério?!!!
Vamos lá! convidou Alexandre levantando-se.Ao se ver a sós com a irmã, Marcos admitiu:
Você não imagina, Raquel, como eu estou feliz em vê-la com alguém tão íntegro como o Alexandre.
Eu não poderia acreditar que
400
existisse alguém assim. Até a menina ele assumiu como se... Raquel abaixou a cabeça e Marcos
argumentou ainda: Inclusive a família dele, que gente boa! Deu para perceber que eles gostam muito de
você. Fez um ótimo casamento, Raquel! Ao reparar em sua irmã, Marcos a viu chorar. O que foi,
Raquel? Eu disse algo errado?
Não. Você não disse nada errado avisou secando as lágrimas.
Então por que você está assim? preocupou-se o irmão. Vocênão o ama? Casou-se
forçada?!
Amo sim. Eu adoro o Alex, mas ele merecia alguém melhor. Após pequena pausa, ela revelou
em desespero: É que nós nos casamos só no papel, Marcos. Não sou mulher do Alexandre. Nunca
fui!Não posso...
O irmão ficou confuso e em choque. Ele se levantou e vagarosamente andou de um lado para o outro da
cozinha, depois se sentou ao lado dela e perguntou:
É por causa da violência que você sofreu? Aquilo tudo aconteceu,então! Por isso reage assim?
Ela afirmou com um aceno de cabeça eMarcos, incrédulo, falou: Raquel, isso não é verdade. Não pode
ser.Diga que é mentira!
Ela abaixou a cabeça e procurou secar as lágrimas teimosas que rolavam.
Raquel, esse homem a ama! Ele tem feito tudo por você! Apesar de no passado... Você não pode
fazer essa barbaridade com ele!
Eu sei! afirmou a irmã quase num grito de lamento. Com avoz embargada, continuou: Não
me torture mais, pelo amor de Deus.Eu sei disso. Quando me acolheu o Alexandre me tirou da rua, era
de madrugada e eu estava em uma praça cheia de travestis. Ele me levou para o seu apartamento, cuidou
de mim, me deu sua cama para dormir!Sempre me respeitou, me entendeu... Ele me ama tanto que até
agora respeita meus limites, meus medos e traumas...
Marcos se aproximou e abraçou sua irmã, foi quando ela chorou mais ainda. Ele estava incrédulo, aquilo
não poderia ser. Suspirando fundo e ainda sem aceitar, ele perguntou:
401
Como vocês se casaram? Como foi surgir essa ideia?
Raquel se afastou do abraço e, com o rosto rubro, lágrimas correndo, ela o encarou respondendo:
Alexandre ainda estava acamado, depois de sair do hospital.Ele disse que me ama a ponto de
ser feliz somente por minha presença ao seu lado. Analisei tudo o que tem feito... Havia prometido que faria
tudo por ele, tudo o que me pedisse, mas jamais imaginei que fosse me pedir em casamento. Eu não sei
como aceitei! Fiquei atordoada na hora, vi o quanto ele gostava de mim e me respeitava,então concordei.
Marcos! exclamou ela em desespero. Eu não sei como fui aceitar! Quando vi já estava casada! Eu
amo o Alexandre, sei que ele me quer... me deseja, mas como é que posso fazê-lofeliz?!
Calma, não fique assim. Vocês só têm uma semana de casados e... Ele deteve as palavras,
mas depois prosseguiu: O Alexandre é umbom homem e muito inteligente, eu acredito que tenha até se
casado com você de caso pensado.
Como assim?
Casados, ele poderá se aproximar de você, entende...? Conquistá-la... Poderão fazer uma
terapia, sei lá.
Mais calma, ela revelou:
Às vezes parece que me esqueço, quero abraçá-lo... corresponder aos seus carinhos. Porém, há
momentos em que não consigo me controlar, choro, entro em pânico.
Vocês estão dormindo em quartos separados?
Não. Na noite passada, eu até...
Raquel contou o que se passara na noite anterior, quando o marido praticamente a intimara a ir dormir no
quarto.
Ele me disse que só teria essa exigência como meu marido. Nadamais.
Marcos não disse nada. Ele entendeu os planos do cunhado. O marido a estava conquistando, com
certeza; fazendo com que se acostumasse com ele.
402
Um barulho no portão os fizeram notar que Alexandre e Elói jáhaviam chegado. Ao entrar, Alexandre se
aproximou da esposa e afagando-lhe o ombro perguntou, quase sussurrando:
Tudo bem?
Sim. Está respondeu ela constrangida.
Marcos olhava para o cunhado e o admirou como nunca fez com ninguém. Sem perceber que era
observado, Alexandre se curvou, beijou os cabelos da esposa e perguntou baixinho:
Vamos?
Vamos, sim aceitou levantando-se.
Não! Fiquem para almoçar aqui.
Oh, Marcos, agradeço muito respondeu Alexandre , mas éque já fiz alguns planos para hoje
à tarde. Sabe, fiquei muitos dias sem sair de casa por causa do problema cardíaco, depois fomos viajar.
Euqueria dar uma volta pela cidade, pegar um cinema. Fica para outro dia.
Raquel lembrou e interrompeu-os, dizendo:
Na próxima semana irei ver a Bruna.
Iremos corrigiu Alexandre, sorrindo.
Estou com tanto medo ela revelou com certa timidez.
Eu não! avisou Alexandre. Estou ansioso. Não vejo a hora.
Estou torcendo por vocês! afirmou Marcos, satisfeito. Vaidar tudo certo.
Raquel se despediu do irmão e foi à procura do sobrinho para dizer adeus. Nos poucos minutos que ficou a
sós com o cunhado, Marcos aproximou-se e deu-lhe um forte abraço, que durou algum tempo, e disse:
Obrigado. Parabéns por você ser assim. É difícil encontrar alguém tão digno, Alexandre.
Eu?! respondeu o rapaz sem entender do que se tratava.
Sim. Obrigado por tudo o que fez e está fazendo por minha irmã.Alexandre sorriu e sem se
constranger afirmou:
Eu adoro a sua irmã, Marcos. Eu disse a você que cuidaria dela.Faço tudo pela Raquel.
403
Estou vendo.
Alexandre desconfiou que a Raquel tivesse contado algo ao irmão. Ele chegou a essa conclusão não só
pelo comportamento do cunhado naquele instante, mas também por ter visto sua mulher com o rosto
vermelho, por chorar. Raquel retornou e disse:
Vamos?
Enquanto o casal procurava um lugar para almoçar, Raquel conversava com o marido, dizendo:
Tenho ido com a Rô a um Centro Espírita e gostado muito.Qualquer dia você vem com a gente?
Vou sim. Outro dia ela me deu dois livros. Fiquei admirado com o conteúdo. Nunca havia
encontrado informações tão lógicas e racionais sobre a existência do ser humano, sobre as experiências
que passamos, ascausas das aflições e os efeitos que sofremos pelo que provocamos.
Que livros?
O Livro dos Espíritos e O Evangelho Segundo o Espiritismo.
Ah! Também os estou lendo. Você já foi, alguma vez, lá no Centro?
Só para ir buscar a Rô.
E seus pais?
Minha mãe é católica, mas lê e se interessa por Espiritismo. A Rosana brinca e diz que ela é uma
"católica-espírita". Raquel riu e omarido continuou: Meu pai simpatiza com essa doutrina. Ele gosta de
assistir às palestras.
E você?
Sempre aleguei não ter tempo. Mas agora estou disposto e interessado em aprender mais.
Estou me sentindo tão bem indo lá.
Fico feliz com isso afirmou sorrindo. Tenho certeza de quefará bem a você. Vou começar a
ir para lhe fazer companhia.
404
Na manhã seguinte, Raquel acordou novamente ao som de um belo solado acompanhado pelo murmurinho
na voz de Alexandre.
Depois de um banho ela chegou na cozinha e, percebendo que ele não havia se alimentado, preparou um
suco levando-o para o marido.
Obrigado! agradeceu alegre aceitando o copo. Depois falou: Espero não te incomodar com
a música.
É lógico que não respondeu docemente acomodando-se ao lado.
Sua voz é bonita, Raquel. Canta comigo? pediu o Alexandre com jeito meigo.
Acordei quase agora, ainda estou meio rouca. Canta você.
Ah! É só no começo que sai ruim, depois que as cordas vocaisaquecem, melhora.
Não disse com jeitinho manhoso recostando-se nele.Alexandre tocou mais uma canção. Ao
terminar ficou olhando para a
bela Raquel por algum tempo. Ela, inebriada pela canção, tinha o semblante sereno ao esboçar um sorriso
delicado. Não resistindo, ele aproximou-se vagarosamente e a beijou com carinho quando a tomou nos
braços. Raquel não disse nada e pareceu aceitá-lo sem receio naquele momento, afagando-lhe com
carinho.
Propositadamente, contrariando a própria vontade, mas seguindo sua estratégia, Alexandre a acomodou
corretamente e alinhou-se, afastando-se do abraço. Raquel estranhou, mas não argumentou fugindo-lhe o
olhar. Como se nada tivesse acontecido, Alexandre comentou:
Estou pensando em chamar um projetista para fazermos o quartoda Bruna. O que você acha?
Já?!
Temos que lembrar que isso não é tão rápido. Na próxima semanajá vamos vê-la.
Meu coração está tão apertado confessou Raquel temerosa.
Eu sei. Após alguns minutos, ele completou: Ela deve ser a sua cara.
405
Por que você sempre diz isso, Alex?
Ele respondeu com sorriso e olhar meigos, mas sem palavras.
Enternecido, carinhosamente afastou-lhe o cabelo do rosto fazendo um afago. Aquele instante parecia
mágico para ele. Com o olhar perdido em Raquel, Alexandre se lembrou do quanto a queria perto de si,
sem o medo de perdê-la. Agora, casados, sentia-se mais seguro.
Suas almas se deixavam invadir por vibrações divinas, algo único e puro, chamado Amor!
Que doce harmonia reinou naqueles breves minutos que pareciam eternos! Órfãos do egoísmo, nada
exigiam um do outro, cultivando e reforçando somente os preciosos talentos da compreensão, da paciência
e do amor incondicional, verdadeiro...
Com o sorriso nos lábios e nos olhos um brilho que expressava intraduzíveis emoções sublimes, Alexandre
acariciou-lhe o rosto, dizendo baixinho:
Eu te amo, muito.... e ouviu:
Eu também amo você.
Raquel se aproximou e ele se surpreendeu ao sentir seu abraço apertado em que procurava aquecer-se
nele. Alexandre a envolveu com carinho e aninhou-a nos braços como quis. O coração de Raquel batia
forte, mas ela não dizia nada. Ficaram assim por algum tempo, em silêncio, até que o telefone tocou.
Alexandre ajudou-a a se sentar melhor e se levantou para atender. Raquel sentiu-se diferente, como que
frustrada, desejando que ele ficasse ali.
Pouco tempo depois, animado, ele a procurou, dizendo:
Vamos lá na casa da minha mãe? A Vilma está lá!
Na semana que se iniciou, Alexandre voltou ao trabalho assumindo sua mesma função. No serviço todos o
cumprimentaram pelo casamento
406
e ficaram curiosos em saber sobre o seu problema cardíaco. Por muitas vezes, precisou contar todo o
ocorrido.
O senhor Samuel, diretor imediato de Alexandre, chamou-o em particular e já na sala dele contou
novamente o que lhe ocorrera.
E no meio de tudo isso você ainda teve que se casar? Você ésuicida mesmo, hein! brincou o
diretor rindo com gosto.
Alexandre sorriu e explicou à sua maneira:
Minha situação com a Raquel era irregular perante as leis. Vivíamos juntos e não havia motivos
para não nos casarmos legalmente. Esse susto me fez pensar muito a respeito disso.
A Raquel não é aquela moça que trabalhava aqui?
Sim. É ela mesma.
Sempre gostei muito dela. É uma moça bem-comportada. Não tínhamos comentários sobre sua
vida. Estranhei quando soube que oValmor a demitiu, não vi motivo. Ela cumpria seu dever, era
elegante,educada e muito quieta. Aliás, eu nem sabia que vocês viviam juntos.
Procurávamos ser discretos disse Alexandre com um sorrisocínico.
E para quando é o herdeiro? perguntou o homem em tom debrincadeira.
Alexandre não conseguiu se conter e orgulhosamente anunciou:
O próximo eu não sei, mas já temos uma filha de três anos.
Já?! Então, realmente estava mais que na hora de vocês regularizarem a situação. E ela, está
trabalhando?
Não.
Em breve ela arrumará coisa melhor. Após pequena pausa, odiretor disse: Vamos ao que
interessa. O caso é o seguinte: o seugerente, o Luiz, volta de férias na próxima semana. Estamos com
umgrande projeto e um remanejamento no quadro. Queremos que você seja líder desse projeto e...
Puxa! Que susto! disse Alexandre rindo.
Por quê?
Pensei que fosse ser despedido. Depois de tanto tempo em "férias"!
407
O homem sorriu e falou:
Filho, o seu setor é um inferno! Principalmente sem você, temos que admitir isso. Ninguém quer
aquela encrenca e até entendemos porque você teve problemas cardíacos!
Ambos riram e o diretor continuou a explicar os planos.
Por causa do excesso de trabalho, Alexandre começou a sair um pouco além do horário, pois tinha muito
que organizar. Na sexta-feira, lembrou-se que havia prometido à esposa que iria acompanhá-la ao Centro
Espírita e não queria decepcioná-la.
Débora pediu Alexandre a uma funcionária que trabalhava sob sua supervisão , hoje eu vou
sair no horário. Mas mantenha-me informado de tudo, tá?
O "pessoal do suporte" terminará a inclusão daqui a uma hora.
Ótimo! Nesse tempo já estarei em casa. Ligue-me para contar asnovidades. Quero ir planejando
essa implantação para, quando chegar na segunda, instalarmos tudo de uma vez informava
Alexandre preocupado com o serviço.
Passada mais de uma hora desse episódio, Alexandre chegou em casa e Raquel já estava pronta e
esperando-o.
Oi! cumprimentou o marido dando-lhe um beijo rápido ecompletando: Já sei, estou
atrasado! Quieta, ela estava diferente,bem séria, mas o encarava. Então ele perguntou: Acho que
nem dátempo de tomar um banho, né?
Temos que pegar a Rosana, ainda informou Raquel, com modos frios. Eu não gosto de
chegar atrasada.
Estranhando aquele comportamento, ele perguntou com modos brandos:
O que houve, Raquel? Aconteceu alguma coisa?
Não. Nada respondeu friamente se voltando para algo, tentando disfarçar.
Como, nada?
Telefonaram para você do serviço avisou interrompendo-o.
Ah!... Então espere mais um pouquinho. Tenho que telefonar. Jásei o que é. Ligando para
Débora, Alexandre ouviu o que lhe interessava,
408
depois respondeu à colega de serviço: Lembra do que falei durante o almoço? Eu já sabia que isso
ia acontecer. Agora é o seguinte, eles terão que dar um jeito. Não depende de nós. Débora disse mais
alguma coisa e ele respondeu: Eu já sei. Não estressa! É assim mesmo. Após pequena pausa
concluiu: Débora, segunda-feira conversamos. Creio que isso é só. Mais alguns segundos ficou
ouvindo em silêncio e, por fim, retribuiu: Tchau! Obrigado. Outro!
Raquel, que parada à porta ouvia a conversa, sentia-se esquentar. Enrubescida de raiva, não disse nada,
mas Alexandre percebeu que seus modos, antes delicados e generosos, estavam automáticos e frios. O
ciúme a envolvia sem que admitisse. Emburrada, Raquel pegou no braço do marido como se fosse sua
propriedade. Não admitiria que ele tivesse outra mulher pensava. Poderiam estar casados só no papel,
mas ela era sua esposa e, quando ele a pedira em casamento, a proposta de que vivessem daquela forma
partira dele.
Após pegarem Rosana, a cunhada percebeu que a esposa de seu irmão estava diferente. Perguntando o
que estava acontecendo, Raquel informou que não havia nada.
Já no Centro, novamente Raquel agarrou novamente no braço de Alexandre que não entendia nada e
deixava acontecer. A palestra evangélica daquela noite fora: "A indissolubilidade do casamento, traição e
divórcio". Ao saírem do Centro, Raquel somente falou sentida e em voz baixa para o marido:
Foi ótimo você ter vindo hoje. Essa palestra foi pra você!Alexandre olhou para sua irmã e, sem
entender nada, gesticulou
com os ombros de forma singular e seguiu de braços dados com a esposa. Eles levaram Rosana para casa
e, chegando no apartamento, Raquel agia do mesmo modo, sem sorriso e sem palavras.
Após um banho e o jantar, Alexandre foi brincar com jogos em seu computador; decidira não perguntar nem
dizer mais nada ou tentar saber o que se passava, pois ela, sem conversar com ele, foi assistir àtelevisão
mesmo não prestando atenção no que via. Vencido pelo sono, o marido foi até a sala e avisou:
Amanhã temos que levantar cedo. Você não vai dormir agora?
409
Não respondeu ela. Pode ir.
O que houve, Raquel? Você não é assim perguntou calmo.
Nada. Não houve nada murmurou ela sem expressão.Contrariado com aquela atitude da
esposa, ele pediu:
Vê se não demora pra ir dormir. Amanhã temos que sair cedo daqui.
Ela não disse mais nada e o marido foi se deitar. Bem mais tarde, Alexandre acordou e Raquel não estava
no quarto.
O que foi dessa vez?! perguntou quase irritado.
Levantando-se, foi até a sala à procura da esposa e encontrou o televisor desligado e Raquel encolhida
dormindo no sofá. Alexandre acendeu a luz e a chamou com jeito brando:
Raquel, acorda. Ela se mexeu e ele completou ao vê-la despertar: O que está acontecendo?
Vamos conversar, Raquel. O que foi?
A esposa se sentou e disse após alguns segundos:
Quem é Débora?
Por ser uma pessoa lógica e racional, Alexandre rapidamente entendeu que tudo aquilo era por causa do
telefonema. Raquel estava com ciúme. Paciente, perguntou com jeitinho:
Você não vai me dizer que toda essa cena, que vejo desde a horaque cheguei, é por causa daquele
telefonema, vai?
Ela o encarou firme e tornou a perguntar, agora veemente:
Você ainda não respondeu. Quem é Débora?
Ela trabalha comigo. Por quê? explicou com muita calma.
Ela ligou pra cá umas três vezes antes de você chegar e não quisdizer o que era.
Raquel, você está com ciúme disse segurando o sorriso e sentindo-se até satisfeito.
Não estou com ciúme! Só acho que você deveria me respeitar.
O que eu fiz de errado, Raquel? perguntou com humildade.
Você almoçou com ela, não foi?!
Sim. Por quê? tornou novamente demonstrando submissão.Raquel se irritou e levantou dizendo:
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Se antes você almoçava com uma e com outra, tudo bem. Mas agora é um homem casado. Isso
não fica bem!
Raquel, não há nada de mais. Pare com isso.
Foi você quem começou! retrucou aumentando o volume davoz.
Ah! Como eu que comecei? indagou ainda tranquilo, quase irônico.
Você saiu com essa tal de Débora, deu o telefone da sua casa,ainda liga daqui e diz, na minha
frente, que na segunda-feira conversacom ela!
Mais sério agora, percebendo que Raquel já passava dos limites e perdia o bom senso, ele pediu gentil:
Raquel fale mais baixo. Não estamos brigando. Em seguidacontinuou explicando com baixo
volume na voz: A Débora me ligoupor causa de assuntos do serviço.
Por que antes de desligar você agradeceu e disse "Outro"? "Outro" o quê?
Contrariado, mas mantendo a paciência, Alexandre explicou:
Ela me desejou bom fim de semana e me disse: "Um abraço!". Eudevo ter dito: "Obrigado",
"Outro". Creio que foi isso. Após esse esclarecimento, Alexandre mais sério, pediu: Vamos parar com
essa história. Agora é tarde. Vamos dormir, tá?
Vou ficar aqui! afirmou resistente.
Ponderado, mas impondo na voz certa insatisfação, ele pediu novamente:
Raquel, vá dormir lá dentro, por favor.
Já disse, vou ficar aqui! Não vou dormir naquele quarto com você!Ele se sentiu esquentar. A
esposa agora, realmente, esgotara-lhe toda
a paciência. Alterado, perdeu o controle e irritou-se dizendo:
Ah! Você vai dormir lá, sim!
Agora nervoso, dominado por uma atitude inesperada, até para ele mesmo, Alexandre segurou firme no
pulso de Raquel e a levou para o quarto. Forçando-a se sentar na cama, fechou a porta e,
voltando-se
411
d para ela, falou bem baixo, porém tom firme e demonstrando-se magoado:
Como pode me acusar de traição assim?! Pensa que eu sou o quê?!Vamos parar com essa história
porque eu não sou moleque. Se tiveralguém aqui agindo como tal, é você!
Nesse instante a esposa deixou-se dominar por um sentimento que jamais tivera. Furiosa e insana, Raquel
se levantou e deu-lhe um tapa, que foi detido rapidamente antes de acertá-lo, pois Alexandre segurou seu
pulso por algum tempo no alto, usando certa força ao apertá-lo sem perceber. Incrédulo, olhou-a firme nos
olhos e a empurrou com força sobre a cama.
Raquel ficou assustada, ela mesma não se reconhecia. Com a respiração ofegante, olhos brilhando e
queixo trêmulo, ela o encarava sem entender a si própria; estava atordoada.
Alexandre, sério e decepcionado, impostou a voz com veemência e falou vagarosamente, em baixo volume,
olhando-a firme nos olhos:
Nunca mais faça isso. Entendeu? Nunca mais. Eu posso tolerartudo de você, Raquel, menos uma
agressão, uma mentira e uma traição.Casei-me disposto a tudo, mas a tudo que fosse bom para mim e
paravocê, também. Além do mais, Raquel, sua atitude diante desse simples telefonema foi a de uma
criança, e eu pensava ter me casado com umamulher. O único pedido que te fiz, como marido, foi que
dormíssemos na mesma cama, nada mais. Ele fez breve pausa e depois, ainda olhando-a com firmeza,
continuou: Não traí você, nem em pensamento. Não quero e não vou traí-la, apesar de ter uma grande
razão para isso, você sabe.
Nesse momento, Raquel murmurou:
Podemos pedir anulação do casamento se...Interrompendo-a, o marido quase gritou, dizendo:
Pró inferno a anulação! Você não sabe o que está dizendo!Ela começou a chorar e, com a voz
abafada, justificou:
Eu não sei por que agi assim. Perdoe-me, por favor.Firme e ponderado, ele prosseguiu:
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Como eu ia dizendo. O único pedido que te fiz foi para que dormisse aqui, mas antes disso eu falei
que jamais iria forçá-la a nada que não quisesse. Por isso, Raquel, se eu sou tão repugnante assim
paravocê, pode ir dormir na sala ou onde você quiser, pois por nada desse mundo vou deixar de dormir na
nossa cama.
Ela entrou em crise de choro. Encolhendo-se, Raquel escondia o rosto, abafando os soluços involuntários e
compulsivos. Alexandre, incrédulo e magoado com o acontecido, sentou-se na cama, apoiou a fronte nas
mãos e os cotovelos nos joelhos aguardando que ela decidisse algo. Passados longos minutos, Raquel o
segurou pela blusa do pijama e o fez olhar para ela. Encarando-o com humildade, ainda com os olhos
úmidos,
a face rubra e a voz rouca, entrecortada por soluços, ela pediu:
Pelo amor de Deus, me desculpe, Alexandre. Eu não sei por quefiz aquilo. Você é a última pessoa
no mundo a quem eu queria magoar.
Alexandre ficou olhando para ela e permaneceu em silêncio. Tudo o que precisava, já havia dito.
Puxando o esposo em sua direção, tentando mover seu braço forte sobre si, Raquel parecia implorar por
um abraço. A princípio ele permaneceu sério, firme, inamovível, mas não resistindo ao desejo que o
dominava, Alexandre se curvou, ajeitou-se ao seu lado, tomou-a em seus braços envolvendo-a, acariciou-a
com extremo carinho e a beijou apaixonado, por longo tempo, como sempre quis.
Percebendo seu medo, pois em dado momento Raquel o segurou espalmando a mão em seu peito, ele se
deteve, olhou-a por alguns segundos e abraçando-a ainda ficou imóvel. Depois, escondeu o rosto em seu
ombro, apertando-a contra si. Alexandre experimentava uma amargura que nunca sentira. Afastando-se
pediu brandamente:
Vamos dormir. Precisamos acordar cedo.
Você me perdoa? perguntou a esposa com voz chorosa.Alexandre se aproximou, segurou seu
rosto, beijou-lhe e disse:
Eu te amo, Raquel. Não posso viver sem você. Quero que, antes de qualquer coisa, sejamos
amigos. Após pequena pausa, continuou: Confie em mim. Quando tiver dúvidas, venha me questionar,
eu
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sempre estarei disposto a ouvi-la, mas sem agressões com palavras ou gestos.
Eu não sei o que me deu. Como eu pude... Encarando-o,pediu novamente parecendo implorar:
Desculpe-me?
Claro! respondeu com voz terna e um sorriso piedoso.Raquel ficou olhando-o e acariciou-lhe o
rosto sem dizer mais nada.
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Capitulo 19
Três corações entrelaçados
O dia seguinte anunciou-se com lindos raios solares, cuja claridade parecia diferente, envolvendo a todos
de maneira muito especial. Após duas horas de viagem, Raquel e Alexandre chegaram ao educandário
onde Bruna Maria estava. Eles conheceram o lugar, que fora apresentado por uma freira bem gentil e, em
seguida, foram conduzidos até um pátio bem arborizado nas laterais e revestido no centro por lindíssimo
gramado salpicado de florzinhas miúdas. A freira e uma assistente social faziam companhia ao casal que,
de longe, passaram a ver outra irmãtrazendo pela mão uma pequena garotinha.
É ela?! perguntou Raquel ansiosa.
É sim confirmou a freira sorridente.
A esposa, sem perceber, apertava o braço do marido e ele, sorridente, afagava-lhe a mão.
Em dado momento, Raquel, soltando-se do braço forte de Alexandre, apressou-se em direção da filha para
encurtar a distância que parecia longa.
A pequena garotinha de lindos cabelos dourados, compridos e com belos cachinhos, que balançavam ao
andar, trazia uma doce alegria no rostinho tranquilo. A freira que a conduzia soltou-lhe a mão e Bruna
correu na direção da mãe. Raquel, com lágrimas a correr pela face, ajoelhou-se à espera de um abraço.
Próxima, a menina parou sorrindo, afagou-lhe o rosto com sua pequena mãozinha e disse com voz doce e
delicada:
Você é minha mãe? Eu sabia que ia vir me buscar, mamãe. A tia me disse.
Raquel a abraçou forte, apertando a filha contra si, enquanto chorava muito. A menina começou a chorar
também e a mãe teve que procurar se conter para não assustá-la.
Tudo bem, filhinha. Não chore, não. Chorei porque estou feliz dizia com sua doçura peculiar.
Raquel a olhava sem se cansar, passando-lhe a mão no rosto e nos bracinhos como quem não
acreditassenaquele momento. Você está bem, filhinha?
To! Eu sabia que você vinha.
E! Quem disse? perguntou Raquel.
A tia. Em seguida a menina questionou: Por que você não veio antes?
Porque a mamãe não pôde. Tive problemas. Um dia conversaremos sobre isso, tá bom, filhinha?
respondeu a mãe que já esperavapor essa cobrança. Agora, meu bem, vamos aproveitar esse
momento, tá certo?
Bruna, com seu sorriso ingénuo e delicado, perguntou olhando na direção de Alexandre, sem que Raquel
esperasse:
Mamãe, e o papai, não vai me abraçar?
Ao ouvir isso, Alexandre apressou-se na direção de ambas, ajoelhando, como Raquel, ao lado da
pequenina. Ele também não conseguia conter as lágrimas. Estendendo-lhe os braços, a menina falou
meigamente:
Você é igualzinho no sonho.
A emoção não os deixou prestar atenção no que Bruna falara. Em pranto, Alexandre abraçou a filhinha,
enchendo-a de beijos e carinho.
Liberto das amarras da própria consciência, ele, emocionado, recebia agora a filha verdadeira que, num
passado distante, não reconhecera. O sentimento intraduzível do encontro oportuno agora era registrado
com ideais sublimes. Eles jamais esqueceriam tanto júbilo.
Poucas palavras foram trocadas, porém não se pode dizer o mesmo quanto às emoções. Seus corações se
entrelaçaram na mesma harmonia, felicidade e esperança.
O horário se escoara rápido. Bruna Maria chorou ao ter que deixá-los, mas recebeu promessas de visitas.
Raquel ficou aborrecida pela separação. Abraçada ao marido, ela não se importava com os demais e
chorava.
416
Irmã Eunice, que conhecia toda a vida de Bruna Maria, em dado momento comentou, na frente do casal,
com a assistente social que acompanhava o caso:
Como Deus coloca Suas mãos na hora certa. Sempre rezamospara que Bruna Maria encontrasse
uma família e, quando ela foi levadapelo casal Ribeiro, não queria ir. Dizia que gostava deles, mas
sempre nos falava que seus pais viriam buscá-la em breve.
Alexandre ficou atento à conversa, interessando-se, e a assistente social completou:
É verdade! Quando perguntamos quem disse que os pais viriam buscá-la, ela respondia que tinha
sido um anjinho.
A freira riu e comentou:
A Bruna, por muitas vezes, nos descreveu o senhor. Ela dizia que se parecia com a mãe, mas
tinha os olhos da cor dos seus.
De onde ela tirava essas ideias? perguntou Alexandre.
Ela dizia que sonhava. A cada manhã, quando sonhava com o senhor, Bruna acordava contente e
animada, pois comentava que haviaconversado com o pai e ele dissera que viria até aqui, para que
esperasse só mais um pouco e fosse uma menina boazinha. Sabe, sempre acreditamos que era coisa da
cabecinha dela. Conhecemos as crianças muito bem. Mas confesso que estou impressionada, ela o
descreveu direitinho.
A assistente social ainda completou:
Há pouco tempo, depois que foi retirada do casal Ribeiro, poistivemos de interferir, Bruna estava
triste, muito quietinha, então eu fuiconversar com ela. Pensei que estava assim por causa da adoção.
Daí,perguntei o que era, foi quando ela me respondeu que estava triste porque não estava mais sonhando
com o pai. Disse que ele estava doente.
Alexandre ficou surpreso, mas sorriu e revelou:
Mas eu fiquei doente mesmo.
Ficou?! indagou a freira, surpresa.
Ficou, sim respondeu a assistente na vez de Alexandre.
O que o senhor teve? tornou a irmã.
Tive um problema cardíaco e precisei ficar internado.
417
Eu soube disso quando peguei o caso, dias após conversar com a Bruna disse a assistente.
Fiquei impressionada! Agora mais aindapor vê-la recebê-los tão bem e se identificando tão rapidamente
comvocês. Isso é difícil. É como se os conhecesse há tempos.
Raquel ficou calada, não sabia o que dizer.
Depois de conversarem mais, agendando novas visitas, o casal se retirou contrariado por ter que respeitar
as normas e deixar Bruna ali.
Na viagem de volta, Raquel não dizia nada. As vezes sorria de leve e com o olhar perdido, parecendo estar
recordando os poucos momentos que tivera com a filha. O marido só a observava, permanecendo em
silêncio também. Pouco eles conversaram.
Chegando ao apartamento, Alexandre sentou-se no sofá ao lado de Raquel e disse:
Não falei que a Bruna se parecia com você?! Após rir, comentou orgulhoso: Mas tem os meus
olhos! Viu?!
Repleta de fortes emoções, Raquel não conseguiu se conter e o abraçou forte, não tendo palavras que
expressassem seus sentimentos. Mais tarde, quando estavam deitados, a esposa o fitou e disse:
Obrigada por tudo, Alex. Eu amo você.
Alexandre sorriu e estendeu-lhe o braço, puxando-a para junto de si. Raquel o beijou, acomodou-se em seu
ombro, abraçando-o pela cintura, e após minutos adormeceu.
Alexandre não conseguiu pegar no sono. Ele estava emocionado e se sentia feliz só por ter aquele simples
gesto de carinho da esposa. Por ter reconhecido a filha.
No dia seguinte, na casa de seus pais, Alexandre contava para todos:
Bruna é a cópia da Raquel, mas tem os meus olhos!
Vocês tiraram fotos, não foi? perguntou dona Virgínia.
Sabe, mãe, levamos a máquina, só que... Puxa! Foi tanta emoção que esquecemos explicou o
filho embaraçado e arrependido.
418
Exagerada em suas expressões para brincar com o irmão, Rosana exclamou:
Egoísta! Cachorro! Traidor!!! Como você faz isso com a gente?!
Estou ansioso! Quero conhecê-la! disse o senhor Claudionor.A conversa seguiu e Raquel teve
que satisfazer algumas curiosidades
da sogra, ambas ficaram conversando e tecendo planos, enquanto Rosana, alegando não se sentir bem, foi
para seu quarto, e Alexandre a seguiu. Ao entrar no quarto da irmã, ele perguntou:
O que foi, Rô? Dor de cabeça outra vez?
É... Estou tão enjoada ultimamente. Sabe, não venho me sentindo muito bem.
Precisa ir ao médico, Rô. Isso não é normal. O irmão riu eperguntou, com jeito maroto:
Huuum! Enjoo, é?!... Não seria, por acaso, o meu sobrinho o causador desse mal-estar?
Rosana riu gostosamente e respondeu:
Que pena! Não é, não! Já pensou se fosse?
Nem brinca, Rô. A mãe morre!
Morre nada. O chilique seria só no momento da notícia. Depois...
É melhor você procurar um médico.
Isso passa, Alex. É por causa da temporada de provas. Foi muita pressão. Tem dia que dá
vontade de matar um professor que tenho lá,sabe! Mas nem vale a pena relembrar. Após a explicação
ela mudou de assunto perguntando: E você, como está?
Ah! Nem te contei! A Raquel teve uma crise de ciúme. Ele revelou à irmã, sua confidente.
Jura?! perguntou a moça interessada.
Ela atendeu uma ligação que era pra mim, era do serviço, só que amulher não falou direito quem
era e a Raquel ficou "louca da vida" comigo.
Ah! Que legal! vibrou Rosana animada.Alexandre fechou o sorriso e revelou:
Na hora não foi tão legal assim. A Raquel foi dormir na sala. Eu fuifalar com ela e... Sabe, no
começo eu até estava achando graça, mas depoisela começou a perder o bom senso. Acabei brigando e
até tive que falar alto.
419
Ele deteve as palavras e a irmã perguntou:
O que foi, Alex? Você não a maltratou, né?
Puxa, Rô. Fiquei tão nervoso! Ela me acusava ostensivamente.Tive que dizer algumas coisas e
acabei chamando-a de criança. Pensativo, ele completou: Eu não esperava aquela reação da
Raquel.Confesso que me surpreendi e até agora estou incrédulo.
O que ela fez?
Alexandre encarou Rosana e revelou:
Você acredita que a Raquel tentou me dar um tapa no rosto?
Um tapa?! A Raquel?! exclamou perplexa e boquiaberta.
A Raquel, sim. Sabe, Rô, parecia que não era ela.
Meu Deus! Eu nem acredito nisso espantava-se a irmã incrédula, parecendo assombrada.
A Raquel só poderia estar envolvida.
Sei lá continuou Alexandre. Isso não pode ser desculpa.Creio que todo mundo precisa ter
bom senso e ser responsável pelo queestá fazendo. Ela se transformou.
Acertou você?
Não. Quando ela ergueu a mão fui rápido e segurei seu braço...Depois fiquei até com medo,
porque me deu uma coisa na hora... Hoje eu fui olhar e vi que apertei tanto seu pulso que ficou até marcado.
Nomomento em que segurei seu braço eu a encarei firme e me senti irracional. Depois a joguei, com um
empurrão, sobre a cama e falei ummonte de coisa. Puxa, Rô, me senti tão mal... confessou o irmão
emtom de lamento.
E ela?
Primeiro falou em anular o casamento. Daí eu dei um grito...Nem sei o que falei direito. Por fim,
acabamos nos entendendo.
Preocupada, Rosana lembrou:
Agora fica mais fácil, Alex. Vão a um psicólogo. Vocês precisam de ajuda profissional.
Eu sei. Mas sabe por que estou adiando? Sem esperar pela resposta ele completou: Para
não restar nenhuma complicação quepossa prejudicar a guarda da Bruna. Podem querer dizer que ela não
420
tem equilíbrio emocional por estar fazendo terapia. Sei lá... Tenho medo de que qualquer coisa a
prejudique.
Só não gostei de ela erguer a mão para agredi-lo. Raquel não é
disso, argumentou Rosana
pensativa.
Também eu fui muito duro com ela.
Mesmo assim, Alex. Qualquer tipo de agressão inclina para a falta de respeito.
Eu sei. Pensei nisso também. Eu disse a ela que não vou tolerar isso novamente, que posso
aceitar tudo, menos agressão, mentira etraição.
E ela?
Chorou pra caramba! Alexandre, agora descontraído, expressou um sorriso de satisfação e
contou: Sabe que, depois, ela estavaencolhida sobre a cama, eu sentado e bem quieto, estava
magoado, decepcionado. Aí, sem que eu esperasse, a Raquel me pediu desculpas eme puxou para beijá-
la.
Sério?!
Sério! confirmou o irmão com ar de felicidade.
E você?!!!
Ah! Eu a abracei e a beijei como nunca tinha feito antes. Só pareiquando a percebi nervosa,
tensa. Tive que respeitar seus limites. Mas foitão... E nessa noite, devido a toda a emoção que viveu por
ver nossa filha, já estávamos deitados e ela veio me agradecer. Eu estendi-lhe
o braço e, sem que eu
esperasse, ela me beijou, acomodou-se em meu ombro e dormimos abraçados.
Rosana abraçou o irmão com carinho procurando lhe passar incentivo, ao dizer:
Vai dar tudo certo, Alex! É questão de tempo. Aconteça o queacontecer, nunca traia sua mulher.
Jamais faça isso.
Não, Rô, nunca pensei em traição. Mesmo tendo fortes motivos pra isso, não é nada fácil
suportar, mas não vou traí-la. Eu nunca acreditei que fosse me casar, mas sempre pensei que, se um dia o
fizesse,jamais trairia minha esposa.
421
Isso mesmo. Não há coisa pior do que ter a consciência pesando quando se dorme ao lado de
alguém. O marido ou a esposa que faz isso se exibe como criatura pobre de espírito e de baixa moral. Para
mim,traição é uma coisa repugnante.
Alexandre sorriu e falou:
Fique tranquila, além de amar a Raquel, eu me amo, também. Aspessoas que traem é porque não
encontram ou não têm, por si mesmas,respeito, amor e dignidade.
A irmã o abraçou com carinho. Realmente Alexandre e Rosana eram grandes confidentes. Era bela a
amizade que reinava entre eles. Rosana, com seu coração bondoso, procurava orientá-lo sempre para o
bem e apoiá-lo em todas as ocasiões.
Com o tempo o quarto de Bruna estava sendo preparado no apartamento de seus pais e a menina já fizera
algumas visitas com a permissão do juiz. Raquel estava maravilhada e experimentara uma alegria que
jamais pensara em ter. Ao dividir com Alexandre as alegrias e as esperanças que tivera com Bruna Maria,
Raquel se aproximava do marido sem perceber. Deixando-se ficar em seus braços, recebia seus carinhos
sem aquela tensão que antes apresentava. Eles escreveram para a mãe de Raquel, e ela avisou que
estava bem e havia se casado com um homem muito bom. Contou à mãe que havia superado muitas
dificuldades, mas agora sua vida era maravilhosa.
Raquel falou sobre Bruna Maria e que graças à ajuda de Alexandre passara a olhar a menina como sua
filha, como parte dela mesma, sendo a filhinha alguém que necessitava do seu amor, do seu afeto e da sua
atenção. Ela reconheceu que a pequena querida era uma dádiva sagrada que Deus lhe confiara aos
cuidados.
Arrependida pelo ato do abandono no passado, aceitara a ajuda de Alexandre e de seu pai, senhor
Claudionor, que cuidavam de tudo para que recuperasse a filha. Alexandre intitulava-se pai de Bruna Maria
e
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que ninguém dissesse o contrário, pois ele assumira sua paternidade. Raquel ainda disse à mãe que Deus
olhara por ela e que todas aquelas experiências de dor e sofrimento que vivenciara no passado estavam
sendo substituídas por alegria e amor verdadeiro. Ela lamentava a ausência da mãe, reclamando da
distância e da saudade.
Dona Tereza, ao ler a longa carta, interrompia seu feito pelas fortes emoções e para olhar, inúmeras vezes,
a foto de Raquel, Bruna e Alexandre. A mulher agradecia a Deus por sua filha estar tão bem, ao mesmo
tempo que deixava o orgulho dominá-la, pois, tinha em sua mente o êxito da filha como uma forma de
vingança àqueles a quem não queria bem. Dona Tereza possuía um coração repleto de mágoa e ódio,
transformando-se agora em uma criatura cruel, tal qual aqueles que, de alguma forma, lhe ofenderam no
passado.
Mais uma vez a mulher procurou pelo sogro que, na cadeira de rodas, fora deixado na larga varanda da
Casa-Grande, praticamente abandonado à visão da linha do horizonte e aos próprios pensamentos, que
começavam a lhe cobrar algumas atitudes que praticara no passado.
Boleslau! chamou a nora com voz irônica. Veja, meu sogro, olhe a foto da minha Raquel! Esse ao
lado é o marido. Um homem de verdade! Após pequena pausa, em que segurava ainda a fotografia na
frente do homem, ela continuou: E sabe quem é essa guria aqui? Bonitinha, loirinha e de olhos azuis?
É
a Bruna Maria. Essa menininha linda é tua bisneta e também tua neta! Ela nasceu aos nove meses após tu
expulsar a Raquel desta casa maldita, depois que teu filho imundo a brutalizou! Ela silenciou, depois
prosseguiu: Eu me lembro muito bem do tal namoradinho, com quem vocês disseram que a Raquel tinha
fugido e se deixado bolinar. Ele era um negro! Bah!!!
Ele era um piá, era só coleguinha de escola da Raquel, ajudava-a com compras quando ela ia buscar algo
para mim, carregava as coisas e isso até gerou um ciúme nos irmãos. Mas, sabe, meu sogro continuava
Tereza com voz irônica , não sou entendida, não, mas se essa guriazinha fosse filha daquele negrinho,
ela não seria assim, não. Tu não achas?! Chê!!!
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Andando vagarosamente em torno da cadeira de rodas, propositadamente, Tereza batia o salto nas tábuas
do assoalho de madeira provocando um som irritante que marcava o compasso de seu caminhar, às vezes
sobre tábuas que rangiam estridentes como um gemido. Tereza, agora, falou sem expressões graves na
voz:
Sabe, Boleslau, o teu filho, Ladislau, é um verme. Raquel é filha dele, tu sabias? O homem
arregalou os olhos claros e tentou murmurar algo, mas Tereza não se importou. Continuando: Após ter
traído omeu marido Cazimiro, eu quis morrer! Quando eu soube que tinhaengravidado do irmão dele, não
tirei a criança porque, em confissão, ovigário da paróquia me disse que esse era um pecado maior do que o
datraição. Da forma como ele falou, eu tive medo e deixei a Raquel nascer.Só que, pela segunda vez,
enganei o Cazimiro, dizendo que aquela criança era dele, que nasceu de sete
meses. Meu esposo, em vida,
nunca soube.
Em sua cadeira de rodas, o sogro ficou perplexo, assombrado com o que ouvia, mas não conseguia se
manifestar. Boleslau estava preso, àmercê do que a nora lhe propunha com ofensa e maus-tratos. Tereza
parou. Com o olhar perdido no horizonte, trazia a visão embaçada pelas lágrimas que se formavam, pois
narrava ao sogro revelando, pela primeira vez, toda a sua verdade.
Certa vez continuou Tereza , Raquel era guria ainda e me reclamou dos carinhos estranhos do
tio, que era seu pai. Fui falar com ele e deixei, naquela conversa, uma suposta indicação de que Raquel
poderia ser sua filha. Ele nunca me perguntou a verdade, era um covarde!!! Mas eu sei que Ladislau
entendeu. Porém, Boleslau, o crápula e asqueroso do teu filho não teve moral, não foi homem, pois só um
animal faria o que ele fez! Barbaridade!!! Quando Raquel, naquele dia, chegou aqui, bem aqui ó! disse ela
apontando para os degraus que desciam da varandaao terreiro , toda machucada e chorando, dizendo o
que aquele verme tinha feito com ela, tu não acreditaste! Miserável! Velho desgraçado! Tu bateste "de couro"
na minha filha e a tocou daqui como um cão, chê!!!Fiquei tão desesperada e em choque que não sabia o
que fazer. Nem tive a iniciativa de ir junto com ela, o que deveria ter feito.
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Tereza não percebeu, mas o sogro trazia lágrimas correndo em seu rosto enrugado e torcido. Como um
desabafo, ela continuou:
Tempos depois, tu nem sabes, Raquel me procurou e contou queestava morando nas ruas e que
achava que estava grávida. Pensei que eufosse morrer. Passei mal e me afastei de Raquel. Bah! Miserável
que fui! recriminou-se. Mais uma vez eu não tive coragem de ajudar minha filha. Eu a entreguei à
crueldade do mundo. Sabe-se lá o que aconteceu depois.
O silêncio se fez por longos minutos, mas logo Tereza continuou:
Sabe por que tudo isso aconteceu, velho miserável? Foi porque tucriaste o teu filho ensinando-o a
valorizar a masculinidade, ensinou-o que para ser homem deveria bolinar e dominar uma mulher. Foi
tu,velho desgraçado, que ensinaste aquele verme a ser sujo, imundo, nojento! gritou Tereza impiedosa.
A nora silenciou um pouco e, observando as lágrimas que corriam no rosto de seu sogro, falou impiedosa:
Chora, desgraçado! Arrependa-te de tudo o que fez pra mim e praminha filha. Foi esse o resultado
de tudo o que tu ensinaste pro teufilho! Além de conquistar a mulher do irmão, ainda violentou a
própriafilha. Tereza estava furiosa e cuspiu no chão com semblante enojado.Com mágoa no olhar, ela
ainda lembrou: Um dia, o Tadeu, meufilho, estava com o piá dele no colo, o guri menor, e perguntando
onde ficava "isso" e "aquilo", depois disse ao guri que tinha que ser macho!Chê!!! E tinha que mostrar que
era homem! Num minuto de loucura,eu levantei e dei um tapa na boca do Tadeu na frente de todo
mundo!Por ser criado pra me respeitar, Tadeu não falou nada. E eu disse que ohomem que "fez o que fez"
com a irmã dele tinha sido criado daquele jeito para mostrar que era macho! Aquilo que estava fazendo não
iriafirmar o caráter do guri. Ele estava era pondo em dúvida se o piá erahomem ou não. Barbaridade!
Sabe, Boleslau, eu não posso só culpar aquele verme por tudo o que ele fez para minha filha, eu culpo
também a ti, que o educou. Deus foi tão justo que deu à minha Raquel uma filha perfeita e, como castigo, o
imundo
425
do Ladislau perdeu as três gurias dele naquele acidente em que perdeu uma perna e metade da outra,
mas viveu para saber que matou as gurias. Agora, como uma louca, a mulher dele o inferniza o tempo todo
dizendo que é ele o assassino das filhas. Tereza riu e anunciou: A minha neta tem um pai de
verdade, agora. Minha filha tem um marido digno! Homem mesmo! Tanto que assumiu a filha do outro. A
família dele a trata bem! Eu sei disso porque o Marcos me contou. Ele disse que a família do marido a trata
tão bem que nunca viu igual. Encarando o sogro, ela ainda disse com olhar vingativo: Deus é tão bom
que te prendeu nessa cadeira só para me ouvir pelo resto da tua vida, porque tudo o que tu
me fizeste
padecer, tu não vai lembrar só quando morrer e for pro inferno, não. Vai começar a lembrar desde já e
começar a pagar agora enquanto vive aí. E lembre-se, velho, que aquela guria que tu espancaste tantas
vezes e deixaste sem teto, a Raquel, é a única filha de Ladislau e tem o direito de metade desta fazenda, e
ainda a outra parte que eu tenho o direito de herdar para os meus filhos. Ela herdará mais da metade, mais
do que os irmãos, chê!
Tereza, quando mais nova, chegou a apanhar de seu sogro por não cumprir suas exigências com algumas
tarefas ou até costumes da família. Era comum o forte e autoritário Boleslau agredir os filhos, a mulher, as
noras e os empregados com brutalidade. Seria difícil Tereza perdoá-lo, pois se sentia muito magoada.
Apesar de tudo, nada justificava aquela tortura emocional que ela, erroneamente, praticava contra o ancião,
agora indefeso. Um erro não justifica o outro e Deus não nos faz porta-vozes da Sua Justiça.
Tudo acontecia muito rápido; Alice e Valmor já enfrentavam sérios problemas. Ele havia sido demitido e
Alice, não satisfeita em ter que praticamente sustentar a casa sozinha, reclamava
constantemente da
situação. A idade do companheiro estava sendo um empecilho para ele arrumar novo emprego, e eles
ainda tinham que se dispor para as audiências do processo de divórcio que Marcos e a esposa de Valmor
reivindicaram.
426
Nilson ainda estava preso. Somente o pai ia visitá-lo, Alice nunca se dera a esse trabalho. Marcos sentia
que o filho estava arrependido do feito, uma vez que na prisão enfrentava todo tipo de humilhação e maus-
tratos. Agora Nilson reconhecia a importância de se ter uma boa conduta e moral. O pai aproveitava os
períodos de visita para lhe falar sobre a honestidade e o valor de uma vida digna. Nilson prometera-lhe que
agiria melhor quando saísse dali. Marcos, por sua vez, dava-lhe todo o apoio a seu alcance.
Chegara o mês de dezembro e todos, muito alegres, se preparavam não só para as festas de fim de ano,
mas também para o primeiro aniversário que Bruna passaria com a família. Pelo fato de a menina fazer
aniversário na véspera do Natal, foi decidido que sua festa seria feita um dia antes, na casa dos pais de
Alexandre, onde tudo estava sendo preparado com primor, pois se comemorassem no dia correto
provavelmente poucos amiguinhos compareceriam devido à reunião de família nesse dia comemorativo.
Dona Virgínia, sempre propensa a emotividade para agradar os netos, não agia diferente com Bruna, e se
encarregara de convidar as crianças vizinhas, filhos e netos dos amigos.
No dia tão esperado, tudo estava muito animado. Alexandre tinha que ir, vez ou outra, até o portão receber
os convidados que chegavam. Para sua surpresa, em uma das vezes em que isso se dera, Sandra, sua ex-
noiva, surgiu repentinamente logo atrás de um convidado e, após entrar, disse:
Há muito eu quero falar com você. É importante.
Raquel precisava de Alexandre para algum detalhe e, percebendo sua demora ao ir receber algum
convidado, decidiu ir atrás dele. De longe viu o marido com uma moça, mas só ao se aproximar reconheceu
que era Sandra, a ex-noiva, e só ela falava, ficando ao lado de Alexandre, Raquel ouviu:
Essa é sua mulher?
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O que está acontecendo aqui? perguntou Raquel séria, mascom modos simples e educados.
Alexandre mantinha-se sisudo e em total silêncio. Mas, voltando-se para Raquel, Sandra se apresentou
estendendo-lhe a mão e dizendo:
Olá, Raquel. Meu nome é Sandra. Desculpe-me, mas há algumtempo eu venho tentando falar com
o Alex. Para mim, isso é muitoimportante, tenho muito para esclarecer.
Pronunciando-se pela primeira vez, Alexandre determinou com voz grave:
Quero que vá embora daqui. Não temos nada para conversar. Após alguns segundos, ele
disse em voz baixa e pausada. Só não acoloco para fora porque não quero estragar o aniversário da
minha filha.Por isso, exijo, gentilmente, que vá embora!
Não posso tirar a sua razão. Depois de tudo o que fiz, você temtodo o direito de me desprezar.
Fora daqui...! sussurrou Alexandre intimando.
Raquel, ponderada, interferiu firme falando baixinho para não atrair a atenção dos outros:
Alexandre, calma! Virando-se para a ex-noiva do marido, Raquel pediu com delicadeza:
Sandra, por favor, não sou contra que conversem, mas será melhor que esse esclarecimento ou ajuste de
contas aconteçaem outro momento, não agora. Veja, temos muitos convidados, não ficariabem. Eu acredito
que você é educada, tem bom senso e pode me entender.Prometo que terá essa oportunidade, mas num
outro dia, por favor.
Sandra, sem mais nenhuma palavra, sorriu com simpatia para Raquel, ao dizer:
Eu a entendo, sim. Obrigada, Raquel. Desculpe-me, não haviapensado nisso devido a minha
ansiedade em conversar com ele.
Sandra se foi após se despedir. Alexandre fechou o portão, que ficava nos altos muros daquela residência,
encostou-se nele, virou-se para a esposa e perguntou:
O que será que fiz para essa criatura?! Já não basta!
Você está bem?
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Estou ótimo. Isso não vai estragar este dia.
Alexandre a abraçou e eles voltaram para a festa, que estava muito divertida com os enfeites, brinquedos e
os animadores contratados.
À noite, Bruna Maria estava exausta e os pais mais ainda.
Raquel escondia seus pensamentos do marido, mas estava ansiosa para saber o motivo que levava Sandra
a procurá-lo com tanta insistência. Pensou em entrar em contato com a moça, mas o que diria? Raquel
resolveu não procurar detalhes desnecessários naquela hora, afinal, ela e Alexandre estavam bem e não
precisavam de problemas. Ficaria tranquila e, quando tivesse oportunidade, tentaria conversar com Rosana
a respeito daquilo. Logicamente a cunhada saberia orientá-la. Após cuidar da filha, e vê-la dormir
tranquilamente, ela procurou pelo marido, que saíra do banho hátempos e se largara sobre a cama de
qualquer jeito. O quarto na penumbra e o cansaço definitivamente facilitaram seu sono rápido e pesado.
Com sua voz suave Raquel o chamou:
Alexandre, deita direito, meu amor.
Ele resmungou, sem se mexer, e continuou como estava.
Deita direito, bem. Você está torto.
Entorpecido pelo sono, mediante o pedido da esposa, ele tentou se ajeitar, mas parou. Raquel não poderia
se deitar, o marido estava atravessado na cama. Ela se lembrou que não dormiria em outro lugar, uma vez
que já tinham discutido por isso, e Alexandre podia acordar de madrugada sem entender o que havia
acontecido. Mesmo sem ter muita força, Raquel tentou arrastá-lo.
Alexandre, deita direito, meu amor pediu com carinho, tentando virá-lo. Sem muito êxito, ela
sorriu, o afagou com ternura e obeijou. Cobrindo-o com uma manta leve, fechou a porta do quarto,apagou o
abajur e deitou-se na beirada bem estreita que lhe restou nacama ao lado dele, e, vez ou outra, tentava
empurrá-lo com o própriocorpo para acomodar-se melhor.
Com um dos suaves empurrões da esposa, dormindo mesmo, o marido se virou, a abraçou firme e
começou a beijá-la, acariciando-a e puxando-a para si. Raquel aflita não tinha forças para empurrá-lo;
tentava
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chamar seu nome, mas era sufocada por seus beijos e carinhos fortes com que tentava tirar-lhe a
camisola. Depois de longos minutos:
Não!!! gritou horrorizada na primeira oportunidade.Alexandre despertou num susto! Quando se
deu conta do que estava
fazendo, não acreditou. Não sabia se explicar. Acendendo o abajur, olhou-a melhor e viu seu estado. Sem
dizer nada, delicado e gentil, tentou ajeitar-lhe a roupa, mas ela não deixou esquivando-se ao sentar e
abraçar os joelhos depois de puxar a manta para se esconder, enquanto chorava. O marido percebeu que
ela estava apavorada e tremia amedrontada, chegando ao limite máximo de sua aflição. Ouvindo seu choro
abalado, devido ao rosto escondido sobre os braços que seguravam os joelhos, magoado consigo mesmo,
ele acariciou-lhe os cabelos e tentou explicar constrangido e generoso:
Perdoe-me, Raquel. Por favor. Eu estava sonhando. Perdoe-me pediu sensível parecendo
implorar.
Levantando-se, foi até ao toalete, lavou o rosto para despertar e retornou. Vendo-a menos nervosa e
recomposta, sentou ao seu lado, acariciou-lhe o rosto, momento em que Raquel o encarou e pediu:
Desculpe-me. Imagino o quanto é difícil para você...
Não, Raquel, sou eu quem deve desculpas. Eu estava cansado e sonhava enquanto dormia um
sono profundo. Eu não te forçaria, pornada desse mundo! Perdoe-me. Eu dormia pesado, talvez...
Raquel recostou-se em seu ombro. Surpreso e carinhoso ele a abraçou com ternura e ainda podia sentir o
seu tremor. Generoso a fez se deitar direito, cobriu-a e beijou-lhe a face, deitando novamente ao seu lado,
mas remoendo os pensamentos, contrariado consigo mesmo.
Na manhã seguinte, eles se assustaram com a chegada de Bruna, que acordou, alegre e sorridente,
pulando entre eles por cima das cobertas. Alexandre e Raquel acordaram como nunca, felizes! Nem se
lembraram do que aconteceu antes de dormir.
Vamos, papai! Vamos! Você me prometeu que hoje iríamos nadarna piscina da casa do vovô.
Ontem não podia porque eu estava arrumadinha.
Hoje não vou negar nada a você. É seu aniversário. Mas ainda é tão cedo! dizia ele com voz
carinhosa. Ainda está frio...
Ah! Vamos, papai! Vamos pular pra esquentar!
430
Não, para esquentar vamos fazer um sanduíche!
Quando Raquel pensou: "Que sanduíche?". Ela só viu Alexandre enrolando Bruna nas cobertas
e
mordendo-lhe de brincadeira, fazendo um barulho como se- estivesse rosnando. A menina se divertia e, de
tanto rir, não se conteve e os três ficaram molhados.
Bruna! Olha só! reclamou Raquel ao ver seu colchão.
Eles se levantaram e, após arrumar o que precisava, Raquel lembrou-se que deveria ir, o quanto antes,
ajudar a sogra com a preparação da ceia de Natal. Conforme combinado, todos estariam reunidos na casa
dos pais de Alexandre.
Vamos, gente! Precisamos ir ajudar o pessoal pediu Raquel.
Que bom! Mais festa! alegrava-se a pequena Bruna, que não largava de Alexandre.
O sol radioso convidava a todos para um banho de piscina, mas as mulheres se reuniam ocupadas com
alguns preparativos e não podiam se dar a esse prazer. Marcos e Elói foram convidados e estavam lá.
Dona Virgínia, próxima da nora, perguntava ansiosa:
Raquel, o Alex disse que sua mãe escreveu?
É verdade! Fiquei tão feliz!
Por que vocês não a chamaram para vir passar o Natal aqui?
Nós convidamos, sim. Mas ela não aceitou. Deu algumas desculpas e não quis vir. Não sei o que
prende minha mãe àquele lugar.
Você vai visitá-la?
A nora parou, pensativa, e respondeu sem animação:
Sinceramente não gostaria de voltar lá.
Mas é sua mãe, Raquel. Ela precisa ver você, a netinha, conhecer o Alex.
Eu sei. Mas primeiro eu quero esgotar todas as tentativas de trazê-la para cá.
Nesse instante, Alexandre chegou na cozinha e abraçou a esposa pelas costas,
beijando-lhe o rosto com
carinho.
431
Você está molhado, gelado! Alex! reclamou Raquel sorrindo ebrincando, encolhendo-se
levemente com agrado.
O senhor Claudionor, que chegou junto com o filho, trocou olhares com a esposa e desviou sua atenção,
estampando um leve sorriso maroto.
Pouco depois, quando encontrou o filho estendido sob o sol, o pai ofereceu-lhe um copo com suco e puxou
conversa:
Como está lá na empresa?
Tudo bem respondeu Alexandre, que não conseguia encará-lopor causa do sol.
Vem, sente-se aqui pediu o pai estapeando uma cadeira aolado de onde havia se sentado. O
rapaz aceitou o convite e ele perguntou: Não quer deixar aquele trabalho e vir comigo para novos
empreendimentos?
Você vai expandir a agência de turismo, pai?
Pretendo. Mas só se tiver você ao lado.
Bem, depende respondeu Alexandre.
Do quê?
Não queria mudar de estado. Veja, você já mandou o Valter parao Rio de Janeiro.
Oras! retrucou o homem sorrindo. Não fui eu, não! Lembre-se que tudo aquilo foi ideia dele
e que, cá pra nós, foi ótimo!
E você fica daqui só coordenando tudo e recebendo, né?! argumentou o filho sorrindo e
brincando ao falar.
Já dei muito duro, Alex. Agora é a vez de vocês.
Já pensei em largar aquela empresa aérea. Tem dia que quase fico louco. Agora estamos sem
gerente e isso se deu no meio de um novo projeto. Um cara lá foi demitido e... Alexandre
deteve o que
ia dizer e procurou, com o olhar, ver onde Marcos estava para poder prosseguir o assunto.Certificando-se
de sua distância, quando ouviu o barulho que vinha dosalão de jogos, continuou: Sabe o cara amante da
mulher do Marcos?
Sei.
Foi demitido e o gerente do meu setor, requisitado para substituí-lo. Agora tudo ficou nas "minhas
costas". Não estou gostando. Tenho que ficar além do horário, telefonam-me, em casa, com frequência.
432
Quase não tenho sossego. Eu quero um pouco de tranquilidade para poder ficar com a Bruna e a Raquel.
Alexandre parou, suspirou fundo e completou: Agora que a Bruna já está com a gente e estamos mais
tranquilos com tudo isso, estou pensando em deixar esse emprego. Mas não sei ainda. Vou ver se tiro
férias, primeiro, quero pensar bem.
Hoje não é um dia ideal para falarmos sobre isso disse o pai. Deixe passar as festas e
vamos nos sentar para conversar. Chamaremos o Valter e, juntos, estudaremos essas mudanças.
Tudo bem.
Sem demora o senhor Claudionor admirou:
Alex, eu fiquei impressionado com a rapidez com que a Bruna seadaptou a vocês e a nós. Tenho
que confessar que fiquei temeroso por ela não ter aceitado muito bem o casal que tentou adotá-la, pensei
que teríamos muito trabalho com essa adaptação.
O filho sorriu, afirmando:
Cada vez mais eu acredito nos laços espirituais que possuímos uns com os outros, pai. Somente
isso explica essa aceitação, essa adaptação tão perfeita entre nós. Tudo foi muito simples. Eu a sinto
comominha filha. Bruna é minha filha! Não sei se você é capaz de entender.
O homem sorriu verificando que o filho se esquecera que, aos olhos do mundo, ele era um "pai adotivo"
também.
Em nenhum momento eu posso dizer que estou arrependido afirmou Alexandre. Em
nenhum instante eu senti a Bruna insatisfeita ou infeliz. Quanto ao gênio,
a personalidade, ela é semelhante
à Raquel, muito doce, delicada. Só que bem peralta, alegre! Parece a Rôquando era pequena sorriu.
Ela não pergunta por que ficou esse tempo no orfanato?
Perguntou, sim. A Raquel disse que, no começo, assim que ela nasceu, teve dificuldades, que era
muito pobre e nem tinha onde morar e precisou deixá-la com aquelas tias até melhorar de vida.
Ela não perguntou sobre você? Onde você estava?
Nós explicamos que tivemos alguns problemas e que, quando ela crescesse mais nós lhe
contaríamos, pois poderia entender melhor. Depois disso, até agora, Bruna não nos fez mais nenhuma
pergunta.
433
Você vai contar que não é pai dela?
A Raquel quer contar. Eu não. Prefiro que acredite que sou seu pai.
Não tem medo de que alguém revele isso a ela e você venha a terproblemas mais tarde?
Dependendo do tipo de pai que eu seja, creio que não terei problemas, principalmente pelo
fato
de observar que a Bruna tem umapersonalidade dócil, generosa, compreensiva. Alexandre
lembrou,sorriu e comentou: Quando eu soube que era adotivo, fiquei triste por ter sido rejeitado, mas
feliz
por ter você como meu pai. A forma como me criou, os exemplos que me ensinou tiveram um valor imenso e
não fez diferença. Acabei ficando com raiva da tia Jacira que me contou, de repente, como se quisesse me
ver sofrer. Tem gente que parece fazer certas coisas por sentir prazer na maldade, por inveja.
Eu lembro. Você tinha oito anos. Fiquei tão furioso que não conversei com ela por uns cinco
anos. Sua mãe chorou como uma condenada. Pense bem, filho. Eu sei que você pode dizer que conheceu
a Raquel há alguns anos, que a engravidou, que ela se afastou de você porque soube que tinha uma noiva,
teve a menina sozinha e só agora você resolveu assumir. A maioria da nossa família pode acreditar, mas...
Alexandre sorriu, abaixou a cabeça, e perguntou:
Você está sabendo dessa história, né?O pai sorriu também e perguntou:
Quem foi que inventou essa história, você ou a Rosana?
Nenhum de nós!
Como não? Seus tios vieram me falar que você e a Raquel namoraram algum tempo atrás e que
ela engravidou. Raquel sumiu porquesoube que você estava noivo e quando sua noiva descobriu a
traição,ficou revoltada. Para se vingar, Sandra o difamou para todo mundo.Agora, depois de conhecer
melhor a Raquel, passou a amá-la, decidiu secasar e resolveu assumir a filha. Por isso, ontem a Sandra
veio aqui tirarsatisfações. O pai riu e completou: Ainda disseram que a Brunatem alguns traços seus e
a cor dos olhos não pode negar. Fiquei semsaber o que falar, pois não fui avisado de nada.
434
Já estou sabendo disso, mas não fui eu nem a Rô os autores disso.
Quem foi, então, o autor desse enredo?
A mãe e a Vilma. Elas disseram que todos estavam fazendo muitas perguntas e, para acabar de
vez com os boatos, tiveram essa "grande ideia". O que pude fazer foi ficar quieto. Até porque isso será bom
paraa Bruna. Os amiguinhos ou os primos, principalmente os de segundograu, não vão ficar implicando
com isso. Depois de alguns segundos,Alexandre reconheceu: Sabe que eu gostei da história.
Tomem cuidado. Sejam precavidos. Existem pessoas maldosas que não gostam de ver o bem-
estar das outras.
Eu sei, pai. Mas teremos tempo para pensar. É um assunto muito delicado.
Após alguns minutos, o senhor Claudionor perguntou:
Eu vi você brincando com a Raquel e abraçando-a. Desculpe minha curiosidade, mas como vocês
estão?
Alexandre deu um leve sorriso e comentou:
Ela está melhor, mas... detendo as palavras, ficou sério.
Está arrependido, Alex? perguntou o pai ao observá-lo.
Não confessou o filho tranquilamente. Não estou arrependido de nada. Não tenho amante,
não procurei outra mulher nem vouprocurar, pai. Adoro a Raquel e me amo, também. Aquele que trai nunca
dorme tranquilo. Quando começo algo vou até o fim, sou "cabeça-dura", você sabe. Vou ajudar a Raquel,
principalmente por amá-la e ter certeza de que nunca serei traído. Tenho trauma e asco à traição.
Eu sei sorriu o pai reconhecendo. Mas é que a situação éum tanto delicada e complexa...
você é homem e... vai precisar ter determinação, paciência. Tenho medo que...
e o senhor Claudionor deteve as palavras e Alexandre, ponderado, perguntou:
Pai, se isso ocorresse com a mãe, você iria ajudá-la? Ficaria do seulado? Ou iria se
afastar dela
e até procurar outra companheira?
Claro que ficaria com ela! respondeu ele sem titubear. Não sou só marido da Virgínia, sou
seu amigo, parceiro.
435
Alexandre só sorriu e o pai compreendeu o que ele quis dizer. Sem demora o filho avisou, deixando-o mais
a par da situação:
Na próxima semana vamos a um psicólogo.
Já marcaram?
Sim, já. A Rosana nos falou de um colega do primo do Ricardo,mas eu não gostei e depois ela
me indicou uma associação de psicólogosespíritas. Liguei pra lá e consegui o telefone do psicólogo,
marquei e atéjá fui conversar com ele.
Já?! admirou-se o pai.
Sim, eu já. A Raquel ficou com vergonha e não quis ir. Depois,quando voltei e lhe contei como foi,
ela se arrependeu e aceitou, disse que iremos juntos da próxima vez.
Que bom! Fico feliz por vocês.
Estou confiante, pai. Vai dar certo. Às vezes, vejo que, mesmo sem ter orientação ou coisa assim,
já obtive certo progresso. Mas diante de certas circunstâncias... ela fica inflexível, temerosa. Respeito seus
limites, mas com jeitinho, cauteloso, vou me aproximando. Às vezes tenho sucesso, outras vezes me
decepciono... Mas não desisto.
É!... Realmente eu eduquei um homem digno. Tenho orgulho devocê, filho reconheceu o pai
admirado.
Tenha orgulho de você, também, pai. Sou o que sou graças ao queaprendi com você. Segui seus
exemplos.
A mando dos priminhos, Bruna chegou de repente e, com um brinquedo, começou a espirrar água em
ambos. As outras crianças correram e saíram para se esconder.
A distância, Raquel viu, se aproximou e com modos simples repreendeu a filha:
Bruna! Não faça isso com o vovô.
O marido se levantou e disse sorridente:
Ah! Quer dizer que com o papai pode?! exclamou Alexandre que se levantou e, ao falar
brincando, agarrou a esposa, que estava comroupas comuns para jogá-la na piscina.
Com o gesto rápido do marido, junto com um ruído alto que ele fez com a garganta, como se rosnasse,
Raquel se surpreendeu e gritou como
436
quem aterrorizada. Em pânico, segurando-o com tamanha força a ponto de arranhá-lo com as unhas:
Não!!! Não!!! pediu ela apavorada, após o grito de medo.Alexandre se surpreendeu, colocou-a
no chão e disse, com voz piedosa:
Raquel, calma. Está tudo bem. Sou eu. Com o olhar demonstrando espanto, ela o fitava ainda
trêmula pelo susto e começou a chorar. Abraçando-a, ele tornou sensível: Calma, bem. Estou aqui.
Estátudo bem.
Raquel estava pálida, seus joelhos começaram a se dobrar lentamente. Ela não tinha forças para se manter
em pé.
O senhor Claudionor, já ao lado do casal, entendeu o que acontecera e não sabia o que fazer para ajudar.
Apenas aproximou Bruna de si.
Abraçada ao marido, agora, Raquel disse com voz fraca:
Não estou me sentindo bem.
Alexandre a envolveu, pegou-a no colo e a levou para dentro da casa. Bruna, sem compreender o que
estava acontecendo, passou a chorar também por ver a mãe reagir daquela forma. Abaixando-se
rapidamente, o pai de Alexandre pegou a pequena Bruna no colo, procurando confortá-la.
Não foi nada, filhinha dizia o avô carinhoso afagando-a. Opapai só brincou e a mamãe se
assustou, viu? Não chora, não.
Raquel, em pranto, abraçada ao marido, era levada para dentro de casa. Quando dona Virgínia e Vilma,
que saíam às pressas para ver o que tinha acontecido, encontraram com Alexandre, este já entrava em
casa com Raquel no colo.
O que aconteceu, Alex?! perguntou sua mãe.
Nada, mãe ele respondeu rápido.
Quando elas iam atrás do casal, o avô, com a neta no colo, as chamou:
Vilma, Virgínia, deixem os dois, cuidem da Bruna, que está assustada.
Alexandre levou sua mulher para um dos quartos, a fez se sentar e ficou a seu lado abraçado a ela. Há
tempos Raquel não chorava assim e
437
talvez o fizera, não tanto pelo susto, mas contrariada consigo mesma por não estar conseguindo deter a
exibição daquela reação.
Dona Virgínia chegou trazendo um copo com água açucarada que o filho pegou-lhe das mãos e
gentilmente ajudou Raquel a tomar. Ao vê-la mais tranquila, Alexandre, ainda a seu lado, falou:
Desculpe-me, Raquel. Foi sem pensar.
Ela se recostou em seu ombro, procurando amparo.
Não foi culpa sua. Sou eu... respondeu sussurrando.Dona Virgínia deixou os dois a sós ao se
retirar.
Foi minha culpa, Raquel. Como se não bastasse o que fiz ontem... Você já estava assustada por
ontem e... Perdoe-me, por favor. Alexandre, arrependido, a olhava com carinho e começou a refletir
percebendo que, a cada dia, Raquel não lhe fugia mais aos contatos comoantes. Mesmo se apavorando
por um instante e chorando, ela o abraçouforte, reconheceu seu apoio, aceitando-o naturalmente. Assim
como fizera na noite anterior.
O marido preocupou-se e avisou:
Vou lá buscar a Bruna. É melhor que ela a veja, pois se assustou muito.
Ao voltar com a filhinha no colo, a colocou nos braços da mãe. Raquel procurou sorrir e
desfazer a última
imagem que a menina tivera.
Não chora, mamãe.
Não estou mais chorando, filhinha.
O papai só brincou, mamãe.
Eu sei, meu amor afirmou sorrindo e beijando-a.Emocionado, Alexandre abraçou as duas como
se fossem seu maior
tesouro. Apesar dos desafios, sentia-se feliz e agradecia a Deus por tê-las em sua vida, completando-o.
Mais tarde tudo continuou normal. Raquel parecia melhor, mas pouco se alimentou no almoço e disfarçou a
inapetência por causa da sua atenção que se voltava para as crianças. Alexandre percebeu, mas não disse
nada.
À noite, pouco antes da ceia, outros parentes chegaram e todos estavam animados. Principalmente
Rosana, empolgada com a presença
438
dos futuros sogros, quase não tinha tempo para dar atenção à própria família.
Vilma não se reunia aos demais, ficava sempre atrás das crianças, olhando-as para que não se
machucassem, pois agora elas estavam em número maior devido aos priminhos que chegaram bem
animados.
Os homens formavam pequenos grupos conversando e rindo muito.
Dona Virgínia, a certa distância, conversava com uma cunhada, mas observava que Raquel estava muito
quieta, com semblante abatido. Pedindo licença, ela se aproximou da nora e perguntou:
Raquel, você está bem?
Estou com uma dor de cabeça horrível sussurrou encabulada e sorrindo forçadamente.
Por que não falou? Vem cá que vou lhe dar um remédio.Seguindo a sogra, Raquel foi até a cozinha
para tomar o medicamento. Após refletir um pouco, a sogra decidiu perguntar:
É só isso mesmo, Raquel?
É sim, dona Virgínia tornou recatada.
Acho que não. Foi por causa daquilo, né? O Alex a assustou.Com seu jeito meigo, Raquel
defendeu o marido:
Não foi culpa dele. O Alex só estava brincando. É que...
Procure ajuda, filha. Você não precisa viver com esse fantasma.Os olhos da moça se encheram de
lágrimas, que quase transbordaram. A sogra a abraçou com carinho e ainda disse:
Raquel, Raquel! Como gosto de você, menina! Eu a quero comominha filha!
A nora a apertou contra si e não conteve as lágrimas teimosas que rolaram. Valter, que chegou na cozinha,
brincou alegre:
Hoje não é dia pra chorar! O que é isso? Vamos! Vamos!
Eles voltaram para onde todos estavam reunidos e esqueceram aquele momento.
As horas foram passando e Raquel não se sentia bem. Algo estava errado com ela. Alexandre demorou a
perceber que a esposa empalidecia. Aproximando-se dela, perguntou sutilmente, generoso e preocupado:
439
O que você tem, Raquel?
Bem pediu sussurrando , me leva pro quarto.
Sem alarido, ele a levou para a suíte, onde Raquel entrou às pressas procurando o banheiro, sem
conseguir conter o vômito. Alexandre a segurou, prendeu-lhe os cabelos, depois a ajudou a lavar o rosto e
a levou para se deitar.
A esposa se largara sobre a cama, com a face pálida e com os olhos fechados sem se importar com nada.
O que foi, Raquel? perguntou preocupado.
Não sei balbuciou ela desanimada.
Discretamente Alexandre chamou sua mãe, contando-lhe o que estava acontecendo. Mas os demais,
sentindo a falta deles, começaram a tomar conhecimento de que a esposa de Alexandre não estava bem.
Vou levá-la ao médico decidiu ele.
Não pedia Raquel que mal conseguia falar.
Leve-a sim, filho aconselhava o senhor Claudionor. É o melhor a se fazer.
Eu vou com você! decidiu Vilma.
Não, Vilma respondeu o irmão , fica aqui e olha a Bruna pra
mim, por favor.
Eu vou disse dona Virgínia.
Não, mãe. Não é necessário resolveu Alexandre, que já começava ficar irritado. Calma,
gente! Também não é assim! Eu vou sozinho, não há nada em que vocês possam me ajudar. Além do que,
temos convidados aqui. Não deve ser nada muito sério.
Decidido, o marido pegou Raquel, colocou-a no carro e a levou para o hospital. Após ver o irmão sair,
Rosana comentou arrependida:
Eu deveria ter ido com eles.
Daqui a pouco eles voltam disse sua futura sogra que, rindo,completou: Você quer apostar
que ela está grávida?
Rosana riu e não disse nada.
440
Mais tarde, de seu apartamento, Alexandre telefonou para sua mãe, confirmando:
A Raquel está bem. Não foi nada sério. Provavelmente o susto adeixou com dor de cabeça e o
remédio que tomou com o estômago vazio a fez passar mal. Fiquem com a Bruna pra nós. Amanhã cedo eu
passo aípara pegá-la.
Alexandre riu, ao ouvir dona Virgínia dizer:
A mãe do Ricardo está perguntando se a Raquel está grávida,porque esse é o típico sintoma.
Diga a ela que ainda não.
Após desligar, ele foi ver como Raquel estava. Alexandre entrou no quarto vagarosamente sem fazer ruído.
Cuidadoso deixou o quarto na penumbra, se deitou ao lado da mulher e procurou ficar quieto a fim de não
incomodá-la. Faltavam poucos minutos para o dia vinte e cinco de dezembro e eles ficariam ali, sem
comemorar.
De repente, os fogos de artifício que estouravam anunciando meia-noite fizeram Raquel se sentar na cama,
aos gritos.
Calma, Raquel! pedia o marido que se assustara com aquela reação. Está tudo bem. Calma,
querida dizia ele carinhoso, afagando-lhe a face e procurando envolvê-la.
Não!!! Minha filha, não! gritava aflita.
Acorda, Raquel pedia Alexandre com generosidade, pois aesposa parecia estar sonhando.
Estamos em casa. A Bruna está bem.Calma!
Raquel o empurrou. Ela estava apavorada e ele a soltou, insistindo ao repetir:
Calma. Está tudo bem. Estamos em nosso quarto, meu amor.
Bruna! Onde está minha filha?!!! gritou desesperada.
Ela está na casa dos meus pais. Ela está bem. Calma, Raquel argumentava com voz
ponderada, procurando lhe passar segurança.
A esposa estava ofegante e, agora, parecendo entrar em pânico, chorava como se não entendesse o que
estava acontecendo, misturando seu pesadelo com a realidade.
441
Ele foi abraçá-la, mas Raquel o empurrou. Alexandre não suportava mais aquela situação. Ele decidiu não
envolvê-la mais, respeitando a sua vontade, no entanto, não sabia o que fazer. Lágrimas copiosas
deslizavam no rosto do marido que, para não entrar em desespero, sentou-se, silenciou, fechou os olhos e
se socorreu em uma prece pedindo a Deus que lhe desse forças e acabasse com aquela aflição de sua
esposa.
Segurando-o pela camisa, em desespero, Raquel pediu:
Alexandre, ajude-me pelo amor de Deus!
Vendo-a num choro compulsivo, o marido a envolveu cuidadosamente com carinho e a aninhou nos braços.
Ele estava aborrecido, desejoso de que aquilo tudo terminasse.
Como fora traumatizante para ela aquela experiência brutal. Como estava sendo-lhe difícil recompor o
ânimo, a sua fé na vida e nas pessoas. Como estava sendo complicada sua reestruturação emocional e
sentimental.
Alexandre, com sua moral elevada e sua nobre sensibilidade, buscava doar-se em compreensão, carinho,
paciência e notável amor verdadeiro, sem queixas, mas sempre esperançoso em harmonizar aquela difícil
condição, pois, acima de tudo, ele era o amigo verdadeiro que prometera apoio e amparo sincero para
todas as horas.
Poucas criaturas têm tão elevados valores morais a ponto de se renunciar em favor do amor incondicional,
pois é tão fácil desistir!
Os casos de violência sexual contra mulheres, crianças e adolescentes tomam vulto e se propagam no
momento acalorado da descoberta, mas poucos acompanham o desespero e as condições precárias dos
sentimentos feridos dessas vítimas, que custam a se recompor e, quando conseguem, é com indescritível
dificuldade.
O estupro, por ser um assunto delicado, tendo em vista o grau de intimidade, não é comentado.
Todas as vítimas de furto se mostram, elas têm coragem de dizer "eu fui furtada"; todas as vítimas de
agressão física se anunciam. As vítimas de estelionato não têm muita vergonha de se revelar. Entretanto,
se essas trazem em si um trauma, um ressentimento ou até pânico pelo que sofreram, imaginem a vítima
de uma violência sexual.
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Inúmeros crimes existem cuja vítima se revela e comenta o ocorrido, mas a vítima do estupro se cala,
silencia, carregando dentro de si os mais dolorosos sentimentos, as mais tristes lembranças de um ato tão
cruel.
Pela sutileza do assunto, aqueles que com ela convivem o querem esquecer, não podem falar e, em alguns
extremos, chegam a abandonar aquela criatura que carece de amor, respeito, compreensão e paciência.
A pessoa molestada se constrange, se isola, se condena, se desgasta na lembrança do experimento
doloroso, no qual sofreu pela delinquência e desequilíbrio de outro. Flagelada na humilhação, que pela
delicadeza do fato se envergonha de comentar, essa criatura se aflige em conflitos íntimos e secretos.
Poucos são aqueles companheiros, amigos ou parentes que se dedicam e se dispõem a amar,
compreender, acalentar e procurar a ajuda que pode trazer o equilíbrio e a renovação. Em uma comunhão
mais profunda de sentimentos elevados, pode haver aquele que, como amigo fiel, entende e auxilia sempre
a recomposição estruturada no equilíbrio de uma alma querida. Sem egoísmo, apenas o sábio amor
desvelado compreende e se doa, sem exigir, recompondo a alegria e a paz, auxiliando a elevação,
orientando ao trabalho no bem, tarefa útil e caridosa, que transformará e equilibrará produtivamente aquele
que deseja e quer se desprender dos lastros que arrasta com tristeza e dor.
A respeito do sexo, podemos dizer que o ser humano ainda necessita de muita orientação, educação e
controle.
A pretexto do prazer compulsivo, existem criaturas desequilibradas que se manifestam na imposição sexual
a outro, violentando-lhe, não só o corpo, mas também a alma, os sentimentos e as emoções.
O ato de violência sexual rouba de sua vítima a tranquilidade, o alicerce no equilíbrio, na fé, na alegria,
tirando-lhe o encanto e o sonho criador. Dificilmente elas conseguem obter novamente a confiança nos
outros, a afetividade no contato e voltar a compartilhar emoções no campo do relacionamento íntimo.
Aquele que, através dessa violência, impõe essas dificuldades enormes a outro recolhe para si angustiosos
momentos de aflições em futuras
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vivências dolorosas e infelizes. E aquele que, na educação de um filho, ou de uma criança que lhe foi
confiada aos cuidados, deixa-lhe faltar a orientação na área do campo sexual, que é o ensino do equilíbrio,
controle, respeito, dignidade e moral, também é responsável pela agressividade hedionda que ele cometer
através da prática do estupro e, com certeza, ver-se-á golpeado por chagas profundas em seus
sentimentos e enfrentará um "calvário de aflições".
O medo é algo difícil de ser superado. Somente o amor e o carinho podem trazer de volta a confiança
verdadeira.
Antes daquela experiência reencarnatória, Alexandre prometera-lhe ser fiel e dedicado, estando preparado
para sustentá-la diante dos previstos e imprevistos da existência. E agora o fazia por perseverança, fé,
amor e com resignação.
Abraçado à esposa, ele a acalentava com leve balanço, fazendo-a se acalmar.
Poucos imaginam ou podem compreender o drama que se passa na mente de alguém que sofrera tal
violência. Essa criatura necessita de amparo e carinho para trocar os conceitos violentos que sofreu por
confiança e afeto, e isso pode levar um longo tempo, conforme o caso, de acordo com a sensibilidade.
O auxílio e a paciência do marido eram fundamentais e de grande valor para Raquel. O afeto e a ternura
generosa que ela recebia dos sogros e das cunhadas geravam-lhe força e incentivo para prosseguir.
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Capitulo 20
Desabafo inesperado de Raquel
O tempo foi passando...
Rosana e Ricardo tiveram que adiar o casamento porque o noivo teve uma oportunidade muito boa em seu
serviço, só que, para isso, teria de fazer uma viagem ao exterior por cerca de três meses. A noiva não ficou
satisfeita, ela não queria deixar o seu último ano de faculdade para se casar e acompanhá-lo. Foi então que
decidiram adiar o casamento para o meio do ano que se iniciava.
Nilson saíra da prisão e aguardava o julgamento em liberdade. O rapaz estava traumatizado por tudo o que
vivera nos últimos meses. Fechado dentro de casa, ele quase não saía.
Raquel se dispôs à terapia junto com o marido que a acompanhava, auxiliando e amparando, sempre.
Certo dia, Alexandre chegou em casa e encontrou Raquel ajudando a filha com pequena montagem de
colar que a menina levaria para a escola no dia seguinte. Ele as beijou e abraçou como sempre fazia.
Porém, atraiu a atenção de Raquel para acompanhá-lo até a cozinha a fim de conversarem longe da filha.
O que foi? perguntou curiosa quase sussurrando.
Fiquei sabendo de uma coisa hoje que me deixou em choque!
O que aconteceu?! Conta logo! insistiu ansiosa.
O Valmor se separou da esposa e estava morando com a Alice.
Tá, isso eu sei.
Ele foi demitido, não foi?
Sim. Isso eu também sei disse Raquel.
Fiquei sabendo que ele tinha um plano de previdência privada eque o encerrou para comprar
aquele apartamento onde mora com a Alice.
Após se separar, ele foi demitido e não arrumou outro emprego. Depois disso não tive mais notícias dele.
Hoje eu fiquei sabendo que o Valmor teve um acidente vascular cerebral, mais conhecido como derrame.
Nossa! admirou lamentando chateada.
A esposa e os filhos nem querem saber dele. Agora, quem terá decuidar do Valmor é a Alice.
Raquel incrédula se sentou e o marido prosseguiu:
E mais. A Alice foi demitida hoje.
Você está brincando?! exclamou a moça em choque.
Olha, meu bem, estou tão surpreso com toda essa tragédia quegostaria de estar brincando.
A aproximação da filha os fez cessar o assunto. Mais tarde, porém, o casal ainda conversou:
Estou com pena da Alice disse Raquel.
Sem emprego e sem ter onde morar, ela vai ter que depender de favor e da mísera aposentadoria
que o Valmor tiver por invalidez, e ainda terá quecuidar dele, se quiser continuar morando lá. Pelo que
calculo, metade do que ele ganhar será para pagar o condomínio do apartamento. Eu nem sei lhe dizer se,
nesse caso, a ex-esposa receberá pensão dele. Acho que não.
Como esse mundo dá voltas, Alex! Estou horrorizada e até arrependida.
Por quê?
Quando eu saí da casa do meu irmão, expulsa depois de tanta humilhação, a última coisa que eu
disse para a Alice é que ela, um dia, iria selembrar de mim porque passaria pelo mesmo que estava
fazendo comigo.
Não é sua culpa.
Eu sei, mas... Ah, não deveria ter dito aquilo.
Faça uma prece por ela. Estamos aprendendo muito com o Espiritismo. Peça a Deus que a
envolva com bênçãos de paciência, otimismo e no caminho do bem.
Eu já faço.
É, Raquel, devemos nos "conciliar com nossos adversários enquanto estamos no caminho com
eles", ensinou-nos Jesus. Sabe, quando
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do comecei a pensar assim, fiquei mais calmo, tranquilo, menos estressado e tudo para mim tem
melhorado muito. Vejo as coisas de outra forma. Isso parece que refletiu até em melhoras físicas. Aliás,
estou ótimo! Toda minha saúde está em harmonia. A esposa sorriu e observou:
Realmente, eu o vejo mais harmonioso nos últimos tempos. Rindo completou: Você não quer
mais "quebrar ninguém ao meio".
O marido gargalhou gostosamente e admitiu:
Estou me controlando e sempre penso no meu coração. Queroter vida longa, sou um cara novo e
tenho muito que fazer ainda. Repentinamente, mudando de assunto, Alexandre perguntou: Suamãe
escreveu?
Escreveu sim. Mais uma vez ela se recusa a vir para cá.
Você quer ver sua mãe, não é? perguntou abraçando-a.
Quero sim, mas não me agrada a ideia de ir até lá, sorriu tímida.
Por que, Raquel? Seu avô está numa cadeira de rodas... Apóspequena pausa, completou:
O resto você sabe. Poderíamos ir lá só para ver sua mãe, para ela conhecer a Bruna. Não é preciso visitar
maisninguém. Pelo que me contou, a casa do seu tio não é próxima de onde dona Tereza está. Raquel
abaixou a cabeça e ficou pensativa. O esposo, segurando-lhe o rosto com carinho, ergueu-o e perguntou:
Vocêquer ver sua mãe?
Sim, eu quero, mas...
Alexandre tornou a abraçá-la e argumentou:
Então vença este obstáculo de uma vez. Talvez isso fará com quevença os outros. Nós daremos
um jeito.
O tempo foi passando e a melhora psicológica de Raquel, após a terapia que ainda realizava, podia ser
notada, a princípio, pelos pesadelos que deixava de sofrer. Em conversa com Rosana, a cunhada dizia:
447
Há tempos eu não tenho aqueles sonhos horríveis.
Que bom Raquel! Fico feliz! alegrou-se Rosana.
Creio que não é só a terapia que fazemos, mas também a assistência espiritual que recebo está
me ajudando muito.
Pode acreditar que sim. Mas não deixe fazer nem uma nem outracoisa. Após poucos
segundos, perguntou: Sei que estou sendoindiscreta, mas... e vocês dois, como estão?
Raquel ofereceu um sorriso forçado e revelou:
Alexandre é uma criatura maravilhosa, Rô. Mas eu...
Nesse instante, seus olhos se embaçaram e ela abraçou-se a Rosana, que lhe afagando os cabelos, dizia:
Ainda é cedo, Raquel. Calma. Vocês já progrediram muito.Com a voz embargada, Raquel
desabafou:
Já temos quase um ano de casados! Não sei como o Alex suporta.
Ele a ama, Raquel.
Às vezes choro às escondidas... confessou Raquel, com voz lamentosa, afastando-se do
abraço.
Divida com ele os seus sentimentos. O Alex é seu amigo.
Eu sei que é. Nunca pensei que ele pudesse tolerar tanto. Sabe,Rô, de repente sinto uma força,
creio que consigo superar meus medos,eu o abraço, o beijo, o desejo, mas, em seguida... quando ele quer
continuar... não consigo... parece que eu mesma me derroto, entro em pânico e o afasto de mim.
É como
se eu tivesse altos e baixos. É um conflito imenso. Você não imagina.
O que o Alex diz? Ele fica insatisfeito, se irrita?
Não! Ele entende. Aceita e me acalma conversando e me acariciando até que eu melhore da
tensão. O Alex é muito compreensivo.Eu o amo tanto. Não consigo mais viver sem ele.
Rosana sorriu satisfeita pelos sentimentos que observava na cunhada e falou com jeitinho:
Confie nele, Raquel. É assim mesmo. É um processo que tem de ser devagarzinho. Vocês já
progrediram muito! Esta retribuiu o sorriso com modos tímidos. E Rosana quis mudar o assunto para não
deixá-la deprimida. Ah! Não falei, né?!
448
O quê?
Vamos adiar novamente o casamento.
Por que, agora? surpreendeu-se Raquel.
O Ricardo quer fazer um curso lá onde está, na Suíça. Será degrande valor para ele.
Nem sei o que dizer, Rô lamentou a cunhada.
Sabe, Raquel, para dizer a verdade, estou tão frustrada.
Não fique assim, não. Vai passar logo, você vai ver!
Serão mais quatro meses. Não estou gostando. As vezes sinto umacoisa.
O quê?
Sinto o Ricardo diferente.
Não, Rô, ele gosta muito de você! Não pense assim.Pela primeira vez Raquel viu Rosana triste e
chorosa.
Sabe, às vezes sinto que nunca vamos ficar juntos.
Não diga isso!
Já pensei em terminar com esse noivado, sabia?
Pense bem, Rosana. Depois de tanto tempo...
A cunhada abaixou a cabeça, suspirou profundamente e, em seguida, procurou outro assunto para fugir da
melancolia.
Fiquei sabendo que a dona Conceição, lá do Centro, foi falar comvocê!
Foi sim. Ela me convidou para ajudar na arrecadação de enxovais para os
bebês e nos ajustes e
consertos manuais de algumas roupinhas.Fiquei tão feliz! Estou indo lá duas vezes por semana, à tarde, e
levo aBruna comigo.
Que bom, Raquel!
Nossa, Rô, como melhorei. Estou me sentindo tão útil!
Isso é maravilhoso. Aqueles que vencem suas dificuldades paraajudar os outros são os primeiros
a ser socorridos. Ainda bem que o Alexnão se importa.
Claro que não! E ainda me incentiva. Ele não quer que eu volte atrabalhar, só que ficar em casa
trancada não me faz muito bem. Sinto-me depressiva. Lá no Centro ocupo os pensamentos, vejo outras
pessoas,
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me envolvo com trabalhos úteis, agradáveis. Tudo está me fazendo muito bem.
Mas nada acontece como mágica. Você tem que se esforçar paramelhorar e, se está se sentindo
bem, é porque mudou os hábitos, ospensamentos, as atitudes e procurou uma tarefa produtiva. Buscou
conhecimento da Doutrina através das escolas, dos cursos.
O Alex está adorando.
Fiquei surpresa quando soube que ele estava fazendo os cursos.Isso foi algo que sempre tentei e
nunca consegui que ele fizesse. O Alexsempre dizia que não tinha tempo.
Enquanto elas conversavam, o senhor Claudionor e dona Virgínia ouviam os planos do filho:
Então, eu tiro férias em setembro ou outubro, pego a Raquel evamos para o Rio Grande do Sul.
Deixe a Bruna aqui!
Não, né, mãe! Será uma judiação com a outra avó se fizermos isso.
Então eu vou junto! anunciou a mulher.
Não, né, Virgínia! advertiu o marido. Eles têm que resolver isso sozinhos.
A mãe ficou inquieta e Alexandre continuou:
Depois, quando voltarmos, falaremos sobre aquilo novamente, pai.
Aquilo o quê?
Negócios, mulher! respondeu o marido sorrindo e abraçando-acompletou: Ô mulher curiosa!
O filho sorriu e explicou:
É que estou pensando em sair do serviço e acompanhar o pai com outros negócios.
Alex propôs a mãe , quando a Rô se casar, por que vocês não vêm morar aqui? Já fiz esse
convite para sua irmã, mas ela não quisporque disse que quer estudar, trabalhar... Mas, veja, vocês têm a
Bruna e ela adora esta casa! Aqui tem quintal, lugar para ela brincar, não écomo aquele apartamento
fechado. Esta casa é grande.
É mesmo, Alex! Devido aos negócios, seria até interessante vocês virem morar aqui.
450
O filho sorriu sem jeito, depois falou:
É pai, vamos ver. Sabe, estamos tão acostumados lá.
Até hoje eu não me conformo de você ter saído desta casa. Você sempre teve tudo aqui.
Mãe, é que, para mim, foi o melhor a fazer. Mas eu nunca abandonei vocês.
Ele precisou aprender com o mundo e com a vida, Virgínia disse o pai. O Alex quis usar lá
fora os valores que ensinamos.
Alexandre sorriu e não disse mais nada.
Mais tarde, em seu apartamento, Alexandre dizia para a esposa:
Vamos, Raquel. Sua mãe ficará feliz! Observando-a pensativa sem saber o que decidir, com
jeitinho o marido insistiu, dizendo: Podemos fazer uma surpresa e chegar lá sem avisar. O que você
acha?
Raquel, olhando-o com expressão sentida, acabou revelando:
Daquele lugar tenho péssimas recordações. Não sei se consigovoltar lá. Temo encontrar aqueles
que não quero ver. Fico pensando emcomo os meus irmãos vão me receber, afinal de contas, eles nem
para me escrever, não é?
Eu estarei ao seu lado todo o tempo, se aquele lugar te traz péssimas recordações, eu estarei lá
para as boas lembranças. Supere esse medo,Raquel! Lembre-se que você vai lá para ver a sua mãe.
Alexandre pensou depois decidiu comentar: Sabe, Raquel, como eu conversei outro dia com o doutor
Bernardo, o psicólogo, eu penso que, mesmodizendo que não, lá no fundo, você precisa
conversar com sua
mãe edizer a ela... Sei lá... Algo que não ficou esclarecido entre vocês duas. Nesse instante, o marido se
aproximou e falou com voz baixa: Seu problema, Raquel, não é o de não me aceitar. Você me aceita,
mas a sua dificuldade é o contato, é o carinho. Como já conversamos, ninguém podia chegar perto de você,
mesmo não oferecendo perigo. Lembra?Talvez, por não ter recebido um toque carinhoso, um afago
fraterno nem atenção de seus pais, e, depois, com tudo aquilo que aconteceu,
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refiro-me à violência íntima que sofreu, e o choque por ter descoberto que ele era seu pai e... o desprezo
de seus irmãos e a brutalidade de seu avô... Percebendo-a atenta, mas em silêncio, Alexandre
prosseguiu generoso: Isso tudo a afastou das pessoas e foi o que gerou seu medo, seu trauma. E o pior
é que você não sabe receber um carinho porque nunca soube o que é isso. Você nunca reclamou porque
aprendeu errado e achou que deveria ser daquele jeito. Lembro-me que estranhou como eu e minhas irmãs
nos abraçamos, nos beijamos e brincamos, enquanto seus irmãos a desprezaram.
Você acha que sexo é dor, violência, é algo brutal. Em vez de acreditar que o ato sexual, que é a relação
íntima entre duas pessoas, é confiança, amor, troca de carinho com quem se ama, toque de ternura, troca
de energias espirituais entre almas afins. Por isso sempre te falei para não se envergonhar e me pedir que
pare, mas me guie, me conduza ao que quer que eu faça, se permita, meu amor.
Quanto a sua família, você deve pensar, Raquel, que seu pai verdadeiro foi o senhor Cazimiro, que
realmente a tratou como filha. E que sua mãe era uma pessoa amedrontada, mas a quem você deveria
exigir seus direitos e apoio. O medo impera em você por sua timidez. Enquanto não reagir com algo que a
magoe lá no fundo da alma, não vencerá seu medo. Há uma passagem no Evangelho que diz: "o mal
impera porque os bons são tímidos". Tudo o que aprendemos com a Doutrina Espírita resume-se no perdão
e na caridade e a primeira caridade, no seu caso, é a caridade para com você mesma. Perdoe-se, não se
culpe por ser bonita, por atrair a atenção dos outros.
Orgulhe-se da moral que tem, pois teria sido fácil você se desvalorizar, se corromper e "andar" com "um ou
com outro" por causa de tudo o que te aconteceu. Você tem muita elevação, meu amor. Perdoe-se
primeiro, permita-se ser feliz, vença um medo de cada vez, reivindique seus direitos e perdoe os que não
respeitaram sua vontade.
Raquel o encarou e admitiu:
Meus sentimentos se confundem quando penso nele.
Nele quem, Raquel? perguntou Alexandre para fazê-la vencer-se.
452
Demorando alguns segundos para responder, Raquel titubeou, mas por fim falou mesmo com voz
trêmula:
Fico confusa quando penso no meu tio Ladislau. Sabendo queperdeu as filhas e a mulher está
desequilibrada... Chego a ficar com dó dele, entende?
O silêncio reinou.
Raramente Raquel falava daquele assunto delicado e doloroso sem chorar, e nunca havia pronunciado de
forma serena o nome do seu agressor.
Raquel, vem cá chamou o marido puxando-a para um abraço e sentando-se mais próximo
falou: Perdoar a ponto de dizer que farátudo por aquele homem, talvez você não consiga. Seria
hipocrisia admitir isso agora. Mas eu penso que ter coragem para olhá-lo, se tiver oportunidade, encará-lo
sem fugir, sem medo, tentando não ter rancor, isso talvez a faça se sentir mais forte, mais firme. Talvez seja
essa a maneira de vencer o que a vem atormentando.
Sabe, Alex, pode parecer estranho, mas eu não posso dizer que,algum dia, eu quis que ele
morresse ou que sofresse o que me fez sofrer.Foi bom termos encontrado um psicólogo espírita, porque
penso que outro acharia esquisita essa revelação. Eu não o odeio, mas vivo o pânico do que sofri.
Se você não o odeia, é porque tem um coração maravilhoso, bom.Porque você é um espírito
elevado, ciente dos propósitos dessa existência, dos trabalhos que vem abraçando.
Mas acontece que ainda vivo aquela agressão, sinto... Após pequena pausa, comentou: Eu
não lembro do rosto dele. É estranho, não é?
Não. Não é afirmou o marido, olhando-a atento, mas com ocoração apertado por ouvi-la
relatar.
Eu amo você, Alex! Adoro quando me afaga, desejo seu toque,mas quando nossa troca de
carinho fica mais intensa, eu não suporto...vivo aquele momento violento.
É como se tudo aquilo estivesse
acontecendo. Aí fico magoada comigo por eu não corresponder a você tudo o que merece, e pelo que eu
desejo também. Queria poder esquecer, masnão consigo. Ainda me dói muito. Como eu disse, não tenho
ódio dele
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nem me lembro de como ele era, isso se apagou. Talvez, pelo conhecimento cristão que tenho, hoje sinto
pena dele.
Mas também não quer encará-lo?
Tenho medo.
Generoso e paciente, ele perguntou:
Medo do que, meu amor? Quem sabe vencendo esse medo...
Não sei bem o que temo. Voltar àquele lugar, percorrer aquela estrada poeirenta... só vou
recordar o desprezo de minha mãe, meus parentes... Talvez recordar, ainda mais, a violência que sofri.
Naqueles sonhos horríveis eu via isso, eu via aquele lugar e ele me atacando. Depois,algumas vezes, os
poucos sonhos que ocorreram eram os mesmos, mas, de repente, era a Bruna quem estava sendo levada
para aqueles maus-tratos.
Estarei com vocês. Isso não vai acontecer. Eu não vou deixar.
Eu sei, mas também não sei como iria encará-lo, se for preciso.Não imagino o que posso sentir.
Não sei se tenho coragem. Quero ver minha mãe, mas, se para isso tiver que encontrá-lo...
Você tem mágoa dele, Raquel?
Mágoa, sim. Ódio, não.
E se você transferir essa mágoa para um sentimento de piedade,principalmente pelo fato de
saber como ele está hoje, isso seria bom. Eunão creio que ele esteja sofrendo a invalidez pelo que a fez
sofrer. Essa experiência é pela própria imprudência, nessa vida, com o que fazia.
Raquel, com semblante tristonho, lembrou:
De repente sofri o que fiz alguém sofrer.
Pensar nisso é viver a lei de Talião: "Olho por olho, dente pordente". Isso é ridículo. Você vai me
dizer que Jesus sofreu porque precisava.
Não. Jesus é diferente!
Raquel, pense bem, se os homens daquela época fizeram um espírito como Jesus sofrer
indevidamente, o que a criatura humana não fez e faz a um espírito comum que ainda tem coisas para
harmonizar! Se ficarmos acreditando que alguém passa por uma dificuldade porque precisa sofrer aquilo,
deixaremos de ter compaixão e de praticar a caridade.
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Existe a "Lei de causa e efeito", sim. Mas existe também o livre-arbítrio de muitos interferindo na
tranquilidade dos outros. Você não pode ficar pensando que sofreu isso ou aquilo porque merecia, pense
que sofreu algo para ficar mais firme nos seus propósitos. Não somos espíritos inocentes, temos
conhecimento. A esposa silenciou e Alexandre completou: Talvez indo lá, encarando-o, se for preciso,
sem exibir sentimentos de ódio, de rancor, e sim de misericórdia e piedade, você o estará perdoando e
ensinando, fazendo-o refletir. Creio que mostrará a si mesma que conseguiu vencer.
Ele se calou.
A esposa o abraçou forte, beijou-lhe, e perguntou:
Ficará comigo?
Sempre! Sempre, meu amor!
Naquele instante o casal era envolvido por amigos espirituais que os vinham ajudando a vencer os
desafios, sentir paz e encontrar no diálogo amigo a harmonia necessária para o ganho do entendimento
para a evolução. Os conhecimentos da Doutrina Espírita lhes chegavam como bênçãos ao ensinar o
perdão e a caridade incondicional.
Tempos depois, dentro do carro, ao percorrer a mesma estrada poeirenta que não via há anos, Raquel
estava calada. Bruna dormia no banco de trás e, dirigindo, Alexandre, vez e outra, colocava a mão no
ombro da esposa, pois percebia sua tensão. Ao passarem entre gigantescas araucárias, eles viam, não
muito longe, a bela queda-d'água que espirrava gotejos coloridos com os raios de sol, que se fazia
destaque dentro da linda paisagem.
Que lugar lindo! admirou-se Alexandre.Mais adiante, a única manifestação de Raquel foi:
Veja, eu brincava ali quando pequena. Não dá pra ver direito daqui, mas ao redor da
cachoeirinha há uma lagoa e embaixo da queda-d'água, um poço tão cristalino que você chega a ver os
peixes lá no fundo.
Estamos perto? perguntou o marido.
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Sim. Estamos.
Não demorou muito e eles pararam o carro diante de uma grande casa branca de barrado azul. Os
empregados olhavam curiosos. Um deles se aproximou quando Alexandre desceu do carro olhando a sua
volta ao perguntar:
Por favor, a dona Tereza está?
O senhor é...?
Alexandre. Genro dela. Marido de Raquel.
Dizendo isso, ele contornou o veículo e abriu a porta para a esposa, que parecia estar paralisada e não se
mexia. O marido se curvou, pegou sua delicada mão gelada e pediu:
Vem?
Sustentando-se nele, tentando controlar a respiração, a esposa desceu
trêmula. Imediatamente ela o
abraçou e, olhando à sua volta, notou que o lugar pouco havia mudado. Nesse instante eles ouviram o
grito:
Raquel!!!
Era dona Tereza, que descia ligeiro os poucos degraus da varanda e corria ao encontro da filha.
Mãe! disse Raquel, soltando-se de Alexandre.
O riso misturou-se ao choro e, em meio aos beijos, elas se tocavam como se quisessem ter a certeza de
que não era um sonho. A emoção contagiou Alexandre e os empregados que estavam presentes. Bruna
acordou e Alexandre a pegou no colo, esperando ver a esposa mais tranquila. Logo Raquel se recompôs e,
pegando na mãozinha de Bruna, que já estava no chão, ela a exibiu para sua mãe. Alexandre, com um
sorriso no rosto, falou orgulhoso:
Queremos que conheça nossa filha. Estávamos ansiosos por esse momento.
A mulher, que estava agachada já olhando a menina, ergueu o olhar e ele lhe estendeu a mão, dizendo ao
exibir um semblante alegre:
Eu sou Alexandre.
Segurando em sua mão, dona Tereza se levantou e o abraçou com jeito meio rude, mas não conseguiu
deter algumas lágrimas. Após as
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fortes emoções de início, quando todos iam entrando, os irmãos de Raquel chegaram. Parados, eles a
olharam surpresos. Como Raquel havia mudado! Enquanto eles traziam no rosto as marcas dos árduos
serviços, a irmã estava linda! Parecia ainda mais moça. Como que em choque, eles a olharam por algum
tempo, até que dona Tereza falou:
Não vão cumprimentar tua irmã?
Tadeu e Pedro se aproximaram de Raquel e, constrangidos, lhe estenderam a mão para um cumprimento
simples. Alexandre, extrovertido, cumprimentou-os e bem-humorado estapeou-lhes no abraço.
Ao ver a esposa temerosa, ele a abraçou para que entrassem. Em uma sala onde uma grande mesa de
madeira, contornada por cadeiras altas, centralizava o ambiente, eles se acomodaram para conversar. Os
irmãos de Raquel não diziam nada, somente dona Tereza e Alexandre conversavam muito.
Bruna, que não parava no lugar, merecia a atenção de Raquel que, vez ou outra, tinha que sair atrás da
filha. A garotinha, na volta que deu na varanda que rodeava a casa, não retornou. Preocupada, Raquel saiu
a sua procura. Ao andar pela referida varanda, quando ia contornando a casa, ela ouviu a voz delicada da
filha que vinha do outro extremo dizer:
Meu nome é Bruna, e o seu?
Aproximando-se, quando pôde observar, Raquel viu a lateral de uma cadeira de rodas e Bruna,
perguntando com sua voz doce e infantil:
Você não fala? Não obtendo resposta, ainda insistiu: Você tá dodói?
Chegando perto, Raquel a chamou bem baixinho:
Bruna, vem aqui, filha.
Com muito esforço o avô, senhor Boleslau, virou-se para vê-la. Seus olhos expressivos se arregalaram
quase incrédulos. Mas Bruna Maria, em sua inocência, perguntou à mãe:
Quem é ele, mamãe?
Raquel se aproximou um pouco mais, criando coragem, vencendo o temor. Em meio à respiração alterada,
pegou a mão da filha, ficando junto da menina e diante do avô, que nem piscava, então respondeu:
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Esse é seu bisavô, filhinha. O nome dele é Boleslau.
Com iniciativa própria, a pequena Bruna largou a mão da mãe, ajeitou o pezinho na roda da cadeira, que
estava travada, esticou-se e beijou o rosto do bisavô com doçura, até ouvir o estalo. Fez-lhe um carinho
com a pequena mãozinha e disse:
Oi, bisavô.
Lágrimas rolaram pela face enrugada de Boleslau, e a menininha ainda disse:
Não chora. Virando-se para a mãe ela perguntou: Mamãe,por que ele está chorando?
Raquel não conteve os sentimentos; deixando que as lágrimas também corressem em seu rosto, falou:
É a emoção, filha. Há tempos não nos vemos. Tenho certeza de que é a saudade.
Sem pensar, Bruna Maria falou inocentemente:
Então dá um beijo nele para matar essa saudade, mamãe!Raquel não resistiu e agora, chorando
mais ainda, aproximou-se do
velho avô e beijando-lhe ao oferecer seu melhor abraço carinhoso. O homem chegava a soluçar de
emoção, principalmente agora, se lembrando de tê-la maltratado tanto após a violência que sofrera. A neta,
de joelhos a seu lado, pegava a toalha que estava em seu colo e secava-lhe as lágrimas, dizendo:
Não chora, vô. Tudo já passou. São novos tempos e temos umanova vida, uma nova oportunidade.
Após uma pausa, ela disse: Essa é minha filha, Bruna Maria. Tentando esboçar um sorriso no rosto
que se contraía pelo choro emotivo, falou: Bruna não é linda? Porém avisou: Meu marido,
Alexandre, veio comigo.
Ao dizer isso, Raquel se surpreendeu ao ouvir:
Estou aqui disse o marido se aproximando.
Com um joelho dobrado e o outro no chão, Alexandre ficou ao lado de Boleslau, pegou-lhe a mão e
cumprimentou-o. O velho não podia falar, mas seus gestos, sua face e seus olhos exibiam fortes emoções.
Ele tentava sorrir em meio ao choro.
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Dona Tereza, a certa distância, os observava sem dizer nada, mas com um olhar de felicidade, vitória e
orgulho.
Na manhã seguinte, bem cedo, Alexandre já se interessava em conhecer parte da fazenda junto com os
cunhados, que se acostumaram rapidamente com ele, tendo em vista seu jeito descontraído e extrovertido.
Uma das empregadas que cuidava da cozinha informou a Raquel, que procurava pelo marido, pois ele se
levantara antes que ela acordasse:
Ah! Eles saíram bem cedinho. Tava até escuro.Dona Tereza, que chegou e ouviu a conversa, falou:
Deixe teu marido com teus irmãos. É bom que se acostume aqui.Mais da metade disto tudo será
teu e de teu marido também. Acho que tu não vai querer cuidar de terra, então vai deixar para o Alexandre.
A mulher falava sem muita delicadeza, quase impondo sua opinião. Delicada, a filha tornou cortês e
humilde:
Não podemos cuidar de nada nessa fazenda, mãe. Talvez venhamos aqui somente para visitas,
em passeio.
Não seja tola, Raquel! Isso aqui é teu! Bah!
Estamos bem, mãe. Não precisamos... esclareceu Raquel commodos simples.
E se teu marido quiser ficar aqui? Isso é teu!
Não. Alexandre tem um bom emprego. Ele não vai querer. Alémdo que, a Bruna estuda em uma
boa escola e... Não me interesso. Não me agrada a ideia de morar aqui.
Com semblante austero, dona Tereza impunha a voz com arrogância. Depois de exigir que a empregada se
ocupasse com os afazeres de outro lugar, exclamou:
Admiro muito esse teu marido! dizia ela andando pela copa,fazendo seus passos ecoarem
compassadamente, como de costume.
Raquel, sentada à mesa, acompanhava seu andar com o olhar demonstrando-se reprimida.
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Como tu o conheceste? indagou a mãe.
No serviço. Trabalhávamos juntos respondeu a filha sem alongar o assunto.
Como começaram a namorar? perguntou a mãe quase inquirindo.
Bem, mãe, a Alice infernizou as ideias do Marcos, que acaboubrigando comigo e me colocou
para fora de casa. Antes disso, eu já haviadito ao Alexandre que estava com problemas com minha
cunhada, pois,para ajudá-los me desfiz de todas as minhas coisas e fui morar com eles.Quando o Marcos
me mandou embora da casa dele, eu não tinha paraaonde ir. Foi então que o Alexandre me ajudou.
Como? tornou a mãe com sentimentos frios e um jeito seco defalar.
Raquel abaixou a cabeça, pois sabia dos costumes e preconceitos que havia na opinião de sua família.
Tímida a filha respondeu:
Fui morar com ele. Se não o fizesse, ficaria na rua. Eu não tinhaaonde ir.
A mãe a olhou com o semblante sisudo, exibindo-se contrariada. Sem modos educados e até um tanto
brutos perguntou:
Tu não foste louca de ter "alguma coisa" com ele antes de se casar?Mesmo se sentindo magoada,
humilhada e ofendida, Raquel respondeu:
Não, mãe. Nunca tivemos nada. Ele sempre me respeitou.
E a Bruna, como ele soube e a aceitou?
Raquel começou a se sentir insatisfeita, não gostando da maneira como a mãe a abordava, pois a mulher o
fazia como se a filha lhe devesse satisfações e Raquel acreditou que ela não tinha esse direito pelo fato de
nunca tê-la orientado ou auxiliado em alguma coisa. Raquel respirou fundo, encarou a mãe, e falou firme:
Mãe, o Marcos me expulsou de casa e eu fiquei na rua em plenamadrugada fria de inverno. O
Alexandre me acolheu em sua casa depoisque eu liguei para ele. Com o tempo, conheci a família dele. Ele
percebeu que havia algo errado comigo, eu tinha medo, pois ele queria me
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namorar e... Bem, diante de tudo o que eu demonstrava sentir, tinha de haver uma explicação. Por tudo o
que ele fazia para me ajudar, eu me vi obrigada a contar. O Alexandre sabe de tudo! Exatamente tudo!
Inclusive que o pai da Bruna é o meu pai!
A mulher empalideceu. Ela se sentou e mesmo sentindo-se mal perguntou:
Tu tiveste coragem, Raquel, de contar tudo a ele?
Precisei contar, mãe disse Raquel, com voz piedosa e acanhada. Desculpe-me, por favor.
É
que a senhora não imagina o quanto sofro, até hoje, por causa de tudo o que passei. Não é algo que dá
para seesquecer. Venci alguns traumas graças ao Alex. Mas ainda tenho muito que superar. Raquel fez
breve pausa, depois revelou: Para meumarido me dar um simples abraço, sem que eu não tivesse medo
dele, a senhora não imagina como foi difícil. Creio que jamais poderá entender o que senti, o que sinto e o
que vivo até hoje.
Dona Tereza ficou olhando para a filha sem saber o que falar. Ela não conseguia ser amiga de Raquel.
Agora se colocava novamente em uma posição austera. Ignorando maiores detalhes sobre a vida da filha,
pois não parecia se importar com os sentimentos de Raquel, dona Tereza perguntou:
Ele assumiu a Bruna como se fosse dele? Isso é verdade, mesmo?
Sim. Desde o instante em que decidimos nos casar, ele disse quea Bruna é filha dele. O Alex não
admite que digam o contrário. Ele seapresentou a ela como pai e não pretendo, por enquanto, revelar
outracoisa.
Levantando-se e falando de um jeito rude, Tereza recomendou:
Não fique adiando, guria! Tenha logo um filho desse homem.Todo homem quer um filho, ele
merece e isso vai prendê-lo mais. Ele deve gostar muito de ti para tê-la aceito com todos esses encargos
e sabendo de tudo o que te aconteceu.
Raquel abaixou a cabeça e não disse nada, se sentindo humilhada pela situação.
Tu tomas remédio? perguntou a mãe grosseiramente.
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Não sussurrou cabisbaixa ao responder.
Isso é bom. Arrume um filho logo, viu! E que seja homem! Reze por isso.
Bruna, que acabara de acordar, procurou pela mãe que, ao vê-la, recebeu-a com abraços, beijos e carinho.
Mamãe, e o papai?
Sorrindo para disfarçar a mágoa daquele instante, Raquel avisou:
Saiu cedo, mas já volta. Ao ver a filha se entristecer, ela anunciou: Vamos tomar rapidinho
o seu café que eu quero levá-la a umlugar bonito e gostoso, aonde eu ia e brincava muito.
Onde? Onde, mamãe?
Surpresa! Risonha e animada ela propôs: Vamos! Vamos depressa!
Brincando com a filha e indo preparar seu desjejum, Raquel saiu da sala deixando a mãe com os próprios
pensamentos.
Pouco tempo depois, após uma caminhada, Raquel saía da estradinha e pegava um trilho que, como um
túnel, era ladeado de árvores frondosas que cruzavam seus galhos ao meio, mal deixando os raios de sol
filtrarem. Ouvia-se a água batendo nas pedras tal qual um murmurinho que vai aumentando de volume
conforme a aproximação. De mãos dadas, Raquel e Bruna chegaram a um lago transparente e belo cuja
bonita cachoeirinha derramava sua queda-d'água sobre as pedras e encantava o lugar.
Eba! gritou a menina de alegria.
Não vá muito além dessas pedras, Bruna. Ali adiante é fundo avisou a mãe sorridente ao vê-la
feliz.
Eu sei nadar! O papai me ensinou!
Eu sei, mesmo assim quero que fique aqui perto.
Após se atirar na água cristalina, a garotinha avisou, com um jeiti-nho todo especial, encolhendo-se com
graça:
Tá tão geladinha!
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Raquel sabia que Bruna brincava em segurança, pois ela conhecia muito bem o lugar e tinha ciência de que
a lagoa possuía uma larga extensão que não era funda e a profundidade aumentava vagarosamente,
podendo-se perceber muito bem.
Mais à vontade, Raquel tirou as sandálias e caminhou um pouco na beirada, molhando os pés. Chegando
até um galho de árvore que, como um braço, saía de um tronco que ficava na beira do barranco, parecendo
uma gangorra presa em um só lado, ela falou:
Venha, Bruna! Pule daqui!
A filha obedeceu e fez do galho de árvore um trampolim. Ao sentir os borrifos d'água, a mãe sorriu e se
afastou para perto do gramado, onde se sentou reclinando o corpo em outro tronco de árvore. Bruna
brincava alegre e sua risada soava muito gostosa.
Deixe-me ir embaixo da queda-d'água, mamãe?
Agora não. Mais tarde, junto com o papai, você poderá ir.
Olhando a filha, Raquel sorria lembrando-se de como gostava daquele lugar que era o seu refúgio de paz.
Ali, ninguém a incomodava. Quando menina, brincava e nadava naquela lagoa, que parecia ser encantada
em sua imaginação, que criava diversões. De sua infância e início de adolescência, aquela era a única
coisa que oferecia saudade para Raquel.
Recostada no tronco, ela cerrou os olhos e se entregou ao ruído alegre da filha querida e do canto dos
pássaros que podia ouvir. Sem saber dizer por quanto tempo ficou ali, talvez cochilando, de repente Raquel
se sobressaltou e, olhando assustada, não viu a filha. Levantando-se às pressas ela chamou em
desespero:
Bruna! Bruna!!! Raquel sentiu-se gelar, apavorada em pensarno que teria acontecido. Ela correu,
caiu sobre algumas pedras, levantou-se, chamando aflita: Brunaaaa!!! Bruna!!! Onde você está?!!!
Foi quando ouviu a voz de Alexandre que a procurava:
Raquel?!
Ao ver o marido, ela o agarrou sacudindo-o e gritou assustada:
Onde está a Bruna?!!! Onde ela está?!!!
463
O rosto pálido, lavado de lágrimas exibia desespero. Alexandre segurou-a firme e generoso, avisando
surpreso:
Eu não sei. Acabei de chegar. Onde vocês estavam?
Ali! respondeu apontando para o lugar e contou: Ela estavabrincando! Eu a tinha sob
minhas vistas! Eu sentei ali e fechei os olhos,acho que cochilei...
O pai, desesperado, correu na direção da lagoa e subiu em uma pedra alta para ter uma visão melhor.
Bruna! Chamou Alexandre em voz alta e grave, sem obterresposta. Bruna!
Raquel também gritava o nome da filha até que Alexandre a viu sair com meio corpo de trás de uma árvore,
com o dedinho indicador na frente dos lábios, sorrindo e pedindo-lhe silêncio. Alexandre desceu de onde
estava, aproximou-se de Raquel dizendo mais tranquilo e em baixo tom de voz:
Ela está ali. Calma. A Bruna estava brincando.
Onde?! gritou a esposa.
Calmo, ele olhou na direção chamando-a com firmeza:
Bruna, vem cá, filha. Não assuste a mamãe, não.
A menina chegou rindo e Raquel, muito nervosa pelo susto, abaixou-se, segurou seus braços, agitou-a e
chorando disse:
Nunca mais faça isso, entendeu?Rápido, Alexandre interferiu dizendo:
Calma. Já passou, Raquel. Não faça isso.
Ele pegou Bruna Maria no colo que, agora triste, dobrou-se em seu ombro. Abraçando Raquel, que ainda
chorava, ele as levou para o carro que havia estacionado na estradinha. Colocando a filha no banco de trás
do veículo, falou calmo ao orientá-la:
Bruna, isso não é coisa que se faça. Você gostaria que eu sumisse e a deixasse sozinha?
Não respondeu a garotinha querendo chorar.
A mamãe está chorando porque não quer ficar sem você. Ela está assustada e o papai também.
Nós a amamos, filha.
464
Eu tava brincando...
Agora eu sei. Mas na hora em que você sumiu, eu não sabia efiquei preocupado. Eu não quero
ficar sem você. Não faça mais isso.
Com sua vozinha meiga ela ainda explicou:
Eu escutei seu carro e vi você de longe, a mamãe tava dormindo eaí eu me escondi pra brincar.
Tudo bem, mas agora não vamos brincar mais assim, tá bom?
Tá bom.
Voltando-se para a esposa, ele observou o machucado sangrando em seus joelhos. Passando-lhe
cuidadosamente uma toalha em torno dos ferimentos, perguntou calmo e generoso:
Como fez isso, Raquel?
Eu caí. Após pequena pausa, Raquel pediu e murmurando,ainda assustada e aflita,
querendo explicar: Eu quero ir embora daqui. Quero sair dessa fazenda o quanto antes.
Chegamos ontem, Raquel! A viagem foi cansativa e...
Ela começou a chorar e pediu implorando-lhe ao segurar firme em sua camisa:
Alex, pelo amor de Deus, leve-me embora deste lugar! Erramos em ter vindo. Entre os soluços,
quase sussurrando, suplicou: Eununca te pedi nada, mas agora vou, por favor, se você me ama,
vamos embora. Não tenho o que fazer aqui. Minha mãe não mudou, meus irmãos não mudaram, pensei que
eu encontraria uma família, mas só revi conhecidos que parecem não me considerar.
Alexandre a abraçou com carinho entendendo seu pânico.
Tudo bem, meu amor. Nós vamos embora, sim, e o quanto antes.Raquel se acomodou no banco e
Alexandre ligou o carro para irem
para a casa. Após seguirem alguns metros, ele perguntou:
O que vamos dizer para sua mãe?
Que eu vim vê-la, que já fiz isso, agora tenho que ir.
Ele ficou em silêncio. Após dirigir mais um pouco, ao virar rapidamente o carro em direção à outra
estradinha, ignorando o caminho, perguntou:
465
Aonde vai dar essa estrada?
Não! disse Raquel quase num grito ao perceber.
Por quê?
Daremos uma volta enorme para chegar em casa. Estávamos perto. Vamos voltar.
Precisamos dar uma volta. Olha seu estado, seu rosto está vermelho, chorando e machucada...
Vamos pensar no que diremos para suamãe.
Vamos voltar, Alex! pediu novamente quase implorando.
Só se você me disser por quê. Veja, nem tenho onde manobrar ocarro. A esposa ficou em
silêncio e ele pediu: Bruna, dá essagarrafinha de água que está aí no banco para a mamãe. Voltando-
separa a mulher, falou: Molhe a toalha e passe nos joelhos. Ainda estão sangrando.
Ela obedeceu e ficou em silêncio. Alexandre, puxando conversa, admirou:
Nossa, que lugar bonito! Daria um excelente hotel-fazenda. Apontando à frente, perguntou:
Aquelas casas são dos empregados?
São respondeu um pouco mais calma.
Ao olhar o painel do carro e ver acesa uma luz que indicava problemas na parte elétrica, Alexandre avisou:
Eh! Caramba! Estamos com algum problema. Não sei o que é isso, precisamos parar.
Não! gritou Raquel.
Calma. O que é isso, Raquel?
Ao avistar uma casa bem mais estruturada que as outras e observando que a mesma tinha um jipe parado
a poucos metros, ele decidiu e falou:
Vamos parar ali...
Momento em que o carro desligou por completo, sem que Alexandre conseguisse dar partida no motor.
Não! Não, por favor! implorou Raquel aflita, em pranto, segurando no braço do marido e
desesperada pedia: Leve-me embora!Não pare!
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Mamãe! chamou Bruna, pois se sentia assustada com o que via.
Raquel colocou o braço para trás e procurou se controlar, fazendo-lhe um carinho, confortando-a. Sem
saber o que fazer, Alexandre falou firme e mantendo a calma:
Raquel, eu não tenho alternativa. Não consigo ligar o motor.
Eu pedi para irmos embora disse ela chorando.
Eu sei. Desculpe-me, mas no momento...
Deixando que o carro aproveitasse o impulso da pequena descida, Alexandre controlou sua velocidade no
freio até para-lo na frente da casa. Após olhar para a filha, ele pediu baixinho para Raquel:
Controle-se, bem. Você vai assustá-la.
Ela tentava se conter, mas parecia empalidecer a cada minuto. Ao ver o carro parado, Bruna passou por
entre os bancos e foi para o colo da mãe. Raquel sentia-se muito mal. Estava gelada, sua respiração se
alterara e ela fechou os olhos procurando se controlar.
Ao ver Alexandre descer, um empregado se aproximou, perguntando:
Tá perdido, moço?
Não. Estou com problemas no carro.
De onde o moço vem?
Sou genro de dona Tereza, marido da Raquel, sua filha. Estávamos passeando e...
Ah! Eu soube que chegaram ontem!!!
Foi isso mesmo avisou Alexandre.
Aproximando-se do carro, só então o empregado reconheceu Raquel, pois antes, devido ao reflexo
espelhado do vidro, ele não podia vê-la.
Raquel?! surpreendeu-se ao chegar perto. Quando eu ouvifalar nem acreditei, guria!!! Bah!!!
Ela abriu a porta do carro, Alexandre deu a volta, pegou a filha pela mão e o homem, ainda admirado,
olhava-a surpreso. Raquel não queria descer do veículo, mas se viu obrigada.
Olá, seu Afonso cumprimentou ela acanhada, estendendo-lhe a delicada mão
trêmula e gelada.
467
O senhor tirou o chapéu, cumprimentou-a animado e com largo sorriso. O marido, em seguida, se
apresentou:
Meu nome é Alexandre. Sou marido de Raquel. Indicandopara a menina, completou: Essa é
Bruna Maria, nossa filha.
O senhor Afonso ficou perplexo. Fora ele quem abrigara Raquel na noite em que o avô a colocara para fora
de casa. Com olhar piedoso, Raquel parecia implorar, ao pedir educadamente e com voz delicada:
Seu Afonso, por favor, poderia nos ajudar? Só voltei aqui para verminha mãe, mais nada. Nosso
carro apresentou um defeito e... Eu quero sair daqui. Pelo amor de Deus!
Barbaridade! Vou ver o que te posso fazer, filha. Tu sabes, né...!
Esse jipe pode rebocar meu carro até a Casa-Grande disse Alexandre olhando para o veículo.
Esse está quebrado. Ninguém mais consertou desde o acidente que matou as gurias do seu
Ladislau. O senhor olhou para Raquel eavisou constrangido: Tem a pick-up lá atrás.
Raquel tremia e olhava para o marido, que disse:
Pode nos emprestar a pick-up?
Tu tens que pedir para o seu Ladislau. Ele é o dono e tá lá dentro tornou o homem meio sem
jeito.
Não! decidiu Raquel. Vamos embora a pé!
Ficou louca, Raquel? sussurrou. É longe! E a Bruna? Virando-se para o empregado,
Alexandre perguntou: Vocês não têmnenhum outro carro aqui?
Tem, mas já saiu para trabalhar com os empregados ou com oleite. Isso foi bem cedinho.
Nervoso com a situação, o rapaz decidiu resolver rápido:
Onde está o dono dessa caminhonete? Vou lá falar com ele.
Não!!! pediu Raquel.
Alexandre não se importou e se afastou do carro em direção da casa, subindo os poucos degraus da
varanda de dois em dois. Batendo palmas, ele se anunciava.
Uma mulher que parecia empregada surgiu à porta e o senhor Afonso, bem atrás do rapaz, perguntou para
a mulher:
468
Onde está o seu Ladislau?
Ali, ó! disse indicando ao homem que, de costas, estava sentado numa cadeira parecendo
aguardá-los, pois, pela janela, assistia à cenaque ocorrera lá fora.
Alexandre entrou e ao olhá-lo sentiu-se mal, porém procurou manter as aparências e controlar seus
sentimentos. Aproximando-se se apresentou:
Sou Alexandre, genro de dona Tereza. O homem ficou em silêncio e ele continuou: Vim aqui a
passeio, só para minha esposavisitar a mãe. Estávamos dando uma volta e meu carro apresentou
umproblema quase aqui em frente.
Ladislau não dizia nada, só o olhava firme.
Alexandre parou de falar, suspirou fundo, andou mais alguns passos, engoliu a seco e completou:
Preciso de um carro emprestado e pensei no jipe, mas o senhor Afonso disse que está com defeito.
Não há mais nenhum outro e não podemos voltar a pé. Não por mim ou pela minha esposa, mas é
queestamos com a nossa filha e... Após interromper o que dizia, pelaemoção que o fez embargar a voz,
completou: Ficaria difícil, ela épequena. Poderia nos emprestar a sua caminhonete para guinchar
meucarro?
Com olhar firme, quase sem piscar, Ladislau não demonstrava expressão alguma. Ele moveu sua cadeira
de rodas na direção da porta, passando por Alexandre e seguindo até chegar na varanda, de onde podia
ver melhor Raquel e a filha.
Ela, em pé, aguardava aflita a volta do marido. Ao vê-lo, Raquel segurou Bruna na sua frente e também o
encarou firme sem expressão, sem sentimento algum. Ele se virou para Alexandre, olhou-o bem, abaixou a
cabeça e disse ao empregado:
Vá lá e pegue as chaves. Ajude o moço no que precisar, viu?Alexandre agradeceu e, quando ia
descendo a escada, ouviu:
É tua a... guria?! perguntou Ladislau.
O marido de Raquel se virou e respondeu sereno quase sorrindo:
É sim. É minha filha, sim. Não é linda?!
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Após encará-lo sem resposta, o rapaz se virou, foi na direção da esposa e gentilmente a fez entrar no carro
junto com a filha.
O veículo foi guinchado até a casa grande, onde Raquel entrou às pressas sem dizer nada. Ao vê-los
chegar daquele jeito, dona Tereza perguntou:
Essa caminhonete não é do teu tio?!
A filha não respondeu, foi para o quarto. Aflita, Raquel começou a fazer as malas.
Raquel! Estou falando contigo, guria! reclamou a mãe parando alguns passos após entrar no
quarto.
Alexandre, que acabava de chegar, virou-se para Raquel e pediu:
Calma. Não sei se iremos embora hoje. Terei que levar esse carro lá na cidade para ver qual é o
problema.
Ponderada, mas nervosa, a esposa perguntou:
Onde está a Bruna?
Na cozinha. A Gorete fez um suco pra ela.Decidida, Raquel avisou:
Olha, Alex, o carro vai para a cidade, sim. Mas iremos todos juntos.
A mãe interferiu e perguntou alterada:
Como pegaram a caminhonete daquele homem?!
Foi preciso, dona Tereza explicou Alexandre. Estávamosdando uma volta, meu carro
apresentou um problema lá perto de onde ele mora. Não poderíamos andar seis
quilômetros com a Bruna
no colo e com esse sol escaldante.
Virando-se para Raquel, a mulher disse nervosa:
Que carregasse tua filha nas costas, mas não fosse pedir nada aquele verme! Bah!
Raquel a olhou firme e, falando baixo, impôs-se de forma a não se abalar, dizendo:
Olha, mãe, diante das dificuldades, a primeira mão que se estender devemos aceitar. Talvez sejam
esses os desígnios de Deus.
Quase gritando, dona Tereza retrucou:
470
Como tu podes falar assim comigo depois de tudo o que aquele verme te fez?!!! Barbaridade, chê!
Tu tens que me respeitar, Raquel! Se eudisse que não deveria pedir a ajuda dele, é porque não deveria!
Em baixo volume de voz, porém muito firme como nunca alguém vira antes, a filha perguntou, com modos
frios, ao encará-la de frente:
Quem é a senhora para me dizer o que devo ou não fazer? A senhora não sabe o que é ajudar
alguém, muito menos sabe o que é pedir por socorro. Se não fosse ele, quem iria nos ajudar? É
cômodo
só exigirmos dos outros e nos acovardarmos quando se faz necessário ajudar alguém. A senhora nunca
ajudou ninguém, nunca soube o que é proteger, nem a mim, que pouco orientou, mãe. Mas sempre
soube exigir. Não me lembro de ter recebido um carinho seu. Quando foi que me disse "eu te amo, Raquel"?
Nunca!
A mulher abaixou a cabeça com o semblante sisudo sem dizer nada, e a filha continuou:
Quando é que me socorreu de um sonho ruim? Em pouco tempo com a família do meu marido
recebi mais carinho e atenção do que em todos os anos em que vivi aqui. A senhora sempre me criou
distante de meus irmãos. Não seja tão amarga e exigente, mãe. Isso dói muito.
Não fale assim comigo! avisou dona Tereza austera. Se eu estou chamando tua atenção é
porque não agiu direito!
Raquel se virou para continuar a fazer as malas e a mãe exigiu, segurando-a pelo braço com gesto rude, ao
dizer:
Olhe para mim quando eu falar contigo!!!Alexandre não gostou e reagiu ponderado:
Espere, dona Tereza. Solte a Raquel. As coisas não são assim, não.
Mãe disse Raquel ao se virar para evitar uma discussão com o marido , fizemos o que foi
preciso. Agora temos que ir embora daqui.
Arrogante e orgulhosa, a mulher perguntou:
Ele te viu?
Por que quer saber, mãe? perguntou desconfiada.
Só quero ter a certeza se aquele verme te viu com a filha dele.
471
Alexandre alteou o volume da voz e falou gravemente:
Não fale isso nunca mais! A Bruna é minha filha!Raquel sentiu-se gelar e decepcionada revelou
ofendida:
Agora eu entendo por que não foi me visitar e insistiu tanto paraeu vir até aqui. A senhora queria
me exibir como um troféu, símbolo de uma vitória.
Não foi isso! gritou a mulher.
Mãe, a vida não é uma brincadeira, eu não sou uma brincadeira! avisou exigente. A senhora
não esteve comigo quando eu mais precisei. Morei nas ruas por uns cinco meses e quase morei de novo
se não fosse o Alexandre. Nesse período a senhora nem sabia onde eu estava! Foi por não querer ser uma
mãe assim como a senhora é que eu corri atrás da minha filha, para dizer que a amo e que ela pode contar
comigo sempre! Eu decidi não fazer com ela o que mais me feriu, o que mais me magoou na vida, ser
abandonada por minha mãe nas piores dificuldades. A senhora não tem o direito de me exibir! Nem tem o
direito de me exigir nada!
Acha que eu fiquei feliz longe de ti, Raquel?! Chorei noites e noites! Roguei a Deus para que
cuidasse de ti! Sempre os odiei pelo que te fizeram!
Mãe, não julgue os outros pelo que a senhora mesma foi capaz de fazer! Falou Raquel quase
num grito. Se eles me maltrataram, a senhora não fez diferente. Quando cheguei aqui na porta desta
casa,machucada e ferida acusando o tio Ladislau de tudo o que ele fez comigo, a senhora ficou muda! Não
disse nada em minha defesa e deixou que o vô me espancasse novamente!!!
Eu tinha dezessete anos, não sabia o que fazer, não conhecia nada da vida! A senhora não me defendeu,
nem disse nada a meu favor para se proteger! Para não macular a sua moral! A sua imagem! Para que não
descobrissem que você traiu seu marido com o irmão dele! Em um tom mais brando, quase melancólico,
agora com lágrimas a correr pela face, Raquel ainda lamentou: A senhora sempre me odiou, mãe.
Talvez por eu fazê-la lembrar da traição que foi capaz de cometer. Eu faria dezoito anos pouco
472
tempo depois, mas ainda era menor de idade, eu merecia e precisava de proteção, de alguém que me
levasse a um médico, que procurasse a polícia, que lutasse por meus direitos, porque, mesmo se eu fosse
maior de idade, eu tinha sido agredida, violentada por meu tio... E em choro copioso ela continuou:
que era meu pai...! E a senhora sabia disso!
A senhora não foi diferente deles, mãe. A senhora só pensou em si, em sua moral...
Quando eu a procurei, um pouco depois de tudo o que houve aqui, a senhora me virou as costas pela
segunda vez. Isso foi mais cruel do que quando o vô me tocou desta casa. Eu estava grávida e não sabia o
que fazer! Não tinha para onde ir! E a senhora, o que fez?! Deixou-me com a consciência mais pesada
ainda por estar grávida do meu próprio pai! Desde a primeira vez que lhe reclamei daqueles carinhos
nojentos que recebia dele, poderia ter feito algo! Poderia ter falado com seu marido, aquele que pensava
que era meu pai, mas você não disse nada porque tinha medo, porque devia! O tempo em que vivi nas
ruas, recebi da Amélia, aquela indigente que a procurou na igreja, mais carinho do que todo tempo em que
vivi com você! Ela me protegeu até morrer!!!
Não fale assim comigo! inquiriu a mulher. Não tem essedireito!
Alexandre assistia a tudo calado, uma vez que via sua esposa reagir, reivindicando seus direitos, deixando
de ser submissa, superando seus temores. Nesse instante, sem chorar, porém com voz branda e
lamentosa, Raquel continuou:
E qual o direito que eu tenho, mãe? O direito de me calar? O direito de me odiar? O direito de
querer morrer por ser tão rejeitada assim? Encarando-a contou: Sabe por que não me matei quando o
Marcos me expulsou de sua casa e depois quando fui despedida do emprego? Porque ouvi do Alexandre o
quanto é doloroso o suicídio.Porque encontrei nele alguém que me amava, que me protegia, alguém que me
respeitava e respeita, que me deu o valor que não recebi deminha própria família! Como é importante uma
palavra amiga, um conselho de alguém que nos ama, num momento difícil...
473
Não queira exigir dos outros aquilo que não é, aquilo que não tem capacidade de fazer.
Eu creio que tenha pedido a Deus por mim. Eu acredito que tenha sentido minha falta, mãe. Mas acho que
não pensou que eu sentia a sua... Que eu precisava muito, muito da senhora, mãe! Por isso, não acho justo
a senhora torturar alguém com a minha imagem ou com a minha presença. Odiá-los pelo que me fizeram
não é correto porque você não agiu diferente deles.
Tadeu me contou o que vem fazendo com o vô. Desde que cheguei aqui, até agora, sinto algo estranho que
não sei o que é. O seu problema, mãe, é a mentira! E querer impor aos outros as suas determinações, a
senhora não é diferente deles, reconheça isso!
Aquele velho miserável merece morrer!
A senhora é Deus para julgar assim?
Não fale desse jeito comigo, Raquel!
Vamos parar com isso pediu Alexandre que decidiu intervir,não suportava mais a situação.
Não viemos aqui para discutir. Voltando-se para a sogra pediu: Desculpe-nos se não agradamos,mas
iremos embora o quanto antes.
A aproximação de Bruna, que chegava correndo, fez com que Raquel largasse o que estava fazendo e
fosse em sua direção; encontrando-a próxima da porta, pegou a mão da filha e perguntou, ao conduzi-la
novamente para fora do quarto:
Vamos almoçar, meu bem?
Ao se ver a sós com a sogra, Alexandre aproveitou a oportunidade e calmamente falou:
Dona Tereza, eu só quero que uma coisa fique bem clara: Bruna éminha filha. Entendeu?!
A mulher o olhou, não disse nada e saiu do quarto.
À tardinha Alexandre, conversando com a esposa, explicava:
Amanhã cedo nós sairemos daqui e vamos até a cidade. Ficarámais fácil para eu chamar um
guincho do seguro. Ficaremos num hotel,é mais tranquilo.
474
Eu queria ir embora hoje, Alex avisou Raquel descontente.
Eu sei, eu também, mas não dá. Já está anoitecendo.
Após o jantar, Bruna se balançava em uma cadeira de vime que ficava na varanda e Raquel, a certa
distância, a olhava. Alexandre se aproximou e a abraçou perguntando:
O que foi? Você está tão com o semblante tão triste. Puxa, Raquel! Eu não a trouxe aqui para
isso. Se eu soubesse...
Foi bom eu ter vindo. Enxerguei realmente tudo como é. Nadamudou e agora não terei mais
dúvidas.
Como assim?
Alex, há alguma coisa errada com meus irmãos, como sempre houve. Eles ainda me ignoram.
Quer que eu pergunte por quê?
Não. Vou pôr a Bruna para dormir e depois conversarei com eles. Após poucos minutos, ela
comentou: Você reparou que minhascunhadas não conversaram comigo?
Reparei, sim. Elas vêm e vão e estão sempre caladas.
Eles afastaram as crianças também, não deixando que brincassemcom a Bruna. A mulher do
Pedro resolveu ir ficar na casa da mãe.
Eu achei isso estranho, mas...
Pouco tempo depois, após a filha ter dormido, Raquel procurou pelos irmãos, que estavam sentados na
escada do outro lado da casa.
Tadeu e Pedro, eu preciso falar com vocês. Os irmãos a olharam e ela os chamou: Daria para
vocês entrarem um pouquinho?Será melhor conversarmos aqui dentro.
Já na grande sala os três se dispuseram sentados em torno da mesa e Raquel falou:
Nunca tivemos a oportunidade de conversar assim e ser diretos,verdadeiros. Eu voltei para visitar
vocês e sinto que algo está errado.Gostaria de saber o que é.
Surpreso com a atitude da irmã, que sempre fora calada, Tadeu respondeu:
Não há nada errado! Bah! Tu tá vendo coisa que não existe!
475
Há sim. Mal vi minhas cunhadas e meus sobrinhos, vocês nemfalaram conosco direito e...
Passamos a manhã inteira com teu marido e mostramos tudo defendeu-se Pedro. Fomos a
cavalo até o ribeirão da "montanha velha" pra ele conhecer... Depois, quando voltamos, ele perguntou
pramãe onde tu estavas e resolveu pegar o carro pra ir atrás de ti e de tuaguria. Não houve mais tempo
depois disso.
Eu quero dizer que minha presença parece que os incomoda.Tadeu abaixou a cabeça e Pedro a
olhou. Tímido, Tadeu resolveu
revelar:
Olha, Raquel, o tipo de vida que tu tens levado não agradou a gente.
Que vida eu tenho levado?
Vamos ser honestos, tá? decidiu Pedro. Assim que acusou o tio daquilo tudo, nós não
acreditamos, é lógico!
Por quê? perguntou a irmã sentindo um nó na garganta e imensa vontade de chorar.
Fazia tempo que o tio vinha nos dizendo que tu irias dar trabalho pra gente. Que tu ficavas se
assanhando pra ele e se estava fazendo isso pra ele, fazia pra os outros também. Eu mesmo ficava
intrigado quando tu sumias.
Por que não perguntou onde eu estava? A mãe sabia que eu gostava de ficar na cachoeirinha
brincando. Aquele lugar se tornou um local"encantado", era o meu "castelo", o "mundo" onde eu imaginava
brincadeiras, pois não tinha companhia...
Não sei por que não te perguntei. Só que, assim que tudo aconteceu, não pudemos acreditar
porque pensamos que acusaste o tio pra se vingar das surras que levaste por ele ter avisado sobre o
negrinho que te namorava.
Tadeu ficava calado e Pedro continuou:
O tio sempre foi um pai pra gente, minha irmã. Ele sempre teve moral. Não pudemos acreditar
naquilo. Depois de um tempo, a mãe nos procurou e disse que tu estavas morando com o Marcos e mostrou
476
uma carta da Alice, onde ela dizia que tu estavas dando trabalho. Pedro se calou por uns instantes, mas
depois revelou: A Alice disse que tu estavas saindo com "um e com outro".
Tadeu, que até então não se pronunciara muito, argumentou:
Agora, de repente, tu apareces casada e traz uma guria junto.Tudo tá muito confuso, Raquel. Olha
a idade dela! Mas tu não tens que dar explicações, não. Se ele te aceitou... Tá certo. Sejam felizes! Bah!
A irmã estava decepcionada com o que ouvia. Raquel respirou fundo, criou coragem e falou com sua voz
doce, porém firme e com postura inalterável:
Pelo que estou percebendo a mãe nunca contou tudo a vocês.Vamos esclarecer, de uma vez por
todas, o que eu deveria ter feito desde o começo. Os irmãos se entreolharam e Raquel continuou:
Aconteceu assim: desde pequena, quando eu tinha uns oito ou nove anos,percebi certos carinhos
estranhos por parte do tio Ladislau...
Os irmãos, atentos, surpresos e assombrados, ouviram tudo até o fim.
Mesmo com a voz embargando em alguns momentos, Raquel não se deteve e, no final, os irmãos estavam
perplexos, boquiabertos. Eles ficaram em silêncio por alguns minutos, mas depois Pedro virou-se para
Tadeu e perguntou:
Lembra-te que, assim que a Raquel foi-se embora, eu achei o casebre revirado e te chamei para
mostrar as amarras cortadas e desfiadas,comida embolorada e água...?
Lembro! Bah!!! confirmou Tadeu, atordoado, e completou: Tinham manchas de sangue e eu
até encontrei aquela capa e o bornal do tio, mas não quisemos acreditar, pensamos que o negrinho tinha
roubado. Barbaridade!!!
Pedro pendeu a cabeça e Raquel disse:
Foi lá mesmo, no casebre perto do ribeirão da "montanha velha",que ele me prendeu. Para me
soltar, fiquei quase a noite inteira roendoaquelas tiras com os dentes, igual a um animal.
Desgraçado! Maldito!!! gritou Pedro dando um soco forte na mesa. Eu vi o lugar e ainda
pensei...! Não quis acreditar! Era mais
477
fácil dizer que tu estavas mentindo pra não ter remorso de não ter te acudido. Não tinha como desconfiar do
desgraçado do tio.
Calma, Pedro pedia Raquel. Não fique assim, não adiantamais.
Raquel perguntou Tadeu , tu tens certeza de que ele é teu pai?
Foi isso o que ouvi da mãe, quando a procurei desesperada por estar grávida e morando nas ruas
com uma indigente. Se quiserem chamá-la agora para esclarecer tudo novamente... Estou pronta para esse
"frente a frente".
E tua filha? tornou Tadeu.Raquel abaixou a cabeça e respondeu:
Agradeço a Deus por ela ser perfeita, pois... por ser filha do próprio avô... Alexandre a assumiu
como filha dele. Ele não quer que Brunasaiba a verdade.
Teu marido sabe dessa barbaridade, mesmo?! Chê!!!
Sim. Ele sabe de tudo. Como eu disse, foi o Alexandre quem me recolheu, fez superar tantos
desafios e aceitar minha filha sem lembrarde como a concebi.
Pedro estava inconformado. Ele se levantou e, quase gritando, esmurrou a mesa novamente ao falar:
Vou matar aquele desgraçado! Miserável!!!Raquel foi em sua direção e o abraçou, implorando:
Pedro, por Deus, por seus filhos, eu te peço que não faça nada. O tio já é vítima de si mesmo.
Não suje as suas mãos, por favor!
Não posso me conformar, minha irmã! Eu tenho uma filha e...
Estou te pedindo, por favor, por tua filha... Ela não merece ter umpai assassino. Já me vi em
muito desespero por causa dessa história, superei medos e traumas, mas ainda vivo alguns conflitos por
tudo o que aconteceu. Não me deixe com mais esse remorso de saber que um devocês fez algo contra a
vida dele por causa do que contei. Eu temia que soubessem a verdade e reagisse assim, mas não queria
que continuassem a duvidar da minha moral. O Marcos acreditou em mim, mas se deixou
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levar pelas mentiras de Alice, como eu já contei. Hoje ele sabe a verdade e nós nos damos tão bem.
Gostaria que fosse assim com vocês. O irmão a encarou sentindo verdadeira compaixão e
arrependimento. Raquel, preocupada, pediu novamente: Não me deixe com esse peso na consciência,
já sofri muito, meu irmão. Por favor.
Alexandre que, vagarosamente, entrou na sala, fazendo-se ouvir pelos passos no assoalho, parou ao
chegar próximo da esposa. Tadeu aturdido ainda olhou para o cunhado e disse:
Desculpe, Alexandre. Pensamos muito mal de ti, homem!
Ele deu um leve sorriso forçado sem dizer nada e Pedro, ainda inconformado, reagia:
Canalha!!! Se pego esse...! Ele nos enganou!!!
Pedro, eu te peço, não suje suas mãos. Não me deixe com esse remorso.
Olhando para a irmã, Pedro falou:
Não sei como pode pensar assim, Raquel.
Veja, Pedro, eu estou bem. Tenho uma filha linda. Eu a amo muito. Tenho o Alex, que é um
marido maravilhoso. Sou feliz! E ele? Apunição à qual ele se condenou é pior do que a morte.
Tadeu se levantou e, andando de um lado para o outro, perguntou:
Por que a mãe nunca nos falou?
Não a culpe, Tadeu. Ela se acovardou quando não me defendeu das surras que o vô me dava,
deve ter ficado em choque com o que aconteceu, sofrido e sentido muita vergonha, também. Se quiserem
tirar satisfações com ela, aproveitem a minha presença aqui, mas não a condenem. Contudo quero que me
prometam que não vão fazer nada contra ele.
Pedro a encarou, sentindo-se arrependido e a abraçou dizendo:
Raquel, tu és capaz de perdoar a gente? Perdoa?! A gente precisa do teu perdão.
Claro, Pedro. Eu amo vocês.
Tadeu, mesmo meio sem jeito, a envolveu com carinho e lágrimas nos olhos, mas não conseguiu falar.
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Ao se recolherem no quarto, Raquel olhou a filha que dormia tranquila e virou-se para o marido, que estava
ao lado, fitou-o por um tempo, até que ele, sem entender, sorriu e perguntou generoso:
O que foi?
Ela o abraçou com força e disse baixinho:
Amo você, Alex. Obrigada por você existir.
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Capítulo 21
Doação de órgãos
Na manhã seguinte, bem cedinho, Raquel despertou com o carinho delicado da mãozinha de Bruna, que
tocava seu rosto. Alexandre não estava do seu lado e ela olhou para a filha que sorrindo dizia:
Bom dia, mamãe!
Bom dia, meu amor!
Mamãe avisou a garotinha com voz doce e meiga , o papaijá levantou.
É tão cedo, Bruna. Por que não está dormindo?
Eu tentei. Fechei os olhos assim, oh! disse a pequena espremendo os olhinhos. Mas não
adiantou nada. Por isso eu vim aqui dormir com você.
Raquel sorriu, levantou-se e foi se arrumar para ir à procura do marido. Alexandre mexia em seu carro,
tentando encontrar o defeito. Ao ver a esposa parada na escada da varanda, ele sorriu e avisou:
Você nem vai acreditar! Foi um cabo da parte elétrica que talvez,pela estrada esburacada, tenha se
soltado de leve por não estar bempreso, por isso a luz do painel acendeu. Quando o cabo acabou
dedesligar, o carro "apagou" por completo.
Indo a seu encontro Raquel o beijou e perguntou sorrindo:
Então posso pegar as coisas para irmos?
Fique, Raquel! com jeito seco a mãe pediu, da varanda, enquanto os observava.
Com a educação que lhe era própria, a filha argumentou:
Obrigada, mãe. Mas é que, realmente, preciso ir.
A mulher não respondeu nada. O marido de Raquel, que havia se voltado para o carro, falou quase
sussurrando, com a cabeça sob o capo que estava levantado:
Se quiser, pode arrumar as coisas agora mesmo. Vou pedir para seu irmão dirigir o meu carro até a
casa do seu tio. Tenho que devolvera pick-up o quanto antes.
Raquel empalideceu imediatamente e o marido tentou tranquilizá-la, dizendo:
Tudo bem. Fique calma, estarei com seu irmão e voltaremos logo.
Chegando à casa do cunhado de dona Tereza, eles ouviam alguns gritos em meio a gemidos de lamentos.
Ao olhar para Pedro, Alexandre assustou-se ao perguntar, sem palavras, o que era aquilo.
Não se intrigue! Bah!!! avisou o cunhado com seu sotaquecarregado e bonito, bem típico da
região. É minha tia. Ficou assim desde que as três gurias morreram. Após poucos segundos,
enquanto Alexandre ainda fechava a pick-up, ele lembrou: Agora eu sei o que pesa na consciência. Ela
também jurou contra minha irmã.
Alexandre, ao entrar na casa chamando, viu a cadeira de rodas de Ladislau, que novamente parecia
esperá-lo.
Pedro ficou à porta e o cunhado entrou, dizendo:
Bom dia! Com licença. Vim devolver as chaves. A caminhonete está estacionada no mesmo lugar
que a peguei. Obrigado. Muito obrigado, mesmo. Ajudou-nos muito.
Ladislau moveu-se até ele, pegou-lhe a chave da mão e balançou a cabeça concordando. Sem ter mais
nada a dizer, Alexandre se despediu rápido e saiu da sala seguindo Pedro, que já estava próximo de seu
carro.
Ladislau foi até a varanda e antes de vê-lo descer os poucos degraus chamou:
Ei, rapaz!
Alexandre se virou e ele gesticulou para que voltasse.
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Pois, não? perguntou sentindo um mal-estar que parecia lhecorrer por todo o corpo como um
tremor frio que chegava a estonteá-lo.
Encarando-o com modos frios, o senhor curvo, devido à altura, deixando perceber que fora muito forte,
perguntou em baixo e grave tom de voz, espremendo os miúdos olhos azuis.
Eu preciso saber de uma coisa. Aquela guria, filha de Raquel, étua filha mesmo, homem?!
Alexandre sentiu-se gelar. Teve que se conter muito, pois, mesmo vendo-o naquelas míseras condições,
sentiu forte desejo de agredi-lo por tudo o que fizera à sua doce e indefesa Raquel. Rapidamente lembrou-
se do que aprendera sobre o perdão e das conversas que tinha com sua irmã Rosana sobre o fato de ter de
controlar seus impulsos. Em pensamento, o rapaz pediu: "Deus, me ajude". Respirando fundo, olhando-o
nos olhos, Alexandre ergueu a cabeça respondeu ponderado:
Sim. O pai de verdade sou eu mesmo. Quanto ao pai biológico,esse pouco nos importa.
Dizendo isso, ele sentiu-se tremer pelo nervoso, mas terminou de descer as escadas, entrou em seu carro
e se foi.
Que grande prova para Alexandre a de ter que se conter diante daquelas circunstâncias. São em rápidos e
corriqueiros acontecimentos que demonstramos nosso aprendizado e fé.
No carro, Pedro perguntou o que o tio havia questionado, pois ele não conseguiu ouvir. Alexandre contou, e
depois solicitou:
Atenda ao único pedido que a Raquel te fez, Pedro. Não façanada contra ele. Ela já sofreu muito
e não sei o que pode acontecer seainda tiver esse remorso, pois foi por ela que vocês souberam de tudo.
Nem cheguei perto do asqueroso por causa disso. Estou até suando frio! Bah! expressou o
cunhado inconformado. : Não dormi estanoite e ainda estou passando mal. Após pequena pausa
revelou: Eu e o Tadeu pensamos que tinha sido o namoradinho que a tivesse prendido naquele casebre.
Essa ideia não me saía da cabeça. Tu nem imagina como estava o lugar! Barbaridade! Chê!!!
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Alexandre tinha que se fazer firme para controlar os sentimentos, ao ouvir aquilo que tanto o magoava,
pois em sua mente passavam cenas de como deveria ter sido. Pedro não deteve as lágrimas e, após secar
o rosto com as mãos num gesto um tanto bruto, devido ao ódio que sentia, esmurrou o painel do carro,
dizendo quase num grito:
Diabo!!! E eu ainda concordei com o Tadeu!
Como assim?! perguntou Alexandre que se assustou.
Não conte nada pra a Raquel, não. A gente agiu errado.
O que aconteceu, Pedro?!
Eu e o Tadeu demos um fim no negrinho. Pobre moleque!
O quê?!!! perguntou o cunhado surpreso, que até parou ocarro, pois se sentia mal.
Questionando em seguida, incrédulo: Vocêsnão fizeram isso?!
Pensamos que tivesse sido ele, porque eu e o Tadeu, quando soubemos pelo tio que ele queria namorar
a Raquel, tivemos umas peleia com o cabra.
Peleia? O que é isso? perguntou Alexandre.
Peleia? Ê pega. Briga. Sova, bah! Quebramos o guri umas trêsvezes, numas quebradas por aí.
Por isso acreditamos que ele ficou comraiva e fez aquilo tudo com nossa irmã, prendendo a Raquel lá no
casebre. Depois, pensamos que ela acusou o tio Ladislau de tê-la violentadopor vingança pelas surras que
levava do nosso vô. Ficamos com dó daguria, mas tinha que obedecer nosso avô, chê!
Alexandre debruçou-se no volante não querendo acreditar no que ouvia, e Pedro confessou:
Pensamos que por causa do negrinho a nossa irmã havia se perdido. Ficamos com tanta raiva do
cabra que pegamos ele e demos um fim. Com a voz embargada, Pedro desfechou: O infeliz morreu
jurando que não teve nada com ela.
Atordoado, o cunhado perguntou com voz fraca:
Quem mais sabe disso?
Agora só tu, né, homem! Depois de pequena pausa Pedrodesabafou: Não podíamos deixar
do jeito que tava. Tu tinhas que vercomo tava o casebre, tinha que ver como tava a Raquel quando chegou
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na frente da Casa-Grande da fazenda. Ela ficou presa lá por seis dias. Tava toda imunda, machucada e
rasgada de dar dó. Após pensar um pouco Alexandre perguntou:
Não foram por três dias que Raquel sumiu?
Não! Bah! Que isso?! Eu ouvi, ontem, ela falando que ficou trêsdias lá, mas acho que ela "perdeu
o tempo" e não contou direito porqueperdeu a noção, desmemoriou, porque ela ficou fora, mesmo, por
seisdias. Tenho certeza!
Por que não foram conversar com ela quando tudo aconteceu? Porque não foram até a polícia?
Não sei, homem disse Pedro atordoado. Sabe, nós não conversávamos muito, não. A mãe
sempre separou a Raquel da gente esó agora eu entendo por quê. O nosso vô sempre deu as ordens e a
gentefoi acostumado assim. Hoje é que eu penso diferente.
Como faz falta um diálogo, Pedro. Se vocês tivessem conversado mais... Se tivessem sido
amigos...
Mas ela era guria pequena e miúda. Não dava pra gente conversar. Já éramos homens!
Eu tenho duas irmãs, uma delas que é a mais nova, a Rosana, éminha melhor amiga. Não sei o
que faria sem ela. Somos companheiros,confidentes, parceiros...
Vendo que não adiantaria mais, pois só poderia torturá-lo, Alexandre se calou. Ficou perplexo com o que
ouvia e não poderia fazer nada, nem mesmo contar para Raquel. Ela poderia se sentir pior, acreditando ser
culpada pelo crime que os irmãos cometeram.
Mesmo perturbado, ele ligou o carro e seguiu decidido a sair dali o quanto antes, entendendo que tudo o
que precisava já havia feito e realizado.
Após saírem da fazenda, Alexandre resolveu aproveitar bem as férias.
Vamos! dizia ele a esposa para convencê-la. É uma pousada e tem lindos chalés de madeira e um
distante do outro, ao pé da serra, com lareira, tapetes e colchas de pura lã de carneiro, com dois ou três
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quartos, hidro... É um lugar lindo! Principalmente nessa época do ano, onde tudo deve estar florido. Se não
quiser o chalé, ficamos num apartamento. É bem espaçoso e tem dois quartos, sala...
Minha vontade mesmo, depois de tudo o que passamos, é voltarpra casa e... Ah! Quero abraçar
seus pais, beijá-los muito, muito, muito!E me esconder entre eles para me sentir segura. Agradecê-los por
me adotarem... por me darem você de presente sorriu feliz.
Alexandre sorriu também, envolveu-a com um abraço e perguntou, com jeito manhoso:
E comigo, você não se sente segura?
Seu bobo! Claro que sim!
Então vamos ficar nessa pousada. Temos mais de vinte dias deférias pela frente! Depois você
terá todo o tempo que quiser para pegarmeus pais e abraçá-los, beijá-los muito, muito, muito! Mas antes
teráque fazer isso comigo, ou não a levo para casa.
Raquel, bem mais alegre e segura, concordou. Eles passearam e se distraíram o resto das férias,
conhecendo lugares maravilhosos que os faziam esquecer tudo o que tinham passado nos dois dias em
que ficaram na fazenda.
Ao chegarem à residência do senhor Claudionor, foram recebidos com imenso carinho.
E lá?! Como foi?! perguntou dona Virgínia eufórica.
Obrigado por você ser como é disse Alexandre abraçando-a.Puxando também seu pai para
um abraço, completou: Pelo amor que tem por nós, pelo carinho, pela atenção, pelos ensinamentos...
Agradeço a Deus por vocês existirem. Sem deter as lágrimas, falou com avoz embargada: Não
conseguiria viver sem vocês.
Sem dizer uma palavra, Raquel entrou no meio deles, os abraçou emocionada e chorando. Os pais não
conseguiam entender, apesar de corresponder ao carinho, e dona Virgínia perguntou chorosa:
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Mas o que houve?
Precisamos descansar um pouco, mãe. Depois conversamos e contamos tudo.
Após se recomporem da viagem, Alexandre e Raquel comentaram tudo o que tinha acontecido. O casal
ficou perplexo e o senhor Claudionor argumentou:
Não fiquem tristes com isso. Já passou e vocês não perderam aviagem, pois aproveitaram para
outros passeios, isso é o que importa.Mas não posso deixar de ficar orgulhoso por sermos uma família
deverdade.
Alexandre, Raquel e Bruna não queriam voltar para o apartamento, como se pudessem se sentir mais
seguros ali. Alexandre não deixava a esposa por um minuto, parecendo assumir aquele jeito, como diziam,
"grudento", de ficar perto dela, acompanhando-a nem se fosse só com o olhar, a todo lugar que Raquel ia.
Mesmo brincando com a sobrinha, Rosana percebeu o comportamento diferente do irmão e o advertiu
baixinho:
Ela não vai fugir não, Alex. Dá um tempo!
Alexandre estampou um largo sorriso para a irmã e a olhou de um jeito estranho, meio maroto.
Alex, você está com uma cara de safado! Não me esconda nada.Alex, o que foi?
Nada! respondeu ele sorrindo e, levantando-se rápido feito um moleque, deu-lhe um beijo no
rosto e a deixou falando sozinha,indo atrás de Raquel, abraçando-a com carinho.
Após alguns dias, voltando a se acostumar com a rotina, Alexandre retornou ao trabalho.
Duas semanas depois, assim que chegou do serviço e tomou seu banho, Raquel, após deixar a filha
entretida com um brinquedo, procurou pelo marido e pediu:
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Alex, não vá brincar com a Bruna agora não, preciso conversarcom você primeiro.
Diga pediu sorrindo ao abraçá-la e balançá-la de um lado paraoutro.
Hoje eu fui acompanhar a Rosana ao médico devido às dores decabeça que ela anda sentindo.
Havia uma vaga na agenda do médico eeu resolvi passar também.
Você está bem, Raquel? perguntou atento, acomodando-se epuxando-a para que se sentasse
em seu colo.
Estou. É que...
Percebendo algo diferente na voz trêmula da esposa, insistiu mais sério:
Você está nervosa, por quê? Há algo errado?
Raquel parecia tensa e atrapalhava-se para relatar o que acontecia, mas Alexandre procurou ficar tranquilo
e esperar o desenrolar do caso.
É que, quando chegamos de viagem, lembra? ela perguntou.
Claro, lembro. Não sei o que, mas lembro que chegamos de viagem disse ele, quase sorrindo,
para deixá-la mais à vontade.
A esposa sorriu e mesmo com sua voz doce comentou apreensiva:
Decidimos que esperaríamos um pouco para ter um filho, né? Daínós fomos ao médico para que
me receitasse um remédio contraceptivo,lembra?
Claro. Lembro, sim respondeu calmo. Não suportando a demora, com expectativa perguntou:
E...?
O médico orientou que eu esperasse alguns dias após o ciclomenstrual para começar a tomar o
remédio. Hoje eu fui lá e ele mepediu para fazer um exame de gravidez, porque esse ciclo não
aconteceuaté agora. Nem cheguei a tomar o remédio. Está bem atrasado. Acho que foi na viagem...
afirmou ao murmurar sorrindo e trêmula.
O marido parecia ter perdido o fôlego. Alexandre não sabia se sorria ou se chorava. Abraçando-a com
carinho, beijou-a com ternura, embalando-a nos braços. A emoção o fez perder as palavras e só muito
depois ele disse emocionado:
Eu te amo, Raquel. Eu te amo, tanto. Deus! Obrigado.
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Calma disse a esposa também chorando de emoção , não temos certeza ainda.
Somente quando se acalmaram das fortes emoções, ele perguntou:
A Rosana já sabe?!
Não. Eu não contei.
Nada?! Nem sobre nós...!
Não. Não contei nadinha! riu com gosto.
A Rô vai me matar quando souber! E você já fez o exame?
Não respondeu Raquel sorrindo e chorando ao mesmo tempo. Estou com medo.
Alexandre não poderia se sentir mais feliz e disse satisfeito ao abraçá-la:
Amanhã cedinho eu vou com você. Quero acompanhá-la em tudo,meu amor.
Dois dias depois, Alexandre não cabia em si. O teste de gravidez dera positivo. Para fazer surpresa, eles
combinaram que ainda não contariam nada e que só no fim de semana dariam a notícia a todos de sua
família.
No sábado, ao chegarem na casa do sogro, Raquel pediu baixinho:
Deixe-me contar pra Rô primeiro e sozinha?!
Claro! Vai lá!
Dona Virgínia, desconfiada com o comportamento e o cochicho dos dois, perguntou ao filho o que estava
acontecendo, ao ver a nora se afastar. Não conseguindo se conter, Alexandre, que não tirava o sorriso do
rosto, chamou seu pai e contou a novidade. Vilma e Valter, que estavam lá a passeio, compartilharam da
novidade e da felicidade, com lágrimas de alegria e muita emoção.
E a Bruna, ela já sabe?! perguntou dona Virgínia entusiasmada e chorando.
Já, nós contamos ontem à noite para ela.
Eles abraçavam o novo pai cumprimentando-o, quando ouviram um grito.
É a Raquel! exclamou Alexandre assustado com o grito daesposa, saindo correndo para
procurá-la. Ao entrar no quarto da irmã,ele trombou com Raquel, que gritava:
489
A Rosana!... Alex, a Rosana!
Onde ela está?! perguntou o marido.
Aqui! mostrou Raquel, em desespero, indo até o banheiro.Alexandre trouxe a irmã no colo e a
colocou sobre a cama. Rosana
parecia desmaiada. Raquel, em crise de nervos, chorava muito ao explicar o que acontecera:
Eu entrei no quarto, chamei e ela não respondeu. Bati na porta do banheiro, ainda brinquei que tinha
uma novidade, se ela demorasse eu não contaria e fiquei esperando. Como ela não respondia e eu
acheique estava demorando muito, abri a porta e a vi no chão.
Rosana foi levada ao hospital. As horas de espera deixavam todos aflitos. Vilma havia ficado em casa com
as crianças e dona Virgínia, depois de ter se sentido mal no hospital, fora levada para casa por Valter. O
senhor Claudionor, Alexandre e Raquel aguardavam ansiosos por qualquer notícia que pudesse vir.
Preocupado com o estado da esposa, o marido sugeriu:
Raquel, é melhor eu levá-la para casa. Você está sem se alimentar,está pálida. Não é bom ficar
aqui. Faremos o seguinte, eu volto comvocê, tomo um banho, como alguma coisa, depois o Valter me traz,
eufico aqui e ele leva meu pai. Não vai adiantar ficarmos todos. Certo, pai? perguntou o filho, virando-se
para o senhor Claudionor que estavaao lado.
É melhor sim, Raquel. Lembre-se do seu estado. Você precisadescansar, filha concordou o
homem.
Decidindo pelo melhor, Alexandre levou a esposa para casa. Raquel ficou lá e ele voltou para o hospital
após um banho e uma alimentação leve. Dona Virgínia chorava muito e Raquel não se separava dela. No
dia seguinte, a notícia chegou através de Alexandre, que voltou para casa.
A Rosana teve um aneurisma cerebral.
O silêncio reinou por longos minutos. Elas ficaram caladas e Alexandre, com olhos vermelhos, nervoso e
lágrimas a correr pela face, sentou-se e desabafou:
Estou desesperado...!
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Segurando a fronte com as mãos, apoiando os cotovelos sobre a mesa, ele chorou muito. Dona Virgínia,
incrédula e parecendo não entender, ignorando a seriedade do caso, perguntou meio atordoada:
Ela vai ficar boa, não vai?
Procurando se recompor, Alexandre segurava o choro, ao dizer:
O pai precisa de você lá no hospital, mãe. Lá vão explicar direito pra você... O motorista da firma
está aí, ele vai nos levar porque eu não tenho condições de dirigir.
Chorando, Raquel abraçou-se ao marido, e ele a envolveu com carinho.
Vilma, apesar de chorar aflita, mais uma vez, ficou em casa com as crianças. Pouco depois eles chegavam
ao hospital, onde o médico que solicitou a presença dos pais os aguardava numa sala privativa.
Sou o doutor Cardoso, neurologista. Eu e minha equipe estamoscuidando de Rosana desde que
chegou aqui. Ela entrou em coma profundo, diagnosticamos um aneurisma cerebral. Depois de breve
pausa,o médico explicou brandamente: Bem, aneurisma é a formação deum saco ocasionado pela
dilatação das paredes de um vaso sanguíneo.O rompimento dele provoca uma hemorragia fulminante. O
médico fez pequeno intervalo, mas continuou comovido: Sinto muito.Acabamos de confirmar em Rosana
a morte encefálica.
Dona Virgínia, após um gemido de lamento, abraçou-se ao esposo, entregando-se ao choro compulsivo de
aflição e muita dor. O senhor Claudionor tentou ser forte, mas não resistiu, lamentou chorando:
Deus! Minha filha... nossa filhinha...! Não.
O médico, que também estava em situação difícil, teve que avisar:
Eu sei que é um momento de dor e angústia, mas não há nadaque possamos fazer. A morte
encefálica é irreversível, só depende de horas ou de desligarmos os equipamentos que ainda mantêm
poucos órgãos funcionando. Por essa razão eu tenho que pedir... ou melhor,avisar: a Rosana é uma
doadora incondicional. Diante do quadro que se apresenta, sou porta-voz do pedido de doação de seus
órgãos. Muitos podem continuar vivendo com a decisão de vocês. Novo intervalo
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pequeno se fez e o médico perguntou compadecido, com voz meiga, entendendo a dor daquele momento:
A família autoriza a doação?
Dona Virgínia pareceu não ouvir e o pai de Rosana ficou refletindo sobre o pedido, depois disse:
Preciso conversar com meus outros filhos, doutor. Podemos pensar?
Claro. Mas, por favor, perdoem-me por ter que avisar, vocês terão que ser breves. Seus filhos
estão aqui?
O Alexandre e a Raquel sim, eles estão lá em baixo, mas não sei sea Vilma e o Valter chegaram,
o Valter talvez... respondeu ele atordoado.
Dona Virgínia chorava muito e o senhor Claudionor estava como que em choque, incrédulo. Tudo fora
muito rápido. Não demorou e Alexandre, Raquel e Valter chegavam assustados por terem sido chamados
da sala de espera com urgência. Após serem avisados sobre a solicitação da autorização para a doação de
órgãos, Raquel abraçou-se a dona Virgínia, enquanto Alexandre e Valter ficaram chocados e pensativos.
Forçando-se a se recompor, o irmão perguntou:
Doutor Cardoso, o que é a morte encefálica?
É a inibição irreversível das atividades cerebrais. Ela pode sercausada por uma pancada, que é o
traumatismo craniano, por um tumor ou uma lesão, como é o caso de sua irmã.
Desculpe minha ignorância tornou Alexandre , mas como se tem certeza disso, digo, como
se tem certeza da morte encefálica?
É possível que diagnostiquemos a morte encefálica com exames clínicos, mas a Legislação
Brasileira exige diagnóstico preciso através demétodos sofisticados. Através dos exames:
eletroencefalograma, angio-grafia cerebral e outros como o eletroencefalógrafo, que registra as
ondascerebrais... Aqui está disse o médico estendendo-lhe alguns papéis, eu os trouxe para que veja.
Inclusive a arteriografia.
Alexandre pegou os papéis e os olhava atento, acompanhado por Valter, enquanto o médico lhes mostrava
melhor e explicava ao mesmo tempo.
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O senhor Claudionor parecia ter deixado a decisão para eles. Alexandre se sentou, olhou para a esposa e
para a mãe, passou as mãos pelo rosto e, erguendo o corpo, olhando para o teto, rogou:
Deus! O que faremos?
Valter, parecendo estar mais consciente, lembrou:
Alguém sabe dizer o que Rosana diria em uma situação dessa?Todos ficaram em silêncio. Por
fim, Alexandre perguntou:
Doutor, quanto tempo temos?
Não muito. Após a morte encefálica, alguns órgãos resistem pormais tempo, outros não. Estamos
mantendo as condições de circulação sanguínea e a respiração de forma artificial, através de respiradouros
emedicamentos que aumentam a pressão arterial. Veja, a equipe encarregada para fazer a retirada dos
órgãos para o transplante tem que seracionada. É uma equipe com treinamento específico para esse tipo
deprocedimento. Eu não faço parte dela e nem poderia fazer. Os prováveisreceptores têm que ser
chamados aos hospitais e cada órgão tem umtempo diferente de duração após a retirada. Por exemplo, o
pâncreasdura de doze a vinte e quatro horas; dois rins, de doze a quarenta e oitohoras; um fígado, de doze
a vinte e quatro horas; duas córneas, até sete dias; e um coração e dois pulmões, somente de quatro a seis
horas. É uma corrida contra o tempo. Fora essas dez partes mencionadas, temos ainda as válvulas
cardíacas, medula óssea, veia safena etc.
Muitas vidas dependem disso. Hoje em dia, eu acredito que há cerca de 30 mil ou 35 mil pessoas, ou mais,
esperando na lista para receber uma doação. Mais de trinta por cento morrem antes de conseguir esse
"presente de Deus" e somente dez por cento recebem um órgão por ano.
Doutor Cardoso, perguntou Valter , a morte encefálica de Rosana foi diagnosticada só pelo
senhor? E se quisermos chamar ummédico de nossa confiança, agora, é permitido?
Se vocês tiverem um médico de confiança da família, por favor,chame-o imediatamente! Isso
será ótimo! Contudo, não somente eu,mas também o doutor Reinaldo, outro neurocirurgião, foi acionado
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assim que diagnosticamos a morte encefálica de Rosana. Ele não estáaqui no momento, pois atende a uma
emergência, mas, junto comigo, ele diagnostica e atesta. Como devem saber, são dois médicos, que não
façam parte da equipe de remoção e transplante de órgãos, que precisam chegar ao mesmo parecer, o da
morte encefálica, para que seja solicitada a doação. Fora isso também se admite a presença de um outro
médico de confiança da família. Um médico sozinho não pode atestar a morte encefálica para a solicitação
do transplante de órgãos. Decidido, Alexandre avisou:
Prefiro que seja assim. Dê-me alguns minutos, vou telefonar para meu médico.
Por favor. Chame-o o quanto antes incentivou o neurocirurgião.
Enquanto aguardavam a chegada do cardiologista acionado por Alexandre, Valter procurava saber, com o
neurocirurgião que atendia Rosana, maiores informações.
Doutor, perguntou Valter muito interessado , pode me dar uma orientação?
Mas é claro!
Quem pode ser doador de órgãos?
Todos, desde que não sejam pessoas portadoras de doenças infecciosas incuráveis, câncer
generalizado, diabetes, Aids ou tenham comprometido o estado do órgão. Não é muito fácil ser doador se
observarmos acausa da morte ou em que condição esta se dá, a demora para a retirada...e tudo mais,
inúmeros fatores comprometem todo o roteiro a ser seguido.Por esse motivo há muitos na fila de espera
para doação. Isso sem contarcom aqueles que não admitem ser doadores. Por exemplo, se a
Rosana tivesse outro tipo de morte, um acidente, por exemplo, e seu corpo fosse trazido para cá sem que
fossem mantidas as funções vitais para os órgãos,como a circulação sanguínea e a respiração, muito mal
poderia se aproveitar as córneas, porque, após a autorização da família, precisamos aindaacionar a equipe
especializada para a retirada dos órgãos, e esta equipe nem sempre está próxima. A equipe de atendimento
do hospital não pode fazer o procedimento de retirada dos órgãos.
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Doutor tornou Valter, por exemplo, nós estamos aqui com esse dilema de doar ou não.
Nesse instante, a família ou as famílias dospossíveis receptores estão sabendo do caso e há um interesse,
ou umapressão, vamos dizer assim, sobre os médicos desse hospital para quenos convençam a fazer a
doação?
Não há como isso ocorrer. Logo o médico perguntou: Qual é seu nome mesmo?
Valter.
Pois bem, Valter. É preciso que as pessoas saibam que a doação deórgãos sob a ótica da
Legislação Brasileira não pode ser feita para umapessoa específica. Isso é crime. Como eu já disse,
quando há morte encefálica e essa pessoa é um doador potencial, primeiro são mantidas as funções vitais
dos órgãos, pois se é o cérebro que comanda tudo, amanutenção do corpo tem que ser feita por meios
artificiais, se não, em pouquíssimo tempo, esses órgãos vão parar de funcionar.
Constatada a morte cerebral, a família é avisada e consultada sobre a possibilidade de doação. Se não
foram realizados exames como eletroencefalograma, angiografia cerebral ou arteriografia, a família deve
exigi-los. Isso é lei. Mesmo se os equipamentos necessários para esses exames não existirem no hospital,
eles podem e devem ser trazidos. Além disso, a família pode pedir a presença de um médico de sua
confiança para acompanhar o caso e dar um parecer.
Como eu ia dizendo, Valter, após o consentimento da família, o hospital onde está o doador potencial
notifica a Central de Transplantes, que por sua vez pede a confirmação do diagnóstico da morte encefálica
e a autorização da família e, somente a partir daí, iniciam-se os testes de compatibilidade entre doador e os
possíveis receptores da lista de espera. A Central de Transplantes aciona a equipe de remoção e
transplante e o pessoal de apoio deslocando-os para o hospital onde o doador estiver. O possível, ou
possíveis, receptor para cada órgão só então é comunicado e vai ao hospital onde ele será atendido, o qual
também já deverá estar de sobreaviso. Então veja, se você quer doar o seu coração para mim, é bem
provável que não possa. Existem as compatibilidades
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entre o doador e o receptor, que é escolhido por Deus. Na lista de espera, não podemos ficar
felizes quando somos o suposto primeiro, pois o décimo dessa mesma lista pode receber um órgão antes
de mim, por não ter aparecido um doador compatível comigo. Entendeu?
Só mais uma coisa, doutor. Isso nos terá algum custo, caso desejarmos doar?
Absolutamente, não. Vocês não pagam nem a manutenção, nemqualquer outra despesa do
procedimento.
Eu sei que não é o caso, mas se tivéssemos um familiar na lista deespera e quiséssemos doar
para ele, agora, poderíamos?
Não. A família não pode indicar um receptor. Este é sempre indicado pela Central de
Transplantes, com base nas urgências, na compatibilidade, na semelhança de tecido etc.
A chegada do cardiologista que fora chamado por Alexandre interrompeu o assunto, e ambos os médicos
se retiraram. Naquela sala, onde todos esperavam confusos, sofridos e aflitos, o silêncio imperou absoluto.
Dona Virgínia, abraçada à nora, parou de chorar e fitava ao longe, com o olhar perdido. Raquel ficou quieta,
ela estava chocada com tudo o que acontecia e, às vezes, incrédula. Valter não conseguia se sentar. Ele,
vagarosamente, andava de um lado para o outro, ora olhava os parentes, ora fitava pela larga janela.
O senhor Claudionor estava perplexo, inconformado. Alexandre, com os olhos vermelhos, observava a
esposa querendo que ela ficasse perto dele, pois sentia-se muito mal com aquela perda. A irmã era uma
pessoa que significava muito para ele. Em alguns minutos, ele sofria crises de choro, mas logo procurava
se controlar para não abalar os demais.
Cada um, à sua maneira, recordava gestos, risos, detalhes, cenas onde Rosana, espirituosa e irreverente,
contagiava todos com sua alegria, sempre procurando ajudar, sempre associando concórdia, amor e ideias
salutares em todas as situações. Jamais lembravam dela triste, melancólica, isso raramente ocorria. Era
triste e doloroso pensar que não mais teriam Rosana junto deles. Minutos se passaram e Vilma abriu
vagarosamente a porta e os olhou como que incrédula. Alexandre se levantou,
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abraçou-se a ela por longo tempo sem dizer nada. Eles choraram muito. Depois, Vilma ajoelhou-se em
frente de sua mãe e Raquel. Não havia palavras que os confortassem naquele momento. Valter, mais
próximo, perguntou:
E as crianças?
Chamei a dona Leila para ficar com elas.
O marido a abraçou depois informou sobre a solicitação da autorização para a doação dos órgãos. Vilma
virou-se para o senhor Claudionor e perguntou:
Papai, o que você decidiu?
Com lágrimas a correr na face, ele falou como num lamento:
Eu não sei o que fazer, filha. Preciso de vocês.
Chamei meu cardiologista disse Alexandre. Ele está com odoutor Cardoso.
Dona Virgínia, desnorteada, perguntou:
Não há possibilidade de terem errado e Rosana estar viva?
Pelo que entendi, não, respondeu Alexandre.
E se doarmos e houver comercialização dos órgãos? insistiu a
mãe.
Essa possibilidade é bem remota, porque tem que se seguir normas e obedecer à legislação.
Esse é um hospital credenciado e que tem regras a seguir. Nem se sabe quem será o provável receptor.
Isso são rumores que, infelizmente, podem diminuir o número de doações. Já ouvi falar de comércio de
órgãos duplos, como o rim, mas o doador é consciente e se beneficia com alguma verba, mas isso é
proibido por leino Brasil informou Alexandre.
O que faremos? Precisamos decidir pediu o senhor Claudionor,como que implorando uma
decisão.
Alguém sabe dizer o que Rosana queria? insistiu Valter firme.Raquel olhou para todos e falou
com a voz trêmula e chorosa:
Outro dia, não faz muito tempo, eu estava intrigada pelo fato de Sandra ficar procurando pelo Alex...
Raquel foi interrompida pelochoro e pelos soluços que não obedeciam à sua vontade. Todos
aguardaram
497
que se recompusesse e depois ela continuou: Eu estava dizendo isso para a Rô, então ela me
disse que a mãe de Sandra contou para a dona Virgínia e olhando para o marido ela lembrou ,
naquele dia em que chegamos e elas estavam conversando no portão. Ela falou que a Sandra estava com
problemas renais e necessitava fazer hemodiálise, que estava também na lista de espera para doação...
Rosana disse para eu não me preocupar porque ela deveria estar arrependida, ou coisa assim, e talvez
quisesse conversar com o Alex sobre isso.
Em dado momento, a Rosana ficou penalizada com o fato e disse: "Se eu pudesse doaria um rim para ela".
Depois, ela falou daquele jeito todo animado: "Quando eu morrer, podem doar tudo, não vou precisar
mesmo. Aí eu não corro o risco de ser enterrada viva".
Raquel caiu em um pranto copioso e Alexandre a abraçou, tentando não deixá-la mais nervosa.
Eu também a ouvi dizer o mesmo informou Vilma.
Mas, gente argumentou a mãe em aflição , e se houver uma chance? Se os médicos tiverem
errados? Será que ela vai sentir dor?
Valter, mais ponderado e consciente, avisou:
Aqueles exames constataram a morte encefálica e esta é irreversível.Se desligarem os aparelhos
que mantêm os órgãos ainda em condições,todos vão parar em pouco tempo e tudo se perde.
Acredito ser quase impossível os médicos errarem. Vamos lembrar que serão três os
pareceristas responsáveis e a um deles eu confio minha vida lembrou Alexandre.
Quanto à dor disse Valter , o que faz o corpo sentir, oumelhor, reconhecer um estímulo de
dor é o cérebro. Se este está morto,o corpo físico não sente nada.
Vilma se levantou e, impelida por uma força interior, falou:
Gente, nós temos que parar de dar valor à matéria quando esta não nos serve mais e sermos
nobres e caridosos para ajudar os outros.A morte faz parte da vida. E melhor acreditarmos em Deus agora
elembrar que Ele deve ter inspirado os homens a desenvolver processos médicos e científicos, não só para
prolongar a vida terrena, mas, principalmente,
498
para sermos mais caridosos e menos egoístas, crescendo espiritualmente. Não vamos pensar
que estamos fazendo um ato grandioso, nem vamos esperar por um retorno de bênçãos. Vamos pensar
que essa é a nossa prova de desapego material, prova de amor ao próximo como a si mesmo. Se eu um
dia tiver todas essas abençoadas qualidades de ser uma doadora potencial como a minha irmã, não
hesitem, autorizem a doação. Se fosse o caso de um de nós precisarmos, rogaríamos a Deus por essa
oportunidade. Pediríamos que houvesse pessoas nobres e corajosas.
Não interessa quem vai receber, não interessam as mentiras ou as verdades que dizem sobre o comércio
ou o privilégio daqueles que não deveriam ser favorecidos primeiro. Só receberá a doação quem realmente
precisar, e devemos crer que este será responsável e terá que corresponder à altura, pela nova
oportunidade que teve.
Não cabe a nós esse julgamento. Devemos só fazer a nossa parte, a nossa caridade e por amor. Vamos
lembrar que não estamos doando a Rosana, e sim o que ela usou. Assim como faremos com suas roupas e
suas outras coisas.
O que acontecerá com esses órgãos se não doarmos? Apodrecerão, com certeza.
Seremos tais quais os vermes que os devorarão, se formos egoístas agora. Eu estou sentindo uma imensa
dor por saber que vou ficar longe da minha irmã, mas eu sei que em algum lugar ela vive e ficarei feliz por
saber que a sua roupa humana é utilizada por alguém. Não consigo entender por que nós nos negaríamos
a doar se não vamos precisar mais. Será bom pensarmos o quanto a Rosana foi e ainda será útil para as
pessoas, para outras famílias, que ficarão alegres, que por causa dela vão continuar a se abraçar a se
beijar e até a gerar novas vidas. Por mim, vamos doar e acabou! Nada mais importa. O que queríamos era
tê-la conosco. Enterrar o corpo inteiro ou faltando algumas partes dele não vai trazê-la de volta.
Vilma foi interrompida por um soluço e não conteve as fortes emoções, que não a deixaram prosseguir.
499
Ela parou de falar, abraçou-se ao marido e escondeu o rosto para chorar.
Meio atordoado, Alexandre ainda lembrou:
Eu li, há poucos dias, num livro que ela me deu, O Livro dos Espíritos, que "O corpo é uma máquina
que o coração põe em movimento. O corpo se mantém enquanto o coração fizer o sangue circular, epara
isso não necessita da alma". Creio que é a questão 152. Se assim for,Rosana deve estar longe agora e em
lugar melhor.
Nesse momento, a porta da sala se abriu e, em poucas palavras, o médico de confiança da família
confirmou o que os outros atestaram. O doutor Cardoso olhou para o senhor Claudionor, pedindo uma
resposta com o olhar piedoso. O pai, chorando, não conseguiu articular nenhuma palavra e, em um olhar
para Alexandre, pediu-lhe que falasse em seu nome. Chorando, Alexandre se levantou e disse, entre os
soluços que embargavam sua voz:
Vamos doar a alma de nossa irmã a Deus e a vida dos seus órgãos àqueles que ainda podem viver.
Que Jesus os abençoe.
O médico sentiu que poderia chorar; não resistindo às emoções, seus olhos marejaram e, estapeando as
costas de Alexandre, o doutor Cardoso teve que se controlar para dizer:
Preciso que assinem a autorização mas traído pela emoção daspalavras de Alexandre, ele
abaixou a cabeça para esconder as lágrimasque deslizaram.
A família decidiu pela caridade de doar os órgãos sobreviventes e úteis no corpo que fora de Rosana. Na
espiritualidade, Rosana, como que adormecida, já havia sido desligada do corpo que lhe servira enquanto
necessitou provar aquela existência terrena. Conduzida com inenarrável ternura e tratada com muito
carinho, ela estava longe dali. Por ter sido uma criatura sem apego à matéria corpórea, caridosa e amável,
o que ocorria com o corpo de carne não lhe importava. Ela era preparada para a vida espiritual, onde
haveria, com toda certeza, de se satisfazer com a decisão de seus queridos ainda encarnados.
Tempo depois o corpo foi liberado para os familiares, que cuidaram do enterro. Ricardo fora avisado, mas
não conseguiu chegar a tempo.
500
Somente sua família compareceu ao enterro. Aquela que seria a sogra de Rosana estava inconformada.
No velório, dona Virgínia teve crises de choro, mas recebia um alento indefinível que durava cada vez mais
tempo. Sua consciência estava livre de culpa por egoísmo. Ela, lá no fundo, sabia que, naquele momento,
sua filha estava "salvando" outras vidas.
Alexandre se preocupava com Raquel, ela estava muito sofrida, Rosana foi a sua única e melhor amiga.
Elas eram confidentes e se davam muito bem. Raquel estava como que paralisada, não conseguindo mais
chorar, e com o semblante triste, olhos vermelhos, não dizia nada.
Bem mais tarde, ao chegarem à residência do senhor Claudionor, todos estavam abatidos e somente as
crianças, que tinham ficado com a empregada, por não entenderem o que ocorrera, estavam animadas.
Pouco depois, Ricardo, o ex-noivo de Rosana, chegou desesperado, acompanhado pelo pai. O rapaz
chorava muito. Após abraçar a todos, ele pediu para ir até o quarto da noiva. Lá, Ricardo dobrou os joelhos
no chão e se curvou sobre a cama que fora da moça, inconformado, chorou muito. Sua aflição comovia a
todos.
Raquel agora estava estranha. Pelo cansaço, ela pediu ao esposo que a levasse para casa. Quando ele
avisou sua mãe que iria embora, a mulher reagiu, pedindo de forma melancólica e comovedora à nora que
estava abraçada ao seu filho:
Fique, por favor, Raquel. Um dia a Rô, num exemplo, previu que se eu ficasse sem ela você seria
minha filhinha amiga. Por favor, filha,fique comigo agora.
Mãe, eu estou preocupado com o estado da Raquel. Se estamos esgotados, imagine ela?
avisou Alexandre sensível. Lembre-se,Raquel está no início da gravidez e...
Toma um banho e vá se deitar, mas fique aqui.
Não, mãe. Ela precisa de sossego. A tia falou que vem para cá, ascrianças não param e a Raquel
não terá sossego, ela está abatida. É melhor irmos. Amanhã cedo voltaremos.
Eu não quero que a afastem de mim dizia dona Virgínia chorando desesperada. Deixe a
Raquel comigo. Já perdi a Rosana...
501
A jovem, ouvindo o pedido lamurioso, decidiu falando com delicadeza:
Vamos ficar, Alex. Será melhor assim. Também quero ficar com ela.
O clima estava triste e depressivo. Somente bem mais tarde, exaustos, conseguiram se deitar. Após ir ver a
filha dormindo, Raquel deitou-se ao lado do marido, que a abraçou, e disse:
Você deve estar muito cansada. Precisa de sossego, Raquel. Quer ir embora agora?
Não. Vamos ficar. Não posso deixar sua mãe num momento comoesse. Devo tanto a ela, Alex!
Ela é minha mãe. Eles ficaram em silêncio até que a esposa começou a chorar e disse: Nunca
escondi nadada Rô... Eu não contei nada pra ela, nem sobre nós... Quis fazer surpresa sobre a gravidez
e...
A Rô já está sabendo, Raquel. Não fique assim. Procure dormir.Precisa descansar. Pense no
bebê.
Mas foi a Rô quem mais me apoiou e... não soube por mim!... Ela era minha única amiga falava
chorando amargurada.
Alexandre a abraçou e não tinha palavras que a confortassem naquele momento, pois ele próprio tinha que
se fazer firme para não expressar seus sentimentos perto da mulher, que já estava muito abatida.
As crises de choro de dona Virgínia fizeram com que Raquel e Vilma se levantassem na madrugada para
ficar com ela.
Bem cedo, Alexandre decidiu:
Pai, preciso ir pra casa. A Raquel não descansou, estou preocupado com ela que deve estar
exaurida. Não dormiu e... Mais tarde eu volto.
Vá, Alex, eu cuido de tudo por aqui. Sua mãe parece melhor.Deixe a Bruna aqui para brincar com
os priminhos. Será melhor para a Raquel poder descansar.
Não, pai. É bom ela ir com a gente. Ter nossa filha perto é ummotivo para a Raquel não ficar
pensando...
Com o coração apertado, Alexandre se despediu de seu pai sem muitas palavras e, beijando-lhe o rosto,
apertou-o contra si com força, prometendo retornar à tarde.
502
Capítulo 22
O mundo dá voltas
Chegando ao apartamento, Alexandre, fazendo-lhe um carinho, pediu-lhe:
Raquel, tome um banho e vá se deitar. Passando a mão noventre que nem se avolumara, ele
falou: Precisa cuidar do nosso neném.Descanse que eu olho a Bruna.
Preciso preparar algo para almoçarmos. Não tenho nada pronto.
Vamos fazer o seguinte, daqui a pouco eu saio e compro alguma comida pronta. Certo? ele
decidiu.
Raquel concordou. Ela tomou um banho e se deitou. Não dormiu, mas ficou quieta em seu quarto. O marido
distraía a filha, procurando não incomodar Raquel. Após alguns minutos, ela começou a se sentir mal, mas
acreditou que fosse pelo cansaço.
Suas pernas doíam muito. Ela sentia algo em suas costas, na região dos rins, como que uma contração,
mas achou que fosse pela má acomodação das últimas horas.
Mais tarde Alexandre foi vê-la e ao perceber que estava acordada, falou:
Pensei que estivesse dormindo.
Não consegui.
Você está bem?
Estou muito cansada. Sinto tontura.
É melhor eu levá-la ao médico.
Ele vai dizer que é para eu descansar, não precisa. Não quero ir. Com lágrimas que brotaram
imediatamente, ela falou sentida: Não consigo parar de pensar na Rô.
Nenhum de nós consegue. Eu também... Ele parou de falar,ao perceber que poderia não conter
sua emoção.
Raquel, muito sensível, lamentou:
Ela foi minha única amiga. Minha melhor amiga...Alexandre a abraçou com ternura e pediu:
Não fique assim, meu bem. Eu sei que está sofrendo. Eu sei quea ama... Mas procure ficar
tranquila. Não se desgaste mais. Pense no nosso filho.
Eu não contei pra Rô.
Nós não contamos para fazer uma surpresa. Não foi por egoísmo.Alexandre apoiou-a em seu
ombro e ficou afagando-lhe até percebê-la mais calma. Passados alguns minutos, vendo-a serena, avisou:
Está na hora do almoço. Preciso ir comprar algo, a Bruna deve estar com fome.
Vá. Eu estou bem.
Tem certeza?
Tenho.
Ele beijou-lhe a testa e avisou:
Eu já volto. Vou levar a Bruna comigo.
Não, bem. Deixe-a aí.
Alexandre ficou pensativo e depois decidiu:
É melhor, assim volto mais rápido. Ela está quietinha brincando lá na sala com um quebra-cabeça
que a... ele deteve as palavras, ao lembrar que fora um presente de Rosana.
Raquel percebeu, mas nada comentou, e pediu:
Deixe a porta do quarto aberta. Daqui eu escuto o que está acontecendo e dou uma olhadinha.
Beijando a esposa antes de sair, ele insistiu:
Você está bem?
Só minhas pernas doem. Estou cansada. Mais nada. Fique tranquilo.
Eu já volto, tá? prometeu generoso.
O tempo foi passando e Raquel achou que o marido demorava muito. As dores, que antes sentia de modo
a suportar, agora aumentavam de
504
intensidade e outras contrações, muito fortes, na região do baixo-ventre, começaram a acontecer. Ela não
sabia o que fazer. Mesmo sentindo-se mal, Raquel levantou-se apoiando nos móveis e foi até a sala, onde
Bruna Maria distraía-se com o brinquedo de montar. Indo até a cozinha à procura de um analgésico,
lembrou-se de que não poderia tomar qualquer remédio devido à gravidez, então decidiu voltar para o
quarto.
Sentindo-se gelar teve um torpor que a deixou tonta. Curvada pela dor que a arrebatava, Raquel chegou
até a porta entre a sala e a cozinha e falou para a filha, com voz fraca e ofegante, que mal saía:
Filha... Liga pro papai...
O que foi, mamãe?
Diga pro papai vir logo... que a mamãe não tá bem.
Raquel perdeu as forças e caiu. Bruna, assustada, sacudiu-a chamando e, por não ter resposta, decidiu
telefonar para o pai, mas não conseguia. Por iniciativa própria, a menina telefonou para os avós.
Dona Virgínia dizia a empregada , telefone pra senhora.Desolada, a mulher solicitou
educada:
Pede pra a Vilma atender pra mim, por favor.
Mas é a Bruna e ela está chorando avisou a empregada.
Bruna?! Dê-me aqui, por favor. A mãe de Alexandre se assustou com a notícia e atendeu
rapidamente a ligação: Aqui é a vovó,filha. O que aconteceu?
Vovó, a mamãe pediu pra eu ligar pro papai, mas eu não estou conseguindo dizia a garotinha,
com voz de choro. Eu ligo, ligo,ligo e não acontece nada. Ele não responde.
Onde está a mamãe, Bruna? perguntou a avó quase desesperada.
A mamãe caiu aqui na sala e não se mexe. Ela também não responde.
E o papai?
Ele disse que já volta, mas está demorando. Ele foi comprar o nosso almoço.
Nesse momento, Valter e o senhor Claudionor, que chegavam na sala, ficaram preocupados e atentos à
conversa.
505
Bruna, filhinha, fique quietinha aí que a vovó já está chegando, tá?
Vovó?
Fala, querida.
Eu estou com medo. A mamãe está cheia de sangue em volta.Dona Virgínia teve que arrancar
forças das entranhas da alma para se
manter calma e aconselhar:
Bruna, querida, faça o seguinte, pegue um cobertor e cubra amamãe, ela pode estar com frio.
Ponha também um travesseiro embaixo da cabeça dela. Faça isso, mas não desligue o telefone, volta para
vocêficar conversando com a tia Vilma até a vovó chegar aí. Você entendeu,meu bem?
Entendi. Mas estou com medo.
Olha, Bruna, se você cobrir a mamãe, você não vai mais ver o sangue e ela vai ficar quentinha.
Agora seja boazinha e vai pegar umacoberta, está certo, meu bem?
A menina concordou e dona Virgínia contou a todos o que havia acontecido. Vilma ficou conversando com
Bruna por telefone, enquanto o senhor Claudionor, Valter e dona Virgínia foram rapidamente para o
apartamento do Alexandre.
Ao chegarem lá, Raquel ainda estava desfalecida. Bruna cobrira a mãe conforme o pedido, mas chorava
porque só conseguiu trazer o lençol que estava sobre a cama e não alcançara o cobertor que estava em
um lugar alto no armário.
Venha, querida, vem aqui com a vovó. Isso não tem problema.
Meu Deus! alarmou-se Valter ao pegar a cunhada desmaiada elevá-la para o quarto. É uma
hemorragia muito forte, dona Virgínia,não podemos perder tempo. Pegue a bolsa dela com os documentos
evamos para o hospital agora!
Ainda sem sentidos, Raquel foi levada para o hospital às pressas.
Minutos depois, trazendo a refeição que fora buscar, Alexandre chegou ao apartamento e estranhou ao
encontrar no corredor um lençol com manchas de sangue.
Raquel! Bruna!!! chamou ele em desespero. Ao entrar em seuquarto, observou que havia
sangue também sobre a cama.
506
Alexandre sentiu-se mal. Ele começou a esfriar quando o telefone tocou, e precisou de muita força para
reagir e atender.
Vilma...! A irmã o avisou sobre tudo e ele perguntou gritando: Para onde eles a levaram?!
Assim que soube, ele saiu em desespero para o hospital. Ao chegar láencontrou-se com Valter, pois seu
pai havia levado dona Virgínia e Bruna para casa, uma vez que a menina ainda estava assustada.
Calma, Alex.
Como calma! gritou aflito esfregando o rosto com as mãos.
Sente-se aqui pediu o cunhado, tentando conduzi-lo com amão sobre seu ombro.
Alexandre aceitou o pedido e Valter acomodou-se a seu lado ainda com a mão sobre seu ombro para
confortá-lo.
Você falou com ela? perguntou Alexandre brando.
Não. Quando chegamos, ela estava sem sentidos. Nós a trouxemospara cá o mais rápido
possível. Fitando-o, Valter avisou: O médico virá daqui a pouco falar com você.
Alexandre estava pálido, parecia exausto. Diante de seu silêncio, Valter perguntou:
Você está bem? Está sentindo alguma coisa, Alex?
Após alguns segundos, o cunhado respondeu de forma mecânica e desanimada:
Acho que estou. Não sei o que estou sentindo.
Como assim? tornou Valter, olhando-o assustado.
Estou sentindo um torpor. Não sei se é cansaço físico, emocional...
Seja forte, Alex. A Raquel vai precisar. Você sabe... A gravidez émuito recente e... Ela ficou muito
nervosa. A Rô era sua melhor amiga e... Se todos nós estamos assim, imagine ela, grávida, tão sensível...
Ahemorragia foi muito forte. Você foi ao apartamento e deve ter visto. Ela perdeu muito sangue.
Eu sei. Já pensei nisso. Tendo passado poucos minutos, Alexandre argumentou: Como a
Raquel vai reagir se... Não suportando a angústia e a aflição, ele começou a chorar escondendo o rosto
507
entre as mãos, e revelou: Eu quero tanto esse filho! Quero tanto a Raquel! Se algo acontecer a ela...
Deus!
Valter não sabia o que dizer. Não havia palavras que pudessem confortar Alexandre naquele momento. Ele
somente passava-lhe a mão no ombro em sinal de apoio. O cunhado sofria muito com tudo o que lhe
ocorria. Como se não bastasse a perda da irmã, agora a esposa e o filho, tão desejado, poderiam estar
correndo sério risco.
Após alguns minutos o médico surgiu e perguntou:
O marido de Raquel é?...
Sou eu, doutor apresentou-se. Meu nome é Alexandre.
Senhor Alexandre disse o médico com modos frios e sem rodeios, sua esposa acaba de
perder o bebê. Eu sinto muito. Só quenecessitamos fazer uma curetagem.
Como ela está?
A dona Raquel recobrou os sentidos. Ela está nervosa, muitoassustada e não se deixa examinar,
mesmo após o tranquilizante queministramos. Precisaremos lhe dar uma anestesia geral. Ela teve
umahemorragia muito forte e perdeu muito sangue. Isso é perigoso.
Posso vê-la, doutor?
O médico pensou um pouco e respondeu:
Só por alguns instantes antes que a levem para a sala de cirurgia.Venha comigo.
Alexandre esteve com a esposa por alguns minutos. Ela chorava muito e quase não conseguia falar.
Realmente Raquel estava em desespero.
Retornando para a sala de espera Alexandre ficou com Valter aguardando notícias, até que o cunhado
observou:
Alex, eu não estou gostando de vê-lo como está. Daqui a poucoterei que fazer a sua internação,
também.
Somente nesse momento Alexandre ofereceu um leve sorriso e falou:
Estou bem. Não se preocupe. Decidindo avisou: Vou telefonar. Quero saber como está a
Bruna e é proibido o uso de celular em hospitais, interferem nos equipamentos médicos.
508
Dias depois, Raquel já estava em casa recuperando-se. Deprimida, ela não queria ver ninguém. Vivia
fechada no quarto e parecia se sentir bem somente com a presença da filha e do marido. Às vezes,
chorava muito.
Marcos, quando foi visitá-la, procurou Alexandre longe da irmã e perguntou:
Minha mãe escreveu para vocês?
Não. Desde que voltamos, não tivemos mais notícias.
Se chegar alguma carta, é melhor você não entregar para a Raquel. Do jeito que ela está...
Por quê? estranhou o cunhado.
Minha mãe não está bem. Primeiro ela me escreveu e eu já acheiestranho. Nesta semana, o
Pedro mandou uma carta me explicando tudo.
O que está acontecendo? tornou Alexandre.
Minha mãe escreveu dizendo que estava feliz. Ela disse que viu tudo o que queria. Eu não
entendi e escrevi pra lá. Depois de uma boaespera, o Pedro me contou tudo. Ele disse que após vocês
saírem de lá,minha mãe passou a visitar, com frequência, o tio Ladislau. Ela o torturava dizendo que a
Bruna era filha dele. Que ele matou as outras três eque as duas filhas que lhe restavam eram... Raquel e
Bruna, que elas herdariam tudo...
Alexandre abaixou o olhar e Marcos não completou o que iria dizer, mas por fim prosseguiu:
Minha mãe disse que ele perdeu as filhas e ficou aleijado porcastigo de Deus, que a mulher iria
atormentá-lo enquanto vivesse. Ela disse coisas baixas sobre eles e... Além disso, falou que a Raquel
estavabem, que em breve iria morar naquela fazenda junto com você e o colocaria para fora... Pedro disse
que o homem não suportou e, numa manhã, deu um tiro na esposa e depois se suicidou.
Sério?! perguntou Alexandre empalidecendo.
Agora, de uns dias para cá, minha mãe anda assustada, diz que vêvultos... Ela vai todos os dias
à igrejinha para rezar. À noite ainda acordaassustada, mas não sabe dizer o que é.
Ela precisa de tratamento, Marcos.
509
Ainda não terminei. O Pedro falou que, mesmo com tudo isso,ela ainda vive torturando meu avô,
que fica lá indefeso ouvindo-a.
E seus irmãos deixam?
Eles têm que cuidar das coisas por lá! Não podem ficar atrás dela o dia inteiro. Diante do
silêncio do cunhado, Marcos pediu: Não conta nada pra Raquel.
Claro que não! Por favor, nem você, hein!
Lógico concordou o cunhado.Após algum tempo, Alexandre perguntou:
E você, Marcos, o que vai fazer?
Quanto à minha mãe, eu não sei. Pretendo fazer algo por mim e por meus filhos. Sabe, um diretor lá
de onde eu trabalho, o senhor JoséLuiz, foi demitido. Quando ele foi se despedir de mim, eu perguntei:"O
senhor está a fim de administrar um hotel-fazenda?".
Alexandre sorriu largamente, pois fora ele quem dera aquela ideia para o cunhado, que completou:
Então ele aceitou e no mês que vem vamos pra lá.
Genial! admirou Alexandre satisfeito. Como eu lhe disse,com a extensão da agência de
turismo, faremos ótimos pacotes e daremos preferência e destaque para vocês, claro!
Obrigado, Alexandre. Espero poder retribuir tudo o que estáfazendo por nós.
Espero não precisar! respondeu sorridente.
Você soube da Alice? perguntou Marcos mudando o assunto.
Não. Como ela está? interessou-se Alexandre.
O juiz a declarou capacitada e ela não receberá pensão. Os meninos ficarão comigo por causa
de sua moral. Não sei se você soube, mas oValmor morreu.
Morreu?!
Morreu. E os filhos dele a despejaram do apartamento, pois,como herdeiros, eles tinham esse
direito porque o apartamento foi comprado antes da união deles.
E agora? perguntou Alexandre perplexo.
510
Nem te conto. Olhando para Alexandre, Marcos ficou observando sua reação e disse: A
Alice, para poder sobreviver, está levando uma vida fácil.
O quê?!
Isso mesmo. Estou até com pena por ela, não conseguiu arrumar emprego em lugar nenhum e
não lhe restou alternativa. A Alice parece que não encara a realidade, não vive a vida como ela é.
Conversando com ela, até achei que está perturbada, pois disse que os guias lhe disseram que ainda vai
conseguir muita coisa na vida, vai ser rica, conhecer alguém que lhe dê muito dinheiro. Vive acreditando em
simpatias e coisas do gênero. Para mim, uma pessoa que vive como ela está vivendo, depois de tudo o que
viu acontecer, não está normal. Alexandre ficou em silêncio tamanho foi seu espanto e Marcos continuou:
Ela me procurou, mas como é que posso aceitá-la de volta? Jamais! Mas, paraela não morrer de fome,
mesmo sem ter a obrigação, eu estou lhe dando uma pensão.
E a fazenda que você herdou, ela não tem direito?
Não. A Alice só tem direito ao que construímos juntos após ocasamento. Antes ou depois, não.
Essa herança já era minha antes deme casar e não se deu por consequência do casamento. Depois
de breve reflexão, Marcos comentou: É, Alexandre, esse mundo dá voltas, mesmo. Não podemos fazer
nada contra alguém, pagamos aquimesmo.
Alexandre nem tinha o que dizer e se manteve calado.
Os meses foram passando, Raquel e dona Virgínia se davam muito bem. Agora elas sempre estavam
juntas. Rosana, certa vez, havia dito àmãe que Raquel poderia lhe ser como filha, amiga e companheira e
estava sendo. A mulher se apegara muito à nora, que parecia também necessitar de seu carinho. A esposa
de Alexandre ainda se recuperava da perda da amiga e do filho que esperava, dedicando-se a tarefas na
Casa
511
Espírita que frequentava. Ela sempre levava consigo dona Virgínia, que passou a se integrar no trabalho de
assistência social e sentia-se menos deprimida pela ausência da filha e recebia, nas palestras, conforto ao
seu coração bondoso.
Um dia, quando estavam no Centro Espírita arrumando, carinhosamente, uma bela embalagem de enxoval
de bebê, dona Conceição, a senhora que coordenava aquele trabalho, se aproximou com o semblante triste
e Raquel percebendo, perguntou:
O que foi, dona Conceição? A senhora está chateada?
É. Estou.
O que aconteceu? preocupou-se a moça.
Sem ter mais com quem falar e por se achar isenta de alternativas, a colega revelou, quase como uma
confissão:
Há dois meses, minha sobrinha sofreu uma violência sexual. Foiregistrada a ocorrência e... Bem,
ela engravidou e o juiz deu permissão para o aborto. Minha irmã, que é viúva, não entende o que eu venho
lhe explicando e vai levar a menina para fazer o aborto. Hoje eu as trouxeaqui para a palestra da tarde. Elas
estão lá no salão. Mas minha irmãestá irredutível.
Raquel, tomada de uma força incomum, pediu:
Posso ir falar com elas?
Para que, Raquel? O que você diria? perguntou com simplicidade.
A companheira ignorava detalhes sobre a vida de Raquel e esta falou:
Talvez eu possa ajudar.
Como, filha?
Eu posso! Acredite! afirmou com delicado sorriso no belo rosto.Pela insistência e convicção de
Raquel, dona Conceição procurou
um local apropriado e reservado, deixando as três conversarem por longo tempo. Dona Virgínia, inquieta,
às vezes se preocupava. Curiosa com a demora, dona Conceição não sabia o que fazer. Mais de uma hora
depois, Raquel abriu a porta da sala onde estavam exibindo um largo
sorriso.
512
Mãe e filha saíram abraçadas e foram ao encontro de dona Conceição que, sem palavras, com os olhos
lacrimejando, olhou para Raquel ignorando o que dizer, pois entendeu que ambas aceitaram a criancinha
que estava para chegar. A mãe da moça voltou, abraçou fortemente Raquel, beijou-lhe o rosto e se foi junto
com a filha, após se despedir da irmã. Mais recomposta da forte emoção, dona Conceição procurou por
Raquel e lhe perguntou:
O que foi que você disse a elas, Raquel?
Eu contei a minha história e no final fiz uma pergunta.
Que história, Raquel? Que pergunta?
Dona Conceição, no momento eu estou emocionada e não queriachorar mais. Se me permite,
vou resumir o que disse a elas.
Claro. O que é?
A senhora conhece a minha filha, a Bruna?
Lógico!
Ela foi concebida num estupro. A mulher ficou paralisada e Raquel continuou: Eu contei tudo
como foi e as dificuldades queenfrentei, as misérias que vivi. Porém, a minha vida atual não seriaassim se
eu não tivesse a Bruna, minha filha. Depois eu mostrei essa foto disse ela exibindo novamente a
fotografia , e perguntei se hoje alguém teria a coragem de esquartejar a minha menina só por causa do
modo como ela foi concebida. Só por ela ser minha filha, porconsequência de um estupro, não merece
viver? Merece ser sacrificada?Esquartejada ou sufocada? Ainda aconselhei que se, por acaso, não
quisessem a criança, deixassem-na encontrar uma família de verdade, mas que lhe dessem uma chance,
pois foi isso o que Deus deu a cada um denós. Ainda contei que, hoje, a minha filha é minha maior alegria.
Bruna é a razão da minha vida e a do Alexandre também.
Ainda em choque, a mulher argumentou:
Raquel, eu não sabia. Ela até se parece com seu marido.
Mesmo não sendo o pai biológico, ele é o pai de verdade. Sabe,dona Conceição, a Bruna é o
motivo de eu ter o Alexandre, que, na minha vida, foi a maior bênção, depois dela, que eu recebi de Deus.
513
A mulher a abraçou com carinho e com lágrimas a correr-lhe pela face, beijou-lhe por várias vezes o rosto,
que prendeu entre suas mãos. Após ela ir embora, dona Virgínia se mostrou insatisfeita e comentou:
Não deveria ter contado, Raquel.
Foi preciso, dona Virgínia. Foi por uma boa causa. Sei que não devemos dar exemplos próprios,
como esse, mas elas precisavam de ummotivo... Confio em Deus.
E se elas comentarem alguma coisa?
Pessoas dignas e que se prezam não saem falando da vida dosoutros.
E se falarem?
Se isso puder prejudicar minha filha, ou incomodar o Alex, posso mudar de Centro. Fiz o que tinha
que fazer aqui e posso continuarfazendo em outro lugar.
A sogra olhou-a e sorriu, reconhecendo a situação.
No plano espiritual, tarefeiros que se mantêm despercebidos para os encarnados observavam o momento.
O espírito Rosana estava presente, em companhia de criaturas queridas. Após abraçar Raquel, envolveu
com ternura sua mãe. Elas não a percebiam, mas, para Rosana, quanta emoção!
Mãe, obrigada por fazer meu corpo ser útil após o desencarne.Senti-me tão bem com o que vocês
fizeram dizia ela, mesmo sabendo que não seria ouvida pelas encarnadas.
A amiga espiritual, que sempre envolvia Alexandre em momentos oportunos, estava ao lado de Rosana e
satisfeita a informou:
Você sabia que todos os órgãos doados do seu antigo corpo foram proveitosos e sem rejeição
para os receptores? Rosana iluminou-se defelicidade, mas não se pronunciou e ela prosseguiu: Suas
vibrações bondosas e o merecimento de quem necessitava auxiliaram a harmonia dessa caridade oportuna,
que não só foi uma caridade, mas também uma harmonização, você sabe.
Graças a Deus todos estão bem.
Nesse momento se aproximou delas um espírito com sorriso expresso em harmonia que a chamou:
514
Rosana.
Esta ficou na espera e olhando para aquele que aparentava um belo moço que nunca tinha visto, ou pelo
menos de que não se lembrava. Após cumprimentar sua companheira avisou:
Estou à sua procura, minha querida. Amigos me disseram que estaria aqui. Não pude ir visitá-la
antes porque tive de acompanhar entes queridos que estão encarnados. Agora soube que estava aqui e vim
lhe agradecer.
Agradecer? questionou Rosana sem entender.
Sim! respondeu ele sorridente e trazendo um semblante harmonioso e feliz. Vou reencarnar
em breve e devo essa abençoadaoportunidade a Deus e a você.
A mim?!
Lógico! afirmou ele ao pegar em suas mãos e completar: Ocoração que lhe pulsou a vida
toda no corpo físico hoje habita o peito daminha futura mãe. Consequentemente, na próxima vida terrena,
poderei dizer que terei um pedacinho de você.
Surpresa, ela não sabia como reagir, e ele prosseguiu:
Enquanto eu tiver consciência, agradecerei a Deus a caridade deseus familiares e a sua bondade
de um dia ter dito a eles sobre seudesapego à matéria física e afirmado que não se importaria com a
doação de seus órgãos. Isso foi o que mais levaram em conta para um ato tão corajoso, tão nobre e
abençoado. Haverei de encontrá-la logo na próxima e... Ele se deteve emocionado, mas prosseguiu:
Saberei, mesmoinconscientemente, que lhe devo a vida. Ele a envolveu num abraçofraterno e beijando-
lhe o rosto, falou: Adoro você, Rosana. Obrigado por tudo. Sempre vou amá-la.
Não fiz nada justificou-se ela emocionada e encabulada.
Ah! Fez sim. Ainda conversaremos a respeito. Agora quero que me perdoe, mas tenho que ir.
Contudo, em poucos dias vou procurá-la paraconversarmos mais. Prometo.
Despedindo-se da companheira de Rosana, ele voltou o olhar para esta e foi se afastando com o sorriso
constante a moldar o rosto feliz de indefinido sentimento elevado.
515
Ele se foi. Rosana sentiu-se atordoada e ainda confusa, perguntou:
Quem é ele?
A bondosa companheira satisfeita revelou:
É uma criatura querida que há muito procura ser feliz com
você.É uma alma afim, que sempre
esteve a seu lado e, nas duas últimasreencarnações suas, vocês necessitaram se separar para
refazimentos eharmonizações.
Rosana, ainda inebriada pela forte emoção, não sabia descrever o que experimentava naquele instante.
Refletindo um pouco, ela argumentou:
Que bom que nessa última experiência terrena pude ser útil aalguém, ou, pelo menos, meu
antigo corpo o foi.
Não, minha querida, você não foi só útil aos outros, você foi importante para si mesma. Sua
conduta moral e seus feitos, que pareceram insignificantes, surtiram resultados maravilhosos a muitos.
Pensamentos bons, atitudes caridosas, vibrações de amor e ensinamentos nobres impregnam a tudo e a
todos, a começar da roupagem que utilizou.O desapego para com tudo o que lhe pertenceu resultou em
sua rápidaharmonização no plano espiritual.
Então, todas as pessoas deveriam doar seus órgãos, não é?
Não foi isso o que eu disse. As pessoas devem ter, acima de tudo,o seu direito de pensamento e
ação. Se alguém que não esteja preparado solicitar que seus órgãos não sejam doados, acreditamos que
seudireito deva ser respeitado. Mas não é por isso que essa mesma pessoadeixará de ser bem acolhida,
de acordo com seu nível espiritual e moral, na espiritualidade, quando se der esse momento. As pessoas
devem ter consciência do desapego em todos os sentidos, desde os bens materiais até o corpo físico, pois
todos ficarão aqui após o desencarne. Mas isso depende da opinião de cada um. Jesus já nos disse: "Não
ajuntei para vós tesouros na Terra, onde a traça e a ferrugem os consomem, e onde os ladrões minam e
roubem; mas ajuntai para vós tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem os consomem e onde os
ladrões não minam nem roubam. Porque onde estiver o teu tesouro, aí estarátambém o teu coração".
516
Entretanto, Rosana, cada um deve seguir sua jornada evolutiva sem ser violentado em suas opiniões,
desde que não agrida os outros. Aquele que guarda seus tesouros em planos elevados e não têm apego à
matéria, é um vitorioso, um vencedor.
De acordo com seu processo evolutivo e as possibilidades de caridade com o que lhe pertenceu, por
empréstimo, na vida terrena, se ele tiver a oportunidade de doação de seus órgãos e o fizer, por fé e com
amor, ele já estará recebendo, com urgência, o socorro da Espiritualidade Maior diante do fato. Como foi o
seu caso. Por isso é muito importante deixarmos amigos e parentes cientes da nossa opinião sobre a
doação dos órgãos.
Em uma conversa sem importância, eu disse para a Vilma e paraa Raquel que era favorável à
doação.
Abençoado foi esse momento, Rosana. E também a visão e aopinião de sua irmã no hospital,
que não deixou dúvidas em seus parentes sobre a decisão a ser tomada.
Após pensar um pouco, sempre curiosa, Rosana questionou:
E quanto a ele, vou encontrá-lo novamente?
Em breve poderão tecer longos planos para o próximo reencarne.Veja, filha, quando em
conversa afirmou que não se importaria que doassem os órgãos que lhe pertenciam na matéria, você deu
liberdade aosseus familiares para autorizar a doação, quando solicitaram a eles. Seucoração ajudou aquela
que será mãe dessa bondosa e elevada criatura.Consequentemente, no seu caso, isso lhe garante um
futuro sem aquela solidão, ou sem aquela ausência inexplicável de uma alma querida, ao lado, que conforta
e agasalha o coração, que harmoniza e nos completa.No seu caso, a sua falta de egoísmo garantiu a
existência do futuro companheiro e amigo com quem há de se encontrar. Como ele disse, mesmona
inconsciência há de lhe ser grato e lhe dispensar toda consideração e respeito meritório, além do seu amor.
Juntos, Rosana, vocês acolherão osfilhos queridos e abençoados que vão completar a felicidade de todos.
Espere! Espere, aí! Eu vou reencarnar?
Em breve.
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Então por que desencarnei? Não seria mais fácil ter continuado lá?
Sempre há um planejamento reencarnatório, filha. Nesse caso,todos os envolvidos estavam
dispostos a ajudá-la nessa, que foi uma curtajornada, ou então, preparados ou não, precisavam passar pela
ausênciabrusca que necessitavam para crescer e evoluir. Além disso, a doação deórgãos foi, para eles e
para você, uma forma de se disporem para harmonizar inúmeras partes de um todo: sentimental e material.
Seu ex-noivo, Ricardo, precisou da dor da perda para valorizar as ligações amorosas. Ele agora tem que
seguir o seu caminho com outra pessoa e buscar ser feliz cumprindo seus propósitos. Você o estruturou
para isso quando lhe deu orientações valiosas. Sua mãe despertou para as tarefas úteis. Em todos os
sentidos, você amparou e sustentou a união de Raquel e Alexandre, orientando-os como devia. Você os
ama muito, não é? E creio que merece ficar entre eles.
Vou reencarnar como filha da Raquel e do Alex?! perguntouimediatamente.
A amorosa companheira sorriu ao afirmar:
Você disse uma vez que faria tudo por eles, não foi? Esse casalmerece motivos para ter
animação e felicidade.
Mas a Raquel perdeu um bebê há pouco tempo!
Esse querido irmãozinho retornará também, só que no tempooportuno e não agora. Enquanto
isso você... se prepara.
Eufórica e entusiasmada, Rosana, muito feliz, exclamou interrompendo-a:
Ah! Eu não acredito! pensando rápido, eufórica e marota, revelou seus desejos: Quero ter
os cabelos da Raquel! Os olhos do Alex!Eles são lindos, não são? Mas também quero ser mais alta que a
Raquel,para meu pai não me chamar de baixinha, claro! E...
Rosana! Rosana! Calma, filha, não é assim.
Ah! Tem que ser assim! Como é que essa "coisa" linda e maravilhosa que acabou de nos deixar
vai olhar pra mim, se eu não tiver a dadivosa beleza dos meus pais? Ah! Se eu tiver o direito, vou escolher,
sim! brincava ela como sempre fazia com tudo.
518
Diante do silêncio e do semblante risonho da companheira, Rosana insistiu com um jeito engraçado:
Deixe-me escolher, vai? Só os olhos?... Ou o nominho?... Os cabelinhos, então?...
Rosana não havia mudado nada na espiritualidade, isto é, Rosana não morrera, pois isso é viver. Em
espírito ninguém perde a sua individualidade nem sua personalidade.
De acordo com os valores morais conquistados através da renúncia, do amor incondicional e da caridade,
nos elevamos no padrão vibratório e nos encontraremos em níveis melhores de consciência, caminhando
para mundos felizes. E por que razão haveremos de ser sérios ou tristes, se salutar for essa alegria?
Rosana, animada e irreverente, antes de ir, aproximou-se de Raquel e, com seu jeito espirituoso, disse:
Tchau, mamãe Raquel! Após beijá-la completou: Em breve estarei com você, viu? Vê se me
trata bem, hein! Nada de castigo quando eu fizer coisa errada.
E, com dona Virgínia, não foi diferente.
Tchau, vovó Virgínia. Sabe aquela vez que eu disse que você era avó coruja? Esquece tudo e
continue sendo coruja, tá? Eu vou adorar osseus mimos. Daqui a pouco eu estarei de volta.
Não havia quem ficasse sério próximo de Rosana pelo seu jeito bem-humorado e expansivo de alegria
saudável, ela possuía o dom de envolver a todos nessa vibração dadivosa e, por isso, haveria de ser muito
feliz.
Agora, Raquel estava longe do irmão, pois Marcos mudara-se com os filhos para a fazenda onde
conseguira, junto com a administração do amigo José Luiz, erguer um grande negócio com os irmãos
Pedro e Tadeu.
Dona Tereza entrou em uma depressão crônica e necessitava de constante acompanhamento clínico e
medicamentos antidepressivos.
519
Ela chorava por qualquer motivo e se queixava de doenças e dores que os exames não confirmavam.
Poucos conseguiam ficar perto dela por causa de suas reclamações chorosas, e esta passou a se
enclausurar no quarto.
Alexandre, quando viu a esposa melhor, contou a ela, com palavras amenas, sobre a morte de seu tio
Ladislau e dos problemas que sua mãe vinha apresentando. O suicídio do tio a abalara muito e as
dificuldades de sua mãe a preocupavam. Ela só tinha notícia de sua família quando recebia cartas dos
irmãos. Mesmo com o tempo, Raquel ainda estava deprimida pela perda do filho e a ausência de Rosana
era algo doloroso.
O senhor Claudionor sempre tentava convencer o filho a se mudar do apartamento e ir morar em sua casa.
Sua mãe se dá bem com a Raquel e... As duas se entendem, Alex.Juntas, uma ajudará a outra a
superar tudo isso, além do que, a Brunaprecisa de espaço.
Depois de pensar, Alexandre opinou:
Vou falar com a Raquel, pai. O que ela decidir eu aceito.
A esposa concordou e eles se mudaram para a casa dos pais de Alexandre.
Passados alguns dias, Raquel procurou pelo marido e ao vê-lo chegar do serviço, pediu:
Alex, vem cá um pouquinho. Precisamos conversar.
Já no quarto ele perguntou sorridente ao abraçá-la com carinho, beijando-a:
O que aconteceu, hein? Quais as novidades? sorriu.Sem rodeios a mulher falou:
Gostaria que você fosse comigo até a casa da Sandra.
Alexandre sentiu-se gelar. Ele afastou-se de Raquel. Com o semblante descontente, virou-se, apoiou as
mãos sobre um móvel e abaixou a cabeça, sem dizer nada.
Ela, mesmo preocupada, pois sabia que o marido não queria que se tocasse naquele assunto, continuou:
520
A dona Otávia me procurou. Como você sabe, Sandra está comproblemas renais e seu estado é
grave. O que ela mais quer é poder falarcom você.
Alexandre se virou, encarou Raquel e perguntou, exibindo-se contrariado:
Você quer que eu vá?
Eu gostaria que você fosse por sua própria vontade. Após umapequena pausa, ela lembrou:
Alex, você me fez vencer alguns medos e traumas, me levando para encarar a última criatura que eu
poderiadesejar ver. Eu fiz isso por mim e por você... Aproximando-se e procurando envolvê-lo, continuou
com seu jeito carinhoso: Sabe, meubem, não foi fácil, mas foi tão... libertador. Sinto-me livre das ofensas
e de sentimentos que nem sei dizer. Gostaria que se sentisse como eu, a respeito do assunto mal resolvido
entre você e a Sandra, que arrancasse de seu peito essa mágoa que tem. Liberte-se de tudo isso! Mostre
que você é superior ao que ela fez. Dê-lhe um minuto de sua atenção. É só isso o que a Sandra pede.
Alexandre suspirou profundamente, encarou-a, e depois perguntou:
Você vai comigo?
Lógico! respondeu a esposa sorrindo. Vou estar sempre com você. Após se abraçarem,
convidou: Vamos lá agora. Amanhãela vai para o hospital.
Criando forças, ele decidiu:
Vamos.
Eles deixaram Bruna aos cuidados de dona Virgínia, que ficou aflita ao saber aonde iam.
Sandra morava a poucas casas dali e o casal foi a pé até a sua residência. Dona Otávia os recebeu,
surpresa; ela não acreditava que Raquel pudesse, ou quisesse, convencer o marido a ir visitar a ex-noiva.
Entrem, por favor disse a mulher cordial que indicou o quarto: Sandra está ali. Venham
comigo.
A residência era muito luxuosa e o quarto de Sandra não fugia ao estilo. Muito abatida, ela estava sobre a
cama e mal se mexia.
521
Sentem-se. Fiquem a vontade pediu dona Otávia apontando as cadeiras ao lado do leito da filha.
Eles a cumprimentaram e Raquel decidiu, em brando tom de voz:
Eu vou esperar lá fora. É melhor que conversem sozinhos.Alexandre, que segurava sua mão,
apertou-a com cuidado, puxando
a esposa de modo discreto, pedindo com o olhar para que ficasse ao seu lado.
Instante em que Sandra, com voz fraca e sem forças nas expressões, solicitou:
Por favor, Raquel, fique. Eu prefiro.
O casal se sentou e a mãe da enferma saiu para preparar algo para as visitas.
Obrigada por terem vindo agradeceu Sandra. Muito obrigada, mesmo. Após poucos
segundos, continuou: Alexandre, eu sei que não vai dar tempo para eu esperar por um transplante. A lista
é grande e no estado em que me encontro não tenho muitas chances.Aliás, quero parabenizá-los pela
decisão que tomaram quanto a salvar vidas pela vida extinta de Rosana. Quero, de coração, que Deus os
abençoe por isso.
Alexandre, muito sério, não dizia nada e Raquel ofereceu um doce sorriso. Após um tempo maior de pausa,
em que ela parecia estar recuperando o fôlego gasto com aquelas palavras, e também pela nítida emoção,
Sandra continuou:
Há tempos eu quero falar com você, Alex. Eu sei tudo o quepassou e sofreu por minha causa.
Talvez nunca me perdoe, não sou isenta de culpa, mas... Sabe, eu deveria ter sido honesta com você e tê-lo
procurado para conversarmos antes de fazer o que fiz. Após aparar algumas lágrimas que rolaram, ela
prosseguiu: Assim que conheci seus colegas, aqueles com os quais você dividia o apartamento,Júlio se
aproximava de mim e, aos poucos, foi conquistando a minha amizade. Eu soube, por você mesmo, que ele
era de muita confiança e era o seu melhor amigo. Com o tempo, o Júlio começou a insinuar coisas sobre
você e...
522
Sandra chorou e Raquel a confortou, passando-lhe a mão na fronte e afastando-lhe os cabelos do rosto.
Não fique assim, Sandra. Tudo isso já passou.
Não, Raquel. Talvez passe após eu terminar.
Alexandre, ainda sério, não dizia uma única palavra nem expressava qualquer sentimento em seu
semblante. Mas trazia o coração apertado e dolorido por ter que enfrentar novamente aquela situação.
Em alguns momentos, em pensamento, ele se socorria em Deus com uma prece para ter forças, piedade e
compreender aquela criatura que tanto o fez sofrer.
Olhando-a nos olhos, ele aguardava a ex-noiva continuar.
O Júlio começou a dizer coisas a seu respeito e a fazer comparações, mostrando-me detalhes que
não existiam e situações... E eu, emvez de procurá-lo e perguntar se era verdade, fiquei aflita e comecei
achorar minhas mágoas para ele. Eu estava triste, pois com o apartamento montado, casamento marcado,
estava confusa e, como você, fiz do Júlio meu amigo. Ela parou o relato e, após secar as lágrimas
teimosas, prosseguiu: O Júlio me enganou de tal forma que não sei dizercomo tudo aconteceu. Um dia,
quando cheguei ao que seria o nosso apartamento e encontrei o Celso lá, fiquei nervosa, lembra?
Alexandre não respondeu nada e ela continuou: Hoje sei que vocês estavam instalando coisas no
computador, mas na época não acreditei. Eu saí delá enlouquecida, contrariada, e sabe por quê? Porque
eu estava grávida.Eu esperava um filho seu.
Alexandre empalideceu e se fez firme. Mesmo sentindo-se gelar com o torpor que o dominou por minutos,
quase o fazendo ensurdecer, ele permaneceu calado.
Sandra, mesmo entre os soluços, contou:
Dias depois, eu o vi para cima e para baixo com o Celso, e pensei que o Júlio estava certo. Eu o
procurei e ele me consolou, me fez acreditar nas maiores barbaridades a seu respeito, pois ele sabia, ele
era seumelhor amigo e vocês moravam todos juntos. Foi aí que eu o traí pela primeira vez, e a segunda foi
quando nos flagrou juntos.
523
Alexandre respirou fundo, esfregou o rosto com as mãos e, pela primeira vez, falou:
Por favor, vamos terminar logo com isso. Se esse assunto a conforta, a mim magoa muito,
principalmente agora. Tudo isso é passado, eujá me recuperei. Encontrei uma criatura maravilhosa, que é a
Raquel.Estamos casados e vivemos muito bem. Hoje eu sou um homem feliz,Sandra. Não quero lembrar
de situações desagradáveis. Por isso, gostaria que você fosse breve.
Eu sei, Alexandre disse ela chorosa. Eu sei o quanto isso ofez sofrer. Mas eu preciso
esclarecer. Como me arrependo, principalmente pelo que falei de você para todo mundo. Eu fiz isso de
raiva,porque acreditei que estava sendo enganada, porque contou ao meu pai que me encontrou com seu
amigo... Sei que nem se dá bem com alguns tios e primos por causa de tudo o que eu disse. Soube que
tentou se matar pelas lembranças que tinha... Seus problemas cardíacos tiveram origem aí. Estraguei a sua
vida...
Após chorar um pouco, e sob alguns carinhos de Raquel, Sandra se refez e continuou um pouco mais
calma:
Há algum tempo o Celso me visitou com a esposa. Ele se casou,sabia? Em conversa, o Celso me
contou que ficou decepcionado com tudo, nunca imaginou que o Júlio pudesse fazer o que fez e até se
mostrou desapontado comigo. Ele me contou que vocês estavam sempre juntos porque ele havia lhe
apresentado um colega que estava conjugando a iluminação no apartamento e vendo alguma coisa com o
som e quequeria me fazer uma surpresa. Só então entendi tudo melhor ainda.
O Júlio me enganou depois que fomos morar juntos. Eu tirei o filho que esperava e não suportei mais a vida
que levávamos. Ele arrumou outra... Depois disso, descobri que estava doente e precisei da ajuda de meus
pais. Tive culpa pelo que você sofreu, mas não me julgue tão mal, eu também fui enganada.
Diante do silêncio que reinou, agora com o semblante ainda mais sério, Alexandre perguntou com voz
grave:
O que você quer que eu diga?
524
Quero que me perdoe. É por isso que eu venho procurando você.Nunca mais tive sossego. Não
durmo bem, não tenho paz e só penso no crime que cometi quando abortei e na traição que lhe fiz. Você
quase morreu por minha causa. Perdoe-me, por favor.
Se é como conta disse Alexandre , você tem culpa sim, mas não toda ela.
Com lágrimas correndo na face, ela pediu:
Precisava ter paz na minha consciência e eu acreditei que só a teria no dia em que esclarecesse
tudo com você. Perdoe-me, Alexandre,por favor!
Aflita, Raquel apertou a mão do marido como se lhe pedisse uma resposta positiva. Alexandre encarou
Sandra com piedade por seu estado e condição moral, entendendo que ela sofria por tudo, pois a
consciência parecia pesar imensamente.
Não tenho pelo que perdoá-la, Sandra. Tudo já passou...
Não, não passou disse ela chorando copiosamente. Para mim não passou. Vivo enfrentando
o arrependimento por tudo o que lhe fiz. Vejo-me aqui doente e me lembro do tempo em que ficou
acamado por minha causa sem dever, sem merecer... Você me perdoa por tudo?
Se for importante que ouça dessa forma, sim. Eu a perdoo, sim,Sandra afirmou agora mais
piedoso.
Sandra ergueu-lhe os braços, Com um leve e discreto empurrãozinho de Raquel, Alexandre se levantou,
aproximou-se da cama onde ela estava e a abraçou. Comovido, ele voltou para seu lugar e disse:
Não desista de viver, Sandra. Você ainda pode fazer muita coisa.
Estou sem chances, Alex. Se eu puder...
Você encontrará um doador, Sandra. Eu tenho certeza disse Raquel, com suave sorriso no
rosto.
A moça a olhou e falou:
Se você não encontrou, desejo que encontre a felicidade verdadeira, Raquel. Você tem um homem
maravilhoso ao seu lado e sei que também é digna dele. Além de ser linda, você tem um coração generoso.
Cumpriu sua promessa de arrumar uma oportunidade para meu
525
desabafo com o Alex. Que esposa faria isso sabendo se tratar da ex-noiva que tanto o fez sofrer? Já ouvi
falar muito bem de você, mas nunca imaginava que fosse tão bondosa. Quero que sejam muito felizes. Por
Deus, esse é meu maior desejo. Eu soube que perdeu um bebê e... Sei que se deprimiu. Não fique triste,
ele voltará novamente para completá-los.
Eu acredito que sim, Sandra afirmou Raquel com suave sorriso meigo.
Nesse instante Raquel se levantou, aproximou-se da enferma e lhe deu um forte abraço. Após conversarem
mais um pouco, o casal se retirou, voltando para casa.
No caminho, andando vagarosamente sob as árvores que encobriam a luminosidade da lua que se fazia
radiante, nada foi dito. Alexandre abraçou a esposa e não lhe confessou seus pensamentos. Apesar de
triste por ouvir toda aquela história, ele se sentia tranquilo e com a consciência mais leve por tê-la ouvido e
esclarecido a situação.
Alexandre começou a pensar que precisara experimentar toda aquela situação, ou talvez não tivesse
mudado tanto sua vida, seu comportamento materialista e orgulhoso. Acreditou que se aproximara de
Sandra por sua beleza física, seu dinamismo e o que sofrera por sua causa fora mais pela decepção da
traição do que por sentimentos verdadeiros.
Após ter encarado a ex-noiva novamente, teve a certeza de que o único sentimento que restara nele, por
ela, fora o de piedade. Realmente ele a perdoara, reconhecendo a fraqueza humana que ela tivera.
Olhando para a esposa, passou a valorizá-la ainda mais pelo caráter íntegro, pela moral elevada, por sua
delicadeza, meiguice, paciência e tantos outros valores que alguém dinâmico, e em destaque, talvez não
tenha.
Como Raquel era nobre! Como se sentia feliz, realizado e completo por estar com ela.
Quando chegaram em casa, dona Virgínia, que estava inquieta, ficou ansiosa, enquanto ouvia. Ao se ver a
sós com o filho, ela admitiu:
A Raquel me surpreende a cada dia.
526
Ela é maravilhosa, mãe. Minha Raquel é linda, meiga e maravilhosa. Acho que não mereço tanto.
Ela é uma filha para mim, Alex.Ele sorriu e nada completou.
Alguns dias haviam se passado depois desse encontro. Raquel procurou pelo marido e, com jeitinho,
perguntou:
Sabe, eu liguei para a dona Otávia e ela me contou que a Sandrafica indo e voltando do hospital.
Seu estado não está nada bom. Pensativo, Alexandre não disse nada e ela continuou, com o mesmojeito
generoso: Estive pensando, você se incomodaria se eu fosse visitá-la algumas vezes?
Ele ficou mais sério e argumentou:
Olha, Raquel, eu estou com pena da Sandra, a perdoei e não tenho mágoa nenhuma dela, ao
contrário, estou compadecido do seu estado. Desejo que ela tenha uma chance de continuar. Mas eu não
sei o que pode passar pela cabeça dela. Desculpe-me a sinceridade, mas não posso confiar. Você é minha
esposa eu a amo muito e... Após pequena pausa, ele a abraçou e disse: Tenho medo. Será que
ela realmente mudou e nos deseja tudo de bom? A Sandra não tem nada a perder.
Não acredita que ela mereça um voto de confiança?Alexandre ficou calado, ele era um tanto
possessivo quanto a Raquel,
mesmo dando-lhe toda liberdade. Talvez pela traição que sofrera no passado, mesmo confiando na esposa,
queria tê-la perto. Sempre sincero, ele admitiu:
Raquel, eu preferiria que você não fosse lá. Mas, se quiser, não vou brigar com você por isso. Tudo
bem.
Ela não disse nada e se contentou.
Meses depois, algumas vezes, ao chegar em casa e procurar a esposa, Alexandre tinha informação de que
ela estava na casa de Sandra.
527
Não estou gostando disso reclamava
ele para sua mãe apóschegar em casa e novamente não encontrar Raquel. Eu não me incomodaria se
fosse menos frequente, mas olha só: quase todo dia euchego em casa e: Cadê a Raquel? Na casa da
Sandra. Assim não dá! Euvou falar com ela!
Calma, Alexandre! disse dona Virgínia defendendo a nora. Também não é assim! Ela não
vai lá todo dia, não. Após poucos segundos a mulher completou: Talvez a Raquel deva estar se
sentindo só. Ela precisa de uma amiga.
Sentindo-se só?! retrucou o filho. Ora, mãe! Desde quando eu comecei a trabalhar com o
pai, ela reclamou que não trabalhava e resolveu ir junto assumindo o serviço na recepção. Das sete ao
meio-dia a Raquel está na empresa. Quando o pai vem almoçar, ele a traz e,quando que chego em casa,
quatro ou cinco horas da tarde, cadê a Raquel? Ela só volta à noitinha e quando temos que ir ao centro. E
vocêvem me dizer que ela está só?
Não é assim, não, Alexandre! revidou a mãe veemente. Desde quando você e seu pai se
meteram com esse novo negócio, você não vem dando a atenção necessária para sua esposa. Até eu estou
saturadade ouvir vocês dois só conversarem sobre negócios aqui dentro de casa.Outro dia eu reparei: a
Raquel, sempre que chega perto, nem parece que está ali e você continua como se ela não estivesse.
O que é isso, mãe?! Eu adoro a Raquel! Nunca a desprezei!!!
Pode adorar, amar e fazer tudo por ela, mas eu percebi que nos últimos tempos você está
diferente, Alexandre!
Como diferente?! Você mesma vive me chamando de "gruden-to"! Fala que eu não a largo! Você
disse, outro dia, que ela trabalha na empresa porque eu quero tê-la junto de mim, pensa que eu não
estou sabendo?! Ele não segurou o sorriso, mas escondeu o rosto, pois sabia que sua mãe o chamava
pelo nome todo só quando estava nervosa. Por fim, para provocá-la, ainda falou: Se quer defender a
Raquel só porque eu disse que vou falar com ela, não precisa ficar inventando coisas!
528
Eu não estou inventando coisas! Alexandre! Alexandre! Maiscalma ela pediu: Não diga nada
para ela. Faça o seguinte: peça, com jeitinho, para ela estar em casa um pouco mais cedo. Faça
um programa para saírem. Entendeu? Não precisa brigar. Arrume um motivo para ela estar aqui. Acho que
não preciso ficar te ensinando estas coisas, né?!
Ele sorriu e confessou:
Sabe, mãe, eu só queria tê-la aqui em casa. Não gosto de pensarque a Raquel está em
companhia da Sandra. Às vezes eu sinto umacoisa...
Você perdoou a Sandra?
Perdoei, sim. Mas não sei se posso confiar a ponto da Raquel ir lá e ficar horas com ela sozinha.
Você entende? Fico preocupado, acho que ela pode se desequilibrar pelo desespero com a doença. Na
verdade euacho que a Sandra tem inveja da Raquel; talvez ache que a Raquel ocupao seu lugar, entende?
Dona Virgínia ficou pensativa e concordou:
Já pensei nisso. Eu também não confio, não. Sabe filho...
A chegada de Bruna, que correu e se atirou nos braços do pai, interrompeu o assunto. Ao levantá-la no
alto, ele a fazia rir, quando o telefone tocou e tiveram que interromper a brincadeira. Ele a ajeitou no braço
e, mesmo assim, a filha protestou:
Ah! Papai! Faz de novo, vai!
Só um minutinho. Deixa o papai atender, a vovó está com asmãos molhadas.
Era dona Otávia.
Alexandre?! perguntou a mulher assustada.
Eu!
Aqui é a Otávia, filho. Vem depressa pra cá. A Raquel está passando mal.
Após desligar imediatamente Alexandre estava pálido.
O que foi, Alex? perguntou sua mãe muito preocupada.Ele entregou a filha para a avó e não
conseguia responder.
529
O senhor Claudionor, que acabava de entrar, ficou atento ao olhá-lo e o filho pediu com a voz
trêmula:
Pai, vem comigo. A Raquel passou mal lá na casa da dona Otávia.Pega o carro...
Às pressas, eles foram até a casa da mulher e ela os recebeu em desespero. Raquel, deitada em um sofá,
estava desmaiada, e dona Otávia falou assustada:
Ela começou a passar mal, ficou pálida, aí, enquanto eu ligava pravocê...
Alexandre a pegou no colo sem dizer nada, e saiu. A esposa estava sem sentidos e ele a levou para o carro
seguido de seu pai.
Raquel foi socorrida em um hospital e liberada pouco tempo depois. Não era nada sério, ao contrário, foi
motivo de muita felicidade para todos.
Seu mal-estar era resultado da gravidez que todos ignoravam. E Aline nasceu alguns meses depois desse
susto.
Essa bênção de Deus oferecia a todos mais alegria e união, mostrando que nunca estamos longe daqueles
que amamos. Alexandre não cabia em si tamanha era sua felicidade e, como dizia, ele tinha, agora, mais .
530
Leia os romances de Schellida!
Emoção e ensinamento! Psicografia de Eliana Machado Coelho
Sem Regras para Amar
Machado Coelho i
"""SttielHda
Gilda é uma mulher rica, casada com o empresário Adalberto, mãe de Lara, Eduardo e Érika. Arrogante,
prepotente e orgulhosa, ela sempre consegue o que quer graças ao poder da sua posição social. Mas a
vida dá muitas voltas. Os problemas de Gilda começam quando Lara morre em um acidente
automobilístico. Aumentam quando a filha Érika apaixona-se por João Carlos, professor em uma academia
de musculação e... negro. Crescem ainda mais quando Eduardo envolve-se com Helena, moça simples e...
humilde. Então, determinada a acabar com os dois romances de seus filhos, Gilda passa a colocar em
prática seus planos para atrapalhar a vida de todos, assumindo os seus preconceitos racial e social. Instala-
se naquela mansão a desarmonia e a obsessão que trarão consequências desagradáveis para toda a
família.
O Direito de Ser Feliz
Fernando e Regina apaixonam-se. Ele, de família rica, bem posicionada. Ela, de classe média, jovem
sensível e espírita. Mas o destino começa a pregar suas peças. Movido pela ambição material, Fernando
decide ir trabalhar na França, caindo na rede sedutora de Lorena, uma prima que mora em Paris. Regina
fica só. O tempo passa, e eles se separam definitivamente. Fernando fica com Lorena, Regina se casa com
Jorge. Novos fatos vêm abalar a vida de todos os personagens desta envolvente história... Por quais
caminhos devemos seguir para não cair nas armadilhas da própria invigilância, da imprudência, da traição e
das amarras dos vícios que levam àautodestruição? Como encarar a solidão, sobretudo quando perdemos
aqueles a quem mais amamos, e tendo ainda de enfrentar a dura realidade do câncer?
O Amor Enxuga as Lágrimas
Leia este romance emocionante do espírito Irmão Ivo!
Psicografia da médium Sônia Tozzi
Paulo e Marília, um típico casal classe média brasileiro, levam uma vida tranquila e feliz com os três filhos,
Fábio, Andrée Laís. Quando tudo parece caminhar em segurança, começam as provações daquela família:
o garoto Fábio, após um período de internação para a cura de uma doença banal, vem a falecer de maneira
quase inacreditável. Marília, a mãe inconformada, entrega-se ao desespero e àdepressão, esquecendo-se
do amparo aos outros filhos e ao marido. Nesse meio-tempo, o casal Pedro e Laura, além do filho Marcos,
aproxima-se mais de Paulo e Marília, tentando auxiliar na superação da tragédia. Porém, o pior estava por
vir: Marcos, adolescente envolvido por más companhias, arrasta André para o mundo das drogas e do
delito, trazendo mais problemas para todos.
Mas a espiritualidade nunca desampara seus filhos. Eis que surge a figura equilibrada e sempre
companheira de Dr. Rubens, um experiente médico, espírita, amigo sincero de ambos os casais, que terá
papel relevante na orientação espiritual do grupo e na recuperação social dos dois jovens, resgatando-os
para uma vida mais produtiva. O resultado maior de toda essa união será a inauguração do Lar de Isabela,
entidade assistencial às gestantes carentes que leva o nome da filha do médico, também desencarnada em
tenra idade.
Longe dos Corações Feridos
Um romance imperdível! Um enredo envolvente!
Obra do Espírito Eugene Psicografia de Tanya Oliveira
Estamos em 1948. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, dois militares americanos da Força Aérea vão
viver emoções conflitantes entre o amor e a guerra. O governo dos Estados Unidos decide pela intervenção
nas Filipinas. Joe Evans, arrojado e habilidoso piloto, é destacado para servir nesta nova empreitada ao
lado de seu melhor amigo, Don Delmore, outro piloto capacitado, porém fanfarrão, mulherengo e ambicioso.
A dor maior de Joe Evans é deixar nos Estados Unidos seu grande amor, a jornalista Laurie Stevenson,
uma linda e inteligente mulher. Antes da viagem dos dois militares, Joe apresenta Laurie para Don no Baile
dos Oficiais, o evento mais esperado na corporação. Imediatamente, Laurie sente uma estranha emoção no
limite da atração e da repulsa. Começa aí outra vez Um triângulo amoroso que trará à tona situações de um
passado distante e que culminará com o desencarne prematuro de Laurie. Na espiritualidade, a história
ganha um novo rumo com a ajuda do orientador Fernando, até o final surpreendente que esclarecerá todo o
enredo deste envolvente romance. Para o espírito Laurie, não restará alternativa senão aceitar sua nova
condição com renúncia e resignação até que todos aprendam o verdadeiro sentido da palavra perdão.
Romances do espírito Helena!
Psicografia de MARIA NAZARETH DORIA
Amor e Ambição
Loretta era uma jovem nascida e criada na corte de um grande reino europeu entre os séculos XVII e XVIII.
Determinada e romântica, desde a adolescência guardava um forte sentimento em seu coração: a paixão
por seu primo Raul. Um detalhe apenas os separava: Raul era padre, convicto em sua vocação.
Um Novo Despertar
Simone, moça humilde do interior, consegue estudar, se formar e mudar para a cidade grande com a
família. Quando começa a trabalhar em uma grande empresa estatal, um pavoroso incêndio consome o
edifício. Simone e outros companheiros desencarnam e vivem experiências novas e inesperadas na
espiritualidade.
Obras do médium Pedro de Campos!
Universo Profundo
(espírito Erasto)
Universo Profundo - Seres inteligentes e luzes no céu - uma visão espírita da Ufologia é uma obra que
desmistifica e facilita o entendimento desse polémico assunto. Com argumentos lógicos, racionais e
científicos, Pedro de Campos expõe com clareza os fundamentos da Doutrina Espírita quanto à vida
inteligente nas profundezas do Cosmos.
Colónia Capella -A Outra Face de Adão
(espírito Yehoshua ben Nun)
Uma extraordinária viagem no tempo até os primórdios da Humanidade que une o evolucionismo proposto
por Charles Darwin e a Teoria Evolucionista Espiritual, a partir das constatações feitas por Allan Kardec de
que "existem seres inteligentes extrafísicos com os quais é possível comunicar-se".
Um motivo para viver
@@@ informações sobre a digitalização @@@
Descrição da capa: A capa é uma fotografia em tom amarelado de uma floresta não muito densa. Ao centro
uma faixa na cor marrom apresenta o título do livro na cor branca. Na parte superior o nome da autora na
cor mostarda.
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Detalhes de diagramação:
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estipulada acima. As páginas em branco foram mantidas e identificadas com o sinal duplo de *.
Versão do Office: MS Office 2003
Direitos Autorais: Este livro foi digitalizado pela Speedebooks para uso de pessoas com deficiência visual,
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conseguem interagir e fruir de sua leitura assim como as pessoas normovisuais. Esse procedimento
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Revisão- Maria Cristina S. Gomes
** página em branco **
Psicografia de Eliana Machado Coelho
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Pelo Espírito Schellida
Copyright @ 2004 by Lúmen Editorial Ltda.
2a edição - março de 2005
Direção editorial: Celso Maiellari
Revisão: Marinete Ferrarini e Alessandra Miranda de SáProjeto Gráfico e Diagramação: Cláudio Braghini
Júnior/Casa de Ideias
Capa: Daniel Rampazzo/Casa de Ideias Impressão e acabamento: Yangraf Gráfica
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Schellida (Espírito).
/ pelo espírito Schellida; psicografia de Eliana Machado Coelho. 1. ed. São Paulo: Lúmen, 2004.
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2005 Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem prévia autorização da editora
Impresso no Brasil - Printed in Brazil
Sumário
Dificuldade iminente 7
A única ajuda 25
Reforçando os laços de amizade 45
O passado angustioso 71
Acusações indevidas 93
Confiando em alguém 119
Desorientada e sem rumo 145
Confidências necessárias 167
Sequelas de um trauma 193
Rosana - a nova amiga 221
A preocupação dos pais 245
As primeiras brigas 259
O reconforto em uma prece 289
Assumindo os sentimentos 303
Turbulência inesperada 321
Compreensão e amor filho adotivo 345
O retorno de Alexandre 371
Vida nova 391
Três corações entrelaçados 415
Desabafo inesperado de Raquel 445
Doação de órgãos 481
O mundo dá voltas 503
** página em branco **
Capítulo 1
Dificuldade iminente
Era início de noite e Raquel, após chegar do serviço, como de costume, realizava suas atividades habituais,
preparando o jantar e arrumando alguns detalhes de sua simples casa.
De repente, a jovem teve sua atenção voltada para a voz que, diante do portão, gritava seu nome.
Ah! É Marcos! reconheceu rapidamente e foi recebê-lo comum belo sorriso estampado no rosto.
Para Raquel a visita de seu irmão era uma situação comum, muito corriqueira. Entretanto, após entrarem
na casa, antes mesmo de Marcos se acomodar em uma cadeira que puxara, Raquel teve a certeza de
perceber que uma tristeza indefinível, mesclada de melancolia e preocupação, emoldurava a face de seu
irmão, anuviando seu sorriso.
Sem questionar sobre o que o incomodava, Raquel ofereceu-lhe um café, serviu-se também e escolheu
uma cadeira, sentando-se próxima a ele de modo a tê-lo em frente de si.
E lá na empresa, Raquel, como está?
Tudo bem, afirmou com modos simples. - É a rotina de sempre.
Não posso dizer o mesmo.
Fixando o olhar em seu irmão, serenamente aguardou que Marcos continuasse. O que ocorreu após breve
intervalo:
Nos últimos dias nem estou conseguindo dormir. Estão mandando muita gente embora. Cada dia é
um. Vivo em constante pesadelo, pois, a cada manhã, penso que serei o próximo. O pobre homemtinha
lágrimas nos olhos e contava tudo com a voz trêmula. Após ligeirapausa, Marcos continuou: Como se
não bastasse lá em casa está um
inferno. Encarando a irmã ligeiramente e tomando suas mãos, pediu: Desculpe-me, Raquel. Acho
que você está cansada de ouvir reclamações da Alice.
Você só está desabafando, Marcos. Eu entendo. Afinal de contas,se você não falar comigo, vai
conversar com quem? argumentou amoça tentando consolá-lo.
Marcos, por sua vez, largou as mãos de Raquel, tornou a pegar a xícara com café e, após ingerir mais um
pouco da bebida, continuou comentando exibindo tristeza em seu tom de voz.
Meu casamento com Alice foi um erro. Você bem sabe. Ela égeniosa, exigente, orgulhosa.
É terrível
conviver com ela. Nos últimostempos vem se queixando das condições em que vivemos, reclama dafalta de
dinheiro, de luxo, de riqueza. Só que, também, não move umapalha para me ajudar.
Em defesa de Alice, para procurar amenizar os sentimentos do irmão, Raquel expôs-se favorável à
cunhada.
Mas Alice cuida bem da casa e dos meninos. Ela é muito caprichosa, Marcos. Isso você não
pode negar.
Caprichosa com a casa, sim. Isso ela sempre foi. Mas, com osmeninos, ultimamente está
deixando a desejar. Alice vive brigando com eles, gritando, xingando... Não há coisa pior do que chegarmos
em casa e deparar com uma mulher nervosa, irritada, reclamando de tudo. Estou saturado, Raquel. Só
quero ver hoje, quando eu chegar.
O que tem "hoje"?
O nosso aluguel subiu. Não teremos como pagar. Não tive aumento de salário e ainda corro o
risco de ficar desempregado. Como senão bastasse essa situação crítica, ainda terei que ficar ouvindo os
gritos da Alice.
O que você vai fazer, Marcos?
Não sei. Há tempos não compramos roupas, não passeamos, ultimamente comemos mal e agora
nem terei como pagar o aluguel.
E se mudarem para uma casa menor e em outro bairro? Talvez oaluguel seja mais baixo.
Não tenho dinheiro para pagar o depósito do aluguel. Além disso, Alice vai se revoltar mais do que
já está. Após ligeiros segundos de silêncio, completou: Se não fosse por meus filhos...
Raquel se preocupou. Levantando-se, caminhou vagarosamente pela cozinha, recordando a ajuda que
recebera daquele irmão em um período muito crítico de sua vida. Quando todas as portas se fecharam, fora
Marcos quem a amparara e cuidara até de sua saúde. Raquel era grata por tudo e, com certeza, faria o
possível para ajudá-lo. Porém, aquela situação era difícil demais, pouco poderia fazer. Lembrando-se da
pequena reserva em dinheiro que depositara em uma conta de poupança, a jovem ofereceu: Marcos,
tenho algum dinheiro guardado. Não émuito, mas... Ele é seu! afirmou convicta. E esperando um
semblante mais animado por parte dele, Raquel se decepcionou quando o irmão anunciou:
Já tenho dois meses de aluguel em atraso. Mais um e estou na rua.Ante a revelação desagradável,
Raquel empalideceu. Ligeira, pela ideia
imediata, decidiu afirmando rápido:
Mudem-se para minha casa. Pronto! Está resolvido. Você, a Alice e os meninos virão morar aqui.
Esta casa não é muito grande, mas podemos nos ajeitar, certo?
Marcos levantou a cabeça, antes pendida e, dirigindo o olhar ainda tristonho para sua irmã, mantinha-se
sem palavras ou argumentos.
Eis a solução, Marcos! Eu continuo pagando o aluguel daqui evocê só me ajuda com a
alimentação e com as contas de água e luz. Estabilizados, guardam algum dinheiro e aguardam sua
situação se firmar.
E se eu for demitido?
Será melhor que esteja morando aqui se isso acontecer. Vocês não vão ficar sem ter onde morar
e será o tempo de arrumar um outro emprego.
Não posso fazer isso, Raquel afirmou insatisfeito com a proposta.
Você tem que aceitar!
Não quero usar você, Raquel. Sabe como a Alice é... Isso não vaidar certo.
Será por pouco tempo. Tenho certeza de que esses "cortes", láonde trabalha, vão parar e você não
será demitido. Quando tudo voltar ao normal, vocês arrumam outro lugar até melhor.
Diante do silêncio de Marcos, parada em frente dele, Raquel insistiu com voz generosa expressando um
brilho sem igual no olhar:
Por favor, aceite. Deixe-me fazer algo por você. Dê-me a oportunidade de retribuir o que já fez por
mim. Não estarei fazendo isso porpaga, é por amor. Somos um pelo outro, Marcos. Não somos?
Ele a encarou reconhecendo que Raquel era a única ajuda a seu alcance. Com olhar melancólico e no
semblante um forçado sorriso triste, Marcos pendeu com a cabeça afirmando positivamente, dizendo que
aceitaria.
Raquel se emocionou e secou discretamente as lágrimas que rolaram teimosas em seu rosto. Com a
fisionomia expressando preocupação, Marcos argumentou:
Ainda tenho que falar com Alice. Pensativo, tornou a concluirquase desalentado: Não será
fácil, minha irmã. Você bem conhece minha esposa. Eu só aceito sua oferta por não ter alternativa, não é
demeu agrado que se sacrifique tanto, perdendo sua privacidade, sua liberdade e ainda tendo de aturar o
mau humor de Alice.
Não pense assim, Marcos. Não estou me sacrificando. Sempre serei grata a você por tudo o que
tenho hoje. Sempre estarei ao seu lado.
Com o olhar enternecido e grato, Marcos aproximou-se de Raquel, beijou-lhe a fronte e agradeceu:
Obrigado, Raquel. Acredito que é uma fase, mesmo.
Vai dar tudo certo. Não se preocupe afirmou a jovem animada, escondendo com um largo
sorriso sua preocupação. Oferecendo novo rumo à conversa, convidou: Bem, hoje você fica para jantar
comigo,não é?
Não, Raquel, obrigado.
Só hoje, Marcos!
Não, obrigado. Quero chegar cedo em casa. Tenho que conversarcom Alice e... Creio que a noite
será longa.
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Após Marcos se retirar, um sentimento indefinido tomou conta de Raquel. A inapetência ganhou espaço
em seus desejos, por causa dos sentimentos tristes pela incerteza com a situação de seu irmão.
Rapidamente tomou um banho e se aprontou para dormir sem jantar. Deitada em sua cama, Raquel não
conseguia adormecer; pensamentos e emoções inebriados de melancolia e insegurança passaram a lhe
corroer a alma.
"Será que agi corretamente?", perguntava a si mesma em pensamento. "Eu não tenho alternativa.
É meu
irmão!", justificava, forçando-se àquelas ideias. "Depois, Marcos foi a única pessoa que me ajudou quando
mais precisei. Não posso deixá-lo sem amparo em um momento como esse."
Os pensamentos de Raquel corriam céleres, pois ainda havia inúmeras dúvidas na decisão já tomada.
"Será difícil conviver com Alice. Mas, por Marcos, eu tenho de suportar. Devo-lhe muito!", refletia. Após
breve pausa, tornava insistente: "Prometo, a mim mesma, tolerar Alice. Não vou dar ouvidos às suas
implicâncias. Vou deixá-la falar e até brigar sozinha. Será por pouco tempo".
E assim Raquel passou a noite, convencendo-se de que a decisão que tomara para ajudar seu irmão,
cedendo espaço em sua casa, fora a melhor. Perseverante para que os planos positivos ocupassem seus
pensamentos, sem perceber, não conciliou o sono até amanhecer.
Enquanto isso, na residência de Marcos, Alice reagia com extrema revolta à situação que já era difícil. A
mulher parecia estar envolta por uma aura de labaredas, uma vez que, levada por irresistível força, a pobre
esposa não conseguia se conter e, aos gritos, expunha ao esposo seu parecer.
Eu não acredito! dizia Alice com voz estridente, franzindo o semblante e exibindo sua insatisfação.
Morar com sua irmã pela sua incompetência! Era só isso o que me restava. Eu não posso aceitar uma coisa
dessas, Marcos!!! Caminhando de um lado para o outro da sala, Alice parecia alucinada tamanha era
sua revolta e indignação. O silêncio
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de Marcos a incomodava. O homem estava cabisbaixo, desalentado e sem argumentos. Em virtude da
ausência de palavras do companheiro, Alice, ainda andando de um lado para o outro feito um animal
enjaulado, continuou a reclamar: O que será que fiz para pagar tanto pecado assim?! Veja só a que
ponto chegamos! Viveremos à custa de sua irmã! Como se não bastasse, agora nem teremos onde morar.
Depois de pequena pausa, Alice diminuiu o volume da voz reclamando de forma menos estridente: Já
levamos uma vida pobre e miserável, enquanto muitos por aí se esbaldam no luxo e no prazer, não temos
nem o que vestir. Às vezes pergunto se Deus existe mesmo, porque não suporto sofrer tanta injustiça.
Ao cabo de alguns momentos, procurando reconfortar a esposa, Marcos manifestou-se de forma
esperançosa:
É só uma fase, Alice. Isso tudo vai passar. Vai dar tudo certo.Enérgica e sem poder conter-se, Alice
reagiu:
É só isso o que escuto: "Que é uma fase! Que tudo vai passar!" Noentanto, você nada faz para
melhorarmos de vida. Desde quando saímosdo Rio Grande do Sul escuto isso.
O que você quer que eu faça?
Se vira!!! respondeu Alice num grito, arremessando para longe de si o utensílio que segurava.
Como?! gritou Marcos. Só se eu assaltar um banco! O quevocê quer que eu faça? A crise é
no país todo! O governo não oferece boascondições de vida, os políticos roubam, as escolas não prestam!
De você,Alice, eu só escuto reclamações! Estou desesperado, também! Somente aRaquel me escuta sem
me criticar, além do mais é a única que estátentando, de alguma forma, me prestar uma ajuda.
Por que você não pede aumento? Reclama um pouco também.
Pró inferno, Alice! Você e suas opiniões malditas! Dois já foram demitidos só no meu setor, nesta
semana. Quer que eu seja o próximo?
Em meio à discussão que se fez, Alice se deixou dominar pela revolta e, impensadamente, murmurou:
Não sei como fui me casar com um cara tão cretino como você.
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Apesar do baixo volume de voz, o esposo ouviu com clareza aquela opinião infeliz. Marcos aproximou-se
de Alice e, com as mãos gélidas pelo suor frio, segurou-a com firmeza pelo braço e, sem desviar o olhar
agora furioso, com a garganta ressequida falou com a voz trêmula, exigindo:
O que foi que você disse?! Sem aguardar que ela repetisse, com o semblante sisudo, encorpando a
voz em tom grave e pausado, prosseguiu: Se desejava um marido rico, deveria ter visto isso antes.
Vocênão é tão grande coisa assim para ser tão exigente. Além do mais, Alice destacou Marcos ainda
com voz de desdém , você é uma pessoa improdutiva. Aliás, mais incompetente do que eu. Ao menos eu
trabalho. Ganho pouco pelo que faço, mas ganho. Quanto a você, Alice, vive dependente, à minha custa e
reclamando! Se não fosse por esse cretino aqui, morreria de fome, pois nem pra faxineira presta, ninguém
a suportaria.
A esposa conservou-se muda, mas, em seus olhos espremidos, podia-se ver uma ameaça escondida. Num
gesto brusco, ela puxou o ombro e livrou-se de Marcos, que ainda lhe deu um leve empurrão. Eles se
calaram. Mas os pensamentos de Alice fervilhavam. Marcos não tinha o direito de escarnecê-la daquela
forma. Nunca tinha se sentido tão humilhada, nem havia sido tão espezinhada como naquela hora. Marcos
haveria de sofrer, e muito, por aquela afronta. Pois Alice prometia, com muito ódio, a si mesma, que
encontraria uma maneira de se vingar de seu esposo. As reflexões da pobre mulher passavam agora a
imaginar um modo de revidar ao marido o sofrimento, a mágoa e a angústia que sentira com aquelas
palavras. Ela ainda teria o prazer da desforra.
Aquele ocorrido, por si só, criou vibrações, energias muito inferiores para o ambiente doméstico. Agora, os
pensamentos corrosivos de Alice alimentavam e fortaleciam aquelas vibrações.
Pensamentos negativos, imagens mentais de ocorrências trágicas, assuntos amargos da vida alheia,
reclamações e desânimo representam a atração e a criação de fluidos inferiores que,
consequentemente,
significam padecimentos enormes em futuro breve, seja quem for o seu criador.
13
Longe dali, José Luiz, outro pai de família, conversava amigavelmente com sua esposa sobre o seu dia.
Hoje tivemos outra reunião. Creio, agora, que tudo ficará mais estável. Os que tiveram de ser
demitidos já foram. A partir desse momento a empresa vai oferecer qualidade profissional, segurança,
melhores salários e, principalmente, reconhecimento aos funcionários que continuarão lá.
Tomara, Deus, que não dispensem mais ninguém rogou Ivone,esposa de José Luiz, com
sinceridade. Nós sabemos, por experiênciaprópria, como é difícil a condição de desempregado. Fico
com penadesse pessoal demitido. Se pudéssemos ajudar...
Mas, querida, sou um simples diretor. Recebo ordens! Passei noites em claro quando me
pediram para listar os empregados que não preenchiam os requisitos da empresa. Eu nunca havia feito isso.
É muita responsabilidade. Você sabe! Rezei tanto! Pedi tanto a Deus que me ajudasse e me perdoasse
qualquer falha...
É, eu sei. Mas você recebeu instrução, lá na empresa, para poder escolher, ou indicar qual o
funcionário que não preenchia os requisitos,não foi?
Ah, sim! Eles nos orientaram para indicar primeiro os que não tinham muita educação, os que
eram agressivos com palavras ou atos, os que usavam palavreado inadequado ao ambiente, os que
assediavam as colegas de trabalho...
Ou os colegas! interrompeu Ivone esboçando um sorriso intencional e depois completou:
Porque, hoje em dia, não são somente os homens que fazem assédios.
José Luiz sorriu e balançou com a cabeça concordando ao admitir:
É verdade. Tem cada moça que... Tá louco! Nem te conto. Elas falam de modo a se insinuar, com
palavreado chulo, roupa inadequada...Teve um dia em que eu chamei a atenção de uma auxiliar de
escritório lá da contabilidade. Sabe, eu falei com jeito, procurei ser educado...
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O que ela fez? atalhou Ivone interessada.
Não foi o que ela fez. Foi pelo que usava, ou melhor, não usava. Amoça estava de minissaia,
com aquelas blusinhas... Sabe?
Sei. Transparentes e de alcinhas.
É. Bem, eu falei com ela que ali, principalmente por ser perto dosetor de peças, onde temos
muitos homens, ficaria bem outro tipo de roupa para impor mais respeito. Seria melhor para ela mesma.
E ela?
Ela disse que este era um país livre.
E você?
Não disse nada. Comecei a reparar que os rapazes do setor passavam perto de onde ela se
sentava e ficavam jogando conversa fora, assediando, entende?
Ah-rã!
Não foi por vingança à resposta que ela me deu, mas por eu observar que ela, ou melhor, o tipo
de roupa que usava, provocava tumulto e era inadequada ao valor moral que a empresa gosta de preservar;
sem alternativas, eu a indiquei na lista dos que deveriam ser demitidos. Após pequena pausa, prosseguiu
como num desabafo: Já que esse é um país livre, que ela goze da liberdade, que julga ter direito,
bemlonge dali. Não podemos ser contra um estilo de roupa jovial. Minha filha também usa roupas da moda,
mas há lugares adequados para essas roupas e limites para tudo. Devemos usar o bom senso, sempre.
Às vezes a pessoa aprende e se coloca no devido lugar só depois de sofrer um pouco.
É verdade. No entanto, agora com a saída de tantos empregados,principalmente daqueles que
mais denegriam os níveis morais, a empresa ficará com um ambiente mais saudável. Haverá
remanejamento decargo e grandes oportunidades àqueles que desejam crescer. Vários cursos de
atualização serão fornecidos e máquinas novas estão chegando.
E tempo de progresso! afirmou Ivone.
Mesmo como um simples diretor, procuro agir com o máximo dejustiça. Não quero que ajam
injustamente comigo. Peço a Deus para
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que me ajude a decidir o melhor a ser feito. Se tiver de ser demitido, quero ter meus valores reconhecidos,
sempre.
O diálogo tranquilo do casal foi interrompido pela chegada dos dois filhos que, animados, relatavam as
novidades ao mesmo tempo e, pelo visto, todos dormiriam bem tarde porque as histórias pareciam longas.
Na manhã seguinte, Raquel estampava na face pálida os resultados de uma noite sem o devido descanso
físico. Acomodada em sua cadeira diante da mesa de trabalho, a moça olhava para o amontoado de papéis
parecendo não entendê-los.
Nossa, Raquel! Que cara! observou uma colega de serviço admirada. Parece que passou a
noite em claro.
Com expressão de desânimo, olhar baixo e parecendo fazer grande esforço para afirmar, Raquel explicou:
Você não está errada, Rita. Realmente não dormi esta noite.
Algum problema?
Sim. Até parece que não vivemos sem eles tornou Raquel esboçando leve sorriso forçado.
Tome ofereceu a colega estendendo algumas pastas para aamiga, enquanto orientava: , o
senhor Valmor, para não perder ocostume, quer isso "pra ontem". Seria bom que você se animasse
umpouco e ficasse bem atenta, hein! Essas tabelas não podem ir para asmãos do "homem" com falhas.
Concentre-se nelas. Após alguns segundos, em que Raquel observava a documentação, Rita disse:
Nahora do almoço eu passo aqui para irmos juntas e assim teremos maistempo para conversar.
Acho que não vou almoçar hoje. Estou repleta de serviço e aindatenho essas malditas tabelas
avisou Raquel com semblante preocupado.
Ah! Vai almoçar sim! Eu passo aqui e...
Eu também vou! interrompeu imediatamente Alexandre,colega de trabalho que se aproximou e
ouviu a última afirmação de
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Rita. As moças o olharam e, com largo sorriso, ele perguntou: Posso, não é?
O que você pode? perguntou Raquel com modos simples.
Almoçar com vocês, oras!
Talvez eu não vá almoçar insistiu Raquel desalentada.
Ah! Vai sim! respondeu Rita, convicta.Voltando-se para Alexandre, afirmou: Combinado.
Nós nos encontramos aqui, certo?
Certo! respondeu o rapaz, ainda sorrindo e retirando-se.Rita, virando-se para Raquel,
imediatamente mirando os olhos e
entoando a voz de um jeito engraçado, reclamou:
Ah!!! Eu mato você!
Por quê?! assustou-se Raquel.
Como você pode fazer pouco-caso dessa raridade, dizendo: "Talvez eu não vá almoçar!"
arremedou Rita, entoando a voz de formadebochada. Ficou louca, Raquel?
Nossa, Rita! Que horror!
Minha filha! Homem hoje em dia é coisa rara! Ainda mais dotipo: solteiro, alto, atlético e, além de
tudo, bonito. Ai! Que olhos lindos! Rita meneou o corpo fingindo cambalear, como se fosse desmaiar.
Raquel esboçou suave sorriso enquanto pendia com a cabeça negativamente, dizendo:
Que exagero, Rita.
Exagero nada. Ele é um "gato"! Você não acha?Demorando um pouco para responder, Raquel
concordou:
É. Alexandre é bonito, sim.
Credo! Que falta de ânimo. Eu, hein! Estou estranhando sua faltade empolgação.
Raquel, um pouco mais séria, chamou-a à realidade.
Vamos trabalhar ou na hora do almoço estarei ainda "até o teto"de serviço.
Rita, sobressaltando-se, rumou para o seu lugar deixando a colega trabalhar tranquila.
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A verdade era que Alexandre, exuberante, simpático, alegre e cheio de vigor, era muito cobiçado pela
grande maioria das moças que trabalhavam ali e que, tentando conquistá-lo, só conseguiam animadas
conversas e um pouco de coleguismo, nada mais. Ninguém sabia nada sobre sua vida pessoal e nenhuma
mulher parecia ter conseguido impressioná-lo seriamente, ao menos ali no serviço. Alexandre, apesar de
jovial e belo, no ambiente de trabalho jamais se aproveitou de suas dádivas para iludir ninguém, tampouco
subjugou qualquer moça que tenha se atraído por ele. Talvez fosse isso que deixasse suas colegas mais
interessadas e curiosas.
Aquele convite para se incluir como companhia das moças na hora do almoço não foi uma surpresa, pois
era hábito seu convidar, a cada dia, um colega diferente, sem distinção, para almoçar.
Bem mais tarde, chegando à seção em que Raquel trabalhava, Alexandre, na companhia de um amigo que
trouxera consigo, aproximou-se da colega e chamou:
Vamos? Onde está a Rita?
Ainda não chegou. Mas... Olha... Estou tão...
Antes que Raquel argumentasse qualquer empecilho, ele alertou:
Raquel, preste atenção: Você me parece preocupada demais com seu trabalho. Vejo-a pálida, com
uma carinha de quem está com sono eaté alheia a tudo o que está fazendo. Aproximando-se mais, com
seujeito atencioso, pegou-a pelo braço tirando-lhe a caneta da mão e, girando sua cadeira, foi conduzindo-a
agora por ambas as mãos para que se levantasse e prosseguiu: Vamos almoçar porque, aí sim,
estarámais revigorada, ficará mais atenta ao que está fazendo...
Quando Alexandre a segurou pelos ombros, brincando gentilmente como quem a conduzisse, Raquel, com
o semblante sério, esquivou-se rapidamente, parecendo não gostar de ser tocada daquela forma.
Observando o gesto arredio, Alexandre, um tanto sem jeito, recuou erguendo as mãos mostrando que não
a tocaria mais e disse:
Desculpe-me, eu não...
Sou eu quem pede desculpas, eu... disse Raquel também embaraçada, sem saber como se
justificar pelo que fizera.
Vagner, o outro colega que se encontrava ao lado e presenciou a cena, achou estranha a atitude da moça,
porém, somente trocou ligeiro olhar com Alexandre e nada falou. A chegada de Rita acabou desfazendo o
clima um tanto sem graça que, repentinamente, havia se criado. Ao ver Vagner acompanhando Alexandre,
a colega afirmou:
Que bom, o Vagner vai conosco?!
Sim. Vou.
Então vamos logo! pediu Alexandre animado e colocando-se àfrente para saírem.
Almoçando em um lugar de pouco luxo, recolheram-se os quatro colegas a uma mesa num canto do
restaurante onde conversaram bem àvontade. Rita, muito falante, atraía para si a atenção de todos. Com
sua bela voz agradável e seu riso gostoso de ser ouvido, ela conseguia trazer alegria e animação. Raquel,
no entanto, mais recatada, sorria vez ou outra, permanecendo a maior parte do tempo em silêncio. No
momento em que ficava séria, uma tristeza indefinida poderia ser notada em seu olhar, mas a todo custo
Raquel tentava disfarçar.
Sem deixar que os demais percebessem, Alexandre a espiava. Muito observador, se deixava atrair pela
quietude, um tanto misteriosa e natural, que Raquel trazia em si. Em dado momento, já incomodado com a
falta de participação da jovem Raquel naquela conversa, decidiu provocá-la:
E você, Raquel? O que tem para nos contar?Imediatamente todos pararam e voltaram a atenção
para a moça que
timidamente, pela súbita questão, pareceu quase se encolher emudecida por alguns instantes, mas que,
por fim, falou:
Bem... dissimulou com um sorriso, completando: Não tenho nada para contar.
Alexandre e Vagner fixaram-se em Raquel observando seu jeito meigo e encabulado. Vagner, mais
provocador, insistiu:
Parece-me, Raquel, que seus pensamentos criaram asas e planavamlonge daqui. Não quer nos
contar sobre a paisagem que vislumbrava?
Raquel ficou surpresa. Seu delicado rosto estava rubro. Ela ofereceu um belo sorriso generoso que foi
retribuído e falou:
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Estou repleta de serviço e... Bem, era nisso que estava pensando.
Vagner, por sua vez, passou a ser galanteador com a colega, dissertando sobre a importância de se
desligar um pouco dos assuntos preocupantes a fim de, mais descansados, podermos encontrar forças ou
soluções para realizá-los melhor. Ele queria aproximar-se mais da moça e chamar-lhe a atenção.
Rita, entretanto, na primeira oportunidade, acabou contando o que a amiga lhe confiara, em poucas
palavras, enquanto estavam no toalete, minutos antes.
O problema da Raquel é bem outro. O irmão dela está comdificuldades e por isso vai morar com
ela. Deixará de viver só! Não é,Raquel?
Franzindo levemente o semblante, mostrando o seu desagrado, Raquel a advertiu imediatamente:
Puxa, Rita. Como você é indiscreta. Se eu soubesse que iria espalhar para todo mundo...
Alexandre, para evitar um desentendimento, procurou distrair Raquel, perguntando:
Então você mora sozinha, Raquel?
Moro respondeu com simplicidade, sem se alongar.
Eu também afirmou Alexandre.
Ah! Você mora sozinho, Alexandre? perguntou Rita que, mais uma vez, parecia querer atrair
para si toda atenção.
Como disse. Moro, sim respondeu o colega sem pretensões.Vagner, exibindo grande interesse
em saber mais sobre Raquel, perguntou:
Sabemos pouco sobre você, Raquel. Apesar de fazer mais de umano que trabalha conosco,
desconhecemos tudo a seu respeito. Conte-nos: De onde você é? Onde moram seus pais?
Um tanto contrariada ainda, e também pelo fato de não gostar de expor sua vida, ela, sem demonstrar
desagrado, contou em rápidas palavras:
Sou do Rio Grande do Sul. Meus pais moram lá.
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Por que não mora com seus pais, ou, então, por que eles não vêmpara cá? tornou Vagner,
curioso.
Eles moram no campo. Eu e meu irmão Marcos não nos adaptamos muito bem lá explicou
após profundo suspiro e bem séria, descontente pela insistência do colega.
Mas... tentou dizer Vagner, mas foi interrompido por Alexandre que, em socorro de Raquel,
lembrou:
Gente! Estamos em cima da hora! Vamos?
Nesse instante, Rita, mais uma vez, arrumou um assunto para falar e todos voltaram a atenção para sua
história. Ao retornarem para o prédio em que trabalhavam, o assunto sobre a vida de Raquel foi esquecido.
As moças rumaram para seu setor e Raquel, ainda magoada com a colega, não fazia qualquer comentário,
enquanto Rita, parecendo não notar, admirava a companhia que tiveram.
Ai! Tomara que o Alexandre almoce conosco outras vezes. Pornão haver ninguém no toalete
onde estavam, a moça rodopiou olhandopara o alto, exibindo extrema admiração pelo ocorrido. Estou
sonhando! Com tantas por aí e o "gato" mais cobiçado vem nos chamar!
Mirando o olhar como a tecer planos, Rita suspirou, dizendo: Ainda conquisto esse homem!
E fitando-se no espelho, continuou:
Sou bonita, simpática, sei me comportar... O que você acha, Raquel?
Tudo é possível comentou a colega sem entusiasmo.
Você não acha que sou capaz de "ganhar" o Alexandre?
Não sei dizer, Rita. Eu nem o conheço. Acho que conversei com ele uma ou duas vezes antes de
irmos almoçar hoje. Não sei dizer se ele quer ser conquistado. Por outro lado, não duvido dos seus desejos
nemda sua capacidade comentou sentindo-se amargurada.
Não entendi, Raquel. O que você quer dizer?
É o seguinte: Eu vejo que a maioria das nossas colegas vive "dando em cima" do Alexandre.
Como eu já disse, não o conheço. No entanto, nas poucas vezes que entrei em contato com ele, pareceu-
me que é uma pessoa alegre, descontraída, inteligente, porém muito reservada. É do tipo que não quer ser
"amarrado", não quer comentar sobre sua vida
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íntima, entende? Apesar de educado e gentil, manterá distância de quem quiser ou tentar invadir a sua
privacidade.
Mas é impossível um homem desse tipo não querer ficar com alguém, nem ter uma mulher, uma
namorada. Tem que haver um modo de lhe chamar a atenção. Refletindo alguns segundos, Rita
observousubitamente: Você parece não se atrair por ele, não é, Raquel? Aliás,você parece não se atrair
por ninguém.
Sem esperar por aquela pergunta, Raquel, um tanto embaraçada, tentou dissimular:
É... Talvez eu não tenha encontrado a pessoa certa.
Mas você não namora e também nunca nos falou de um antigonamorado, se é que já teve.
Diante do silêncio da colega, Rita insistiu: Você já teve namorado, não é, Raquel?
Raquel pareceu ficar nervosa, enquanto Rita a fitava com olhos ávidos, aguardando uma resposta.
Embaraçada, sentia um suor gelado umedecer suas mãos. Definitivamente ela não gostava de falar sobre
sua vida. Encarando a colega e tentando disfarçar o seu estremecimento, admitiu:
Não. Não tive nenhum namorado. Porque nunca me senti atraída por ninguém. Impondo na voz
uma energia quase arrogante,afirmou: E não tenho intenção de me deixar atrair por homem nenhum.
Essa é uma opção à qual tenho direito.
Admirada e surpresa, Rita não conteve sua curiosidade. Cedendo a seus impulsos indiscretos, questionou:
Nossa, Raquel! Bonita, elegante e simpática como é, pretende ficar sozinha? Sem esperar por
uma resposta, continuou: Eu sempre achei você muito... muito "fechada" para com seus
admiradores,mas agora, ouvindo de você mesma que não quer nenhum homem emsua vida, fico até...
Até... Sei lá. Acho esquisito.
Raquel, em silêncio, expressava um semblante enfadado. Seu coração fora invadido por uma repentina
tristeza que a magoava ainda mais. Arrumando rapidamente sua bolsa, avisou:
Tenho que ir para a seção, Rita. Você ainda vai ficar aqui?
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Raquel, ainda estou intrigada. Você nunca gostou de ninguém?Jovem e bonita, nunca teve um
rapaz em sua vida?
A pergunta desgostou Raquel. Ela não queria passar por aquela inquisição. Com o coração acelerado e
oprimido, olhar triste e semblante sério, pediu:
Por favor, Rita. Eu não gostaria de falar sobre isso. Esse assuntonão me agrada nem um pouco.
Agora vamos, já estamos atrasadas.
Dizendo isso, Raquel se retirou. Rita, por sua vez, trazia os pensamentos fervilhando na curiosidade e na
falta de respeito à privacidade da amiga. Apesar de contrariada, ela não disse mais nada e saiu logo atrás
de Raquel.
Ao chegar perto da mesa onde Raquel trabalhava, Rita, bem próxima da colega que já se encontrava
sentada em sua cadeira, curvou-se e perguntou em voz baixa, quase sussurrando:
Raquel, e se alguém gostar de você? E se um rapaz vier falar comvocê? Como hoje, por exemplo,
ficou claro que o Vagner estava interessado e... sabe, né? E se ele quiser conhecê-la melhor?
Suspirando profundamente, exibindo seu desagrado, Raquel soltou os lábios que se contraíram e afirmou:
Não sei dizer, Rita. Não sei nem se amanhã eu estarei viva. Agora,no entanto, eu não quero mais
falar sobre isso. Por favor.
Rita ergueu-se, pediu desculpas e saiu. Raquel ficou aborrecida. Magoada por ter de enfrentar aquela
situação que, pelos resquícios do passado, lhe era muito amarga. Seus olhos quase transbordavam as
lágrimas quentes e teimosas que se fizeram.
Rita foi para o seu lugar intrigada com o segredo da amiga. Mas isso só durou alguns minutos, pois suas
ideias se voltaram para os planos de como conquistar seu colega de trabalho. Ela imaginava que não seria
fácil; entretanto, com a ajuda de uma colega, seria favorecida. Por essa razão não poderia brigar com
Raquel. Teria que dar um jeito de se aproximar de Alexandre, mas não poderia deixar em evidência os seus
planos.
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** página em branco **
Capítulo 2
A única ajuda
Alguns dias se passaram após os últimos acontecimentos, mas Alice e o esposo não conseguiam se
harmonizar. Irritada com a difícil situação financeira, a pobre mulher exibia insatisfação e longas queixas
eram dissertadas com modos até furiosos no falar e no agir. Mais uma vez o casal iniciava outra discussão.
Eu não vou sair daqui e me submeter a tamanha humilhação de ter que ir morar na casa de sua irmã!
afirmava Alice veemente. Se Raquel tem tanta boa vontade em ajudar, que se mude para cá e ajude
você a pagar o aluguel.
Andando de um lado para o outro, sentindo a fronte como a queimar pelo excesso de preocupações e
problemas, Marcos ocultava seus pensamentos, agora tenebrosos. Alice não parava de se queixar com
modos que irritariam qualquer um. Após alguns passos negligentes até próximo da pia da cozinha, o
homem desesperado pensou, ao fitar uma faca de cozinha:
"É por isso que muitas tragédias acontecem. Não suporto mais a Alice. Bem que eu poderia acabar com
essa desgraçada agora mesmo e depois dar um jeito na minha vida."
Quase se apoderando do utensílio doméstico, que agora se transformara em uma arma, Marcos refletia,
enquanto a esposa continuava com suas reclamações:
"Alice é o motivo de todo esse inferno que vivo!", imaginava. E com as mãos
trêmulas e geladas, apanhou a
faca e olhou para a esposa, pensando: "Já chega! Vou terminar com isso!"
Um tarefeiro espiritual que desempenhava a função de proteção e amparo aos queridos encarnados,
conhecido como espírito protetor, já
envolvia com amor e bondade o pobre Marcos, que não podia vê-lo, ouvi-lo nem senti-lo. Esse espírito fazia
tudo para afastar aquela ideia de consequências trágicas. Sentindo a dificuldade de alertar o pupilo, o
tarefeiro espiritual lançou vibrações de amor e socorro a um dos filhos do casal que, mais espiritualizado e
flexível ao envolvimento elevado, saiu de onde estava e foi até a cozinha. Sem saber muito bem o que
queria, Elói abriu a geladeira, encontrou uma maçã, pegou-a e se dirigiu até o pai, pedindo:
Empresta a faca!
Surpreso, Marcos olhou para o filho e, num gesto automático, entregou-lhe o utensílio. Elói cortou a fruta e
ainda ofereceu:
Quer? Toma!
Não, obrigado o pai respondeu atordoado.
Alice, ainda resmungando, não deu conta do que ocorria. Mas Marcos, ao encarar o filho, se alertou para o
que ia fazer, como se despertasse de um pesadelo para a realidade.
Seria uma loucura!
Alice não parava de reclamar. Marcos, por sua vez, retirou-se sem dizer nenhuma palavra.
Mais tarde, depois de andar muito e tentar se distrair, ele chegou atéa casa de Raquel e passou a contar o
ocorrido.
Alice não quer vir morar aqui, como eu já disse. E só tenho maisduas semanas para resolver essa
situação com o aluguel.
Os pensamentos de Raquel, ligeiros e preocupados, trabalharam na sombra de suas dúvidas. Deveria
deixar aquela casa e ir morar com Marcos, conforme Alice propusera? Suas coisas não caberiam na casa
de seu irmão. Teria de se desfazer delas. Se não fosse pela dolorosa situação em curso, e por tudo o que
Marcos já fizera por ela, jamais tomaria aquela decisão. Raquel temia que seu irmão cometesse alguma
loucura contra a vida de sua esposa ou contra a própria vida. Disfarçando as preocupações que lhe
fervilhavam as ideias, Raquel decidiu:
Fique tranquilo, Marcos. Resolveremos assim: eu mudo para suacasa e o ajudo pagar o aluguel.
Está decidido!
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Não posso concordar com isso, Raquel. Ninguém suporta Alice.Acabei de contar tudo o que fiz
hoje porque entrei em desequilíbrio portanta queixa que ouvi, e você ainda quer ir lá para casa? Só se
estiverlouca!
Veja, eu conheço a Alice e, por isso, não vou me importar com o que quer que ela faça ou diga.
Estarei preparada.
Não!
Então quem vai lhe ajudar? inquiriu Raquel com firmeza,encarando-o sem arrogância, mas
desarmando-o de qualquer subterfúgio. Após alguns segundos, enquanto Marcos refletia, ela
argumentou: Acredito que tenha sido por minha causa que você se indispôs comnossa família e hoje não
tem notícias de ninguém. Papai está inválido.O coitado nem entende o que está acontecendo. Mamãe é...
Bem, nemsei dizer se ela é submissa ou acomodada. Vovô, por ser o "cezar" da nossa família, soberano,
cruel, de extraordinária figura, jamais deixaria nossos irmãos nos ajudarem. Como "Pedro, o Grande", ele
seria bem capaz demandar executar o filho que se opuser às suas ordens. Depois debreves instantes,
Raquel apelou com voz mansa, envolvendo-o com sentimentos bondosos e sinceros: Somos um pelo
outro, Marcos. Eu sótenho a você. Vamos morar juntos, irei para lá e vai dar tudo certo.
Marcos fitou-a longamente. Ele estava sem alternativas e sem argumentos, por essas razões teria que
concordar.
Com o passar dos dias, Raquel mudou-se para a casa de seu irmão. E tendo a oportunidade de ficar
sozinha com Marcos, ofereceu:
Tome dizia, estendendo-lhe um maço de notas de dinheiro.
Onde você arrumou isso? perguntou Marcos surpreso.Com doce sorriso que irradiava ternura,
Raquel respondeu:
Assaltei um banco! brincou, rindo gostosamente. Notando que os olhos de Marcos sinalizavam
espanto, esclareceu: É brincadeira, seu bobo.
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Eu sei, mas como o conseguiu?
Eu tinha certa economia guardada no banco e... Bem, o restante consegui com a venda de alguns
móveis, televisão, vídeo, geladeira...
Raquel!...
Não diga nada interrompeu-o, colocando o dedo indicadornos lábios de Marcos, sinalizando
para silenciar. Depois completou: Quero que aceite e pague os aluguéis atrasados. Daqui para frente
será:vida nova!
Raquel, você não deveria ter feito isso!
Por que não? Você não vai me deixar usar a sua geladeira? Nem assistir
a sua TV?
Marcos calou-se meio angustiado. Algo o incomodava com aquela-situação. Era muita renúncia por parte
de sua irmã. Não queria que se sacrificasse tanto. Com o dinheiro na mão, ele a olhou por longo tempo
sem dizer nada e estampou um suave sorriso, quase forçado, no rosto pálido. Nesse instante, Alice entrou
na sala e com ar de desdém, trazendo na fala uma expressão debochada, observou:
Que cena! Hum!... Comovente.
Não oferecendo atenção aos comentários pobres da esposa, Marcos lhe mostrou:
Temos o dinheiro para pagar o aluguel. A Raquel nos emprestou.Alice fechou o sorriso
irônico que
segundos antes sustentava. Não
disse uma palavra. Sua face, antes alva, cobria-se agora por um intenso rubor provocado pela ira e pela
revolta. Por índole, possuía um coração orgulhoso, repleto de ódio e de impulsos vaidosos que não a
deixavam, no mínimo, agradecer o auxílio recebido.
A cena foi interrompida pela chegada de Elói, o filho mais novo do casal, que anunciava, afoito, um
imprevisto:
Mãe! Mãe! O Nilson está brigando lá na rua, aos socos e pontapés!Agora, com a oportunidade de
se manifestar, Alice colocaria em
suas palavras a insatisfação com o ocorrido minutos antes. Ela poderia descontar naquela situação, através
da imposição da voz, toda sua ira represada:
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Quero que se mate! gritou a mulher, estremecida de ódio. Que morra de uma vez! Será um a
menos a me dar trabalho!
Marcos, sem dizer nada, saiu junto com Elói para ver o que estava acontecendo. E Raquel, chocada com a
expressão da cunhada, respirou profundamente, levantou a cabeça e saiu logo atrás do irmão. Ela não
queria ficar ali com Alice. Pouco tempo depois, Marcos adentra em casa segurando o filho Nilson pelo
braço e advertindo-o:
Nada justifica isso! Estou cansado de vê-lo rolando na rua comoum animal.
Ele me xingou!... Qual é? Quer que eu seja um covarde?
Vê se me respeita, moleque! gritou Marcos furioso.Alice, que possuía o dom de interferir
negativamente, opinou:
Quer que ele seja igual a você, Marcos? Engraçado, outro dia vocêdisse que ele já ia fazer
dezessete anos e que deveria arrumar um emprego e ir trabalhar. Agora o chama de moleque!
Nesse instante, entre o casal, iniciou-se nova briga. Nilson, intrometendo-se, foi punido fisicamente pelo
pai, que o mandou para o quarto. Raquel, em outro cômodo, permanecia em silêncio e aflição.
Tendo em vista as atitudes dos encarnados, os pensamentos queixosos e críticos, o palavreado carregado
de sentimentos inferiores, no plano espiritual daquele lar, espíritos sofredores, de baixo valor moral, se
achegavam compatíveis com as vibrações criadas pelos moradores dali.
Naquele instante, enquanto Marcos e Alice discutiam, eles possuíam verdadeiros aliados espirituais, tal
qual um grupo de torcida que vibra a fim de incentivar seu escolhido.
A falta de respeito mútuo, a ausência de paciência, o excesso de reclamações, a falta de fé em Deus e de
prece deixam qualquer lar àmercê da desarmonia, do desequilíbrio e de irmãos que, na espiritualidade, se
aproximam e se instalam nesses ambientes. São espíritos que, ignorantes e até maldosos, passam a
influenciar, a envolver através de suas vibrações e até, muitas vezes, começam a incitar os encarnados às
discórdias, aos conflitos, desejando que tragédias sejam concretizadas por eles.
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Esses espíritos, como já dissemos, ignorantes e sofredores, se comprazem com tais acontecimentos
funestos.
No entanto, eles só podem atuar quando o encarnado se deixa dominar por ideias incorretas, negativas e
lamuriosas, expressando também, em atos, tais sentimentos inferiores.
Logo na primeira noite na casa de seu irmão, Raquel não conseguiu dormir, passando a rolar de um lado
para outro em busca do sono. Em vão.
Ao se levantar pela manhã, tomou somente uma xícara de café e se foi. Em seguida, Alice decidiu ir buscar
o pão para os filhos fazerem o desjejum e saiu reclamando:
Agora vou virar empregada dessa "madame" aí! Nem se incomodou em ir buscar o pão e só tomou
café porque eu levantei cedo e fiz!
Ao retornar, antes de entrar em sua casa, uma vizinha, à qual Alice confiava alguns particulares,
cumprimentou-a:
Bom dia!
Oi, Célia.
Que cara! Aconteceu alguma coisa?
Alice, desviando poucos passos de seu portão, parou diante de Célia, que parecia querer puxar conversa.
Só posso estar com essa cara, né?
Quem é aquela que eu vi saindo agora há pouco da sua casa? Você recebeu visita logo cedo?
Antes fosse visita. Essa é a minha cunhada, a Raquel. Você não se lembra dela?
Hum!... Parece que conheço, mas...
Pois é, Célia, "quanto mais eu rezo, mais assombração me aparece". Estamos numa situação tão
difícil, menina... Sabe, a Raquel veio morar com a gente pra ajudar com as despesas.
Mais uma boca! Ajudará de que jeito?
Ajudará pagando o aluguel. A primeira ideia foi mudarmos praa casa dela. Mas de maneira
alguma eu poderia concordar com umacoisa dessas. Daí eu falei para o Marcos que, se ela quisesse
ajudarmesmo, ela que se mudasse para cá! E não é que o "diabo" veio mesmo!
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relatava Alice, exibindo descontentamento e mau humor. Mas ao menos eu estou na minha casa.
Aqui mando eu! Qualquer coisa, eu boto ela pra correr! Ai, Célia, o que eu faço? perguntou, agora com
voz chorosa.
Já disse, mas você não acredita em simpatias advertiu Célia.
Se você me ensinar uma simpatia para arrumar um emprego, e se der certo, eu acredito
admitiu Alice desalentada.
Para você arrumar um emprego?!
Eu ouvi alguns desaforos do Marcos. Com o olhar altivo, recordando-se novamente da
agressão sofrida, Alice revelou: Vou me vingar dele. Quero fazê-lo engolir, e a seco, o que ele disse de
mim. Vou mostrar quem é incompetente e improdutiva. Ele me paga!
Ah! Mas se o negócio é esse!... Vem cá. Vem comigo.
Mas eu tenho que levar o pão para os meninos.
E só um minutinho!
Célia levou Alice para dentro de sua casa e pegou um caderno onde havia várias anotações sobre suas
crenças.
Pouco depois, Alice voltou para sua residência e, por acreditar estar sem alternativas, passou a reunir
apetrechos iniciando a manipulação do que seria necessário para conseguir o que queria. Nesse instante, o
espírito protetor de Alice aproximou-se dela e envolveu-a carinhosamente, sugerindo:
Filha, se pensa em oferecer a Deus esses apetrechos, está perdendo o seu tempo. Deus é dono de
tudo. Se você oferece tudo isso a um espírito, cuidado! Jesus já nos disse: "Experimentai se os espíritos são
deDeus". Se os espíritos são de Deus, assim como o Pai Celeste, eles não querem nada disso. Os valores e
as conquistas pessoais são alcançados por merecimento, não por barganha.
Mesmo sabendo que Alice não o ouvia, aquele mentor passou-lhe sabiamente sua orientação. Pelo
envolvimento de amor, Alice, repentinamente, sentiu um medo inexplicável. Um frio correu-lhe o corpo todo,
e ela passou a pensar: "Será que isso é certo? Será que eu vou atrair 'coisas' ruins com isso?"
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Aquele pensamento era o alerta que sinalizava que algo não estava
correto. Alice bem que deveria ter
atendido aquela inspiração, porém seu desejo de vingança e sua vaidade foram mais fortes. Ela não
conseguiu se deter e continuou.
Na espiritualidade, em uma faixa vibratória na qual não poderia ver o mentor de Alice, encontrava-se Sissa,
um espírito ignorante que quando encarnada praticava o mesmo que Alice, reclamações, criava brigas, era
egoísta, vaidosa e orgulhosa, não procurava práticas salutares como a prece e pensamentos bons. Sissa
não era produtiva e só sabia tecer longas queixas.
Ela estava junto de Alice havia algum tempo e, naquele instante, ao ver a mulher realizando o que ela mais
praticou, quando encarnada, regozijou-se satisfeita. Aproximando-se mais de Alice, Sissa passou a
envolvê-la com um verdadeiro abraço, se comprazendo com o que a encarnada fazia. Decidindo, então,
permanecer sempre com ela, procuraria ajudá-la para que continuasse com aqueles feitos. Foi nesse
momento que um sentimento de segurança e fé, ainda que não verdadeiros ao que realizava, passou a
fazer parte de Alice. O medo experimentado pouco antes agora desaparecera.
Sabiamente seu mentor pessoal não interferiu, uma vez que sua tarefa já havia sido realizada: o
envolvimento e a inspiração relembrando o que é correto, o que Alice percebera de alguma forma, mas,
infelizmente, não dera atenção. Mentor "não é ama-seca", e todos os encarnados têm direito ao livre-
arbítrio, à livre escolha.
Se no instante em que sentiu insegurança Alice tivesse parado e pedido: "Deus, oriente-me. Ajude-me a
fazer o que é correto. Instrua-me!", é bem certo que em seu âmago sentiria vontade de abandonar o que
fazia e não se deixaria envolver por qualquer espírito sem instrução que pudesse, porventura, estar
próximo.
Quantas vezes questionamos: "Deus, por que estou infeliz e insatisfeito? Por que me encontro em situação
tão difícil?". Ao invés disso, poderíamos nos harmonizar e, com humildade, perguntar: "O que deixei de
fazer para estar assim? O que posso fazer para me resignar, traba-
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lhar para o bem dos outros e evoluir, com as bênçãos de Deus e seguindo os ensinamentos de Jesus?"
Sempre existe uma entidade instruída a nos orientar no plano espiritual. Afinarmo-nos com ela e nos
afastarmos de espíritos malfeitores e ambiciosos depende de nossos pensamentos, de nossas palavras e
ações condizentes com as Leis de Deus e os ensinamentos de Jesus.
Bem mais tarde, ao chegar em casa, Raquel estranhou ver aquela vela de grosso calibre acesa em lugar
bem elevado na cozinha.
Após o jantar, enquanto ajudava a cunhada a arrumar a cozinha e assegurando-se de que Alice não iria se
irritar com sua curiosidade, Raquel perguntou, um tanto cautelosa:
Para que aquela vela, Alice?
Ah! E uma simpatia que estou fazendo. Quero arrumar um emprego, para ter algum dinheiro,
manter-me ocupada e ter mais valorpara o seu irmão.
Ora, Marcos a valoriza. Mas se quer arrumar um emprego, creio que ele ficará ainda mais
contente, porque a situação de vocês se estabilizará mais rapidamente.
Não tente me adular, Raquel. Marcos nunca me valorizou retrucou a cunhada em tom de ironia.
Para mim, já. Outro dia mesmo ele comentou do seu caprichocom a casa. Sabe, Alice, meu irmão
a quer muito bem. Você e os meninos são a única família que ele tem. Quanto a mim... bem, eu sou
irmã,estarei aqui por pouco tempo. Marcos só tem vocês.
Deixando-se envolver pelos modos mansos que Raquel naturalmente usava, mais branda, Alice perguntou:
Não sei por que brigamos tanto. O que será que posso fazer?Pensativa e cuidadosa com as
palavras, Raquel arriscou:
Sabe, quando a situação é crítica, se os sentimentos dos outros estão enervados, e se eu vejo que
posso tumultuar ainda mais com uma
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pequena opinião, eu me calo. Fico quietinha. Depois, quando tudo se acalma, posso até arriscar um palpite
ou esclarecimento de forma mansa.
Ah! Isso é você. Eu não sei ser assim, não reagiu Alice rapidamente.
Sabe, Alice, para tudo na vida precisamos treinar. Tente! Quantasvezes forem necessárias.
Quando você verificar os bons resultados, amudança estará ocorrendo naturalmente.
A cunhada ficou pensativa até que o espírito Sissa aproximou-se dela e interferiu a fim de não deixá-la
branda para refletir sobre o que é bom, pois, se isso acontecesse, Alice não mais se deixaria envolver por
ela.
Ela está querendo ditar normas para você? perguntou Sissacomo se debochasse. Pelo visto
já começou a mandar na sua vida!
Repentinamente, Alice transformou a face serena em um rosto franzido e sisudo. Arrematando o assunto,
falou quase arrogante:
Quem quiser conviver comigo tem que me aceitar como sou.Raquel emudeceu, sentindo seu rosto
aquecer por uma sensação
de vergonha e um misto de mágoa pelo que ouvia. Como uma dor, guardou no peito aquela sensação de
desapontamento, sem nada comentar. Tinha prometido a si mesma não discutir com Alice, então não o
faria, nem daria qualquer conselho ou opinião que não fossem bem-vindos.
Passaram-se alguns dias...
Marcos agora se encontrava mais tranquilo, pois, com o dinheiro oferecido por sua irmã, colocara em dia o
pagamento da locação da casa. A presença de Raquel oferecia mais serenidade; ela era agradável e
contornava a situação com Alice, que quase não se alterava mais. A nova hóspede procurava fazer de tudo
para não incomodar a cunhada, e ainda ajudava no que fosse preciso, de acordo com sua disponibilidade.
Sabendo que Alice desejava trabalhar, Raquel procurou, com os conhecidos, uma oportunidade de
emprego para a cunhada.
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Certo dia, quando o início da noite era agraciado com um belo pôr-do-sol, por se tratar da época do ano em
que o gostoso verão parece animar a todos, Raquel, bem-disposta, nem sentiu o trajeto de volta para casa,
quase não percebendo que naquela hora o sol ainda podia ser visto, belo e alaranjado, bem na linha do
horizonte.
A moça não via a hora de chegar em casa e contar para a cunhada a mais recente novidade.
Pouco depois...
... então a Rita me deu o número do telefone. Esse gerente écunhado dela. Sabe, ele queria
conversar um pouco sobre o perfil de quem pudesse ocupar a vaga e... bem...
Diante da pausa, Alice inquietou-se animada:
Vamos, diga!
Aqui está o endereço! anunciou Raquel, exibindo largo sorrisoao estender a mão para Alice,
segurando o papel em que estava a anotação.
Ah! Eu não acredito! gritou Alice empolgada.
Pode acreditar tornou Raquel muito contente. Você estáagendada para uma entrevista
daqui a dois dias.
Ligeiramente, olhando para o endereço com olhos brilhantes, Alice afirmou com convicção:
Eu vou conseguir. Eu sei que vou conseguir.
Claro que vai! incentivou a cunhada.Elas estavam felizes com aquela primeira vitória.
Marcos, que acabava de chegar, surpreendeu-se com tanta animação por parte da esposa, coisa rara de se
ver. Colocando-o a par das novidades, Alice, muito entusiasmada, voltou sua preocupação para alguns
detalhes:
É roupa! lembrou-se. Eu não tenho roupa para uma boaapresentação. Afinal, é uma
entrevista.
Se você não se importar, pode usar as minhas avisou Raquelsem pretensões.
Mas será que servem? preocupou-se Alice medindo com oolhar o corpo de Raquel.
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Claro que sim. Encontraremos algo. Você não deve usar umanumeração muito maior que a minha.
Além do que tenho roupas detecidos que cedem. Vamos, venha ver! chamou Raquel ansiosa e alegre,
puxando Alice pelo braço.
Já no quarto, passaram a procurar o que mais convinha vestir para uma ocasião como aquela. Roupas,
sapatos, adornos para os cabelos, bolsa, brincos e até maquiagem Raquel colocava à disposição de sua
cunhada. Entre a alegre procura e a exibição de suas coisas, Raquel não pôde perceber o olhar invejoso de
Alice, disfarçado com um sorriso, na decepção de quando uma ou outra peça não lhe servia bem.
Impensadamente e com ingénua felicidade, Raquel estendia sobre seu belo corpo um vestido e o admirava
sob o olhar enraivecido de sua cunhada, que a jovem não podia perceber, pois ria gostosamente depois de
uma brincadeira singular.
Segurando com uma mão o vestido no colo e com o outro braço apertando-o rente à sua cintura, Raquel
rodopiou em frente do espelho, enquanto sorria ao ver seus longos cabelos se desalinhando e a cobrindo
toda, formando um belo despenteado.
Com simplicidade, arrumou as mechas para trás, livrando o rosto dos longos fios. Voltando-se para Alice,
ofereceu a roupa, dizendo:
Veja se serve. Eu nunca tive oportunidade de usá-lo. Mas é lindo!Irritada pela exuberante e
delicada beleza corporal de sua cunhada,
Alice estremeceu de inveja, mas respondendo com modos, pois precisava da ajuda de Raquel, disse:
Nem adianta. Não vai servir.
Experimente! insistiu a moça, sem pretensões.
Não queira me comparar a você, Raquel! Tudo lhe cai muito bem!
Não se subestime, Alice. Você é muito bonita, é jovem...Atalhando-a de imediato, a outra revidou:
Trinta e sete anos é juventude? Onde?
Se você for ranzinza, chata e egoísta, aos dezoito anos será umavelha. Vamos! tornou Raquel
com generosidade. Vista isso.
O vestido, apesar de ter servido em Alice, que tinha outro biotipo e era bonita também, ficara melhor na
elegante Raquel que, com seu
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rosto delicado, de finos traços e expressões meigas na pele macia, parecia espelhar generosidade,
traduzindo uma doce simpatia e harmonia a tudo que usava.
Já escolhida a roupa e os apetrechos, Alice ficara mais tranquila, enquanto Raquel passou a ver a cunhada
como uma amiga. Ela acreditava que todo aquele mau humor de Alice seria pela ausência de ocupação
produtiva e lucrativa, principalmente. Agora, arrumando um emprego, junto com as novas situações
corriqueiras que haveriam de surgir, Alice estaria atenta para outras novidades e,
consequentemente, não
seria tão implicante com os acontecimentos no lar.
Os dias correram céleres.
Tudo certo. Alice conseguiu o emprego tão desejado e, maravilhada com o êxito, na primeira oportunidade
procurou por Célia, avisando-a da novidade e agradecendo sua ajuda na conquista:
Obrigada, Célia! Obrigada mesmo! Se não fosse por você!... Quemdiria que alguém como eu,
que só poderia trabalhar como faxineira, e na minha idade, encontraria um emprego como esse?
é um grande magazine, Alice! Que sorte! Promotora de vendasdeve ganhar bem! Você viu como
simpatia funciona?
É mesmo, né menina! Agora o que eu preciso é dar um jeito noMarcos e no emprego dele.
Ah! Isso é fácil. Só que, pro Marcos firmar no emprego e pró chefe dele dar aumento, o melhor
mesmo é ir num "lugar aí" que eu conheço,que é ótimo.
Após ouvir a amiga e combinarem ir ao "tal lugar", Alice foi para sua casa e contou à sua cunhada:
Então, Raquel, foi depois dessa simpatia que apareceu essa oportunidade de emprego. Puxa, eu
nunca tinha dado importância para olado espiritual!
Raquel ouvia atentamente, mas, no decorrer do relato, aquele tipo de assunto provocou-lhe uma sensação
diferente, ruim. Uma amargura
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começou a vibrar em seus sentimentos, chegando a experimentar um verdadeiro mal-estar. Raquel
acreditou que não foi a simpatia que ajudou Alice a arrumar um emprego, mas sim sua manifestação no
desejo de ir trabalhar. Se ela soubesse que a cunhada gostaria de encontrar uma ocupação, já teria lhe
arranjado um serviço bem antes. Mas ela temeu fazê-lo, pois acreditou que Alice reagiria dizendo que não
havia lhe pedido nada, ou que aquilo não era de sua conta. Repentinamente os pensamentos de Raquel se
voltaram para a cunhada que lhe perguntava:
Então Célia disse que tem um "lugar aí" que é ótimo. Sabe, Raquel, eu queria tanto ir lá, mas... Ah!
Sabe... Ir sozinha é tão ruim.
Raquel, sem expressão alguma em seu semblante, porém um tanto apreensiva, aguardou pelo inevitável e
indesejável convite:
Ah, Raquel, vamos comigo?
Titubeando e não querendo magoar a cunhada que, nos últimos dias, se mostrava mais amigável, Raquel
respondeu:
Não sei, não, Alice. Não gosto disso.
Já foi a algum "lugar" assim?
Não. Mas a ideia não me agrada. Sabe, fui criada na Igreja Católica e... Você sabe como minha
família é ortodoxa. Não gosto dessas coisas.
Ah! Vamos, vai, Raquel. Se a gente não gostar do "lugar", não voltaremos mais e pronto.
Diante do silêncio da jovem, que não sabia impor sua vontade, Alice chantageou, dizendo: Você é
minhaamiga ou não é? Se for, não vai me deixar ir lá sozinha.
Raquel, com um sorriso forçado, acabou concordando.
Está bem. Mas só dessa vez, hein.
Alice se contentou, mas a moça não se sentia bem com aquilo. No entanto, se quisesse vê-la satisfeita,
teria de ceder aos seus caprichos.
No dia seguinte, em seu trabalho, Raquel via-se confusa em meio a tanto papel. Vagner, o colega que se
interessara por ela, aproximou-se dizendo:
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Como está compenetrada!
Raquel se surpreendeu e voltando-se para o lado, com a educação que lhe era própria, perguntou com
singelo sorriso:
Como? Não ouvi.
Estou observando-a há tempos e nunca vi tanta concentração.
Tenho que ficar atenta a essas tabelas, códigos e valores, se não...
explicou-se cortês e gentil. Já pensou fazer reservas para a Espanhaem vez da Austrália ou
coisa assim? Sem falar dos remanejamentos e dasestatísticas. Estamos nos aproximando das férias,
esqueceu?
É, eu sei. Também estou ficando maluco por causa das férias. Quando vim trabalhar em uma
empresa aérea, não imaginava que seria assim.Pensei que teria mais facilidade de viajar nas férias, mas
descobri que é atemporada em que mais se trabalha aqui. Raquel ameaçou voltar suaatenção ao
trabalho, mas Vagner insistiu: Não se desgaste tanto. Vocêprecisa se poupar. Diante do suave sorriso
da bela jovem, ele arriscou:
Gostaria de conversar com você, Raquel. Eu a acho tão... misteriosa. A moça ficou séria e ele
continuou: Vamos sair hoje, após o expediente?
Não. Não posso respondeu imediatamente, sem refletir.
Por quê? Só bateremos um papo, nos conheceremos, afinal, nunca fala de si.
Desculpe-me, Vagner, mas estou tão atarefada agora que nem posso lhe dar atenção. Agradeço
o convite, no entanto não quero sair.Estou muito cansada.
Então vamos almoçar juntos, certo?
Perdoe-me novamente, mas hoje não vou almoçar.
Está bem. Fica para outro dia. Insatisfeito, porém sem exibirseu descontentamento, Vagner
deu-se por vencido.
Sem qualquer comentário, Raquel forçou um sorriso e voltou para suas atividades. Sentiu-se incomodada
com o convite, pois não o desejava. Havia dias percebera que Vagner, vez ou outra, tentava se aproximar
para conhecê-la melhor.
Bem mais tarde, quando a fome a incomodou muito, decidiu não ir almoçar, mas fazer um lanche rápido.
Sentada a uma mesa em lugar de
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pouco movimento, pois já passara do horário comum às refeições, Raquel apreciava um lanche enquanto
refletia contrariada por ter que acompanhar sua cunhada. Não queria desagradar Alice, mas aquilo não era
de sua vontade. No entanto, de uns dias para cá, Alice estava tão alegre, gentil e muito animada. Nunca a
vira assim.
Posso?! perguntou Alexandre, com sua voz grave, que chegoubem próximo sem ser notado.
Raquel, muito distraída e perdida em seus pensamentos, quase gritou, assustando-se tanto que
estremeceu a ponto de se sobressaltar, entornando um pouco do refrigerante que estava no copo que
segurava.
Por favor, Raquel, me desculpe! pediu o moço gentil, ligeiro e bem constrangido com a
situação. Sem jeito, deixando sobre a mesa sua bandeja, segurou no braço de Raquel, tentando acalmá-la.
Não foi nada respondeu a jovem tentando disfarçar o susto e secando a mesa com um
guardanapo.
Mesmo exibindo-se verdadeiramente envergonhado, Alexandre não conseguiu segurar o riso que refletia
em seus lábios e nos olhos brilhantes. Raquel também começou a rir com gosto e permitiu:
Vamos, sente-se.
Alexandre se acomodou a sua frente e disse:
Depois dessa, fico até sem graça. No entanto... Desculpe-me,mas tenho que admitir que você
reagiu de um jeito muito engraçado.Pareceu receber uma descarga elétrica. Raquel riu novamente e
Alexandre tornou menos hilário: Por onde voavam esses pensamentos?Aproximei-me e você nem viu!
Não. Não o vi, mesmo. Eu estava tão distraída.
Está tudo bem?
Sim, está.
Não parece. Para estar fazendo um lanche a essa hora... Deve estar repleta de serviço, como eu.
Ah! Estou sim.
E ambos falaram juntos, como num coro:
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Férias!
Eles riram e depois continuaram o lanche entre um assunto e outro sobre o trabalho. Raquel mais ouvia do
que falava. Ela possuía uma personalidade quieta, quase misteriosa, que se escondia por trás de sua
beleza naturalmente angelical.
Após terminarem, eles voltaram juntos para o trabalho e não deixaram de ser percebidos por Rita e Vagner,
que estavam atentos, cada qual com seu interesse pessoal. Raquel sentiu-se satisfeita pela companhia
agradável que tivera, pois o amigo não era indiscreto e sempre falava de coisas agradáveis.
Mais à tarde, na primeira oportunidade, Vagner procurou por Alexandre.
E aí? Você conseguiu, hein!
Consegui o quê? perguntou sem entender as intenções dooutro.
Não disfarça, Alexandre. Você está querendo "ganhar" a Raquel.Será mais uma para sua
coleção.
Alexandre riu gostosamente, pendendo com a cabeça de forma negativa e afirmando:
Não quero "ganhar" ninguém, cara! Pode "atacar"! Se você estáfalando isso só porque nos viu
chegar juntos, esquece. Foi casual. Eu aencontrei sozinha no local em que fui fazer um lanche rápido.
Mas eu a convidei para almoçar e ela recusou.
Você errou. Deveria tê-la convidado para um lanche rápido. Raquel me disse que está repleta de
serviço, como todos nós, e que não teve tempo para ir almoçar.
Vagner, com olhar desconfiado, encarava o colega com certo desdém. Não lhe agradava a ideia de
Alexandre se interessar por Raquel, pois ele havia se determinado a conquistá-la. Ele temia pela decisão
do colega, para quem não se achava páreo, pela exuberância, pela personalidade decidida, forte e
marcante. Apesar de Alexandre não ser do tipo a ficar tentando ou assediando mulher alguma. Aliás, no
que se dizia em respeito a isso, pouco se sabia sobre ele.
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Fique tranquilo, Vagner. Não estou querendo "ganhar" a Raquel.Admiro seu bom gosto. Ela é
muito bonita, sensata... Mas eu não me pretendo "amarrar" em ninguém. Desejo-lhe sorte!
A Raquel me atrai, sabe. Ela tem um certo enigma que me fascina.
É diferente. Pensando por
alguns minutos, Vagner perguntou:
O que posso fazer para me aproximar?
Pessoas quietas e misteriosas não gostam de ser abordadas. Elas,normalmente, repelem a invasão
de privacidade. Aproxime-se dela sem ser "grudento". Seja simpático e amigo. Fale sobre o que ela quiser
falar.
Alexandre sorriu, pois se lembrou que em sua família todos o chamavam, às vezes, de "grudento",
por ele adorar um abraço e o contato decarinho.
Vagner sorriu ao conselho do amigo e animou-se para conquistar Raquel.
No fim do expediente, apesar do horário de saída já ter se adiantado, Raquel ainda trabalhava querendo
colocar em ordem as suas tarefas. Vagner, observando-a de longe e aproveitando que havia poucos
colegas na grande seção, aproximou-se da moça, anunciando:
É hora de ir embora!
Raquel não ficou satisfeita; Vagner tirou-lhe a atenção do serviço que queria, a todo custo, terminar o
quanto antes, e a presença do rapaz atrapalhava sua concentração.
Deixe isso para amanhã, Raquel. Vá descansar. Você não serápromovida por ficar depois do
expediente.
Raquel respondeu com silêncio e um leve sorriso forçado.
Vamos. Eu a levo para casa quase impôs Vagner.
Não respondeu enérgica e com impulsiva frieza.
Não reaja assim disse ele com voz dengosa. Vamos vai. Eua levo para casa.
Mantendo-se firme, com uma postura quase agressiva, Raquel informou, sem se incomodar com os que
podiam ouvir:
Vagner, se eu estou aqui após o expediente pode ter certeza de que não é por prazer, é por
necessidade. Agora, por favor, se você ficar
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aqui ao lado me pressionando ou me distraindo, será, além de inconveniente, mais um problema para eu
resolver. Agradeço a carona, mas não quero. Obrigada.
Vagner enrubesceu, pois ouviu risos dos que assistiram a cena e sentiu-se humilhado. Raquel ferira seu
orgulho. Seus olhos brilharam e seus lábios apertaram-se, tamanha raiva que experimentou naquele
momento pelo comportamento arredio da colega. Jamais fora tratado daquela forma. Raquel não tinha esse
direito. Estava acostumado a ser recebido com prazer por outras moças quando fazia seus convites.
Envergonhado, mas mantendo-se altivo, falou:
Está certo. Como quiser.
Desculpe-me Vagner tornou Raquel mais branda. Estounervosa com o que faço no
momento e... Desculpe-me.
Tudo bem, Raquel. Amanhã conversaremos.
Vagner guardou imenso rancor da colega que tanto admirava. Em seu íntimo, não poderia negar que
desejava conquistá-la, no entanto, agora, quebrado o encanto, gostaria de fazê-lo, mas somente por sua
honra e para subjugá-la.
Alexandre, que não pôde deixar de observar a cena, ficou quieto em seu canto, sem se deixar perceber. Ele
compreendeu Raquel e verificou o quanto Vagner era inconveniente. Entretanto, nada disse a nenhum dos
dois.
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** página em branco **
Reforçando os laços de amizade
Com o passar dos dias, Alice começou a trabalhar.
Sendo uma mulher inteligente, de aparência respeitável e bonita, ficou ainda mais em evidência com o
auxílio de Raquel, que lhe ajudou com o empréstimo de suas melhores roupas e até acabou comprando-lhe
algumas peças.
Alice, sempre caprichosa com a casa, agora, mesmo trabalhando, não era diferente. No entanto, ela podia
contar com a colaboração de Elói e Raquel, que se propunham, espontaneamente, a algumas tarefas.
Empolgada com a nova experiência de trabalho, Alice passou a comentar em casa sobre alguns assuntos
interessantes em seu serviço. Eram ocorrências novas e até engraçadas para ela, mas que a faziam
esquecer as dificuldades financeiras que enfrentavam.
A ausência de queixas da esposa e os comentários que ela fazia de forma alegre sempre distraíam Marcos,
os filhos e Raquel. Isso provocava um clima harmonioso no ambiente doméstico e Marcos passou a
expressar menor preocupação. Ele se divertia com os casos que Alice contava, dava-lhe mais atenção e
carinho, pois podia aproximar-se mais da esposa, que não o recebia com suas queixas tão contundentes.
Antes, era a forma de agir e falar de Alice que mudava a vibração do ambiente, interferindo no
relacionamento de todos, fazendo-os ficar irritados e dispostos para divergências a qualquer momento.
Então a cliente me fez entrar no provador, experimentar a blusapara ela ver como ficaria em sua
filha, pois a moça não estava ali e amulher afirmava que tínhamos o mesmo corpo contava Alice
muitoanimada, descontraída e com largo sorriso, coisa rara de se ver.
E o gerente? perguntou Marcos.
Ah, sim! Antes de fazer isso eu falei com ele, claro. E aí ele respondeu: "Se é isso o que a cliente
quer, ela manda!"
Todos acharam graça no caso, mas os filhos, Elói e Nilson, chamaram a atenção para outro assunto.
Depois, enquanto arrumava a cozinha, Alice perdia-se em pensamentos de admiração.
"Nossa! Como Marcos mudou!"
O espírito Sissa, que se afinou com Alice por compatibilidade de pensamentos, estava sempre presente
junto dela para opinar e, com isso, ligar-se mais e mais a Alice, através da harmonia e da aceitação de suas
ideias que chegavam, para a encarnada, como se fossem seus próprios pensamentos.
Envolvendo-a como que em um abraço, Sissa opinou de forma muito convincente, aproveitando a primeira
ideia de Alice.
Marcos mudou mesmo. E tudo isso se deu graças ao que vocêtem feito, graças às velas e a tudo
mais que tem oferecido em troca.Afinal, alguém tem que cuidar do lado espiritual da família, e esse alguém
é você. Os seus desejos e a sua fé realizarão milagres se seguir novas instruções recebidas. Terá que
continuar a cumprir com o que lhe mandaram fazer ou então sua vida vai virar aquele inferno novamente.
De imediato, recebendo essas impressões, Alice se deixava envolver ao tecer os seguintes pensamentos:
"Não quero mais ser como antes. Não quero viver como eu vivia. Eu mudei, tenho mais valor e minha vida
também. Realmente tudo está dando certo. As simpatias e os 'trabalhos espirituais' funcionam mesmo. Não
há nada errado com o que eu estou fazendo. Ninguém pode me culpar por estar querendo uma vida
melhor. Tudo mudou! Marcos está diferente, rindo e oferecendo atenção... Vai ver que é por causa do meu
dinheiro que vai chegar no fim do mês. Mas, se ele pensa que eu esqueci o que me falou sobre eu ser
improdutiva, estámuito enganado."
Isso mesmo, minha amiga! insistia Sissa. Valorize-se! Vocêé jovem, bonita! Não merece ser
escrava de um homem como ele.
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"Se Marcos está pensando que vai pôr a mão no meu salário, estámuito enganado. Vou ajudar em casa,
sim. Mas vou me cuidar, preciso me produzir. Ele vive elogiando a irmãzinha dele, pois que se vire com ela.
Agora é que percebo o quanto minha aparência é importante. Meu emprego e meu bem-estar vão depender
da minha apresentação, agora."
Alice, levando consigo Raquel, já havia ido ao referido "lugar" ensinado por sua vizinha Célia. Lá, relatou
todas as suas dificuldades e, após ouvir as orientações, aceitou levar determinadas encomendas que
diziam ser para que os espíritos trabalhassem a seu favor. O pedido era para que Marcos ficasse mais
tranquilo, mais harmonioso com ela e que pudesse se estabilizar no emprego com um salário mais elevado.
O que Alice ignorava é que a estabilidade na empresa em que o marido trabalhava já estava prevista muito
antes de ir à busca daquele tipo de ajuda. Alice negava-se a reconhecer que o esposo só estava mais
tranquilo em casa por ela ter mudado os seus hábitos agressivos ao falar e ter, agora, assuntos novos,
produtivos e bem-humorados.
Raquel, que acompanhou a cunhada, ficou um tanto desconfiada e receosa. Não gostou do que Alice
decidiu fazer, porém, nada podia falar, uma vez que, quando tentou argumentar, ela reagiu contra suas
opiniões. Então, decidiu se calar, apesar de se sentir muito mal com tudo aquilo.
Com o passar dos dias, Marcos estava diante do diretor da empresa em que trabalhava se justificando,
admirado:
Mas, senhor José Luiz, eu nem sei o que dizer!
Eu esperava ouvir de você, Marcos, um "Muito obrigado", só respondeu o diretor, com ar de
riso.
Entorpecido pela agradável surpresa, Marcos tornou a estampar largo sorriso, admitindo satisfação.
Sim, claro! Muito obrigado pela confiança. Eu sei que esse cargoexige responsabilidade, tenho
até receio de não poder corresponder. Comoo senhor vê, tudo aqui na metalúrgica está sendo
informatizado e...
Marcos interrompeu o diretor , agora, sendo o coordenadordo setor, a empresa vai lhe
oferecer cursos nessa área. Você é um profis-
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sional respeitável, uma pessoa de caráter exemplar, esforçado, e, por tudo isso, tenha certeza de que não
será difícil se adaptar à nova função e aprender o que será necessário. Vai dar tudo certo! Bem, a princípio,
seu salário sofrerá um pequeno reajuste. Mas, após os cursos de atuali-zação profissional, vamos corrigir
isso.
O coração de Marcos estava aos saltos. Não cabia em si de tanta alegria.
O senhor não imagina como estou feliz! Nem sei se mereço esse cargo... Obrigado, senhor José
Luiz! Muito obrigado!
Agradeça a Deus e a você mesmo. Foi o seu comportamento, seu empenho e sua dedicação que
nos fizeram observá-lo e concluir quetinha o perfil ideal para essa colocação. Nunca ouvimos qualquer
comentário que pudesse desabonar a confiança que depositamos em você hoje. Chegou a sua chance,
rapaz! Vamos trabalhar juntos e, vou avisando, sou exigente e gosto de estar bem informado sobre todos
os detalhes. Espero que sempre me deixe a par das novidades, uma vez queestamos sem gerente
administrativo, como você sabe, e, assim sendo, oscoordenadores ficarão responsáveis por me transmitir
as informações,certo? Quero ver aquele setor funcionando a todo vapor!
Pode deixar! Vou me empenhar ao máximo!
Ao chegar em casa, Marcos exibia felicidade total e não deixava de falar daquela novidade. Raquel oferecia
toda atenção ao irmão e Alice, muito satisfeita, não conseguia acompanhar a conversa do marido, uma vez
que seus pensamentos se voltavam para a admiração aos credos adotados, às promessas e propostas de
ajuda que recebera daquela doutrina espiritualista que procurara. Contudo, a razão maior de Alice desviar
os pensamentos das palavras de Marcos era o fato de Sissa estar naquele mesmo instante passando-lhe
suas sugestões:
Está acreditando agora nas magias, minha amiga? Viu como omundo espiritual tem força?
Podemos fazer tudo o que você desejar.Tudo! dizia Sissa impregnando, com suas vibrações e seus
desejos, ospensamentos de Alice.
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A encarnada não podia ouvi-la, mas passava a ter ideias e pensamentos que antes não tivera, e que agora
julgava que fossem somente seus.
"Que impressionante! Como tudo está dando certo! Célia foi amigo-na mesmo! Ela tinha razão. Eu não era
feliz porque nunca tive fé. O 'lugar lá' é bom mesmo. Os espíritos que consultei foram
ótimos. Tenho que
voltar lá. Tudo foi tão fácil!"
A ganância passou a fazer parte dos desejos de Alice. Influenciada por Sissa, começou a desejar cada vez
mais os gozos dos bens terrenos através de aquisições "fáceis".
Em outra oportunidade, ao conversar com sua amiga Célia, Alice contava animada:
Ah! Pedi, sim! Quero me destacar no serviço. Preciso de estabilidade financeira. Não serei só
uma vendedora, você vai ver. O gerente domeu setor me disse que nunca viu alguém tão esforçada como
eu. Houve uma pequena reunião com vários vendedores e ele até me destacoucomo exemplo na frente de
todo mundo.
Que virada você deu, hein, menina! Quem te viu e quem te vê.Tem uma coisa, Alice, não deixe
só para os espíritos ajudá-la. Você temque fazer algo por você mesma. Melhore o quanto puder o seu
visual,procure falar baixo, pausadamente, sem euforia, com modos educados,com a maior classe. Não
fique gargalhando alto, nem à toa, seja sempre discreta, em tudo. As pessoas educadas, graciosas, atraem
a atenção dosoutros. Enquanto aqueles que querem chamar muito a atenção para sipassam pelo maior
ridículo.
É verdade. Tenho que contribuir com a ajuda espiritual que estou recebendo. Quanto à aparência,
pode deixar, já estou cuidando disso.Comprei roupas novas e boas. Melhores do que as emprestadas
pelaRaquel.
E a Raquel, foi lá com você?
Foi, foi sim. Mas, sabe, ela parece que não gosta muito. Ah, Célia!Se você pudesse ir comigo...
reclamou Alice com jeito dengoso.
Não dá menina. Só posso ir lá à tarde. De noite o Geraldo, meumarido, está em casa e, já viu, né,
ele não quer saber disso.
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As amigas conversavam mais um pouco até que o horário chamou a atenção de ambas para se
recolherem.
Bem mais tarde, Alice procurava convencer a cunhada para que a acompanhasse:
Ah, Raquel! Vem comigo, vai pedia-lhe Alice com jeitinho.
Puxa, Alice, não sei, não. Eu não gostei de ter ido "àquele lugar".Eu me senti tão mal depois.
Passei até alguns dias meio... deprimida,sei lá. Não seria melhor irmos a uma igreja?
Sempre fui a igrejas, e o que recebi? Que nada, Raquel, vai ver que você ficou ruim ou deprimida
por outra coisa. Passa pela consulta evocê vai ver...
Diante da insistência de Alice, Raquel acabou por acompanhá-la até o "tal lugar", mas não aceitou passar
pela consulta e, mais uma vez, não se sentiu bem com o ambiente por causa do nível espiritual
incompatível com a sua índole.
No dia seguinte, em seu trabalho, Raquel sentia-se um tanto atordoada e não conseguia ficar atenta ao que
fazia.
Puxa vida! O que será que está acontecendo comigo?
O que foi, Raquel? Errou novamente? perguntou Alexandre,que agora, com o último
remanejamento de lugares e funções na empresa, passou a ocupar uma mesa ao lado de Raquel. Somente
umadivisória de poucas proporções os separava.
Nossa! Parece que estou ficando boba! Nem acredito no que estoufazendo.
Dando um empurrão em sua cadeira giratória de rodinhas, Alexandre se colocou ao lado de Raquel e
propôs ajuda:
O que foi? perguntou ao observar mais de perto o que ela fazia.
Novamente me enganei com os códigos e essas reservas foram parar em outro lugar. Quando eu
cancelar, o senhor Valmor vai ficar uma fera.
Não tem alguém com reserva para esse lugar? Veja com os outros,quem sabe?...
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Vai ser difícil respondeu Raquel desanimada.
Dê-me o telefone, quem sabe o Mauro tem alguma coisa paratrocar com você.
Raquel estava sem iniciativa. Desalentada, observou o colega agir em seu lugar. Depois de alguns minutos,
Alexandre, eficiente e animado, solucionou o problema.
Obrigada, Alexandre respondeu Raquel com sinceridade. Você não imagina o que fez por
mim. Eu acho que é a quinta vez, emmenos de um mês, que não presto atenção no que faço.
Ligue para o "suporte" e peça para te fazer um "programinha"onde essas tabelas fiquem
reservadas com as informações, daí, só no fimdo dia, ou quando quiser, você registra e confirma tudo.
Vou solicitar, sim concordou mesmo exibindo desânimo. Após alguns segundos com o olhar
perdido, Raquel admitiu: Também, eu era uma mera operadora e por força das circunstâncias fui
mudando de setor até vir parar aqui. Pouco entendo de programas ou sistemas. Ainda confessou: Mas
tenho que admitir que talvez seja falta de atenção de minha parte. Não sei dizer por que isso está
acontecendo.Sempre tive esses códigos decorados.
Será que você não precisa de férias? Um descanso cairia bem.
Descanso agora seria impossível.
Raquel suspirou profundamente, demonstrando certa insatisfação pessoal com as turbulências de sua vida.
Seu olhar perdido exibia melancolia. Parecia triste e até abatida, seu coração estava apertado e com maus
presságios. Revelando-se atencioso, apesar de discreto, o rapaz preocupou-se e perguntou:
Está com problemas, Raquel?
Erguendo o olhar mansamente, com entonação singular na voz, ela respondeu:
Estou morando na casa do meu irmão. Não sei se você lembra, mas a Rita disse, há algum
tempo, que ele iria morar comigo, mas não deu certo. Houve uma mudança de planos e eu acabei indo
morar com ele.
Pelo visto não está sendo bom para você, não é?
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Não mesmo. Ou melhor, com meu irmão eu me dou muito bem,os desafios que enfrento são com
a mulher dele.
Ah, ele é casado?
Sim, e tem dois filhos. Depois de pequena pausa, Raquel encarou Alexandre com olhar meigo,
ofereceu um doce e singelo sorriso e, por fim, concluiu acreditando estar incomodando-o: Bem, deixapara
lá. Não gosto de incomodar os outros com meus problemas.
O amigo fez um gesto singular e, após sorrir também, voltou ao seu trabalho.
Rita, que os observava a certa distância, corroía-se inquieta pela curiosidade em saber sobre a ligeira
aproximação dos dois. Mais tarde, durante o café, Rita questionava a amiga:
Qual era o assunto, então?
Ora, Rita, eu me "enrolei" com uns códigos e ele estava me ajudando.
E, mas outro dia eu vi quando você não quis almoçar com oVagner e acabou voltando do almoço
com o Alexandre.
Nós nos encontramos por acaso, Rita. Cansada de ser interrogada com tanta desconfiança,
Raquel reagiu: Nossa, Rita! O que você quer afinal de contas?! Eu já lhe disse que não estou
interessada no Alexandre, nem em homem algum. Irritada concluiu: Olha,pega o Alexandre e pendura
no pescoço, tá bom?
Credo, Raquel, eu não sabia que você era tão grossa assim!
Todo mundo tem um limite, você não acha? Estou cheia desse assunto!
E com um gesto, demonstrando-se enfadada, Raquel aquietou-se.
Rita, por sua vez, sabia que não poderia brigar com a amiga, pois agora, principalmente por Alexandre
estar próximo da mesa de trabalho de Raquel, seria mais fácil, ela teria um motivo para se aproximar dele.
Por isso tornou-se mais branda:
Desculpe-me, Raquel. Eu confio em você, mas é que tem horasque... Puxa, eu tenho um objetivo,
né! Sei que me entende. Raquelnada disse, e Rita continuou: Tenho que dar um jeito de me
aproximar dele e, para isso, eu só posso contar com você.
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Comigo?!
Claro, Raquel! Primeiro porque você parece que é a única mulheraqui que não está interessada
no Alexandre, segundo porque ele estábem ao seu lado.
Não sei como posso ajudá-la, Rita. Eu e o Alexandre mal conversamos.
Raquel sentia seu coração apertado sem saber definir o que era. Tentando persuadir a colega, Rita passou
a chantageá-la emocionalmente, pois acreditava em sua sensibilidade:
Raquel, você é a única pessoa que pode me ajudar. Não sei mais o que fazer. Olha dizia a
amiga com modos dengosos , a verdade é que eu não paro de pensar no Alexandre. Estou apaixonada!
Sonho com ele. Imagino que estamos juntos... Eu adoro o Alexandre. Não sei mais o que fazer. Não posso
me revelar e dar uma de fácil, mas tenho que me aproximar dele.
E se ele tiver namorada?
Não tem.
Como você pode ter certeza disso, Rita?
Eu sei que ele não tem ninguém. Parece que nunca teve namorada firme. Ele não se prende a
ninguém.
Ora, Rita, então por que insistir?
Porque eu adoro o cara! Você nunca se apaixonou por alguém?
Não admitiu com simplicidade.
Não! Nunca?
Nunca. Olha, Rita, veja se você não vai se humilhar. Eu acho que, como mulher, devia se
valorizar mais. Tenha auto-estima.
Eu estou gostando do Alexandre, Raquel. Se você nunca se apaixonou por alguém, não sabe
como é. Ajude-me, por favor! pediu Rita com voz piedosa.
Raquel se comoveu e, sem alternativa, concordou:
Está bem. Mas veja lá, não quero me envolver em encrencas!
Que encrenca, Raquel? Você só estará me ajudando. Apóspequena pausa, Rita, com os
pensamentos fervilhando de ideias, propôs: Convide-o para almoçar hoje, certo?
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Eu?!
Claro! Você não quer me ajudar?
Como? Eu não tenho cara para chegar e convidá-lo assim, semmais nem menos!
Mas você disse que iria me ajudar!
Contrariada e pensativa, sem esconder seu descontentamento, Raquel falou:
Olha, Rita, não posso garantir nada. Vou ver.
Vai ver, nada! Você tem que conseguir...Raquel e Rita retornaram aos seus devidos lugares.
Ao ocupar sua mesa, Raquel, pensativa no desejo da amiga, não tinha coragem de sequer olhar para
Alexandre, que estava ao lado. Voltando-se para Raquel, ele a chamou dizendo:
Raquel, o senhor Valmor a procurou duas vezes enquanto você estava fora.
Puxa! Demorei no café, não foi?
Demorou mesmo concordou Alexandre sem exaltação. Aprimeira vez que ele a procurou,
informei que você estava no café; a segunda, disse que havia voltado, mas precisou sair novamente.
Perdoe-me, mas eu falei que você havia ido ao toalete.
Obrigada agradeceu Raquel, pensativa. Já sei o que ele quer, eu tenho que entregar
algumas tabelas de estatísticas comparadascom as das duas últimas férias do mesmo período do ano.
Estão prontas? perguntou o colega.Raquel sorriu sem jeito e, desanimada, afirmou:
Não. Não estou conseguindo. Não sei o que está acontecendocomigo.
Já disse, você está precisando de férias. Após poucos segundos ele perguntou: Quantas
tabelas são?
Seis. Duas férias por ano: deste ano e dos dois últimos.Animado, como sempre, Alexandre pediu:
Dê-me três. Eu te ajudo. Começando agora, em meia hora terminamos.
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Raquel se entusiasmou, não esperava por aquele auxílio. Rapidamente os dois trabalharam no serviço que
pertencia só a ela e que estava atrasado. No final de meia hora estava tudo pronto. Sem perceber, Raquel
abriu um largo sorriso de satisfação ao ter em mãos o trabalho que agora levaria para seu chefe.
Após retornar da entrega das referidas estatísticas para o diretor, ainda exibia um sorriso de satisfação.
Voltando-se para o colega, agradeceu:
Obrigada, Alexandre. Nossa! Nem sei como agradecê-lo.
Eu sei! anunciou o rapaz sorridente.
Como? perguntou ainda iluminada pelo sorriso.
Pagando o almoço! Está na hora, vamos almoçar? convidoucom modos simples e sem
pretensões.
Raquel lembrou-se imediatamente de Rita e concordou:
Claro! Só espere um minuto, pois eu tenho que chamar a Rita,combinamos de ir juntas hoje.
Tudo bem. Chame-a logo concordou avisando em seguida: A história de pagar meu almoço
é brincadeira, tá?
Os três saíram juntos e, como sempre, Rita atraía para si toda a atenção. Só que aquele tipo chamativo de
se apresentar passou a desagradar ao colega, que, mesmo sem demonstrar, entendeu que ele era o alvo
do comportamento evidente ao qual Rita se forçava. Em outros dias que se seguiram houve novamente a
oportunidade deles se reunirem para uma refeição; como antes, Rita se colocava em destaque a fim de
atrair a atenção do colega.
Após alguns dias, em uma manhã qualquer, Raquel estava triste e inquieta. Nada parecia dar certo. Ela
estava quase chorando pela insatisfação com seu trabalho. Percebendo o que seu comportamento,
Alexandre perguntou:
Tudo bem, Raquel?
Ela não conseguiu deter as lágrimas e, com a voz embargada, respondeu:
Não... Essa droga não quer dar certo.
Alexandre, mais uma vez, empurrou-se em sua cadeira para perto de Raquel a fim de acompanhar algumas
planilhas que estavam sobre sua
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mesa. A colega procurava secar as lágrimas e esconder o rosto rubro. Ao lado de Raquel, Alexandre
passou a orientá-la sobre as anotações, e após algumas explicações...
Entendeu? perguntou gentilmente procurando ajudar.Raquel olhava as planilhas e parecia
nem saber o que era.
Entendeu, Raquel? insistiu ele.
A moça não conseguia se concentrar. Novamente as lágrimas teimosas banhavam sua face agora rosada e
ela reclamou com voz abafada:
Esse serviço é novo. Nunca fiz isso e... nem sei o que estou fazendo. Não entendo nada de fatura.
Alexandre, paciente e gentil, procurou explicar todo o processo de exigências para aqueles cálculos e, ao
ver que Raquel ainda parecia alheia, convidou:
Vamos tomar um café, Raquel?
Não. Eu tenho que...
Desse jeito você não vai conseguir nada. Vamos lá! Vem! insistiuo colega, girando-lhe a
cadeira e amparando-a para que se levantasse.
Procurando esconder o rosto avermelhado pelo choro, Raquel atravessou a seção seguida por Alexandre.
Ao chegarem à lanchonete que funcionava em outro andar, ele a acomodou à pequena mesa, quase
escondida em um canto, e foi solicitar dois sucos.
Raquel, muito envergonhada, ainda procurava esconder o lindo rosto meigo em meio aos cabelos sedosos,
perfumados e brilhantes que lhe cobriam parcialmente a face. Alexandre sentou-se à sua frente e, apoiando
os braços sobre a mesa, passou a fixar o olhar na moça que, de cabeça baixa, não o deixava ver seus
olhos. O silêncio reinou por alguns minutos e Alexandre passou a prender sua atenção na beleza física de
Raquel. Apesar de já ter percebido isso antes, agora tinha a oportunidade de observá-la melhor sem ter que
se preocupar com os demais.
A simplicidade da jovem e sua meiguice ofereciam harmonia ainda maior aos seus delicados traços.
Quando Alexandre se surpreendeu em plena admiração pela moça, sentindo grande atração por ela,
respirou fundo, ergueu-se e levantou,
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caminhando poucos passos até o balcão, para ver se o seu pedido jáestava pronto. Preocupado, Alexandre
passou as mãos pelos cabelos esfregando em seguida o rosto, procurando raciocinar:
"O que está acontecendo?", perguntava a si mesmo em pensamento. "Não posso sentir isso. Já me
decepcionei muito em relacionamentos anteriores. Sou experiente e não vou me deixar dominar. Quero
ajudá-la, sim, mas como seu amigo, nada mais. Admiro a Raquel como pessoa. Não vou me deixar
envolver."
Após pegar os dois copos, voltou para a mesa onde Raquel estava mais recomposta de suas emoções.
Espero que goste. É suco de abacaxi.
Obrigada agradeceu em voz baixa, concordando com um aceno de cabeça. Arrastando o copo
para perto de si, Raquel ficou observando-o, deixando seus pensamentos vagarem.
Não suportando o silêncio, Alexandre perguntou:
Não é só o serviço que a deixa inquieta e amargurada, não é,Raquel?
Ela ergueu os olhos tristes, que novamente se rasaram de lágrimas, e afirmou positivamente. Alexandre a
encarou e admirou em pensamento:
"Como Raquel é linda! Como é terno seu olhar e generoso o seu semblante, mesmo quando triste." E
acompanhando os contornos, observou: "Que boca bonita!"
Rápido, surpreso consigo mesmo, procurou fugir daqueles pensamentos insistentes e quase sacudiu a
cabeça para afugentá-los.
"Sou mais forte do que isso", pensava ele. "Não vou me deixar levar por isso."
Em seguida perguntou:
Seu maior problema é por estar na casa de seu irmão, não é? Creio que seja isso que a incomoda
e a faz perder a atenção no que está fazendo.
Sim, é isso afirmou com voz vacilante. Eu preciso sair de lá.Acho que já estou acostumada
a morar sozinha.
Não sei se já te disse, mas eu também moro sozinho e, quando minha irmã resolve ficar alguns
dias no meu apartamento, eu acho es-
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tranho. Parece que não me acostumo mais. Ela dorme na sala, tira a minha privacidade, entende? Mas por
que você não procura outro lugar e se torna independente novamente? É simples.
Não, Alexandre. Não é tão simples assim.
Por quê?
Eu morava numa casa de aluguel, para ajudar meu irmão, saí delá e fui morar com ele. Meus
móveis, minhas coisas não couberam nacasa dele e... Bem, acabei vendendo tudo. Nem cama eu tenho.
Estoudormindo no sofá da sala.
Alexandre ficou perplexo, mas nada comentou, uma vez que teve medo de magoar a colega, que
dificilmente falava sobre si. E ela continuou:
A pouca economia que eu tinha no banco, junto com o que arrecadei devido à venda de minhas
coisas, entreguei ao Marcos para que ele pagasse os aluguéis em atraso.
Você está brincando?! perguntou Alexandre não suportando.
Não. Pior é que não. Agora, depois de alguns meses, a situação dele se estabilizou. Mas eu ainda
continuo ajudando com as despesasda casa. De imediato eu não tenho para onde ir. Para alugar outra
casa preciso fazer depósito de um ou dois meses de aluguel e, em alguns casos, pedem até fiador. Não
tenho dinheiro para esse depósito e mesmo se eu o arrumasse, precisaria mobiliar a casa novamente;
ajudando-os, como estou, não consigo fazer nenhuma economia.
Alexandre a ouviu e depois de refletir um pouco decidiu opinar:
Desculpe-me, Raquel, eu mal a conheço e... Puxa! Fale com seu irmão. Diga que quer voltar a
morar sozinha, pois agora ele já está estabilizado.
Marcos não quer abrir mão da minha presença em sua casa. Dizque está feliz comigo lá, e eu
acredito. Mas o problema maior, Alexandre, nem é esse.
Qual é então? perguntou o rapaz, diante da pausa que se alongara.
Raquel contou tudo sobre sua cunhada e as tais simpatias e lugares frequentados. No final acrescentou:
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Eu não quero mais ir lá. Não gosto disso. Ela vive insistindo e eunão posso me indispor por causa
disso. Nas vezes em que me recusei acompanhá-la, Alice ficou nervosa, irritou-se e começou a bater em
móveis e objetos propositadamente. Isso durou quase uma semana.
Contou ao seu irmão?
Não. Não quero que ele brigue com a Alice. Sabe, eles já tiveram momentos difíceis. Já
discutiram muito e hoje vivem mais tranquilos.Se eu contar, serei o motivo de novas divergências. Temo
que Marcos seja fraco e faça alguma besteira. Sabe, Alexandre continuou , eu nunca acreditei nesse
negócio de espírito ajudar ou atrapalhar os vivos.Mas agora...
Agora o quê?
Eu não gosto de ir lá. A Alice fica pedindo "isso ou aquilo" edepois volta para entregar o que eles
solicitam. Cada vez que eu a acompanho volto tão mal, nem sei explicar o que sinto. Minhas coisas não dão
certo, levo bronca no serviço, não consigo deixar em ordem meu trabalho e até meu dinheiro desaparece.
Às vezes sinto até um mal-estar físico e tudo aumenta à medida que vou lá para acompanhar a
minha cunhada.
Não entendo nada sobre espíritos nem sobre a ajuda que eles podem nos dar. Nunca acreditei
nisso. Mas, de uma coisa tenho certeza, não se envolva com o que você não conhece. Saia dessa,
Raquel.Procure se afastar. Dê um jeito de sair da casa de seu irmão. Mas, enquanto isso, tente separar a
situação. Quando estiver no trabalho, concentre-se no que você tem a fazer aqui. Organize-se. Em casa,
pense nas soluções que terá de providenciar para ajeitar a situação.
Não é fácil.
Sim. Não é. Mas você tem capacidade.
Após conversarem por mais alguns minutos, retornaram para a seção e Raquel já se sentia um pouco
melhor. Alexandre, não resistindo ao impulso, convidou:
Vamos almoçar juntos? Assim conversaremos melhor. Quando ele entendeu que Raquel poderia
convidar a colega, pediu: Só
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que, por favor, não chame a Rita. Ela fala muito e... se tentarmos resolver um assunto conversando a
respeito dele, a Rita não é uma boa companhia.
Raquel se viu numa situação difícil. O que poderia dizer à colega para justificar não tê-la convidado para
almoçar? Alexandre, inteligente, percebeu seu embaraço e sugeriu:
Vamos almoçar bem mais tarde, certo? Eu vou na frente e a espero naquele lugar onde tomamos
lanche outro dia.
Raquel ofereceu um leve sorriso, lembrando-se da cena, e perguntou:
Onde levei aquele susto?
Lá mesmo rindo junto, ele confirmou.
Horas depois, quando faziam um lanche, após conversarem sobre as dificuldades de Raquel, ele perguntou
subitamente:
A Rita está te usando, não é, Raquel?
A moça sentiu-se gelar. Ela empalideceu e não sabia o que dizer ao perceber que Alexandre entendera
tudo.
Bem... tentou justificar, mas não conseguiu prosseguir.
Não precisa se encabular. Desculpe-me por ser tão direto, é quenão há como ignorar. A Rita só
falta se atirar sobre mim. Dizendo isso, Alexandre riu, divertindo-se, e Raquel abaixou a cabeça
envergonhada, sem saber o que falar. Descontraído, ele prosseguiu: Eu fico em uma situação difícil,
entende? Quero muito bem a vocês duas,mas como colegas. Sinceramente, Raquel, não estou a fim de me
prender a ninguém.
Eu entendo. Mas é que a Rita gosta de você.
Alexandre sorriu novamente e não se calou sobre o que observara:
A Rita não gosta de mim. Ela, como algumas outras, quer umcara bonito para lhe servir como um
"cartão de visita".
Raquel sorriu diante da falta de modéstia do amigo. Alexandre, inteligente e perceptivo, ao entender o olhar
da colega, comentou:
É verdade! Eu sei que tenho boa aparência. Assim como você não pode negar, quando está em
frente de um espelho, que é muito bonita.Sua beleza é evidente e sua delicadeza natural ressalta tudo isso
cha-
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mando a atenção de todos, não é, Raquel? Vendo-a embaraçada, com o rosto rubro, Alexandre riu
gostosamente e admitiu: É verdade! As pessoas geralmente se aproximam de nós e nos querem
conquistar pela nossa aparência, e não pelo que somos como pessoa. Se não tomarmos cuidado, vamos
nos envolver em difíceis situações. Estou cansado disso e creio que você também. Acho que todos os seus
namorados primeiro se aproximaram de você por sua beleza, para dizer: "Olha, eu consegui a menina mais
bonita!"
Raquel abaixou a cabeça e ele perguntou:
Não é verdade?
Não.
Sem graça, Alexandre se desculpou:
Bem, então me perdoe. Talvez seu namorado seja sincero e...
Eu não tenho namorado afirmou interrompendo-o.
Mas já teve?
Não.
Nunca?! surpreendeu-se ele duvidando.
Nunca.
Quantos anos você tem?
Vinte e um.
Tenho onze anos a mais que você. De que planeta você veio paranunca ter namorado?
brincou.
Raquel sorriu encabulada e ele tornou, deixando de ser indiscreto:
Bem, isso não vem ao caso. Mas eu sei que você me entende. Jáestou ficando sem jeito na
companhia da Rita. Eu sei que ela vem tepedindo e...
Desculpe-me. Sei que sou eu quem a chamo sempre, mas...
Não! Não se desculpe. A sua presença não me incomoda. A presença da Rita não me incomoda.
O que está me deixando irritado são as atitudes dela, o comportamento exagerado que ela adota para
chamar aatenção. A Rita não se valoriza.
Raquel sentiu-se levando uma bronca. Envergonhava-se do que fizera e agora estava sem graça.
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Raquel Alexandre a chamou e, após encontrar seu olhar fixo nele, segurou as mãos da moça
sobre a mesa e falou mansamente: ,não me leve a mal. Não fique triste por causa disso que estou te
contando como um desabafo. Não quero perder a sua amizade nem a da Rita. Só não quero deixar ninguém
iludido nessa história. Não sou do tipo que subjuga mulher alguma e depois "dá a volta por cima". Esse não
é o meu perfil. Não quero me prender a ninguém, entende? Perdoe-me se eu a entristeço, mas é que
precisava esclarecer tudo issocom você.
Eu entendo, Alexandre. Desculpe-me. Não vai acontecer mais.A conversa continuou, até que o
horário de almoço chegou ao fim e
eles voltaram para o trabalho. Alexandre sentia-se melhor por ter esclarecido aquela situação, mas depois
ficou inquieto pensando que Raquel poderia estar magoada com ele. Mas ela experimentava um alívio por
ter desabafado, principalmente com um colega tão discreto.
Naquele dia Raquel ficou até mais tarde no serviço tentando dar prosseguimento a algumas coisas que não
conseguira terminar. Alexandre, ao dar o horário de encerramento do expediente, se foi, como a maioria
dos outros funcionários também. Vagner, a certa distância, observava Raquel e, bem mais tarde, quando
ela se arrumou para ir embora, a seguiu.
Preocupada com sua condução, a moça andava apressada pelo pátio onde havia poucos veículos
estacionados. A iluminação fraca a deixava nervosa, pois o lugar parecia um tanto sombrio por causa das
árvores que impediam a luz de clarear como deveria. Vagner acelerou seus passos alcançando-a e
colocando-se à frente de Raquel, que gritou assustada.
Calma, Raquel. Sou eu disse ele mansamente e sorrindo.
Você não deveria fazer isso! respondeu nervosa.
Ao procurar sair da frente do colega para seguir seu caminho, ele a impediu segurando-a e dizendo:
Não fique assim. Vou levá-la para casa.
Raquel esquivou o ombro que Vagner segurava e respondeu:
Não. Obrigada.
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Ei! Espera! O que é isso?
Por favor, Vagner. Solte-me! Preciso ir! impôs-se quase gritando.Vagner a segurou com
firmeza pelo braço e, estampando um sorriso,
argumentou:
Calma... As coisas não são assim.
Apavorada, Raquel sentia seu coração acelerar. Um medo aterrorizante a dominou e ela gritou procurando
reagir fisicamente:
Solte-me! Alguém, me ajude!!!
Vagner a segurou com mais força, levando-a de encontro à parede do prédio, abraçando-a e tentando
beijá-la à força. Raquel se contorceu e gritou, momento em que o empurrou. Conseguindo se soltar, saiu
correndo desesperada. Mas nenhum segurança estava nas proximidades. Vagner tentou alcançá-la, mas,
ao se aproximar da portaria, desistiu.
Raquel, ofegante e assustada, passou pelo guarda que estava dentro da guarita e nem a percebeu, pois se
entretinha com um programa que passava na pequena televisão que havia lá.
Ganhando a rua, ela correu até o ponto onde pegaria a condução. Apavorada, sentiu-se mais segura ali
pela presença de outras pessoas. Raquel tentava conter seu nervosismo e as lágrimas, mas era quase
impossível. Trêmula, tinha a respiração alterada. Ninguém ousou perguntar o que estava acontecendo. A
custo conseguiu se controlar aparentemente.
Enquanto isso, Alexandre, após chegar ao seu apartamento, sentia que algo ainda o incomodava. Acreditou
que após um banho e uma alimentação se harmonizaria. Mas isso não se sucedeu; nem conseguiu se
alimentar direito. Foi para o sofá, largando-se na frente da televisão, no entanto sua atenção não se prendia
nos programas exibidos. Seus pensamentos estavam concentrados em Raquel.
"Como ela fora se envolver em tamanha encrenca? Jamais alguém pode se deixar prender assim."
Alexandre não conseguia desviar suas ideias de Raquel. Uma irresistível atração o prendia. Ela era
cativante, emotiva e meiga.
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Droga! quase gritou nervoso. Isso não vai acontecer novamente! completou, jogando para
longe de si uma almofada que antesprendia apertada ao peito.
Levantando-se irritado, Alexandre andou de um lado para o outro sem saber como deter aqueles
pensamentos. Ele já havia sofrido muito por se apegar e amar tanto alguém. Prometera, então, a si mesmo
que nunca mais isso iria acontecer. Apesar disso, sem perceber, a imagem de Raquel se fazia em sua
mente, não só bela, ele a achava maravilhosa, angelical, dócil e delicada.
"Como nunca tivera um namorado?", pensava. "Por quê? Uma moça aos vinte e um anos não ter
namorado! Isso não deve ser verdade", continuava, inquieto e curioso. "E o Vagner? Ele a estava
incomodando. Aquele cara não presta! Raquel é tão diferente, indefesa..."
Tudo nela era agradável para Alexandre. Gostava de poder fitá-la. Queria tê-la naquele momento consigo.
Poder abraçá-la, beijá-la... Raquel fora a única que, até então, não se insinuara tentando conquistá-lo.
Alexandre, deslumbrado, sonhava acordado com a linda Raquel, mas, repentinamente, negava tudo o que,
sem perceber, formava-se em sua mente logo em seguida, independente de sua vontade.
Não! Estou ficando louco falava sozinho. Aos trinta e doisanos não posso me deixar iludir por
uma... uma menina. Segundos depois, tornava a lutar contra si mesmo: Mas eu tenho que ajudá-
la.Raquel parece não ter experiência nem apoio de ninguém mais. Precisoconhecê-la melhor.
E passando as mãos por entre os cabelos, incomodado com os pensamentos teimosos, Alexandre atirou-se
mais cedo na cama e custou muito para conciliar o sono.
Enquanto Alexandre lutava com os próprios pensamentos, Raquel, ao chegar em casa, sentia-se ainda
aterrorizada, mas procurava manter as aparências. Sem coragem, não contou a ninguém o que aconteceu,
apesar de estar desfigurada ainda devido ao susto.
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Alice não notou seu abalo nem seu semblante amedrontado, que exibia que algo estava errado.
Preocupada consigo mesma, a esposa de Marcos só exigia:
Pensei que fosse minha amiga, Raquel. Preciso ir lá hoje e sem falta!Com voz cansada, Raquel
tentava justificar:
Alice, por favor, hoje não. Eu não estou bem. Aconteceram muitas coisas e... Amanhã ainda é
sexta-feira e...
Recuso aceitar um não. Parecendo nervosa, Alice desfechou: Você só se faz de boazinha
comigo quando Marcos está por perto.
Raquel sentia-se muito mal. Tudo a incomodava. Procurava ser forte para não se deixar dominar pelo
pânico, mas estava sendo difícil. Seu coração estava envolto por uma dor inenarrável. Por não ser firme,
arrancando das entranhas da alma forças que desconhecia ter, Raquel acompanhou a cunhada.
Bem mais tarde, ao voltarem para casa, Raquel, exaurida de forças físicas e mentais, mal tomou um banho
e largou-se no sofá, lugar onde dormia. Alice também adormeceu rapidamente. Durante o estado de sono
de Alice, o espírito Sissa, que havia algum tempo acompanhava a encarnada, aproximou-se de seu corpo
adormecido e chamou:
Ei, Alice! Venha, minha amiga. Sou eu.
O corpo físico de Alice estava completamente adormecido e deitado em sua cama, enquanto o corpo
espiritual despertava agora para o plano que os encarnados normalmente não enxergam e até ignoram. E,
nesse desdobramento, aquela alma passou a oferecer atenção ao espírito Sissa, que estava mais próxima
das vibrações, desejos e pensamentos da encarnada.
Alice! Venha, sou eu! insistia Sissa.
Aonde? perguntou Alice, um tanto perturbada ainda.
Vem comigo. É do seu interesse. Vamos encontrar nossos amigos.
Amigos?
Sim. Você já os conhece. Nós vamos visitá-los num lugar maispropício.
Por ser um espírito ignorante, sem elevação moral, Sissa não podia suprir a companheira encarnada de
amparo, sustentação e bem-estar, o que proporcionava a Alice um estado confuso e perturbado.
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Alice, por sua vez, em desdobramento, tinha aquela companhia espiritual pelo nível moral em que se
colocava, por falta de fé, pela ignorância sobre a vida espiritual e, principalmente, pela ganância material.
Ela não fazia preces a Deus e isso tudo não a deixava favorável para receber algum envolvimento ou
inspiração de seu mentor.
Sissa levou a companheira encarnada para uma faixa vibratória inferior, onde se situava um lugar estranho,
havendo ali vários espíritos de baixos valores morais e inúmeros encarnados em desdobramento pelo
estado de sono. Os encarnados podiam ser reconhecidos pelo cordão fluídico que se alongava do corpo
espiritual, ou perispírito, até o corpo físico, que se encontrava em repouso.
Desencarnados com aparência sinistra preservavam tudo, "organizando" a reunião.
Depois de alguns rituais que foram feitos a fim de impressionar todos e com o intuito de prestar como que
uma homenagem, demonstrar obediência e simbolizar respeito ao líder, deu-se início à reunião. Quando
todos observaram que o chefe fez menção de tomar a palavra, o silêncio foi absoluto.
Eloquente, circunvagando à sua volta, ele falou sentindo-se absoluto:
Mais uma vez, estamos reunidos em favor da nossa força, dos nossos direitos e dos nossos
domínios, mostrando que as chamadas"Falanges da Luz" nada mais são do que migalhas sob nossos pés.
Ninguém proporciona maior segurança ou maior prazer do que a força que obtemos com a nossa união.
Todos a favor de todos! disse o líder com vibrações tenebrosas e olhar fulminante.
Sua aparência era humana, porém ele moldava sua forma perispiritual excessivamente avantajada à dos
homens comuns, a fim de impressionar e impor medo.
Moldava também roupas escuras. Destacando-se em um patamar mais alto onde todos ali reunidos podiam
percebê-lo com nitidez e facilidade.
... porque ficamos anos e anos e nenhum auxílio chegou a nosso favor prosseguia ele.
Quando encarnados, a pobreza, a miséria, as
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doenças e as calamidades nos atingem, aflige e massacra a nós e a nossa família. E então, qual é o
socorro e o auxílio que nos vêm das "Falanges da Luz"?! gritava, intimidando a todos com sua
veemência. Nenhuma!!! Esses miseráveis têm o prazer de nos ver sofrer e na desgraça! Qual a ajuda
que tivemos? Sem esperar por uma resposta, continuava: Nenhuma! A ajuda que eles nos dão é
consolação barata, dizendo que temos de aceitar a dor, o sofrimento, a angústia e o desespero.
Nossa "Organização" proporciona aos seus membros e simpatizantes a verdadeira ajuda e o total
auxílio para uma vida melhor, maisfarta. Custe o que custar! Vocês, encarnados, serão na Terra a prova
dafelicidade e da fartura. Vocês terão a ajuda, o amparo, a nossa força! Nesse instante, uma ovação dos
presentes o aclamou. Fortalecido pelo apoio, ele continuou: Nós, espíritos dessa "Organização",
seremos fiéis e protetores! Em meio ao murmurinho que se fez, ele indagou: Alguém tem alguma
pergunta?
Um encarnado, em meio à grande aglomeração, um tanto vexado, questionou:
Desculpe-me, mestre, mas não estamos pecando quando desejamos a força, isto é, por
intervenção de vocês conseguir o que talvez não era para ser nosso?
Pecado?! vociferou o líder. Pecado é você permitir-se viver na miséria do mundo! Nós
somos donos da nossa vida! Vamos nos ajudar uns aos outros! Vamos nos irmanar!
Alice sentia-se confusa, mas nada questionou até então. Sissa, mais animada, argumentava:
Conseguimos nosso objetivo e haveremos de gozar a verdadeirafelicidade.
Como vão nos ajudar? perguntou Alice.
Serei a sua "porta-voz" aqui na espiritualidade. Nossos desejos se igualam e nossos objetivos são
os mesmos.
Como vou pagar tudo isso? O que eles pedem?
Nossa fé. Veja, Alice, eles têm razão. Qual foi a justiça que se realizou a seu favor? Lembra-se da
vida miserável que levava.
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Não sei, não duvidou a encarnada.
Se você ficar com medo, Alice, sempre estará na miséria.Após alguns minutos, Alice indagou:
Como chegamos até aqui? Vejo tudo tão bem guardado.
Ganhamos um "passe livre" quando você foi pedir ajuda aos espíritos. Foi assim: você chegou lá e
contou todos os seus problemas edesejos. Como eu sou o único espírito que se preocupa com você,
os trabalhadores da espiritualidade me informaram tudo o que era necessário saber enquanto você ouvia os
encarnados. Depois que você aceitou levar as encomendas solicitadas, me deram autorização para trazê-la
aqui. Nosso ingresso para entrar nesse lugar é esse desenho na palma da sua mão.
Alice estendeu a mão e pôde comprovar linhas traçadas como figuras geométricas.
Como isso está aqui?
Esse "ingresso" foi gravado em uma das vezes que fomos lá.Ambas continuaram ali boa parte do
tempo. Elas aguardavam algum assistente daquele líder que viria atendê-las e oferecer informações.
Por não atender às inspirações que recebera e não ter uma opinião forte para recusar acompanhar sua
cunhada, Raquel, também em desdobramento pelo estado de sono, participava daquela reunião, só que em
um estado assonorentado e ainda mais confuso. Ela recebera fluidos pesados, pois era importante que não
estivesse lúcida. Se estivesse desperta como Alice, seria bem provável que oferecesse resistência e saísse
dali.
Dois espíritos que auxiliavam aquele líder sustentavam Raquel que pendia a cabeça como se estivesse
desfalecida. Não se lembraria de nada, mas recebia as vibrações e as impressões funestas de tudo e
sofreria, mais tarde, com as consequências de sua invigilância. Seu mentor pessoal não era visto, mas,
junto com outros benfeitores, acompanhava de perto sua pupila, deixando tudo aquilo acontecer a fim de
que Raquel aprendesse a ser firme em suas opiniões e não se deixasse envolver em situações como
aquela.
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Ele poderia interferir, no entanto não o fizera.
Aquela experiência traria um desconforto imenso para Raquel que, com certeza, aprenderia, a duras penas,
ligar-se a Deus e fazer sua opinião imperar diante de determinadas circunstâncias duvidosas.
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Capítulo 4
O passado angustioso
Na manhã que se fez radiosa, Raquel despertou confusa e amargurada. Algo estava errado! Lembrou-se
do que Vagner lhe fizera e sentiu-se como que enojada com aquela recordação. Mais do que nunca uma
angústia a castigava e, como uma dor, seu peito apertava incomodando-a muito.
Na cozinha, ao encontrar com seu irmão e sua cunhada, Raquel nada comentou. Arrumou-se logo e foi
para o trabalho bem mais cedo, sem nem mesmo fazer o desjejum.
Alice também não se sentia normal, um cansaço a dominava. Parecia que não tinha dormido. Dores
musculares se estendiam por todo o seu corpo e um mau humor passou a ser expresso.
Que noite horrível! reclamou Alice ao esposo. Dormi tão mal. Tive um sono confuso...
perturbado.
O que você sonhou?
Sei lá... Era tudo muito estranho. Eu lembro de poucos detalhes.Vi um lugar que parecia uma
aldeia da Idade Média. Só que havia váriascavernas nas rochas que nos circundavam. Parece que vi
tochas acesas eum homem grandão falando muito.
O que ele falava? interessou-se Marcos.
Não sei. Ah, credo! Não quero me lembrar disso. Nem parece que eu dormi. Estou tão cansada.
Marcos aproximou-se da esposa, abraçou-a com carinho e lhe disse generoso:
Calma, Alice, todo esse cansaço vai passar. Lá na empresa tudo estáindo muito bem. Daqui a
algum tempo eu creio que você poderá parar de trabalhar e aí tudo será como antes. Você voltará a ficar em
casa e tranquila.
Alice reagiu imediatamente. Afastando-se do abraço, com o olhar expressando rancor, semblante sisudo,
revidou ao que acreditou ser uma audácia de seu marido.
Nunca! Não vou parar de trabalhar, nunca! O que você está pensando? Acredita que vai me
dominar novamente deixando-me dependente das suas migalhas? Pensa que eu esqueci o dia em que me
chamou de improdutiva?
O que é isso, Alice? surpreendeu-se Marcos, com amargo desapontamento.
Olha aqui, meu filho! Se você está pensando que eu vou voltar aviver à sua custa, está muito
enganado. Tenho capacidade e valor, vou lhe provar isso.
Marcos ficou perplexo, incrédulo! Aquela reação inesperada da esposa o fez perder as palavras.
Com modos rudes e um tanto violentos com os objetos da casa, ela se arrumou, pegou sua bolsa e foi para
o trabalho pensando, contrariada, nas ideias de seu marido. Alice sentia-se indignada! Sissa, sempre
próxima, continuava a orientá-la e a envolvê-la.
Isso mesmo! Você não é escrava dele. Você tem capacidade e valor,sim.
Alice não podia ouvi-la, entretanto, ininterruptamente, as impressões e os desejos daquele espírito a faziam
repudiar o marido.
Enquanto isso, na empresa onde Raquel trabalhava, mesmo sem esperar pelo início do expediente,
Alexandre já se encontrava em atividade, concentrando toda sua atenção em alguma tarefa que ficara
pendente. Em dado momento, ele se surpreendeu ansioso desejando que Raquel chegasse logo. Precisava
vê-la o quanto antes. Mas, contrariado consigo mesmo, às vezes relutava com as próprias ideias.
Suspirando profundamente, deixando-se recostar na cadeira com o corpo largado, Alexandre cerrou os
olhos por alguns instantes e refletiu:
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"O que será que está acontecendo comigo? Pareço um adolescente". Recordando a conversa que tivera
com Raquel, temeu que estivesse triste com ele, afinal ela era muito sensível. "Será que ela está magoada
comigo? Preciso saber. Preciso ajudá-la a sair da casa de seu irmão. Enquanto estiver morando lá não terá
sossego. Não poderá pensar em outra coisa... nem em mim. Deus! O que estou imaginando?!" Esfregando
o rosto com as mãos, apoiou os cotovelos sobre a mesa à sua frente e, ainda com as mãos cobrindo o
rosto, pediu em pensamento: "Deus, ajude-me. Não quero sofrer novamente. Não posso estar gostando
dela. Ajude-me".
Naquele momento, Alexandre assustou-se com a aproximação de Vagner, que o cumprimentava com uma
pergunta:
E aí? Caiu da cama? Ao encará-lo surpreso, o colega tornoumais cordial: Bom dia,
Alexandre!
Bom dia.
Caiu da cama, Alexandre?
É... Tinha algumas pendências e resolvi chegar mais cedo.
Como está se sentindo com a mudança de lugar e mais próximo da Raquel?
A mudança de lugar não interferiu em nada, mas o remanejamento de atividade está me fazendo
penar um pouco.
E a Raquel?
Não sei. O que tem ela? respondeu Alexandre com uma pergunta e começando a se sentir
irritado com aquela conversa.
Não se faça de bobo, Alexandre. Como ela está se comportando?Deixou de ser "durona"? Está
mais flexível com você?
Alexandre fez silêncio por alguns instantes, abaixando o olhar e pensando em uma resposta conveniente,
entretanto, antes que refletisse, Vagner insistiu:
Cá pra nós, somos homens e... sabe como é, esse tipo de mulher misteriosa e difícil é só para fazer
charme e chamar a nossa atenção. Após breves segundos comentou: Ontem eu tentei "chegar"
nela,mas não deu.
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Não tolerando a ironia de Vagner, Alexandre procurou se conter, falando sério e quase irritado:
Vagner, é o seguinte: eu não estou aqui para conquistar ou seduzir ninguém. Estou preocupado
com o meu trabalho, quero aproveitar as oportunidades e, principalmente, aprender com os desafios.
Resumindo: quero crescer profissionalmente. Se existe gente fazendo cena de mistério, aqui não é o lugar
adequado. Raquel faz da vida dela o que quiser. Ela não me diz respeito e, como já lhe disse, o caminho
está livre. Não estou interessado. Se você tiver capacidade, conquiste-a.
Ofendido, Vagner revidou com palavreado vulgar, duvidando da moral de Alexandre por não estar
interessado na colega. Irritado, Alexandre levantou-se rapidamente, agarrou-o pela camisa e, quando
armou o punho fechado para acertá-lo, Raquel, que acabava de chegar, foi ligeira, segurou-o pelo braço,
quase se pendurando em Alexandre e colocando-se entre eles, dizendo:
O que é isso? O que está acontecendo aqui? indagou assustada.Alexandre estava furioso,
ofegante e com um suor frio gotejando no
rosto. Ele trazia no olhar uma raiva incontrolável. Raquel, ao encarar Vagner, lembrou-se do que ele lhe
fizera no dia anterior e o odiou por aquilo. Sem perceber, ela apertava o braço de Alexandre sem largá-lo.
Vagner, empalidecido e com a respiração alterada, ajeitou a roupa e temeu que ela contasse algo, isso
irritaria ainda mais Alexandre que certamente reagiria. Cabisbaixo, retirou-se sob a mira dos olhares
brilhantes, fulminantes de ambos.
Como o expediente ainda não tinha começado e a cena foi rápida, ninguém percebeu o que se passou ah,
pois havia poucos funcionários no setor. Segundos depois, trêmula, Raquel ainda se fazia em pé e
Alexandre, agora muito pálido, atirou-se na cadeira e, ofegante, cerrou os olhos. Aproximando-se do
colega, ela o ouviu falar quase sussurrando:
Preciso de um pouco d'água.
Raquel rapidamente trouxe-lhe um copo com água. Assustada, ela observou quando Alexandre,
trêmulo,
mal conseguiu abrir uma gaveta
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e apanhar um vidro escuro, sem rótulo, de onde tirou dois comprimidos, ingerindo-os com rapidez.
O vidro aberto tombou na gaveta, espalhando algumas cápsulas pelas mãos vacilantes do rapaz. Calma,
Raquel as ajuntou, guardando-as novamente no frasco. Agora, fitando Alexandre por alguns minutos,
vendo-o com os olhos fechados e praticamente com o corpo largado na cadeira, ela percebeu sua palidez
acompanhada de um suor frio que umedecera sua face. Depois de alguns segundos, suspirando
profundamente, ele ergueu o tronco e, ainda sentado, ajeitou-se na cadeira, esfregando o rosto com as
mãos e alinhando os cabelos, recompondo-se um pouco mais. Vendo-o mais refeito, Raquel perguntou com
voz suave, quase sussurrando:
Sente-se melhor?
Alexandre, engolindo a seco, ergueu o olhar encarando-a e, forçando um sorriso, afirmou:
Estou bem. Desculpe-me.
Ainda nervosa, mas procurando se conter ao máximo, com cautela ela perguntou:
O que estava acontecendo, Alexandre?
Ele se sentia tonto e precisava respirar. Tranquilo, mas exibindo ainda certo tremor nas mãos fortes, avisou:
Raquel, eu preciso de ar. Vou dar uma volta... Acho que vou lápara o pátio, no estacionamento.
Ainda faltam cinquenta minutos para o horário. Vou com você,também estou nervosa.
O rapaz, com o semblante sério, saiu na frente seguido por Raquel. Pegaram o elevador e o silêncio foi
absoluto. A moça olhava-o assustada, temia que ele passasse mal, pois pouco podia fazer. Alexandre era
alto e forte. Vez ou outra ele esfregava as mãos que traziam, além da palidez, um suor gelado.
Já no estacionamento, caminharam vagarosamente sob as árvores na calçada estreita entre os carros que
se estacionavam a quarenta e cinco graus, sem dizerem nada. Após alguns instantes, ao chegarem perto
de
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um banco, Alexandre parou e fez um gesto para que Raquel se sentasse. Ela assim o fez e ele se
acomodou a seu lado. Quebrando o silêncio, Raquel perguntou:
O que aconteceu? Você está branco feito cera. Ainda não estábem?
Já estou melhor. Pouco depois, desabafou irritado: Desgraçado! Ele me paga.
Você e o Vagner são amigos. O que aconteceu para quase bater nele?
Se não fosse você, eu iria quebrá-lo ao meio. Após pequenapausa avisou: Temos que
tomar cuidado ao falar com os outros, Raquel. Tem coisa que não se diz. Não se deve mexer com a moral
deninguém.
O que ele falou que o deixou assim? Fiquei preocupada. Penseique você fosse desmaiar.
Alexandre olhou-a com ternura e procurou explicar:
Não vou repetir o que ele me disse. Não tenho com você liberdade para falar as mesmas
palavras que aquele crápula usou. Foi uma conversa de homem e ele... Bem, ele me ofendeu moralmente,
duvidando da minha capacidade, da minha integridade. Entende?
Ora, Alexandre, entre amigos há brincadeiras como essas.
Eu não tenho amigos. Não confio em ninguém.
Raquel se calou amargurada, lembrando da agressão que sofrera no dia anterior. O colega percebeu algo
estranho e perguntou:
O que houve?
Nada.
Você também não gosta dele, não é? Sem obter respostas, ao lembrar, perguntou: Ele me
falou que "chegou" em você ontem. O que aconteceu? Raquel abaixou a cabeça e não se manifestou.
Curioso e interessado, Alexandre insistiu: Ele está "dando em cima" de você?
Raquel estava quase chorando. Lágrimas brotavam em seus olhos, mas sua posição dificultava que
Alexandre visse.
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Você está melhor? perguntou para dissimular.
Sim. Já estou bem respondeu sorrindo suavemente.
O que você sentiu? O que era aquilo que estava tomando?Agora, com o semblante mais
tranquilo, quase sorrindo, ele a olhou
e ajeitou-se melhor, tomando-lhe as pequenas mãos e colocando-as entre as suas. Raquel, séria, pareceu
repelir a atitude quando se enrijeceu erguendo o corpo e ajeitou-se no banco puxando vagarosamente suas
mãos. Alexandre, deixando-a à vontade, percebeu a reação, mas nada disse a respeito e comentou:
Tenho uma história longa e... Bem, não sei se você quer ouvir.Ambos se entreolharam. Alexandre
parecia suplicar com o olhar a
atenção da jovem. Ele estava angustiado, magoado. Jamais confiara a um conhecido todos os seus
pesares, todos os seus sentimentos mais puros.
Eu quero saber. Conte-me, por favor pediu com voz suave eolhar atento.
Mais à vontade, Alexandre iniciou:
Anos atrás, por uma grande oportunidade de emprego, eu fuitrabalhar em outra cidade. O salário
era ótimo, mas a viagem diáriaseria cansativa, quase impossível de suportar. Foi aí que eu e mais
trêscolegas alugamos uma casa e passamos a morar juntos. Ganhei umbom dinheiro. Fiz uma excelente
economia e, no final de uns quatroanos, retornamos. Quando regressei, não consegui mais morar
commeus pais. Ficou estranho. Com a desculpa de querer morar perto do serviço, eu e os mesmos amigos
alugamos um apartamento e voltamos a morar juntos. Dividíamos as despesas e pagávamos também
umaempregada para cuidar das coisas. Nessa época, comecei a namorar firme com uma moça que já
conhecia há alguns anos, pois ela morava próximo da casa dos meus pais. A essa altura da conversa,
Alexandre engoliu a seco e se deteve. Suspirou profundamente, esfregando suavemente as mãos, e depois
prosseguiu: Nosso namoro era sério.Depois de alguns meses ficamos noivos... Após breve pausa,
continuou: Com o dinheiro que economizei, comprei um bom aparta-
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mento. Apesar de esse imóvel ser novo, acreditamos que uma pequena reforma seria necessária para o
termos a nosso gosto. Meu pai tem uma boa situação financeira e a reforma seria o seu presente de
casamento. Ele me ajudou muito.
Alexandre fez longa pausa. Raquel o olhava firme e percebeu que seus olhos brilhavam, quase se
empoçando em lágrimas, quando ele disse:
Eu a amava muito. Muito mesmo. Apeguei-me tanto a ela que,em tudo, pedia a sua opinião. Eu
acreditava que não poderia viver sem a Sandra. Marcamos a data do casamento, enquanto mobiliávamos
oapartamento. Nessa época eu ainda morava com meus colegas. Entre eles, um era muito especial. Amigo
mesmo. Seu nome era Júlio.
Raquel estava atenta e não se incomodava com as pausas, cada vez mais longas, que ele fazia.
Um dia tornou Alexandre, com voz grave , percebi a Sandramuito diferente. Nervosa. Não me
importei, achei que fosse por algumacoisa da mobília que haviam entregado errado. Sabe como é, toda
noivafica exigente e Sandra não seria diferente. Passados uns dois dias, estávamos no apartamento em
que morava junto com os colegas, mas eles não estavam. Sem que eu esperasse, Sandra falou: "Estou
grávida". Foi umchoque! Um susto feliz! Nesse instante, Alexandre sorriu e confessou: Verdade. Fiquei
feliz mesmo. Eu a abracei e a beijei. Estava contente... Realizado! Apesar disso, percebi sua frieza e
indiferença. Sandra não estava contente. Ela ficou nervosa com a minha reação. Afastando-se de mim, ela
disse que não queria aquele filho. Conversamos muito e Sandra estava irredutível.
Alexandre olhou para o céu a fim de dificultar que as lágrimas que brotaram corressem por sua face e,
tentando disfarçar, virou-se respirando profundamente. Raquel permanecia calada e ele prosseguiu:
Nunca tinha visto minha noiva tão irritada, tão agressiva, tão cruel. Implorei para que ela deixasse
meu filho nascer. Sandra não me respondia nada e... Passamos um péssimo fim de semana. Domingo à
noite, não aguentei guardar comigo aquela história e acabei
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desabafando tudo com meu amigo, o Júlio, que ficou tão surpreso quanto eu.
Sandra estava de férias e, na segunda-feira eu queria falar com ela, mas tinha que ir trabalhar, havia algo
muito importante para fazer no serviço naquele dia e tive que ir. Após o almoço, eu estava com uma dor de
cabeça insuportável. Tomei um remédio, mas não adiantou, tive que ir embora. Foi então que pensei em
chegar em casa, ligar para ela e pedir que viesse me ver para conversarmos. Eu não estava bem e
precisava dela. Mas, ao chegar em casa, quer dizer, ao apartamento onde eu morava com os colegas, bem
mais cedo do que de costume, percebi algo diferente. Havia uma movimentação em um dos quartos e
pensei até que fosse algum ladrão. Entrei sorrateiramente e surpreendi minha noiva e meu melhor amigo
deitados juntos... Muito àvontade...
A voz de Alexandre embargou. Ele parecia ainda sofrer com aquela decepção. Após longo silêncio, Raquel,
sentindo seu coração apertado, perguntou:
O que você fez?
Tomando fôlego, curvando-se, entrelaçando as mãos à frente dos joelhos e prendendo o olhar em algum
ponto do chão, Alexandre falou mansamente:
Fiquei furioso. Verdadeiramente fora de mim. Invadi o quarto,esmurrei Júlio o quanto pude. Sandra,
enrolada em um lençol, tentoume impedir e... Acabei dando-lhe um tapa muito forte. Ao vê-la caída
echorando de um lado e Júlio, muito machucado, do outro, fiquei atordoado. Só então me dei conta da
situação. Perturbado, decepcionado, ferido, saí sem rumo. Quando dei por mim, estava diante da casa de
meuspais. Senti que algo estava errado comigo. Comecei a passar mal. Entreie minha irmã veio ao meu
encontro. A última coisa que me lembro é do rosto de Rosana, minha irmã, falando algo que eu não ouvi.
Acordei unstrês dias depois num hospital. Tive uma parada cardíaca. Se não fossem os primeiros socorros
prestados por um policial que soube o que fazer,talvez eu não tivesse resistido.
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É por isso que precisou do remédio? perguntou surpresa.
Sim. Eu tive uma parada cardíaca, resultado de uma tensão emocional gerada por uma irrigação
sanguínea insuficiente no músculo cardíaco respondeu Alexandre sem encará-la, e na mesma posição.
Continuando em seguida: Nunca percebi nada. Nunca precisei de ummédico. Alexandre riu
forçosamente e lembrou: Praticava esportes, nunca fumei e não bebo, mas tinha o coração fraco e não
sabia. Era uma inflamação das membranas das paredes do músculo cardíaco que eu ignorava ter.
Brevemente explicou: Para problemas cardíacos existem medicamentos, que aumentam a força das
contrações cardíacas,chamados "cardiocinéticos". Como também os "cardiotônicos", que contêm
adrenalina e coramina para estimular a função do músculo cardíacoenfraquecido. Eles agem sobre os
centros nervosos que são dependentes da pulsação cardíaca. Isso tudo regula o ritmo do coração.
Virando-se para Raquel, perguntou brandamente: Entendeu por que eu precisei tomar aqueles
medicamentos?
Raquel afirmou com um aceno de cabeça e ele continuou:
Um mês depois, eu estava na casa dos meus pais me recuperando ainda. Ninguém sabia do
flagrante que eu dera em Júlio e Sandra. Ospais dela me visitavam com frequência sem entender a
distância que afilha mantinha de mim diante do meu estado de saúde. Perguntaram algumas vezes o que
tinha acontecido entre nós, mas não insistiram quando silenciei, talvez por causa de minhas condições
físicas. Quantoa ela, nem sei o que dizia a eles. Passados alguns dias, ao me ver a sóscom o pai dela, criei
coragem e contei tudo o que tinha acontecido, faleida traição, pois a peguei na cama com meu melhor
amigo... Nossa,pensei que o homem fosse enfartar. Ele não me disse nada. Transtornado, seus olhos
ficaram cheios de lágrimas e ele emudeceu. Estapeou-meas costas fortemente, parecendo ser um gesto de
solidariedade, entendendo a minha situação, e depois foi embora.
Eu já estava bem melhor nessa época, até voltaria a trabalhar napróxima semana, mas no dia
seguinte a esse episódio, eu estava assistindo à televisão, tentando arrancar da lembrança a cena de
traição, que era
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constante, quando ouvi um murmurinho e a voz de Rosana, minha irmã mais nova, um tanto irritada.
Levantei-me e fui ver do que se tratava. Sandra falava alto, estava irritada e à minha procura; Rosana
tentava detê-la.
Quando me aproximei, ela me jogou a aliança no rosto e falou:"Toma! Eu odeio você! Quero que
morra!" Com o olhar transbordando rancor, ainda disse ironicamente: "Sabe o filho que estou
esperando?Não é seu, é do Júlio. Você não é homem para isso. Eu sei por que vocêgosta de viver com
rapazes. Estou sabendo do seu caso com o Celso eque você é 'mulher' dele". Ensurdeci. Senti o sangue
fugir do meu rosto e, novamente, acordei no hospital.
Decepcionei-me tanto! A cena da traição era constante, viva na minha mente! Eu não conseguia
me livrar da imagem de Sandra me dizendo tudo aquilo. Eu a amava, ainda. Não suportei tanta
pressão!Parecia que podia ouvir a sua voz repetindo que o filho não era meu equê...! Você não imagina
como foi, Raquel. Eu parecia ver, a todo instante, meu amigo e minha noiva se amando, se beijando
abraçados.Fiquei louco! Fui fraco, cedi aos impulsos e, mesmo internado, tentei osuicídio. Breve pausa e
completou envergonhando-se da confissão: Um enfermeiro me impediu por duas vezes.
Como? perguntou Raquel, surpresa pelo relato.
A primeira vez foi cortando os pulsos. O homem chegou atempo e, bem, fiquei com essas
cicatrizes de recordação explicoumostrando o pulso. A segunda vez, quase consegui. Sabe, Raquel,a
ideia de morte era fixa. Eu tinha que me matar. Eu queria morrerpara me livrar das imagens que viviam na
minha mente. Por isso,tentei me enforcar no banheiro e pelo fato de não haver muita distância entre o
registro e o chão, por causa da minha altura, amarrei umaponta do lençol rasgado e torcido o mais alto que
pude e a outraponta no meu pescoço e usei meu peso para me asfixiar. Fui ficandotonto, sentindo um
ensurdecimento, enquanto a visão escurecia descreveu com verdadeiro drama. Tive uma experiência
que jamaisvou esquecer. Em poucos segundos, que pareceram eternos, ouvi gri-
tos horripilantes, vi vultos que cada vez se tornavam mais nítidos, fixos, horrorosos! Fiquei com medo e
tentei reagir. Mas não dava. Meus braços não se moviam, não obedeciam. Tentei gritar, mas minha voz não
saía. Não conseguia mais ficar em pé, pois não sentia minhas pernas. Experimentei uma dor horrível no
corpo inteiro. Foi tenebroso! Eu quis voltar atrás e não pude...! Após ligeira pausa, mais calmo, ele
continuou: Dificilmente eu conseguirei, um dia, traduzir em palavras aqueles segundos de horror. Não há
linguagem que descreva tal emoção ou sensação macabra. Eu acho que Deus teve piedade de mim e o
mesmo enfermeiro que me socorreu na primeira vez chegou ao banheiro. Ao me ver roxeando, ele me
soltou e me ressuscitou.
Acabaram me transferindo para a ala psiquiátrica. Mesmo eu contando tudo o que passei e o medo que
senti, não acreditaram em mim. Meus pais, visando minha segurança, me internaram em uma clínica de
repouso por um mês. Fiquei sob vigilância ferrenha. Saí de lá e, a pedido deles, fiz terapia e... Bem, estou
vivo, né!
A essa altura da conversa, Alexandre sorriu. Raquel estava séria e incrédula.
Bem, essa é minha história, Raquel. O resto é simples. Ah! Ia me esquecendo. Júlio também me
procurou e me agrediu com palavras, tentando mexer com meu brio. Soube que Sandra tirou o filho que
esperava. Eu não sei lhe dizer se aquele filho era meu. O pai dela a expulsou de casa. Eles tiveram brigas
sérias e ela foi morar com o Júlio. Não tive mais notícias deles.
Assim que me recuperei, voltei a sair da casa dos meus pais porque, depois de tudo, não conseguia
encarar alguns parentes que iam lá pelo prazer de me ver naquela situação, pois a Sandra, talvez irritada
por eu tê-la agredido, me difamou para todo mundo. Principalmente para minha família, alguns tios e
primos. Disse que eu não era homem, inventou que eu tinha um caso com aquele colega, falou que eu não
era pai do filho que ela esperava... Resumindo, foi o maior escândalo.
Alexandre parou, olhou para Raquel, criou coragem e completou:
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Sandra ainda contou que começou a gostar do Júlio porque foi ele quem a consolou quando ela
descobriu que eu era homossexual. Aí eles se apaixonaram.
Raquel ficou perplexa. Paralisada. Alexandre ainda afirmou:
Nunca pensei que alguém pudesse mentir tanto e ser tão cruel com quem... O rapaz deteve as
palavras, parecendo ainda magoado eferido com tudo aquilo.
Raquel, num impulso, sem perceber, tocou-lhe o ombro com suavidade, deixando a mão repousar sobre ele
e, com a voz macia, afirmou compreendê-lo:
Eu sei o que é isso. Sei o que é encontrar alguém cruel e mentiroso.
Sabe?
Ser acusada de algo e não ter como se defender, ser agredida sem merecer, ser rejeitada... Ah!
Sim, eu sei o que é isso.
Alexandre se voltou para ela e a encarou, dizendo:
Não posso negar que amei muito a Sandra. Fiz tanto por ela. Se fosse necessário, eu lhe daria
minha vida. Tudo o que sentia se transformou em decepção e mágoa. Sinto um asco... Jurei a mim
mesmo nunca mais amar alguém. Sério, com a testa quase franzida e os olhos brilhantes, afirmou: Não
quero outra mulher na minha vida.Você não imagina como sofri. Nesses últimos dois anos, necessitei
demuita força de vontade para continuar vivendo. Deus bem sabe. Sinto-me amargurado. Às vezes acho
que ainda não encontrei uma razão, um motivo... Sinto-me vazio, dolorido. Por isso digo que não tenho
amigos, que é preciso tomar cuidado ao falar sobre a moral dealguém.
Embora Raquel não parecesse perturbada, seu olhar expressava uma tristeza infinita, como se recordasse
de algo. Alexandre sentiu que ela fora a única pessoa capaz de entendê-lo. Por um segundo ele se pegou
admirando-a de novo, sem que se forçasse a isso. Incomodado com o pensamento, examinou o relógio,
assustando-se:
Nossa! Estamos em cima da hora.
Já?!
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Vamos? disse levantando-se.
Claro.
Alexandre sentia-se bem melhor após aquele desabafo. Desde quando tudo aquilo lhe aconteceu, era a
primeira vez que falava sobre o assunto, tão detalhadamente, com alguém. Eles caminharam lado a lado e
após alguns minutos de silêncio, Raquel, sempre delicada e naturalmente sensível, perguntou:
Por que tira o rótulo do vidro de remédio?
Para evitar perguntas. Quando alguém questiona, digo que são vitaminas. Não gosto de tocar
nesse assunto. Vão perguntar: "Por quê?Como começou? O que aconteceu?"
Mas não seria bom alguém saber que você precisa desse medicamento?
Você! Você sabe, agora respondeu satisfeito pela preocupação da amiga.
Raquel sorriu e eles voltaram para a seção. No decorrer do dia, Alexandre ficou pensativo. Era estranho
confiar tal segredo a alguém, nunca fizera isso. Estava cedendo aos seus impulsos e não sabia dizer se
isso seria bom.
"Será que Raquel vai me encarar de outro jeito?", pensava ele. "Será que é minha amiga? Passei a
acreditar que não tenho amigos, e agora?"
Por um segundo, Alexandre se arrependeu por ter contado sua história, mas era algo que não poderia
mudar. Um pouco mais tarde, passando a observar Raquel, que parecia totalmente voltada para o trabalho,
ele pensava:
"Ela está séria demais. Será que pensa em mini e em tudo o que contei?"
Naquele instante Raquel precisou sair de sua mesa, pois o diretor a chamou em outra sala. Pouco depois, a
jovem retornou cabisbaixa. Seus olhos vermelhos e brilhantes denunciavam choro. Alexandre não conteve
seus impulsos; empurrou sua cadeira para próximo da amiga e questionou, quase sussurrando, para que
os outros não ouvissem:
Ei, Raquel! O que foi?
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Ao tentar encará-lo, ela não conseguiu deter as lágrimas que começaram a rolar.
Raquel! tornou murmurando preocupado. O que aconteceu?
Eu não sei... respondeu a jovem entre os soluços.Alexandre tentava ser discreto a fim de não
atrair a atenção dos outros
colegas. As divisórias que separavam os funcionários não tinham altura suficiente que proporcionasse
muita privacidade a ponto de conter o som.
Como, não sabe? insistiu o amigo. Aconteceu alguma coisa. Você não iria chorar por nada.
Estou morrendo de raiva. É isso.
Foi o senhor Valmor, não foi? A moça acenou com a cabeça e ele sussurrou: Não se
amargure por pouca coisa.
Com os olhos banhados de lágrimas, tentando secar o rosto, Raquel o encarou e o rapaz disse:
Sabe, chefes como ele, que exigem tudo com imposição, orgulho,cara feia e voz rude, são criaturas
incompetentes e incapacitadas quenecessitam se impor constantemente para se sentir temidas, pois
normalmente não têm valor, capacidade nem moral. Esse é o único jeito de eles terem auto-estima.
Ela perdia o olhar e, pensativa, deixava transparecer certa mágoa.
Espere pediu Alexandre, que se levantou e retornou logo trazendo um copo com água e dizendo:
Toma. Isso vai acalmá-la um pouco.
Com as mãos trêmulas, Raquel tomou poucos goles e agradeceu ao amigo:
Obrigada, Alexandre. Mais refeita disse: Estou melhor.Depois eu conto o que aconteceu,
senão sou capaz de começar a chorarnovamente.
Tudo bem. Depois conversamos afirmou sorrindo e entendendo.Raquel esboçou um sorriso
forçado no rosto avermelhado pelo choro, enquanto o rapaz se afastou e retornou para o seu lugar.
No final do expediente, restavam somente os dois como funcionários no grande setor da empresa. O rapaz,
um tanto entediado com o que
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fazia, passou a observar a moça, que parecia compenetrada e até nervosa. Mais à vontade agora, por não
haver ninguém por perto e somente, a certa distância, um segurança lendo um jornal, Alexandre
aproximou-se dela e falou em tom de brincadeira:
Com tanta hora extra assim, você vai ficar rica.
A colega sorriu, tirando do rosto o semblante preocupado e sisudo.
Estou consertando a minha "incompetência".
Você está mais calma?
Tenho que estar.
O que aconteceu?Raquel sorriu e contou:
O senhor Valmor me humilhou, me constrangeu e...
E...? insistiu diante da pausa.
Ah! Ele só faltou me chamar de burra reclamou chorosa.
Ele não pode fazer isso disse o amigo mais sério e atento aofato.
Pois fez. E na frente de todo mundo na reunião que estava acontecendo.
Como foi?
A história é longa, Alexandre. Você vai se cansar.
Ele pensou um pouco, esboçou um sorriso gentil e falou:
Hoje eu precisei de um ouvido emprestado para desabafar e você não se cansou. Cansou?
Não. Claro que não. Mas é diferente.
Aproximando-se mais, ele pôs-se em frente dela e, virando-lhe a cadeira, insistiu:
Eu quero saber. Conte-me, por favor sorriu usando as mesmaspalavras que ouvira dela
quando a fez de confidente. Meio sem jeito,Raquel encorajou-se e relatou:
Foi mais ou menos assim: a Rita saiu de férias. O serviço dela jáestava parado havia uns três
dias. O senhor Carlos me chamou e me entregou o serviço da Rita. Sabe aquelas planilhas de estatísticas
quemal aprendi a fazer?
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Sei.
Pois bem, aquilo foi passado para a Magda e eu tenho que ensiná-la. Veja, eu não sei nem pra
mim. A Rita lida com sistemas gráficos e eunão sei nada disso. Então, o que aconteceu: o serviço que me
passaram ontem, já estava atrasado, e hoje, na reunião, eu não tinha nada para apresentar. O senhor
Valmor ficou furioso e disse, olhando para os doisdiretores financeiros: "Perdoem a incompetência da nossa
funcionária".E... Raquel deteve as palavras; seus olhos começaram a marejar.
E...? perguntou Alexandre.
Ai, que ódio! Debruçando-se sobre sua mesa, Raquel começoua chorar, parecendo mais ser
de raiva do que pela vergonha que passou.
Alexandre, muito paciente, aproximou-se ainda mais, dizendo:
Não fique assim, Raquel.
Ele ia acariciá-la com um afago nos cabelos, mas deteve-se alerta, pois se lembrou de que a amiga parecia
não gostar de ser tocada. Observando que ela não tinha visto seu gesto, ficou despreocupado. Com a
delicada voz abafada e rouca por estar com o rosto entre os braços, ela perguntou:
Como, não ficar assim? Ele quer isso tudo para segunda-feiracedo.
Eu posso ajudá-la. Isso é, se você quiser e deixar, lógico.
Como?
Chegue pra lá pediu o amigo animado. Resolverei isso em dois minutos. Não sei se você
sabe, mas já fiz esse serviço antes.
Raquel afastou-se, parou de chorar e ficou olhando o colega que, pacientemente, realizava seu trabalho e a
ensinava. Atenta, a moça permaneceu tranquila e aprendendo. Algumas vezes, Alexandre ria e atéfazia
brincadeiras com alguns erros que Raquel cometera. Ela também achava graça e ria junto. E foi assim que
não perceberam as horas passarem. Ao terminar, Alexandre, sorridente, ainda brincou:
Pronto! Prontinho! Pode fazer o cheque.
Cheque?
Claro! Achou que eu ficaria aqui de graça?
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Mal tenho onde morar e você ainda quer tirar dinheiro de mim? Após o riso descontraído,
Raquel se assustou: Nossa! Já é essa hora?
Não se preocupe. Hoje é sexta-feira. Amanhã você pode dormir até mais tarde.
Você é que pensa respondeu, guardando rapidamente suascoisas, enquanto olhava o relógio
e dizia: Estou preocupada com oônibus!
Calma... tentou dizer Alexandre quando foi interrompido.
E você? Ficou até agora por minha causa! exclamava nervosa.
Raquel, o que é isso? Não estressa e fique tranquila. Estou decarro e vou levá-la.
Não! respondeu num grito u e Alexandre também começou aficar nervoso.
Como não? O que te deu para ficar assim?
Raquel não parava. Exibindo uma agitação quase incontrolável, arrumou sua mesa, pegou suas coisas e
disse, parecendo não tê-lo ouvido:
Obrigada, Alexandre. Depois conversamos. Tenho que ir, pois está tarde e...
Alexandre, cismado com aquele comportamento e pressa, parou na frente dela impedindo sua passagem.
Delicadamente, segurou-lhe o braço e, com o semblante sério, quase sisudo, voz baixa e firme, disse
determinado:
De jeito nenhum! Não há mais condução a essa hora. Você não vai sair daqui sozinha, Raquel. Eu
não posso deixar.
Nervosa, com os olhos marejados, Raquel puxou o braço que ele segurava e respondeu com a voz
embargando:
Você não vai me levar em casa.
Por quê? decidido, questionou austero.
Não! ela gritou alterada.
Sua agitação o incomodava. Ele não compreendia e insistia:
Raquel, calma. Por que esse drama? Se me explicar, talvez eu entenda e a ajude.
Tentando passar por ele, que estava à sua frente, ela falou:
Tenho que ir. Deixe-me passar, Alexandre.
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Sem exibir agressão, ele a segurou por ambos os braços com generosidade. Raquel lembrou-se do que
sofrera no dia anterior e quase gritou:
Solte-me!
Largando-a rapidamente sem saber o motivo que a levava àquele desespero, ele pediu, firme:
Tudo bem, Raquel. Eu não estou te segurando mais. Fique calma.Ela o olhou de modo muito
estranho. Lágrimas corriam pelo seu
rosto e seu queixo tremia. Raquel caiu em um choro compulsivo e ele a fez se sentar.
O segurança daquele setor, que observava tudo a certa distância, aproximou-se lentamente e perguntou a
Alexandre:
Algum problema, senhor?
Alexandre, que esfregava o rosto e passava as mãos pelos cabelos, estava parado na frente de Raquel
sem saber o que fazer. Nesse instante, voltou-se ao homem que aguardava uma resposta e justificou:
Eu não sei o que está acontecendo. Estávamos trabalhando e passamos do horário. Não tem mais
condução a essa hora e... Ela não pode ir embora sozinha. Quero levá-la e ela não aceita.
O homem parou, ficou olhando para Raquel, e, por fim, opinou:
Será que ela está chorando por causa do marido, que pode ficar bravo? E voltando-se para
Raquel, tentou consolá-la: É comum opessoal ficar aqui trabalhando até bem mais tarde. Tem gente que
passaa madrugada aqui até amanhecer. Não fique assim não, moça.
Não é isso. Ela não tem marido respondeu Alexandre, que em seguida pediu: Olha, está
tudo bem. Isso é emocional. Vou conversar mais um pouco com ela e ver o que consigo, certo?
O segurança não disse nada e ficou olhando para a jovem, que sóchorava. Percebendo que o vigia não
saía do lugar, Alexandre pediu:
Pode nos dar licença?
Claro. Eu estarei ali e... Qualquer coisa...
Otimo. Obrigado agradeceu com sorriso forçado.
Com a distância do segurança, Alexandre viu-se mais à vontade. Puxando uma cadeira, sentou-se em
frente de Raquel, ficou em silêncio
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aguardando alguns instantes, enquanto refletia sobre o que poderia estar acontecendo com sua amiga.
Alexandre, com carinho, tentou pegar as mãos de Raquel, que estavam cobrindo o próprio rosto, e colocar
entre as suas. Houve uma reação imediata quando ela negou:
Não!
Tudo bem. Não precisa ficar assim. Alexandre ficou nervoso.Levantou-se e andou de um lado
para outro. "Isso não é normal",pensava ele. "Mas o que está acontecendo?"
Naquele instante, sentia um grande desejo de acalmá-la, enternecê-la, abraçá-la, mas não podia. Raquel,
de meiga, passava a ser quase agressiva quando ele tentava tocá-la. Alguns minutos se passaram, ela
parou de chorar e olhava fixamente para o chão. Aproximando-se, Alexandre sentou-se novamente à sua
frente e procurou encará-la. Com muita calma, usando ternura na voz, falou:
Raquel, preste atenção. Eu não tenho ideia alguma do que estáacontecendo com você. Não
posso entender essa reação. Talvez seja algomuito pessoal. Se não quer falar, tudo bem, eu a respeito.
Mas veja, não podemos ficar aqui até amanhecer. É incabível. Ao mesmo tempo, eu não posso deixá-la ir
embora sozinha, correndo riscos que só Deus sabe.Eu vou levá-la para casa, certo?
Não.
Alexandre, sem deixar transparecer o seu nervosismo, pensou: "Oh, Deus! Vai começar tudo de novo.
Ajude-me!" Respirando fundo, sem demonstrar seu descontentamento, insistiu generoso:
Vou levá-la, sim. Confie em mim, por favor. Está tudo bem.
O rapaz demorou quase uma hora para convencer Raquel que, a custo, aceitou.
No trajeto para sua residência, ela não conversava a não ser para indicar o caminho, e, às vezes, chorava
tentando esconder o rosto. Ao estacionar o veículo na frente da casa de Marcos, Alexandre ficou assustado
com a rapidez com que Raquel desceu de seu carro.
Ei, Raquel? chamou, saindo às pressas e alcançando-a no portão.
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Ela se voltou e agradeceu:
Obrigada. E, por favor, me desculpe.
Espere pediu ao se aproximar. Você está bem?
Sim. Estou admitiu envergonhada, abaixando o olhar.
Não precisava ter ficado tão nervosa. Viu? Está tudo bem. Eudisse que poderia confiar em mini.
Desculpe-me.
Alexandre esboçou um agradável sorriso, explicando:
Não tem pelo que se desculpar. Mas, sabe... Puxa, Raquel, vocême assustou. Ao vê-la sem
jeito, afirmou com generosidade: Émuito bom conversar com você. Mas é que ali, naquela situação, eu
não sabia como agir. Perdoe-me se fui um pouco duro com você. Mas eu não podia deixá-la vir embora a
essa hora sozinha. Espero que entenda queeu visava a sua segurança. Ela não disse nada e ele
desfechou: Agora entre, vai. Eu fico olhando.
Raquel agradeceu novamente e ele ficou observando-a entrar na casa.
De volta ao seu apartamento, Alexandre ficou inquieto. Tomou um banho e se deitou, mas não conseguia
dormir.
"Raquel agiu de modo muito estranho. O que a fez ficar assim?", pensava. "Vagner falou que havia
'chegado' nela, será que ele tentou algo? Crápula nojento! O que será que aconteceu? Ela estava muito
amedrontada."
Em dado momento, Alexandre falou sozinho e em voz alta:
Chega! Já me envolvi demais. Não vou e não quero me meter navida de ninguém.
Minutos após dizer isso, percebendo que não conseguiria conciliar o sono, levantou-se, foi para a sala,
ligou a televisão e começou a procurar algum filme para se distrair.
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** página em branco **
Capítulo 5
Acusações indevidas
Ao contrário do dia anterior, aquela manhã se fez nublada, cinzenta e uma garoa fina umedecia tudo. Alice
levantou cedo e aguardava, bem ansiosa, a chegada de Marcos à cozinha para o desjejum, a fim de poder
contar para o marido as novidades. Quando o viu, seus olhos brilharam. Ali estava a oportunidade tão
esperada.
Você viu a que horas a sua irmã chegou?
Não respondeu Marcos sem preocupação.
Eram quase quatro horas da manhã!
Que estranho admirou-se ele sem expressar espanto. Depoisconcluiu: Raquel não é disso.
"Não é disso", na sua frente.
O que você quer dizer com isso, Alice? perguntou o marido,mais sério e atento, encarando-a.
Um cara veio trazê-la de carro e ainda ficaram um bom tempo noportão conversando. Você acha
isso normal?
Acho.
Ora, Marcos, não seja idiota! Seria normal para outra moça, não para sua irmã.
Por que não? Raquel tem o direito de ser feliz. Tomara que ela encontre alguém que a queira
bem, que a respeite e ame. Você tem algo contra isso?
Com um sorriso irônico e na voz um tom de desdém, Alice respondeu:
Não tenho nada contra. Muito pelo contrário. Só que, todo aquele drama, todo aquele medo e os
traumas pelos quais ela diz ter sofrido,sumiram, assim, de repente? Eu não sou boba, Marcos. Eu te avisei
que
a Raquel mentiu para nós e nos usou. Você foi o único que acreditou naquela história absurda e até se
indispôs com toda a sua família. Levou-a para tratamentos, pagou terapias, médicos...
Interrompendo-a, Marcos interferiu demonstrando nítida insatisfação:
Aonde você quer chegar, Alice?
Olhando firme em seus olhos, sem pestanejar, Alice falou:
Não sou boba, Marcos. Toda aquela história, todo aquele medo foimentira. Raquel nos enganou
para nos usar. Ela não teria onde ficar nem apoio de mais ninguém. Hoje isso ficou óbvio, pois, naquela
época, semter onde viver nem onde morar, ela teria que fazê-lo acreditar naquele absurdo, por isso encenou
todo aquele drama e trauma. Como justificar,hoje, ela chegar em casa àquela hora e acompanhada por
alguém que não sabemos quem é? Seus traumas sumiram, assim, de repente?!
Chega, Alice!
Não, Marcos, não chega. A prova está aqui, no que aconteceu hoje. Ninguém faz algo com
naturalidade se não está acostumado. Escuta o que eu estou falando. A Raquel vai aprontar, não vai
assumir aresponsabilidade e vai largar aqui em nossas mãos, como já...
Como já o quê, Alice?
Ora Marcos! Como já fez por aí. Você sabe.
Em defesa da irmã, ele se levantou, aproximou-se de Alice e, com voz pausada, falou manso, contendo seu
nervosismo, que podia ser notado:
Não quero que fale nesse assunto novamente. Eu a proíbo.
Tá pensando que sua irmã é santa?
Fique quieta, Alice!
O que foi? perguntou Raquel, que surpreendeu o casal emdiscussão.
Bom dia, Raquel! disse Marcos, tentando disfarçar.
Bom dia. Mas o que está acontecendo? Eu ouvi meu nome.
Nada, Raquel afirmou a cunhada, assumindo uma posturamais natural. Tome seu café.
Sem dar trégua, Marcos tentou saber o que aconteceu e perguntou:
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O que houve, Raquel? Você chegou tarde. Estávamos preocupados.
Tive problemas no meu serviço. Um colega resolveu me ajudar eficamos na empresa além do
horário, depois fiquei sem condução.
Foi ele quem veio trazê-la? perguntou Alice, trocando olhares com o marido, aproveitando que
Raquel estava num ângulo que não podia vê-la.
Sim. Foi ele mesmo quem me trouxe respondeu com simplicidade.
Marcos, sem oferecer mais atenção, saiu deixando-as conversando. Com a oportunidade de se ver a sós
com a cunhada, Raquel questionou:
Alice, o que vocês estavam falando quando cheguei?
E melhor você não saber, Raquel.
A moça sentiu-se gelar. Um mal-estar pareceu invadi-la subitamente. Alice, por sua vez, pensou rápido e
decidiu não brigar mais com o marido por causa de Raquel. Aquele método era falho e perigoso. Marcos
gostava da irmã e iria se voltar contra ela. Então, deveria ser astuciosa e arrumar um jeito de colocar um
contra o outro.
Raquel, com as emoções alteradas, sentindo as mãos gélidas pelo suor que verteu imediato, se levantou e
pôs-se diante da cunhada pedindo explicações:
Eu quero saber, Alice. O que você e Marcos estavam conversando? Se era sobre mim, eu preciso
saber.
Alice fingiu-se embaraçada. Aquela seria sua oportunidade. Ela respirou fundo, sem encarar Raquel,
enquanto torcia as mãos para demonstrar-se nervosa.
Vamos, Alice, por favor insistiu Raquel apreensiva.
Marcos não quer que eu lhe diga, mas...
"Mas" o quê? perguntou Raquel diante da pausa.
É que ele pediu para eu ficar de olho em você. Marcos tem medo de...
Raquel empalideceu. Sentiu um torpor estonteando-a, mas se fez firme e encarava Alice esperando mais
explicações ao perguntar:
Marcos tem medo do quê, Alice?
95
Raquel, deixe isso para lá.
Não! Fale logo, por favor!
Não posso. Se eu lhe disser e você for contar para ele... Não quero que voltemos a brigar
novamente. Minha vida mudou, não quero maisviver naquele inferno de antes onde as brigas eram
constantes e...
Não vou dizer nada para o meu irmão. Conte logo.
Olhando Raquel com frieza ao encará-la para que suas palavras parecessem verdadeiras, Alice relatou:
Marcos tem medo pelo seu passado, Raquel. Ele pensou bem e...Eu não sei como foi acontecer,
mas, depois de tanto tempo, ele acha quevocê não foi tão inocente assim.
Raquel sentiu como que sem forças. Suas pernas adormeceram e quase não se sustentava em pé. Com a
voz enfraquecida e desalentada, a moça desabafou, incrédula:
Não... Marcos não pode pensar isso de mim. Ele foi a únicapessoa que acreditou em mim e... As
lágrimas brotaram rapidamente nos olhos de Raquel.
Alice aproximou-se, colocando a mão em seu ombro, pediu com voz piedosa, parecendo terna e
compreensiva:
Eu sei. Eu acredito em você. Entendo como se sente. Só que não conte nada para o Marcos, por
favor. Se ele souber que falamos sobre isso... Diante do silêncio da cunhada, Alice continuou: Não
chore. Olha, sente-se aqui e tome seu café.
Não, obrigada.
Raquel...
Fique tranquila, Alice. Eu não vou dizer nada. Só estou muito decepcionada. Isso me machucou
demais.
Não ligue para isso. Homem é assim mesmo. Hoje ele pensa umacoisa, amanhã pensa outra e...
Não ligue, tá?
Raquel passou a se preocupar. O fantasma do passado batia-lhe àporta. Estava magoada, ofendida por
tanta injustiça e incompreensão. Seu segredo, sua história triste e amarga deveria ser esquecida, mas não.
Na mente das pessoas restavam dúvidas e muitos não acreditavam nela.
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Além disso, em lugar distante, a semente dessa história germinava, crescia... Jamais sendo apagada. Ela
não teria paz. Raquel não desconfiou da crueldade de Alice, que tinha seus planos ardilosos para afastá-la,
o quanto antes, de seu irmão.
A cunhada não se sentia bem com a presença dela. Principalmente agora que sua situação financeira
estava mais equilibrada por causa da promoção de Marcos e de seu emprego, onde ganhava
satisfatoriamente para ela.
Não! Definitivamente Alice não queria a presença de Raquel, seu coração endurecido não reconhecia tudo
o que aquela jovem fizera para ajudá-los, nem queria devolver o que ela lhes emprestara, no momento que
mais necessitaram.
Aquele fim de semana iniciou-se com inúmeros pensamentos turbulentos nas ideias de Alexandre. Sozinho
em seu apartamento, não tinha muito que fazer. Pensou em sair e ir ao clube, mas o tempo estava horrível.
Esportes em quadras fechadas não lhe agradavam. Teve vontade de visitar seus pais, mas não se sentia
bem para conversar e sabendo como era sua mãe que, conhecendo-o bem, desconfiaria que estava
amargurado e começaria a enchê-lo de perguntas.
Nem o jogo eletrônico no computador prendia sua atenção. Desligou a máquina, ligou em seguida o
aparelho de som colocando um CD com músicas suaves. Lembrou-se de um livro que tinha comprado
havia mais de um mês e não tivera tempo para lê-lo. Apanhou a brochura e atirou-se no sofá, mas, após ler
poucas páginas, percebeu que sua atenção se prendia em Raquel.
O que estou fazendo? perguntou em voz alta. Prometi a mim mesmo que não iria me preocupar
com ela.
Amargurado, não conseguia controlar os seus desejos. Levantando-se, colocou o livro sobre um console,
pegou uma jaqueta, desligou o som e, por fim, apanhou as chaves do carro saindo rapidamente.
97
Minutos depois, sob a densa garoa fina que caía, Alexandre se encontrava parado quase em frente à casa
do irmão de Raquel.
"Se ela saísse agora...", desejava em pensamento. "Mas a rua estádeserta, está muito frio. O que Raquel
teria para fazer fora de casa agora?" Segundos depois tornava, preocupado: "Estou ficando louco! Tenho
que pôr um fim nisso. O que estou fazendo aqui?"
Quando pensou em ligar o carro para ir embora, uma vontade maior o dominou e uma esperança o
prendeu. Sentia que precisava ver Raquel.
"E se ela aparecer? O que digo? Que desculpa posso dar?"
De repente, Alexandre vê uma silhueta feminina, ao longe, andando na rua em direção de seu carro. A
cabeça estava coberta por um capuz que acompanhava o grosso agasalho. Ele não se importou e
continuou a olhar na direção da casa. O perfil que ele vira ao longe era Raquel que, mais perto, o
identificou. Aproximando-se do veículo, ela o encarou surpresa e com um leve sorriso. Alexandre
sobressaltou-se e não sabia o que fazer.
Você aqui? perguntou a jovem sorridente.
E, eu... embaraçou-se o amigo que, descendo rapidamente docarro, não tinha quase o que
dizer e nem sabia como se justificar. Colocando-se diante da colega, a cumprimentou, dizendo:
Oi, Raquel. Tudo bem?
Tudo. E você?
Estou bem. Passei aqui para saber como você estava e...Alexandre exibia-se um tanto sem jeito
e ela perguntou encabulada:
Ficou preocupado com o que fiz ontem, não foi?
É verdade. Fiquei preocupado, sim admitiu amavelmente.
Estou envergonhada. Desculpe-me respondeu constrangida eabaixando o olhar.
Não peça desculpas. Você não tem por que se preocupar. Acontece que... Bem, não é comum
uma crise de nervos como aquela. Entende? Eu realmente fiquei preocupado e só queria saber como você
estava.
Estou bem. Não sei o que dizer.
Pensando rápido, Alexandre perguntou à queima-roupa:
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Foi o Vagner?
Como?!
O Vagner me disse que "chegou" em você. O que ele fez?Raquel empalideceu e não sabia o que
dizer. Percebendo sua mudança e nervosismo, ele insistiu mais firme:
O que o Vagner fez com você, Raquel?
Nada respondeu amedrontada.
Como nada? Por que você ficou assim? Por que estava com tantomedo ontem? Ele tentou
delicadamente segurá-la pelo ombro, mas ela se afastou. Raquel, o que houve? perguntou Alexandre,
alterado e nervoso. Sou capaz de matar esse cara se ele encostar um dedo em você! O que aconteceu?
Temendo uma situação difícil, ela resolveu mentir para acalmá-lo:
Não aconteceu nada. Por favor, acredite.
O que ele disse?
Só me chamou para irmos ao shopping e eu não aceitei.
Ela abaixou o olhar e o colega fitou-a por longo tempo. Por um momento, ele pensou no motivo que o
levava a reagir daquela forma, afinal não tinha nada a ver com a vida de Raquel. A garoa começou a ficar
mais densa. Eles já estavam quase molhados e Raquel começou a se incomodar. Não poderia convidar
Alexandre para entrar por causa de seu irmão. O que Marcos não pensaria? O colega, por sua vez,
esperançoso por um convite que não acontecia, decidiu abrir a porta do carro e, mais gentil, chamá-la:
Vem, entra aqui, vamos conversar.
Não respondeu a moça sem jeito. Justificando em seguida: Perdoe-me por não chamá-lo
para entrar, é que...
Tirando-a do embaraço, a interrompeu educado:
Não se preocupe. Eu entendo. Mas venha, vamos dar uma volta.
Não. Agradeço o convite, mas estou com uma dor de cabeçahorrível. Estou vindo da farmácia,
veja disse tirando do bolso um pequeno saquinho contendo um medicamento , saí para comprar um
remédio porque não aguentava mais.
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Ah, então estou te atrapalhando. Vá, entre e tome o remédio.Passei aqui só para saber de você.
Obrigada. Estou bem.
Se não fosse a dor de cabeça, não é?
É sim sorriu docemente ao concordar.
Tchau, então despediu-se. Alexandre sentiu forte impulso debeijá-la no rosto, como seria
comum, mas conteve-se e estendeu-lhe amão.
Tchau correspondeu Raquel sustentando o agradável sorriso.Após a partida de Alexandre, ela o
admirou, pensando:
"Como ele é discreto, generoso..." Mas, em seguida, anuviou o sorriso e se preocupou: "Alexandre está
muito solícito, dedicado. Não! Ele não pode estar interessado. Nunca tive um amigo como ele e não quero
perder sua amizade, se isso acontecer... tenho que me afastar dele, mas..."
Raquel sentiu-se muito mal e insatisfeita com o rumo que as coisas tomavam. Como sua vida mudara. Ela
era independente, trabalhava para sobreviver, mas ninguém a incomodava. De repente aconteceram tantas
coisas que lhe doíam muito.
Alexandre, por sua vez, foi embora satisfeito. Uma alegria agradável o invadira. Como desejava, viu
Raquel, mesmo que por alguns minutos. Entretanto, mais tarde, em seu apartamento, se questionava se
aquilo estava certo. Temia estar apaixonado por sua amiga. Temia sofrer novamente. Procurando alterar o
rumo da situação, começou determinar-se a ser forte e ter uma postura mais vigilante. Decidido, resolveu
que só seria amigo de Raquel.
Na semana que se seguiu agitada, Raquel demonstrava nítida preocupação. Alice queria que ela a
acompanhasse ao "tal lugar", que era denominado assim pelo fato de nem mesmo ser um local onde várias
pessoas se reúnem centralizadas com o mesmo objetivo, o que seria um centro. Esse "tal lugar" era uma
residência e, em um quartinho nos
100
fundos, aglomeravam-se altares, velas, flores, cortinas e toalhas de renda. Uma pessoa, em transe
mediúnico, com vestimenta típica e comum àquela seita espiritualista, recebia os que a procuravam. Esse
médium ficava dentro do referido quartinho e atendia um a um dos que esperavam sentados em um banco,
no corredor comprido, onde seria um quintal. Em uma das vezes em que Raquel, só como acompanhante,
foi a esse "lugar" com sua cunhada, um espírito sofredor aproximou-se dela e passou a acompanhá-la. No
início, sua presença, suas vibrações, seus desejos e seus pensamentos eram imperceptíveis a Raquel.
Com o tempo, pelo fato de ela ter inúmeras preocupações e nem sequer se socorrer em prece, esse
espírito passou a envolvê-la, mas sua presença era ignorada e a moça nem podia imaginar esse
envolvimento.
Ela não percebeu que recebia vibrações inferiores, pensamentos queixosos e desejos lamentáveis,
aceitando como sendo seus alguns sentimentos e vontades. Raquel não sabia distinguir suas ideias dos
desejos do irmão espiritual que a acompanhava. Aliás, bem poucos o sabem.
Por essa razão, suas preocupações e suas angústias ficavam mais intensas e dolorosas. Raquel, que já
era uma pessoa calada, ficara mais triste do que nunca. Sua quietude, antes tranquila, exibia-se agora
amarga e depressiva.
Alice, ao contrário, mais alegre e extrovertida, em seu serviço revelava-se uma pessoa capacitada e
esperta. Ela não cultivava muitas amizades. Todas as colegas que possuía eram por interesse. Alice
fomentava a discórdia, sempre falava de qualquer companheira deixando a desejar sobre seu caráter em
algum aspecto.
Com o incentivo do espírito Sissa, Alice começava então a se animar em chamar a atenção do gerente de
seu setor para si. Ela era uma mulher de aparência respeitável e bonita.
Você merece coisa melhor do que o Marcos - dizia-lhe Sissa, envolvendo-a a todo instante. Veja,
Alice, você pode ter a oportunidade de ser feliz e ter melhor condição financeira, se quiser.
Sem ouvi-la, Alice passava a ter ideias e desejos daquele nível. Assim, sempre que tinha oportunidade,
jogava todo o seu charme e
101
direcionava olhares de conquista para o referido gerente que, percebendo suas insinuações, dava a
entender que estava se sentindo atraído por ela. A pobre mulher não respeitava seu marido nem seus
filhos. Alice não se amava, porque não respeitava a tranquilidade de sua consciência, pois não cultivava
boa moral, preservando-se de futuras harmonizações dolorosas, porque já adulterava em pensamento. E
assim, a cada dia, ela se aproximava cada vez mais daquele homem que lhe correspondia.
Com o passar do tempo, Aldo, o referido gerente do setor em que ela trabalhava, fez um convite a Alice
que, sem pensar, aceitou. Eles começaram a sair juntos, frequentando barzinhos e boates, conhecendo-se
um ao outro, enquanto tomavam aperitivos.
Alice fazia de tudo para que ninguém percebesse. Pelo fato daquele magazine oferecer opções diferentes
de horários, ela adaptou-se ao expediente mais propício e, quando se atrasava muito para chegar em casa,
desculpava-se dizendo que pegou uma grande venda e que a cliente demorou na escolha. Ninguém
desconfiava. Não havia motivo.
Por outro lado, Raquel, em seu serviço, preocupava-se em demasia. Vagner tornava a se aproximar dela.
Temendo-o, procurava evitá-lo o quanto podia, mas era difícil, uma vez que seus serviços se interligavam.
Ele agia como se nada tivesse acontecido, lançando olhares que a molestavam pelos desejos que podia
perceber.
Então, Raquel explicava Vagner muito cordial , dependo desses valores para poder passar
esses resultados.
Raquel o ouvia, mas se sentia ineficiente e insatisfeita. Vagner a incomodava com sua presença. Tudo
agora estava sendo muito difícil.
Veja, Raquel, esses primeiros resultados aqui que me passou não estão certos, por isso, após ter
pronta toda a resenha, os valores não batem. Entendeu? explicava Vagner, com extrema gentileza,
tentando conquistá-la. Eu sei. Já entendi avisava desalentada, cansada.
O espírito desencarnado que se aproximava argumentava-lhe:
Para que tanto empenho? Ninguém nos dá valor. Qualquer hora vão mandar você embora, mesmo.
Veja, trabalhei tanto para quê? A vida
102
não vale a pena. Só temos tristezas e desilusões. Só vivemos para sofrer e ser incomodados pelos outros.
Raquel não o ouvia, porém, a cada minuto, sentia-se mais desanimada. Mesmo assim, voltou-se para o
colega, explicando:
Olha, Vagner, não sei o que aconteceu para eu errar isso. Deixe tudo aí que, após eu terminar esse
relatório, vou arrumar.
Aproximando-se mais de Raquel, curvando-se, Vagner mostrou-se gentil e perguntou em voz baixa, quase
sussurrando:
Você está com algum problema, Raquel? Posso ajudar?
Alexandre, que ocupava a mesa ao lado, que era ligeiramente separada por uma divisória, aguçou os
ouvidos tentando entender o que Vagner dizia. Desde o dia em que divergiram, Alexandre e Vagner só se
comunicavam para assuntos de serviço, conversando somente o essencial. Por não conseguir entender o
que o colega dizia para Raquel, Alexandre ficou inquieto e nervoso. Sentindo seu coração pulsar
desordenadamente, pensava:
"Crápula! Como pode uma criatura ser tão... Se ele tentar alguma coisa com ela, vou arrebentá-lo. Será que
esse cretino não percebe que é nojento e indesejável?!"
Alexandre sentiu um frio envolvê-lo todo. Sua impaciência quase podia ser notada. Procurou ficar atento no
que fazia para não se envolver. Impossível! Ele se torturava acreditando que não podia pensar daquele
jeito, afinal, Raquel era só sua amiga.
Mas, contra os sentimentos fortes, pouco podemos fazer.
No olhar de Alexandre, um brilho apaixonado resplandecia, anunciando seu sentimento e seu ciúme.
Quando em vez, mordia os lábios pela raiva que sentia. Agora, visivelmente nervoso e adivinhando as
intenções do colega que sussurrava e deixava poucas palavras serem ouvidas, Alexandre não podia
resistir.
Vamos, vai dizia Vagner com voz amável, melosa e com meio sorriso, a Raquel, que parecia
repudiar aqueles modos.
Não, obrigada respondia a jovem exibindo firmeza e insatisfação.
103
Não posso aceitar um "não".
Sem poder se conter, Alexandre se virou, ficou olhando para Vagner, que nem o percebia, e reclamou com
grave tom na voz:
Ei, cara! Dá para respeitar a vontade da moça? Já estou saturado de ouvi-lo insistir tanto. Você é
surdo? Ela disse: não!
Raquel estremeceu. Surpresa e confusa, estava atordoada. Vagner franziu o olhar com rancor e inquiriu,
estúpido:
Por acaso você é porta-voz da Raquel?
Qual é, Vagner?! retrucou Alexandre. Coloque-se em seu lugar!
Alguns da seção repararam no tom grave da voz de Alexandre, que aumentou o volume sem se intimidar.
Vagner ergueu o corpo e ia dar um passo na direção do colega, mas viu-se inibido por um dos diretores que
se aproximava. Mesmo assim, Alexandre ficou encarando-o como se o desafiasse com o olhar. Por sua
vez, nervosa e atordoada, Raquel ficou sem saber o que fazer.
Vagner, com o dedo em riste para Alexandre, mas sem fazer alarido nem ser chamativo, ameaçou com voz
pausada, baixa e odiosa:
Você me paga virando-se, em seguida, saiu.
Raquel, surpresa, não sabia o que dizer e ficou olhando para Alexandre, que se virou, tornando a ficar de
frente para sua mesa procurando entreter-se com seus afazeres. Aquele dia estava sendo péssimo para
ela. Raquel e Alexandre não se falaram mais.
Ao chegar em casa, logo à noitinha, Alice insistia novamente para que a cunhada a acompanhasse.
Raquel, sem opinião própria, acabou cedendo aos caprichos de Alice e lhe fez companhia. Enquanto
aguardava a vez para ser atendida, Alice induzia Raquel:
Faça uma consulta, boba. Peça para lhe ajudarem com o emprego, com essa depressão e também
para darem um jeito na sua vida. Se não quiser falar com ele, aproveita hoje que a mulher também está
atendendo.
Confusa, Raquel acabou decidindo fazer a tal consulta. Ao ver-se a sós num pequeno recinto fechado
diante de uma mulher que usava
104
roupas alvas, rendadas e fumava um charuto de modo incomum, Raquel sentiu algo estranho. Seu primeiro
desejo foi o de virar as costas e sair correndo. Mas sentiu vergonha de tomar tal iniciativa.
Sentada em uma banqueta e em meio a alguns apetrechos, a mulher indicou um lugar a fim de que Raquel
se sentasse e esta assim o fez.
Tá cum medo zé-fia? perguntou a senhora, impostando a vozcom sotaque caipira.
Com a respiração alterada, sentindo-se sufocada pela fumaça do charuto, das velas e das ervas que
ardiam em um canto, Raquel, um tanto inquieta, respondeu:
Não sei. Desculpe-me.
Será que tá cum vontade de ir s'imbora, zé-fia? Fica assim não.Mia-fia tá cum poblema, num tá?
Raquel, instintivamente, decidiu não comentar nada sobre sua vida particular, muito menos sobre o que a
afligia. Com seu raciocínio correto e lógico, acreditou que: se ali havia um espírito, ele deveria saber de
seus problemas, ela não precisaria relatá-los.
Nem sei por que estou aqui comentou a jovem com modos tímidos. Talvez por insistência de
minha cunhada.
Raquel, diferente das demais pessoas, não ofereceu diretrizes de sua vida que pudessem revelar suas
aflições. Por essa razão, não havia muito que dizer. Após algumas baforadas de charuto, a mulher falou:
Zé-fia é forte. Ocê tem sinar de quem já viveu muito "poblema". Fez-se pequena pausa para
baforar novamente, depois continuou: É lutadora! Num é, zé-fia? Oia, toma cuidado qui as pessoa num
é sincera cum-cê. É milho num ter amigo qui tá mar acumpanhada. Após pequena pausa, ela perguntou:
Ocê tem argo pra pidi?
Não respondeu Raquel, com modos frios e sentindo-se perturbada.
Intão, zé-fia, vai té qui si livrar desse mau-olhado, dessa invejaiada toda. Ocê vai fazer o seguinte:
Pega essas erva...
Mais tarde, Alice questionava:
O que você achou?
105
Olha, Alice, pra ser sincera, eu não achei nada. Tudo o que aquela mulher me disse se encaixaria
perfeitamente para qualquer outra pessoa.
Ora! Não seja boba, Raquel!
É verdade! Ela disse que eu era uma lutadora. Quem não é lutador nessa vida? Ela disse que eu
vivi muitos problemas. Quem não teve problemas em sua vida? Ela falou que há pessoas que não são
sinceras comigo. Ora, Alice! Quem de nós poderá dizer que tem amigos sinceros? Até Jesus, o símbolo da
perfeição humana, foi traído!
Mas, Raquel, ela tem razão! Você já lutou muito na sua vida.Com pouca idade passou por
dificuldades terríveis...
Alice queria que Raquel recebesse ajuda a fim de conseguir sair de sua casa, pois queria se ver livre da
cunhada. Raquel, que se incomodava com aquela conversa, repentinamente pediu:
Não quero mais falar nesse assunto, Alice. Por favor.
Você perguntou alguma coisa? insistiu a cunhada.
Não.
Ah! Aí está o problema. Se você perguntasse, ela falaria.
Se eu lhe perguntasse ela pediria detalhes. Pedindo detalhes, ela teria uma série de informações,
depois iria me dar opiniões como se adivinhasse minha vida. Sabe, eu deixaria de acreditar do mesmo
jeito.Foi melhor eu ter ficado quieta, assim economizei tempo. Olha, Alice,quer saber de uma coisa, não vou
mais lá! Para mim chega! Arrependi-me de ter ido. Só gastei dinheiro e perdi meu tempo. Por favor, não
me chame mais. Cheguei tarde, estou cansada e, além de tudo, não gosto de sair à noite.
Alice nada comentou, ficou somente olhando contrariada para Raquel. Uma sensação odiosa começou a
envolver o seu coração que agora, ainda mais, indignava-se com Raquel. Isso se dava principalmente pelo
fato de Sissa estar animando essa discórdia, pois Raquel, apesar de nenhum entendimento, possuía um
coração puro e poderia orientar Alice para o que era certo e errado.
Ela não é sua amiga. Raquel não pode mais ficar aqui. Ela vai acabar estragando tudo. Vamos dar
um jeito nela.
106
Naquela noite, Raquel custou a dormir. Mesmo adormecendo só no meio da madrugada, perturbada por um
sonho ruim que era induzido por espíritos inferiores, Raquel passou a dizer:
Não... Sai de perto... Não! Até que acordou todos com umgrito.
Marcos correu para a sala e, ao lado da irmã, que já estava sentada, a chamou:
Raquel! Raquel! Está tudo bem! Acalme-se.
Ele tentou abraçá-la, mas Raquel o empurrou. Ela parecia confusa.
Com a respiração alterada e os olhos arregalados, Raquel circunvagava o olhar pela sala, procurando
reconhecer o lugar, enquanto passava a mão pela fronte, que lhe parecia escaldante.
Calma, Raquel. Foi só um sonho dizia Marcos com suavidade na voz, procurando enternecê-la.
Alice, que ficou em pé, olhando friamente a cena, não dizia nada. De repente ela foi até a cozinha e voltou
com um copo com água. Após tomar alguns goles, Raquel se acalmou. Passado um tempo, tudo ficou
tranquilo e ela voltou a se deitar, depois que se desculpou com todos. Marcos e Alice voltaram para o
quarto e, ao perceber que o marido estava acordado, ela decidiu comentar:
Marcos, estou preocupada com Raquel.
Interessado no assunto, ele ficou atento para não ceder ao sono, e Alice continuou:
Não quero magoá-lo, mas você acreditou nesse pesadelo?
O que você quer dizer, Alice? perguntou quase irritado.
Sabe o que é, eu andei conversando com a Raquel. Coisa de mulher. Entende?
Não, não entendo. Dá para ser mais clara?
Exibindo nervosismo e inquietude, Alice torceu as mãos a fim de mostrar ao marido sua preocupação com
Raquel. Tomando cuidado com as palavras, continuou em tom brando e baixo:
Sabe, Marcos, eu não tenho gostado de algumas coisas que venho percebendo. Ela vem chegando
de carro com um e com outro.
107
Que eu saiba, ela só pegou carona naquele dia.
Não é problema ela pegar carona. É que a Raquel vem mentindo para nós. Lembra-se, anos atrás
ela apresentava traumas, desequilíbrios emocionais, pesadelos e o que eu te falei? Sem esperar pela
resposta do marido, Alice continuou: Falei que não acreditava nela. Lembro-me de ainda ter dito que, se
ela mentiu ou não, não tinha problema,mas o que me irritava era o fato de nos abalar, nos deixar nervosos
e preocupados.
Aonde você quer chegar, Alice?
Vendo-a chegar de carro com um e outro, eu fui falar com ela.Raquel me respondeu mal. Disse
que fazia de sua vida o que queria.
Não posso acreditar nisso.
Então espere um pouco. Alice se levantou e, sorrateiramente,foi até a sala espiar para garantir
que Raquel estava dormindo, caminhou um pouco mais, pegou a bolsa da cunhada, que estava sobre
um móvel ao lado da sua, e voltou. Entrando no quarto, fechou a porta e acendeu a luz. Sentou-se na cama
e, como se revirasse a bolsa que segurava, tirou alguns preservativos e mostrou para Marcos, dizendo:
Para que alguém carrega isso se não vai usar?
Marcos ficou paralisado. Sentindo-se enganado, não respondeu nada.
Raquel não é santa, Marcos! Tudo bem. Ela faz o que quiser da sua vida, mas... Ela está mentindo
para nós. Ela mentiu o tempo todo.
Marcos ficou alterado. Levantando-se, andou de um lado para outro do quarto.
Não posso acreditar que Raquel tenha mentido para mim.
Agora mesmo, com esse falso pesadelo, ela mentiu para ter a sua atenção. Mentiu para que não
acreditasse em mim, pois sabia que eu iria contar para você sobre seu comportamento e suas mentiras. Vá
lá na sala e veja por você mesmo. Alguém que acabou de ter um pesadelo,horrível, iria dormir tão rápido?
Inconformado com a apresentação dos fatos, Marcos saiu do quarto e foi até a sala onde Raquel dormia
profundamente. Olhando fixamente para sua irmã, comprovou que estava serena e tranquila.
108
Alice ficou no quarto aguardando. Sabendo que Raquel tinha o sono perturbado, ela já esperava por aquela
oportunidade. Agora seu plano havia dado certo. Ela colocara algumas gotas de sedativo na água adoçada
e Raquel, nervosa, nem percebeu o que bebera. Ao voltar para o quarto, Marcos não viu a esposa
esconder seu sorriso cínico.
Viu como tenho razão? argumentou Alice com voz branda emelancólica.
O marido não respondeu, mas expressava um rosto contraído e sisudo. Seus pensamentos fervilhavam
nervosos nas dúvidas que começavam a pairar em suas ideias. Pegando a bolsa da irmã, começou a olhar.
Para ele, não seria problema Raquel estar saindo com alguém, sua irritação era por ela ter mentido e criado
um conflito de informações no passado.
Marcos tornou Alice , tenho medo que a Raquel nos dêtrabalho.
Que tipo de trabalho?
Raquel não assume responsabilidade alguma, pelo visto. Ela não admite estar errada e sempre
quer ser a vítima. E se ela engravidar e abandonar a criança aqui? Sabemos que já fez isso e nem temos
ideia de onde está sua filha.
Marcos, contrariado, pediu:
Tudo o que acontecer com a Raquel, de hoje em diante, eu quero que me conte.
Não vá dizer nada a ela. Vá com calma. Pegue-a no "pulo". Vocêvai conseguir.
Ele resolveu seguir os conselhos da esposa e concordou. Algum tempo depois, ao colocar a bolsa de
Raquel no lugar, Alice tomou o cuidado de transferir para a sua bolsa os preservativos que usara para
acusar a cunhada. Agora ela agia com inteligência. Se quisesse Raquel longe dali, tinha de ser astuciosa.
Não haveria mais de impor as condições. Ela encontraria maneiras de fazer com que Marcos visse o que
ela queria.
Na manhã seguinte, Marcos, por não ter dormido bem e repleto de preocupações, apresentou-se sisudo e
quase não cumprimentou Raquel
109
que, percebendo-lhe a indiferença, ficou magoada, mas não disse nada. Sem fazer o desjejum, ela foi para
o seu trabalho, torturando-se em pensamentos tristes, principalmente por estar sendo envolvida por aquele
espírito que lhe passava ideias lamentáveis, deprimentes e com vibrações pesarosas.
Com o serviço, Raquel não conseguia ficar atenta ao que fazia.
Droga! reclamava para si mesma. Preciso entregar isso hoje.Parece que nada quer dar certo.
As ideias pessimistas daquele espírito sem instrução cravavam-se cada vez mais nos sentimentos de
Raquel. Mesmo sem ter, nesta existência, ou em vidas passadas, ligações com Raquel, agora, aquele
espírito sofredor e tão perturbado ficava próximo da encarnada, que não o percebia, e isso se dava por se
afinar com os seus sentimentos, por ter, vamos dizer, gostado dos pensamentos preocupados e tristes que
Raquel vinha experimentando nos últimos tempos, sem reagir, sem fé nem esperança que situações
melhores pudessem ocorrer.
Ao vê-la nervosa com o que fazia, esse espírito sugeria:
Não adianta. Você vai se matar para que tudo saia perfeito edepois de pronto ninguém vai
valorizar.
Que droga! reclamava Raquel.
Isso não vai dar certo. Você não é competente e vão colocá-la no"olho da rua". Eu descobri que
só têm valor aqueles que conquistam oschefes, sabia? ainda argumentou o companheiro espiritual.
Há tempos Alexandre não interferia nos assuntos da colega. Vendo-a agora embaraçada, não resistiu e foi
em seu socorro, oferecendo:
O que foi, Raquel? Quer ajuda?
Não estou conseguindo. Veja.
Dê-me licença solicitou o colega com brandura e suave expressão no olhar. Raquel, quase
chorando, tinha a visão turva. Ela seafastou e Alexandre trouxe a solução em poucos minutos.
Prontinho! desfechou animado.
Ela, desanimada e embaraçada, nem sabia o que dizer e ficou parada olhando o serviço.
110
Vai, garota! Continua agora! impulsionou alegre e repleto deenergia.
Sorrindo ao ver Raquel retomar novamente o trabalho, ele voltou para o seu lugar e ficou olhando-a,
admirando-a. Raquel era bonita, simpática e delicada. Sua quietude oferecia um ar que o intrigava e atraía.
Ele sentia vontade de ficar perto dela, mas... Na verdade, desejava poder tocá-la, abraçá-la com carinho...
Raquel era encantadora! Possuía uma candura sem igual. Seus pensamentos corriam apressados e
Alexandre buscava, sem perceber, uma maneira de conquistar Raquel. Contrariando assim suas
promessas de dias anteriores.
"Preciso conhecê-la melhor", pensava. "Engraçado, sou capaz de sentir sua sensibilidade. Eu sei, de
alguma forma, que ela é frágil, delicada, sentimental, fiel... Não posso me impor, isso iria agredi-la. Serei
paciente o quanto for preciso."
No final do expediente, Alexandre encorajou-se e, com jeitinho meigo, aproximou-se de Raquel arrastando-
se em sua cadeira para junto da mesa da colega. Curvando-se mais ainda, ele colocou o rosto colado na
mesa da jovem, fazendo um semblante piedoso no olhar e sorrindo docemente, pediu com modos
engraçados, como uma criança a implorar:
Vamos ao shopping aqui em frente para tomar um suco?
Como? Raquel começou a rir pelo modo como ele se colocava e pedia.
Ainda na mesma posição, ele tornou a dizer:
Em vez de ir embora para casa, vamos sair um pouco. Podemos irao shopping e tomar um
refrigerante ou um suco. Quem sabe um lanche?
Alexandre ergueu-se ansioso e à espera de uma resposta positiva. Raquel surpreendeu-se com o convite e
ficou atrapalhada sem saber o que responder.
É que...
"É que..." risonho, ele a arremedou diante da pausa, depois continuou animado: Que nada!
Guarde suas coisas e vamos.
Desculpe-me, Alexandre...
111
Olhando-a fixamente nos belos olhos amendoados que irradiavam ternura, pediu:
Por favor, vamos? Prometo que não sairemos tarde de lá. Quero só conversar um pouco. Estou me
sentindo só.
Raquel sorriu timidamente. Sem entender, viu-se dominada por uma vontade sem igual e, atordoada pelo
tom de voz, pelo jeito carinhoso e olhar sereno do colega, que não exibia outras intenções, aceitou o
convite. Logo depois, o casal via-se sentado na praça de alimentação do referido shopping que Alexandre
mencionara.
Que tal um lanche? Ou prefere uma refeição? ofereceu animado.
Não. Você disse que não iríamos demorar.
Alexandre não disse nada nem se expressou fisionomicamente, mas Raquel percebeu sua insatisfação.
Desculpe-me. Não sou uma boa companhia.
Dizendo isso educadamente, ela se levantou como quem decide se retirar. O mesmo espírito de outras
vezes dizia-lhe que ela não agradava a ninguém e só incomodava os outros com suas preocupações e
tristezas.
Alexandre, ligeiro, pôs-se em pé à sua frente e delicadamente a segurou pelo braço, dizendo:
Por favor, Raquel, fique. Está tudo bem. Eu vou pegar um suco para nós, certo? Sente-se, por
favor.
Eu o incomodo, Alexandre. Percebi, em seus olhos, que ficou contrariado.
Não. Não é isso. Eu só pensei que, se fizéssemos um lanche agora, eu não teria que comprar
alguma coisa para levar para minha casa. E meio sem jeito, confessou: Não tenho nada pronto para
comer e pensei em me alimentar por aqui. Só isso. Está tudo bem. Eu já venho, tá? Fique aqui.
Raquel se sentou novamente e o aguardou. De volta à mesa, o rapaz via-se embaraçado e sem saber o
que dizer. Por fim, para brincar, perguntou:
Está bom? Quer mais açúcar?
112
Não.
Não está bom? ele perguntou sorrindo e para confundi-la.
Sim tornou ela.
Então vou pegar o açúcar.
Não! Espera respondeu agora sorridente e atrapalhada. Depois explicou: O suco está ótimo
e não precisa de açúcar, certo?
Eles riram e Alexandre se viu mais à vontade. Puxando conversa, resolveu saber mais sobre Raquel.
De onde você é mesmo?
Sou do Rio Grande do Sul. E você?
Sou daqui. Meus pais são filhos de imigrantes italianos. Engraçado, você não tem sotaque do Rio
Grande do Sul.
Talvez seja por causa da minha mãe. Ela é de Goiás e foi criada noDistrito Federal. Só após se
casar com meu pai foi para o sul e a suaconvivência lá a fez adquirir um pouco do sotaque. Você também
não tem sotaque nem modos italianos.
Não, não tenho. Creio que vamos perdendo com o tempo. Meuspais também não os têm.
Após pequena pausa, continuou: Tenho duas irmãs. Uma é casada e tem dois filhos. Essa mora no Rio
de Janeiro.A outra é noiva e mora com meus pais. E seus pais, Raquel, onde moram?
No Rio Grande do Sul, mesmo. Meu pai é tetraplégico. Vive em uma cama. Além disso, ele não é
mentalmente capacitado por causa de um acidente que o deixou assim. Ele e minha mãe moram com
meus avós paternos. Tenho o Marcos e mais dois outros irmãos casados. Todos mais velhos.
Seus avós são imigrantes? Pergunto isso porque, no extremo sul,encontramos muitos imigrantes.
Meus avós são de um lugar chamado de "Polônia Russa" ou "Reino da
Polônia", que sofreu
várias invasões alemãs e ataques da Rússia,que reivindicava parte do seu território. Eles chegaram ao
Brasil escondidos no porão de um navio e ganharam a nacionalidade brasileira com o nascimento do
primeiro filho. Ao todo, eles tiveram quatro. Umpouco pensativa, ela completou: Os dois primeiros já
morreram.
113
O pessoal daquela região é muito sério, não é?
Sabe, Alexandre, eu não sei dizer. Creio que a seriedade ou a simpatia não depende da
nacionalidade, mas sim do coração de cada um. Mas meu avô é muito rigoroso e...
E...? perguntou o colega diante da longa pausa.
E até cruel respondeu ela impensadamente e com o olhar perdido.
Cruel?! surpreendeu-se.
Alertando-se sobre o que falara, Raquel corrigiu:
Não foi bem isso o que eu quis dizer. Eu o acho rigoroso. Ele éduro demais. Meu avô foi criado
naquele costume católico ortodoxo que há na Rússia, e traz consigo muitas exigências.
Com a simplicidade que lhe era própria e sem refletir sobre o que falava, Alexandre perguntou:
Ele é rigoroso e a deixa morar sozinha?
Raquel não esperava por aquela questão. Ela se viu confusa e ficou só olhando-o, sem nada responder.
Alexandre imediatamente se retratou, dizendo:
Desculpe-me. Por favor, Raquel! Ao dizer isso, impulsivamente Alexandre colocou suas mão
sobre as dela, que estavam estendidas na mesa, completando: Eu não tenho nada com isso e...
Raquel sorriu delicadamente e, abaixando o olhar, retirou suas mãos, que ainda estavam envolvidas.
Mesmo percebendo sua reação, ele não disse nada, porém intimidou-se. Passaram a conversar, então,
sobre alguns assuntos de serviço. As horas foram correndo e, ao consultar o relógio, Raquel informou:
Tenho que ir. Já é tarde.
Oh, Cinderela! Fique tranquila. Eu a levarei para casa. Meu carronão vai se transformar em
abóbora. Eu garanto. brincou o amigo,sorrindo.
Por que Cinderela?
Porque você sempre quer estar em casa antes da meia-noite. Não são nem nove horas! Eu a
levo.
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Não. Por favor pediu Raquel com voz mansa, sem encará-lo.
Eu vou dar uma passada na casa dos meus pais. É caminho. E,rindo gostosamente, admitiu:
Além de visitá-los eu janto lá.
Diante da indecisão de Raquel, Alexandre mudou o assunto, impedindo-a de pensar a respeito.
Então, conseguiu falar com seu irmão a respeito de você sair dacasa dele e ir morar em outro
lugar?
Novamente um semblante aborrecido figurou no rosto de Raquel, que respondeu:
Falei por alto, mas... Marcos não quer concordar. Disse que sou aúnica família que ele tem e...
Já sei. Você continua ajudando com as despesas e não consegue juntar uma grana para
conquistar novamente a sua liberdade.
Raquel pendeu a cabeça positivamente confirmando a conclusão do colega e confessou:
Não sei o que está acontecendo. Parece que minha vida fica maiscomplicada a cada dia. Seja no
serviço, seja em assuntos particulares,tudo é difícil de ser resolvido. Acho que... Raquel deteve as
palavras.
Alexandre, atento e curioso, ficou aguardando, mas diante da demora, perguntou:
O que você acha?
Os olhos de Raquel estavam brilhando e, tomando um impulso, ela revelou:
Nunca dei importância a magias ou coisas assim. Agora, porém,depois que visitei junto com
minha cunhada aquele "lugar", comecei aficar cismada, duvidando. Desde o princípio, comecei a me sentir
mal,com o coração oprimido, triste. Hoje as coisas estão piores. Nada estádando certo.
Mas você não está indo mais lá, está?
Eu disse para Alice que nunca mais volto lá. Não mesmo! Encarando Alexandre, Raquel
revelou: No instante em que disse isso, eu senti que Alice olhou-me com uma raiva, com um rancor...
Ela não disse nada, mas eu senti, entende?
115
Raquel, dê um jeito de se afastar daquela casa o quanto antes.
Como? Você não sabe o que é dificuldade, Alexandre. Por mais que eu tente, não estou
conseguindo. Dependo sempre do maldito dinheiro. Além do mais, não é só isso. Você mesmo pode
comprovar que,lá no serviço, não estou fazendo nada direito. Já fui chamada a atenção várias vezes.
Alguns colegas têm me ajudado, mas ultimamente ando tendo ideias fixas de que vou ser demitida, que vão
me mandar embora de uma hora para a outra pela minha incompetência, e...
É...?
Ora, Alexandre, nem preciso falar.
Falar o quê? Não entendi.
Você sabe que o Vagner está insuportável. Ele começou a insistir e... Tenho tanto medo
admitiu com sensibilidade ferida. Alexandre respirou fundo e franziu o semblante, não conseguindo disfarçar
seus sentimentos, e ela continuou: Não gosto dele. E você sabe que ele é muito amigo do senhor Oliveira,
o diretor de negócios. Disseram-me que o Vagner é primo da esposa dele. Veja, nós estamos sem um
chefe no setor porque o Edson pediu demissão. O Vagner conhece tudo ali dentro, é capacitado e tem um
tempo razoável na empresa. Agora me diz: quem você acredita que será nosso novo coordenador?
Com os olhos arredondados pela surpresa, Alexandre, muito sério, ficou em silêncio, e ela prosseguiu:
Não vou ceder às investidas do Vagner. Ele me apavora e enoja...Não sou tão competente assim
com meu trabalho a ponto de ser indispensável para a empresa. Entrei ali como digitadora e por força das
circunstâncias, olha onde estou e sem capacidade. Após poucos segundos de silêncio, ela admitiu: É
uma questão de raciocínio lógico, Alexandre. A qualquer momento ficarei sem emprego por causa do rumo
que as coisas estão tomando. Lá na casa do meu irmão, posso também, de repente, ficar sem ter onde
morar. Tenho todos os motivos do mundo para ficar preocupada. Raquel estava com os olhos brilhando
pelas lágrimas que começaram a brotar, então lamentou com suave voz abafada pelas mãos que passava
no rosto: Deus! Eu não sei o que fazer. Estou desesperada, você entende?
116
Entendo sim, Raquel. Calma. Eu vou ajudá-la.
Como? Ninguém pode me ajudar respondendo inconformada e abaixou a cabeça, escondendo
o rosto para não chamar a atenção.
Paciente, Alexandre argumentou:
Lá no serviço eu posso ajudá-la, sim argumentou Alexandre,paciente. Já fiz o seu trabalho
antes, você sabe. Quando tiver dúvidas, ou alguma dificuldade, é só me falar.
Não posso usá-lo, Alexandre. Tenho que resolver tudo isso sozinha.
Preste atenção, Raquel. Ninguém precisa ficar sabendo. Eu posso e quero ajudá-la. Há alguns
dias eu a vejo com dificuldades e só não me ofereço para não parecer intrometido.
Você já me ajudou muito.
Não tanto quanto eu acredito que posso. Diante do silêncio,ele perguntou: Se eu estivesse
em dificuldade e com problemas, vocênão faria o mesmo por mim? Raquel não respondeu nada e ele
concluiu: Então fica assim: lá no serviço, quando surgir alguma dúvida,eu a ajudo. Assim você ficará
mais calma e encontrará soluções para as outras coisas. Vai dar tudo certo, Raquel. Não podemos ser
pessimistas. Depois de alguns segundos, ele perguntou: Você está com fome?Vamos lá! Vamos
comer alguma coisa?
Não, obrigada. Preciso ir.
Encarando-o com jeito meigo, Alexandre figurou como um bálsamo reconfortante para Raquel, que o
olhava firme. Expressando-se com gentileza, ele pediu com ternura:
Deixe-me levá-la em casa? Conheço o caminho, já fiz isso antes evocê chegou inteirinha. Confie
em mim, vai.
Raquel sorriu levemente e, sem entender, acabou aceitando o convite. Quando se levantaram, ela
percebeu que Alexandre, rápido e discreto, tirou do bolso um pequeno recipiente que manuseou com
agilidade e pegou de dentro dele um comprimido que, ligeiro, engoliu a seco. Raquel não disse nada, pois
percebeu que o amigo não queria ser
notado.
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No caminho para casa, ela contou sobre o sono perturbado que estava tendo e comentou sobre seus
pesadelos, mas sem entrar em detalhes.
Ao estacionar o carro, eles não puderam ver que Alice e Marcos os observavam por uma das janelas da
casa.
Sem perder muito tempo no interior do veículo, Raquel rapidamente agradeceu a carona, enquanto
Alexandre, com as costas na porta do carro, despediu-se a distância, pois sabia que Raquel não gostava de
aproximações.
Ao entrar em casa, Marcos e Alice ficaram em silêncio.
Raquel sentiu algo estranho, mas não disse nada. Ela não tinha o que falar.
Capítulo 6
Confiando em alguém
Na primeira oportunidade de se ver sozinha com o marido, Alice, calma e cautelosa, observou comentando:
Viu, Marcos, foi como falei. Agora você mesmo pôde comprovarque Raquel não é o que
aparenta. Ela disfarça muito bem.
Por que ela faz isso, Alice? Não posso acreditar.
Ela faz isso a troco de sua proteção, sua atenção. Não se esqueçade que, anos atrás, Raquel
criou um caso que revolucionou a vida detoda a sua família. Todos ficaram contra ela, só você a apoiou.
Até suamãe reconheceu a filha que tem, tanto, que nem com você ela quer maiscontato. Agora está aí a
verdade. Após alguns instantes de silêncio,aparentando-se tranquila e racional, Alice continuou: Onde
vocêacha que Raquel arrumou o dinheiro que nos emprestou para que pagássemos o aluguel em atraso?
Se fosse através de economias, você não acha que ela já teria guardado outro tanto? Sim, porque o seu
saláriodeve ser o mesmo, se é que não aumentou. E, morando aqui conosco,ela não tem tantas despesas
assim. Acorde, Marcos! A Raquel é bonita!Muito bonita! Quem iria trazê-la em casa a troco de nada? Na
certa elafez programas para conseguir o dinheiro que reservou e, agora, por estarmorando aqui, sob a sua
vigilância, não deve estar ganhando nada e, por isso, não consegue juntar alguma grana.
Marcos, embebido por pensamentos terríveis, deixava-se envolver por Alice e Sissa, que lhe passavam
incentivos com o propósito de amargurá-lo e colocá-lo contra sua irmã.
Ao ver o marido em silêncio, Alice perguntou:
O que faremos?
Tristonho e até abatido, ele resolveu:
Ainda não sei. Vamos esperar mais um pouco. Não podemos mandá-la embora daqui.
Marcos, a passos lentos, retirou-se sem dizer mais nada. Alice imediatamente esboçou um ar de felicidade
através de uma satisfação sórdida, indecente. Iria, a qualquer custo, macular a imagem de Raquel para o
irmão.
Por quê?
Por simples prazer.
O coração das criaturas pequenas, que ainda não descobriram o amor, promove os danos nos sentimentos
alheios através de seus pensamentos, palavras e atitudes.
Mas elas ignoram que, no exato momento em que pensam indevidamente, falam de modo não conveniente
à boa moral ou agem com intenções indevidas, criam imediatamente em torno de sim uma aura
impregnada, uma grosseira camada de energias, fluidos pesarosos, vis, torpes, baixos e que
inevitavelmente atraem entidades sem evolução nem valores morais. Só que, independente de qualquer
coisa, a duras penas, haverão de harmonizar tudo o que desarmonizaram, pois esta é a Lei.
Como nos disse Jesus: "... de modo nenhum passará da Lei um sójota ou um só til, até que tudo seja
cumprido".
Só temos a eternidade para nos refazermos.
Com o passar de algumas semanas, Alice via-se nervosa e preocupada. Seu relacionamento extraconjugal
não estava indo muito bem. Ela e Aldo se desentendiam por qualquer coisa. Ele exigia mais tempo em sua
companhia, o que era difícil, pois Alice não poderia oferecer nenhuma desconfiança ao marido. Esse foi um
dos motivos que geraram várias divergências entre ela e o amante. Por essa razão, Alice começava a ficar
impaciente e irritada dentro de casa, voltando a ser mal-humorada, sóque não brigava tanto quanto antes.
Marcos acreditava que ela tornara a se comportar assim por estar insatisfeita com a presença e o
comportamento de Raquel. O que ele
120
poderia fazer? Ele não poderia colocar a irmã na rua. Se bem que, se Alice estivesse com razão, Raquel
arrumaria rapidinho um lugar para ficar. Outra coisa que o incomodava era o fato de ter usado o dinheiro
que Raquel lhe emprestara e, no momento, não teria como devolver.
Procurando por Alice, que se encontrava nervosa, conversou com ela a respeito e ouviu depois:
Veja, não tenho onde guardar mais nada. Não tenho espaço, não tenho os móveis nem armários
suficientes. Esta casa está pequena. Estamosprecisando de dinheiro para poder viver melhor.
Será que não teríamos um jeito de ajuntar um certo valor emdinheiro para devolver à Raquel?
ele ainda insistiu.
Alice estremeceu de ódio, porém não se mostrou alterada. Teria que manter a aparente harmonia se
quisesse convencer seu marido. Serena, mostrando uma calma incomum, perguntou:
Como assim: "devolver o dinheiro para a Raquel?".
Se nós devolvermos o que minha irmã nos emprestou, ela arrumaria um lugar para ficar e aí
teríamos mais tranquilidade e espaço.
Estou querendo minha privacidade, sim expressou-se Alice,ponderada. Mas você se
esqueceu de que Raquel também nos deve?Tempos atrás, quando ela não tinha onde ficar, pois até nas
ruas como indigente sabemos que ela morou, nós a apoiamos. Pagamos médicos,psicólogos. Eu sei que a
nossa situação era um pouco melhor. Mesmoassim, logo que se ajeitou e foi morar sozinha, nunca se
preocupou emnos pagar.
Mas, Alice...
Marcos interrompeu com cautela , se tivéssemos sobrando,eu concordaria agora mesmo.
Mas no momento não podemos. Além domais, ela vem mentindo para nós todos esses anos. Veja como
ganhoufácil aquele dinheiro.
Marcos se esforçava para reagir contra aquelas ideias, mas era difícil. A cada dia ele tinha motivos para
acreditar que Raquel não era verdadeira e que mentira aquele tempo todo. Alice realmente possuía um
coração repleto de impulsos maldosos. Ela começou a usar
121
verniz para disfarçar seus interesses mesquinhos e desprezíveis. A cada dia, se realizava em satisfação
íntima ao perceber que Raquel murchara, perdendo o viço e a alegria, ao se deixar abater visivelmente
pelos próprios pensamentos pessimistas que cultivava, por perceber a diferença de tratamento que seu
irmão lhe dispensava. Como se não bastasse, Raquel ainda tinha como companheiro espiritual um sofredor
que lhe emitia contínuas afirmações tristonhas e desani-madoras.
Em conversa com a amiga Célia, Alice revelava sua insatisfação por ter a cunhada em sua casa e também
seu desejo de vê-la longe o quanto antes.
... e o Marcos ainda quer lhe devolver o dinheiro! Que absurdo!
Por que você não foi lá naquele "lugar"? perguntou Célia,curiosa.
Já fui! Lógico que fui.
Então considere realizado.
Estou só aguardando, Célia. Só aguardando.
Após alguns dias, algo inesperado aconteceu e Alice, aos prantos, retornou para casa e narrou seu drama
em desespero:
Eu não acredito! gritava Alice, inconformada. Tudo poderia acontecer, menos a minha
demissão.
Calma, Alice pedia Raquel, consolando-a. Você arrumaráoutro emprego com facilidade.
Acredite!
Em um pranto compulsivo, onde os soluços, vez ou outra, inibiam-lhe a voz, Alice reclamava:
Isso foi injusto! Eu já estava acostumada ali... Isso foi por culpadaquelas invejosas! Cretinas!
Raquel estava muito penalizada com a situação, até porque sabia o quanto era importante para a família
que Alice tivesse emprego e salário. Recordando os primeiros dias de sua estadia naquela casa, Raquel
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lembrou que nem mesmo a comida era farta. Temia que Alice voltasse a ser tão briguenta como antes. A
vida de seu irmão voltaria a ser aquele inferno, pois Alice tinha o dom de irritar a qualquer um.
Marcos poderia, novamente, voltar a ter aquelas ideias terríveis que lhe contara sobre querer matar a
esposa e depois tentar o suicídio.
Esforçando-se para reagir e dar ânimo à sua cunhada, Raquel falou:
Quem sabe isso aconteceu para você arrumar coisa melhor? Agora, com experiência, você
conseguirá um emprego mais rendoso, em umlugar mais tranquilo. Anime-se, amanhã mesmo vou ver o
que posso fazer por você.
Você promete, Raquel? tornou Alice, quase implorando. Eu preciso tanto de um trabalho.
Prometa que vai me ajudar. Estou tão desorientada.
Prometo, sim. Vou conseguir.
Raquel parecia entorpecida. Envolvida por Sissa, ela se comovia com a condição de Alice. Sissa, através
de Raquel, iria procurar ajudar a sua protegida e colocá-la em uma situação melhor. A jovem Raquel, sem
conseguir raciocinar, quase automaticamente, fazia os contatos necessários para empregar Alice.
Em uma das oportunidades que teve durante o horário de serviço, Raquel comentou com Alexandre o
ocorrido e o amigo se indignou:
Você ficou louca?! exclamou incrédulo. Sua cunhadatripudia sobre você e ainda quer ajudá-
la?
Mas Alexandre, ela precisa. Além do que, quando Alice está desempregada, ela é terrível! Parece
que, com os pensamentos ocupados no serviço, ela não se revolta dentro de casa e fica menos implicante.
Quer um conselho, Raquel? E sem aguardar, opinou: Cuide da sua vida. Arrume um jeito
de sair dali. Procure alugar uma casa,uma quitinete, sei lá...
Como?
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Ora, Raquel, procure insistiu Alexandre, sem se exaltar. Deve haver um jeito. Tem que
haver um lugar sem tantas exigências.
Tá! Tudo bem, eu arrumo o lugar e onde vou dormir? Como voucomer? Preciso de móveis e
utensílios básicos. Vendi tudo. Mal me sobraram as roupas, pois Alice vive pegando emprestado o que
tenho de melhor.
Suspirando e pendendo a cabeça de forma negativa, Alexandre confessou:
Tudo isso me deixa indignado. Como você foi entrar nessa? Ninguém se desfaz de tudo o que
tem e...
Devo muito ao meu irmão. Você não entende porque não sabe o que já me aconteceu.
Alexandre, fixando o olhar sério, encarava Raquel, aguardando que ela contasse.
Já me vi em muitas dificuldades, Alexandre, e somente o Marcos me ajudou. Por isso, farei por
ele o que for preciso, nem que isso sejaarrumar um emprego para Alice.
Você deve ajudá-lo, sim, mas sem se prejudicar. Ultimamente,Raquel, vejo-a triste, abatida,
desanimada com tudo. Como vai querer ajudar seu irmão sem ter forças nem para você?
Eu sei que tem razão, mas a verdade é essa: sinto-me realmente sem forças, sinto-me
incapacitada. Encontro-me num serviço em quenão me acho competente, não me dou bem nessa função e
acredito quevou perder o emprego a qualquer hora.
Quem falou que você vai perder o emprego?
Alexandre, para tudo o que faço fico dependendo de você.
Ora, Raquel, nem tanto.
É verdade! Eu o uso o tempo todo. Tudo o que faço dá errado. Eu luto, trabalho, me esforço ao
máximo e ninguém me reconhece. Nemminha família.
A moça se deixava envolver pelas vibrações daquele espírito que a acompanhava e que, desalentado,
passava-lhe suas impressões.
O colega ouvia calado. Mas um espírito de maior evolução moral, que agora acreditou ser o momento certo
de agir, envolveu Alexandre, que reagiu otimista ao pessimismo de Raquel:
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Quem precisa valorizar os seus feitos é você mesma, Raquel,e não os outros. Não ressalte
o seu orgulho, mas você pode se considerar umapessoa vitoriosa por ter chegado aonde chegou. Não fique
olhando osproblemas. Procure as soluções. Após uma pequena pausa, ele prosseguiu firme: Tem
uma frase de Guimarães Rosa que é mais ou menos assim: "o animal satisfeito dorme". Se não está
satisfeita, acorde,Raquel! Não se acomode! Não creia que a vida seja assim mesmo, porque não é, não.
Você sempre pode fazer algo para melhorar. Reaja!
Não tenho motivos que me impulsionem, Alexandre. Estou semvontade.
Olhando-a bem nos olhos, ele se aproximou e, como se quisesse embutir-lhe as palavras, afirmou
categórico:
A decadência de uma pessoa se inicia com frases desse tipo. Não pense assim. Seu humor, seu
ânimo, sua força de vontade e a reconquista da auto-estima serão renovados quando sair da casa de seu
irmão, mas, para isso, você precisa se auto-afirmar como pessoa. Raquel não dizia nada, e o colega
continuou: Não faça nada em favor de Alice até você se estabilizar. Guarde suas energias para você
mesma. Vendo a colega manter o olhar fixo no chão, ele completou: Pense, Raquel. Pense bem.
Estabilize-se primeiro depois você pode pensar em ajudá-la. Antes, não. Passado alguns segundos,
Alexandre tomou coragem e decidiu: Eu preciso muito falar com você,mas não pode ser agora, nem
aqui. O assunto é sério e por isso precisamos de um tempo maior. Quando encerrar o expediente, você
me espera, certo?
Raquel, confusa e sem saber o que pensar, afirmou positivamente sem dizer nada. Alexandre voltou para o
seu lugar e ficou planejando o que iria dizer. Durante todo esse tempo de conversa, Rita e Vagner ficaram
paralisados e olhando-os, sem saber qual era o assunto. Quando terminaram, Rita, pensando em voz alta,
falou entre os dentes:
Ela me traiu. Quietinha, linda, ingénua e falsa.
Acho que ali o cafajeste é ele avisou Vagner. Alexandre,como todo bonitão, só sabe "dar
em cima", conseguir e cair fora.
Tá a fim da Raquel? perguntou Rita bem direta.
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Não mais. Se bem que ela é tentadora admitiu sorrindo commalícia.
Rita sorriu cinicamente exibindo no olhar um brilho diferente pelas ideias que começaram a surgir; virou-se
para o colega e decidiu:
Podemos ser grandes amigos, Vagner. O que você acha?Vagner quase gargalhou de satisfação e
estendeu a mão para a amiga,
que se encontrava sentada em sua mesa.
Bem mais tarde, Raquel e Alexandre se encontraram no shopping a fim de conversarem sobre o assunto
tão importante que ele anunciou. Esquecendo-se das promessas que fizera a si mesmo, tinha vontade de
se declarar apaixonado, mas deveria ter paciência. Raquel era diferente e estava com problemas. Então
resolveu guardar seus sentimentos e cuidar dos assuntos materiais. Ele poderia se conter.
Sentado em frente dela, muito decidido, Alexandre estava sério, com o semblante exibindo preocupação,
entretanto, firme avisou:
Raquel, quero lhe fazer uma proposta. Primeiro ouça tudo o quetenho para dizer. Tudo!
Entendeu? Ela o encarou e ele prosseguiu: Eu moro sozinho e não tenho muitas despesas. O
apartamento émeu. Não é muito grande, mas tem três quartos. Um é suíte, um eu usocomo escritório e no
outro eu guardo algumas coisas, este último é meiobagunçado. O quarto que faço de escritório não tem
muita coisa, nele eu posso colocar uma cama e...
O que você quer dizer com isso, Alexandre? perguntou ela, jáentendendo a proposta do
colega.
Espere. Ouça, por favor pediu tentando se explicar. Depois continuou: Você poderia vir
morar comigo. Eu passo a dormir no escritório e você fica com a suíte, será mais próprio e adequado para...
Você ficou louco?!
Não! Espere!
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Raquel ajeitou a alça de sua bolsa em seu ombro e foi levantando quando Alexandre a segurou, pedindo:
Por favor, Raquel. Espere-me terminar. Vamos conversar como dois adultos inteligentes e
racionais. Não fuja da situação. Por favor.
Eu não vou morar com você! respondeu quase sussurrando. Isso é um absurdo! Onde já se
viu?...
Sente-se Raquel. Não chame a atenção. Ela obedeceu e o amigo prosseguiu: Será por
pouco tempo. Podemos até estipular um prazo de três ou quatro meses. Só até você guardar certa quantia
para comprar o que precisa e montar uma casa. Aceite, por favor. É uma boa alternativa.
Nervosa, suspirou fundo exibindo seu desagrado, depois comentou:
Olha, Alexandre, eu venho comentando para você os meus problemas como um desabafo. Não
quero envolvê-lo em minhas dificuldades. O fato de ser meu amigo não lhe dá a obrigação de ter que
me ajudar. Se eu soubesse que iria agir assim...
Alexandre percebeu que não teria chances, sentiu-se derrotado, não conseguiria convencê-la. Após breves
instantes, ela concluiu, sempre educada e gentil:
Se quiser ainda continuar sendo meu amigo, vou sugerir, porfavor, me entenda e não me force a
aceitar seu convite. Eu sei que foicom boa intenção, mas...
Está bem, Raquel. Esquece. Não vamos mais falar nisso, eu prometo. Mas tome cuidado com
sua cunhada. E, lembre-se, serei sempre seu amigo. Certa vez eu disse que não tinha amigo por não
confiar emmais ninguém. Eu estava enganado, ainda existem pessoas sinceras, honestas e
desinteressadas, e você, Raquel, é uma delas. Eu a considerominha amiga.
O silêncio reinou por longos minutos. Alexandre, para disfarçar sua decepção, começou a falar alegremente
sobre o carro novo que havia comprado com a cor que ele desejava e que dera o outro como parte do
pagamento. A conversa seguiu sobre coisas corriqueiras até que Raquel, olhando a hora, informou:
Preciso ir embora. Já está tarde.
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Posso levá-la para casa?
Diante da humilde ternura que ele colocou no tom de voz e no olhar que parecia suplicante ao encará-la,
Raquel não teve coragem de recusar.
Após deixá-la em frente de casa, Alexandre se despediu com um nó a engasgar-lhe na garganta. Algo
estava errado. Ele sentia. Seus olhos estavam umedecidos e uma vontade de chorar o amargurava. A
custo conseguia conter-se.
Raquel, percebendo seu estado sensível, perguntou antes de descer do carro:
Você está bem?
Sim. Estou admitiu disfarçando o olhar sem encará-la.
Não está sentindo nada? preocupou-se a amiga.
Não dissimulando com um sorriso generoso, ele fugia do seu olhar. Não se preocupe,
Raquel. Estou bem. Pode ir tranquila. Ah!Tome! disse buscando no porta-luvas do carro um bloco de
anotações e uma caneta. Depois explicou: Sempre quis te passar o telefone do meu apartamento e
acabo esquecendo.
Após anotar o número no papel, entregou-o para Raquel, que admirou:
Nossa! Que número fácil de ser lembrado! Os quatro últimos são do meu ramal!
É verdade. Se precisar, não se acanhe. Ligue-me a qualquer hora.Sei que não vai esquecer.
Obrigada. Vou me lembrar.Raquel desceu do carro e entrou.
Mais uma vez eles não perceberam que Marcos e Alice os observavam de dentro da residência.
Veja você mesmo. Ela chegou em outro carro, com outro cara.Marcos só observou, sem dizer nada.
Mas seus pensamentos fervilhavam indignados.
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Com o passar dos dias, Raquel conseguiu uma colocação para Alice na mesma empresa em que
trabalhava. Alice ficou maravilhada. Mais experiente, ela se empenhava em obter destaque.
No decorrer de poucos meses, bem inteirada do serviço que realizava, Alice se destacava com o que fazia
e, em razão de trabalhar no atendimento telefônico, anotando recados e oferecendo informações, se
aproximou da chefia que, observando seu empenho, a colocou em outro setor, porém com o mesmo tipo de
serviço.
Só vou atender as ligações para os diretores, anotar os recados e,dependendo de quem ligar,
oferecer informações. Só que o horário será o do expediente contava ao marido.
Você e a Raquel fazendo o mesmo horário podem ir juntas evoltar também.
Ah, não! Deixe a Raquel seguir o ritmo dela e eu sigo o meu respondeu a esposa, com o
semblante sério.
Por quê?
Bem, será melhor assim tornou Alice generosa.
Marcos ficou pensativo. Aquela atitude de sua mulher deixou a desejar sobre o comportamento de Raquel.
Sua irmã talvez tivesse companhias que não agradassem a sua esposa. Analisando bem, reparou que
Raquel arrumou um emprego muito rápido para Alice e num momento de crise. Só alguém com muita
influência conseguiria isso. Ele ficou intrigado e não disse mais nada.
Na primeira oportunidade, Alice e Célia conversavam a respeito de Raquel.
Então eu fui lá novamente e reforcei os trabalhos. Quero a Raquel fora da minha casa o quanto
antes. Disseram que está sendo difícilporque ela tem um "santo muito forte". Mas eles vão dar um jeito.
Célia ignorava que tinha grande parcela de culpa nas maldades que Alice realizava e, com toda certeza,
teria que harmonizar à custa de muito trabalho o que estava fazendo.
Só pelo fato de ouvir algo errado e não ensinar o correto, já estamos coniventes com o erro e somos
responsáveis por ele.
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Em uma oportunidade casual, ao chegar ao restaurante, Alexandre viu Raquel almoçando sozinha. Depois
de se servir, devido ao tipo de serviço que o referido restaurante prestava, o rapaz se aproximou da colega
e, parado diante dela, empunhando uma bandeja com a refeição, perguntou:
Posso?
Claro. Sente-se e fique à vontade indicou, sorrindo satisfeita pela companhia.
Por alguns minutos a conversa predominante foi sobre o serviço, atéque Alexandre não conseguiu conter
sua preocupação e perguntou:
E você, como está? Há tempos não conversamos. Como estão osdesafios?
Não sei, Alexandre. Cada dia... Agora a voz de Raquel embargou,seus olhos ficaram nublados
pelas lágrimas que quase rolaram.
Vendo que a amiga tentava se controlar, ele aconselhou:
Tudo bem. Não diga mais nada. Aqui não é um lugar propício.Vamos fazer o seguinte. No final do
expediente nós nos encontraremosno shopping, no lugar de sempre, está bem?
Para a surpresa de Alexandre, ele ouviu:
Sim, por favor. Eu estou sentindo falta... Preciso falar com alguém.Pouco depois, já na empresa e
antes de retornar para a seção, pois
ainda não estava no horário, Alexandre encontrava-se no corredor à espera do elevador quando Vagner
perguntou:
Tudo bem, Alexandre?
Sim. Está respondeu, friamente e desconfiado.
Então não há problema algum com o serviço ou com o ambiente de trabalho?
Não, Vagner. E, mesmo se houvesse, acredito que esse não é o lugarmais propício para o
assunto. Além do que, ele não lhe diz respeito.
Está irritado, Alexandre?
Deveria?
Não sei. Só que você me parece um tanto nervoso, decepcionado.
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Engana-se, Vagner. Não tenho motivos para decepções nem para me sentir nervoso.
Procurando encontrar um meio de impor a Alexandre suas colocações venenosas, Vagner atacou:
Será que não está nervoso ou decepcionado por não conseguirnada com a Raquel?
Alexandre sentiu-se gelar, quase não conseguindo conter sua raiva. Calado, ele cerrou os punhos pelo
nervosismo, enquanto seu rosto transpirou, exibindo sua inquietação. Mas conseguiu permanecer em
silêncio. Vagner, com sorriso irônico, desfechou a punhalada fatal:
Estou tentando ser seu amigo. Não me leve a mal. Mas sabe porque você não consegue nada com
a Raquel? Porque ela "camufla". A Raquel joga no "nosso time". O negócio dela é outra mulher.
Alexandre sentiu-se ferver. Seus olhos faiscavam de raiva e, indignado, agarrou Vagner pela camisa,
exigindo:
Você vai ter que provar isso!
É fácil! Solte-me!
Alexandre o largou com um empurrão e Vagner, alargando mais o sorriso de desafio, concluiu:
A prova está em você mesmo. Seja esperto, cara! Como é que você,sendo como é, que tem
qualquer uma aos seus pés, não consegue nada com a Raquel? Depois de tanto tempo "chegando junto",
não acha que já deveria ter conseguido alguma coisa? Por que nunca a vimos com algum cara?
Isso não é prova, canalha. Vou quebrá-lo ao meio.Quando ia investir contra Vagner, este
rapidamente falou:
Pergunte à Rita. Alexandre estancou e o colega prosseguiu: Pergunte à Rita por que ela não
tem mais amizade com a Raquel. Repare que nenhuma outra moça tem amizade com ela.
Você está mentindo. Isso é muito baixo, Vagner! Alexandreparecia estar enjaulado. Ele
andava de um lado para o outro sem saber o que pensar e Vagner continuou:
A Rita se afastou de Raquel porque ela a estava assediando. Vamos! Vai lá e pergunta. Foi por
isso que me afastei. Nunca percebeu que
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a Raquel não suporta um abraço ou um beijinho nosso? Com quem soubemos que ela namorou, ou coisa
assim?
Desalentado, Alexandre falou em voz baixa, começando a crer no outro:
É mentira... Isso não pode ser verdade.
Vagner, querendo magoar ainda mais o colega, favoreceu-se de sua fragilidade, notando seus sentimentos
abalados.
Eu sei que você está decepcionado. Pelo visto, pela sua cara, vocêestava mesmo gostando dela,
não é?
Sem responder, Alexandre virou-se e caminhou até as escadas, usando-as. Seu rosto empalidecera e
exibia uma amarga decepção. Ele afirmava, em pensamento, que aquilo era mentira, mas algo o
enfraquecia. Tudo o que era lógico passou a ser duvidoso, e isso acontecia pelo fato de Alexandre ter ao
seu redor companheiros espirituais que insistiam em lhe passar pensamentos inferiores, fazendo-o crer
naquelas acusações baixas e irresponsáveis.
Chegando ao andar desejado, ele se deparou com Rita, que o cumprimentou e depois se alarmou:
Nossa, Alexandre! Que cara é essa?!
Sentindo-se atordoado e confuso, ele parecia ouvir a frase de Vagner em sua mente: "Nunca percebeu que
Raquel não suporta um abraço ou um beijinho nosso?" "Como é que você, sendo como é, não consegue
nada com a Raquel?"
Ele parou e ficou olhando para Rita, seus olhos pareciam vidrados.
Alexandre, você está bem?Encarando-a, foi direto e objetivo:
Por que você e a Raquel não têm mais amizade como antes?
Já preparada para tal indagação, pois Rita e Vagner haviam combinado tudo, ela disfarçou cinicamente ao
responder:
Alexandre, isso não vem ao caso. Você está tão branco, pálido.Vamos até ali, vamos conversar um
pouco.
Reagindo impulsivamente, ele quase gritou:
Não!
Rita encarou-o nos olhos e disse:
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Você já sabe, não é? Por isso está tão irritado e decepcionado, mas é isso mesmo. É por causa
desse tipo de vida que Alice briga com ela.
Alexandre parecia estar entorpecido. Não podia mais ouvir aquilo. Virando as costas, deixou Rita falando
sozinha e se foi.
Ocupando o lugar em sua mesa, o rapaz não parecia bem. Os companheiros espirituais que o envolviam
faziam com que se lembrasse de detalhes que achava estranho em Raquel. Ela nunca namorara, não tinha
amigas, era calada, não gostava de ser tocada pelos rapazes. Ele acabou recordando quando a viu
abraçada a Rita, enquanto riam por alguma coisa. Era estranho. Quando Rita a abraçou, Raquel não a
repeliu. Ele se sentia muito mal com tudo aquilo.
Procurou por seus remédios, mas com as mãos trêmulas e suadas, não conseguiu segurar o vidro, que lhe
escapou para o chão, onde se espatifou. Sem conseguir pegá-los, pois estava tonto e com a respiração
alterada, ele se debruçou sobre os braços e ficou quieto.
Raquel, que acabava de chegar, percebeu que algo estava errado, pois o amigo não costumava largar-se
daquela forma. Enquanto ia se aproximando percebeu sua palidez e, ao olhar no chão, viu os comprimidos
espalhados junto com pedaços de vidro.
Alexandre! assustou-se ela, correndo em sua direção.
Às pressas, Raquel pegou água, teve o cuidado de limpar bem um comprimido que apanhou do chão e,
oferecendo-o a Alexandre, disse:
Tome. Beba isso logo.
Dois... sussurrou ele.
Raquel abaixou-se, pegou outro remédio e o deu ao amigo, que, após ingeri-los, debruçou-se novamente
aguardando o efeito.
Raquel apanhou todas as cápsulas que encontrou no chão e as colocou sobre uma folha de papel. Virando-
se para Alexandre, avisou preocupada:
É melhor chamar alguém. Você precisa de um médico.
Não! reagiu o colega com toda firmeza que conseguiu.
Você não está bem, Alexandre.
Estou sim. Por favor, espere. Isso passa.
O quanto antes, ele ergueu a cabeça fitando-a longamente com um olhar suplicante que ela não pôde
entender. Vencendo-se, Raquel o tocou
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no rosto sentindo sua temperatura fria. Em seguida, afagou-lhe de leve e com terno carinho. Ele não dizia
nada, mas seus pensamentos fervilhavam.
Alexandre, deixe-me chamar alguém? pediu com sua voz suave.
Não. Estou melhorando. Isso é assim mesmo. Tomando novamente o fôlego, ele perguntou:
Tem alguém nos observando?
Raquel olhou em volta e respondeu:
Não. A seção ainda está vazia. O pessoal não voltou. Só têm alguns lá embaixo; onde estão, não
podem vê-lo sentado aí. Diante do silêncio, ela insistiu: Tem certeza de que está melhorando?
Sim, já estou melhor. Mais alguns minutos e isso já vai passar.Ele parecia se tornar mais corado.
Vagner acabava de chegar e presenciou a cena em que Raquel novamente acariciava com delicadeza o
rosto do amigo sentindo sua temperatura, mas ela não o viu.
Alexandre começou a se sentir melhor. Sentou-se corretamente, esfregou o rosto com as mãos e girou a
cabeça em círculos. Raquel, já sentada em seu lugar, observava-o a pouca distância. Ele pegou o telefone e
solicitou a alguém da manutenção que viesse prestar o serviço de limpeza pelo vidro que quebrou.
Percebi que está menos gelado. Mas tem certeza de que está melhor? perguntou Raquel um
tanto inibida, porém preocupada.
Sim, já estou melhor. Obrigado respondeu sem encará-la.
Você me assustou, Alexandre admitiu sensível.
Acontece. Não se preocupe afirmou sorrindo para disfarçar.Alexandre procurou se entreter com
alguns papéis, mas fazia isso
para dissimular. Ele ainda não estava conseguindo se concentrar, na verdade. Seus pensamentos eram
tumultuados pelas cenas das lembranças de alguns acontecimentos. Quantas vezes ele simplesmente
pegou em suas mãos e ela, com certo jeitinho, se afastou?
Vagner parecia ter razão. Como é que, sendo como era, não conseguia fazê-la se impressionar por ele?
Raquel o tratava sempre como amigo, nunca ofereceu qualquer oportunidade para uma aproximação.
Sópoderia ser essa a explicação para tudo isso.
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As ideias de Alexandre fervilhavam. Ele estava aflito. Intimamente sentia tanta amargura que era quase
impossível descrever. Lembrou-se de quando surpreendeu sua noiva traindo-o com seu melhor amigo.
Quanta decepção! Agora não sabia dizer qual experiência tinha sido pior, pois tudo apontava que só essa
explicação justificava as atitudes de Raquel. Ele sentia algo muito forte por ela. Não saberia descrever, mas
era algo muito acima dos sentimentos comuns.
Alexandre a amava.
Ele a respeitava e a queria muito bem. Seu coração estava oprimido pelos pensamentos que agora o
fustigavam. Com o olhar perdido, ele refletiu e resolveu:
"Não vou julgar Raquel. Apesar de tudo indicar que isso seja verdade, não posso julgá-la. Raquel nunca me
enganou e se não me contou foi por vergonha. Mas ela nunca me enganou. Talvez seja por isso que disse
já ter sofrido muito", pensava Alexandre, forçando-se ao equilíbrio. "Não vou dizer nada a ela, pois já está
com muitos problemas, com muitas dificuldades."
E, como que em prece, ele fechou os olhos e clamou:
"Deus, dá-me forças. Ajude-me a suportar. Parece que nasci para não ser feliz no amor, por isso, me dê
forças para suportar mais essa. Estou decepcionado, arrasado, não posso acreditar, mas... Sabe, se
alguém me dissesse que a Sandra me traía com meu melhor amigo, eu também diria que era mentira.
Portanto, diante do comportamento de Raquel eu não posso..."
A voz meiga e suave de Raquel tirou-o daquele diálogo com Deus. Alexandre quase se sobressaltou ao
ouvi-la perguntar:
Alexandre, você está bem?
Que susto, Raquel. Eu estava tão longe respondeu ao oferecer um leve sorriso.
Desculpe-me. Estou preocupada. Você fechou os olhos e ficoutão quieto.
Ele sorriu e acabou ficando satisfeito com a preocupação da colega, porém afirmou que estava bem e que
só pensava em um relatório que
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tinha de preparar. Raquel voltou para sua mesa e ele passou discretamente a observá-la com carinho e até
piedade. Alexandre possuía um coração nobre, pois era bondoso por índole.
Bem mais tarde, no final do dia, ele sinalizou para Raquel que jáestava saindo e a esperaria no local de
sempre.
Após alguns minutos, Raquel e Alexandre já se encontravam conversando na praça de alimentação do
shopping.
Você tinha razão, Alexandre. Trazer Alice para trabalhar comigofoi a pior coisa que eu poderia ter
feito.
Ele escutava atencioso e calado, pois sabia ouvir. Passando a olhar as lágrimas copiosas que rolavam no
rosto de Raquel, desejou apará-las, mas não podia. Respeitava sua amiga, afinal ele a amava e acreditava
no amor incondicional. Se era desse jeito que Raquel queria, assim seria. Alexandre somente aproximou
sua cadeira de Raquel para ficar mais perto e a fim de ouvi-la melhor. Raquel queria lhe contar algo, mas
sua emoção não deixava, embargando-lhe a fala que ele não conseguia entender. Em dado momento, a
amiga pareceu perder o controle das emoções. Queria falar, mas os soluços a impediam. Foi então que um
choro compulsivo, quase desesperador, a dominou.
Não resistindo, Alexandre se viu compelido a colocar seu braço nas costas de Raquel; abraçando-a,
recostou-a em si. Raquel parecia muito tensa, mesmo assim não o repeliu e chorou algum tempo em seu
ombro.
Envergonhada pela situação, ela abaixou a cabeça e, enquanto ele lhe afagava os cabelos, pediu com a
voz rouca, sussurrando:
Alexandre, me leva embora daqui, por favor?
Claro, vamos concordou gentil e prestativo.
Ajudando-a se levantar, ele a abraçou com generoso cuidado e a conduziu para que saíssem dali. Raquel
estava envergonhada, aquele era um lugar público e muitos olhavam curiosos, não tinham discrição. Ela
recostou seu rosto no peito de Alexandre, usando os cabelos para encobri-lo a fim de que ninguém a visse
chorando, entregando-se aos cuidados do amigo.
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Atencioso, sofrendo por vê-la naquele estado emocional, ele a levou para o seu carro, a fez entrar e logo
saíram do shopping. Raquel não dizia nada, só chorava, pois seus pensamentos estavam impregnados de
ideias pelas vibrações de amigos espirituais que a castigavam com induções.
Nesse caso, o mentor sabiamente não interferia. Havia um bem ocorrendo no suposto mal. Raquel
começava a vencer um medo que hámuito sofria e deixava-se abraçar por alguém de caráter em quem
poderia confiar. Em breve, ela descobriria que, por falta de preces nos momentos aflitivos, deixava seus
pensamentos desguarnecidos de fé.
Após dar algumas voltas, Alexandre decidiu ir para o seu apartamento e, ao vê-lo entrar na garagem
subterrânea do prédio, ela perguntou, com voz vacilante:
Onde estamos?
Calma, Raquel. Estamos em um lugar tranquilo e seguro. Não vamos ficar na rua "dando sorte ao
azar", correndo o risco de sermos assaltados ou coisa assim.
Amedrontada, com os olhos assustados, a moça parecia estar em choque.
Após estacionar o carro, Alexandre saiu do veículo, contornou-o, abriu a porta e convidou com
generosidade, ao estender a mão para ajudá-la:
Vamos?
Demonstrando certo espanto, com a respiração alterada, olhos vermelhos e voz levemente rouca, Raquel
pediu timidamente:
Leve-me embora.
Alexandre percebeu que a amiga estava trêmula e trazia uma expressão de pavor no olhar. Acreditou que a
qualquer momento ela pudesse gritar apavorada. Por isso, com cautela e extrema brandura, ele se abaixou
para ficar na mesma altura de Raquel, que continuava sentada no banco do carro. Aproximando-se um
pouco mais, olhou em seus olhos assustados e, generoso, com voz suave, explicou:
Raquel, estamos na minha casa. Não vou lhe fazer nenhum mal.Confie em mim. Eu sei que você
está nervosa e que precisa conversar, só
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que não dá para ficarmos no shopping por causa da sua emoção e não podemos ficar sentados dentro do
carro parado na rua, é perigoso. Após pequena pausa, ele se levantou e, estendendo-lhe novamente a
mão, pediu afetuoso: Confie em mim, Raquel. Venha. Vamos sóconversar, eu prometo.
Nesse instante, Raquel sentiu-se entorpecida. Sem entender, pegou na mão de Alexandre e aceitou o
convite. Após fechar a porta do carro, temeroso e com todo cuidado, ele tornou a colocar o braço no ombro
da colega, que estranhamente não reagiu e se deixou conduzir.
Já no devido andar, após abrir a porta do apartamento, ele educadamente se desculpou, oferecendo suave
sorriso:
Entre. Fique à vontade. Só me perdoe pela bagunça. Sou umpouco desordeiro.
Raquel ainda parecia assustada e nada disse. Fazendo-a se sentar em um sofá na sala, ele foi até a
cozinha, voltando rapidamente com latinhas de refrigerante e ofereceu-lhe uma. Sentando-se observou que
sua amiga ainda estava nitidamente trêmula e nervosa por estar ali. Com paciência e generosidade nas
palavras, perguntou:
O que foi, Raquel? Se bem que já imagino o que está acontecendo, mas quero ouvir de você.
Com os olhos novamente banhados de lágrimas, ela o encarou e desabafou:
Você tinha razão. Eu não deveria ter trazido Alice para trabalharjunto comigo. Agora, já
estabilizada no serviço e com "certos contatos",ela está fazendo tudo para me prejudicar.
Como?
Sabe, assim que a Rita voltou de férias, ela foi indicada para outro serviço e eu acabei ficando
com o que era dela.
É...?
Eu soube que a Alice, assim que começou a ter amizade com a Rita, disse-lhe que fui eu quem
insistiu para pegar aquele trabalho.Isso não é verdade! Agora a Rita está com raiva de mim, virando a
cara,jogando indiretas bobas e falando coisas que... Raquel deteve aspalavras.
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Ao ouvir isso, Alexandre ficou alerta. Tudo começava a fazer sentido. Se Rita estivesse com raiva de
Raquel, nada melhor do que difamá-la. Mas, por outro lado, Raquel agia estranhamente. Ele não disse
nada, achou melhor ouvi-la primeiro.
Isso não é só continuou Raquel falando baixinho e em meio aum choro mais suave , Alice
anda inventando calúnias absurdas!
Como o quê? perguntou mansamente.
Agora, trabalhando mais perto do senhor Valmor, ela anda... vamos dizer, fazendo cena, cara de
triste ou algo assim. Quando o senhorValmor pergunta o que é, a Alice diz que eu sou o motivo de sua
preocupação, pois a ameaço só porque fui eu quem lhe arrumou o emprego.Ainda mentiu dizendo que eu
falei tanta coisa ruim sobre ele e, só agora, trabalhando mais próximo, é que ela viu que era tudo mentira
minha. Raquel começou a chorar mais e, mesmo entre os soluços, continuou: O Vagner ficou irritado
comigo e...
Por quê? perguntou Alexandre, imediatamente alterado.
Ele disse que eu só fazia meu trabalho quando você me ajudava.Disse-me que você não estava
dando conta do seu serviço por minhacausa.
Canalha! Isso é mentira! E foi por isso que você parou de me pedir as coisas?
Raquel afirmou que sim, ao pender com a cabeça, e continuou:
Além de tudo isso, o Marcos está muito diferente comigo nosúltimos tempos. Talvez até ele já deva
estar sabendo da fofoca que Alice e Rita inventaram.
Que fofoca, Raquel? interessou-se, mas perguntoutranquilamente.
A jovem não se conteve, caiu em um choro compulsivo e atédesesperador. Sua natureza sensível e
delicada estava sendo rigorosamente agredida. Alexandre, ao seu lado, procurou olhar em seus olhos,
curvando-se ao perguntar com sutileza:
O que elas inventaram a seu respeito que a deixou assim?Raquel escondia o rosto com as mãos e
os soluços não a deixavam
responder. Nesse minuto, Alexandre, ligeiro em seu raciocínio, já havia
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descoberto tudo. Sem que Raquel visse, ele sorriu satisfeito ao juntar os fatos: Rita, não conseguindo
conquistá-lo, juntamente com Vagner, que nada conseguiu com Raquel, e agora com o apoio de Alice, que
não gostava da cunhada, inventaram aquela enorme calúnia contra Raquel para afastá-los como amigos ou
até algo mais sério que pudesse existir entre eles.
"Como pude ser tão idiota?", pensava ele. "Raquel é feminina demais para aquela história ser verdadeira. E
só observar o seu jeito delicado, sua personalidade sensível, seu comportamento feminino íntegro e
recatado, a maciez de sua voz... sua beleza... Como eu pude acreditar?!"
Ele sorriu satisfeito, mas piedoso, e ficou olhando para Raquel imaginando o quanto aquilo a magoava, o
quanto lhe doía tanta ofensa. Com a voz branda, aconselhou:
Não se preocupe, Raquel. Isso não é verdade e logo...
Você... tam... também já sa-be? gaguejou pelo soluço insistente.
Isso não tem importância argumentou com ternura.Raquel, envergonhada, começou a chorar
mais ainda, mesmo assim
ela dizia entre os soluços:
Meu irmão deve estar acreditando nisso! Que horror! Todo mundo pensa...
Ela estava em desespero. Raquel era extremamente sensível e Alexandre sabia disso. Ele podia entendê-
la, conseguia sentir sua alma delicada e compreender sua dor, mesmo desconhecendo sua história e as
dificuldades que a deixaram assim.
Aproximando-se dela, a abraçou recostando-a em si, oferecendo seu ombro para o pranto da amiga.
Raquel, talvez pelas fortes emoções e pela carência de alguém sincero naquele momento, não o repeliu.
Sem que ela percebesse, Alexandre encostou seus lábios na cabeça de sua querida, beijou-lhe várias
vezes os cabelos, roçando suavemente os fios que se enroscavam de leve em seu rosto. Sentia um
carinho, uma ternura imensa por ela, só que não podia se revelar. foi muito difícil conquistar aquele pouco
de confiança e trazê-la até ali fazendo acreditar nele. Agora não poderia estragar tudo. Ele saberia esperar.
Refletindo um
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pouco concluiu que Raquel, para ser arisca daquela forma, deveria ter experimentado, vivenciado algo
muito grave. Com generosidade, afagando-lhe os cabelos, Alexandre falava baixinho:
Não chore, Raquel. Não fique assim.
Eu... eu não sei o que faço lamentava soluçando.Delicadamente Raquel afastou-se do abraço
e começou a secar as
lágrimas com as mãos. Passado alguns minutos, um pouco mais recomposta, ela falou com leveza na voz:
Lá na casa do meu irmão está tão difícil. A Alice é falsa comigo.Eu sei. Ela está enchendo as
ideias de Marcos a meu respeito. Vouacabar sem ter onde morar e ainda perderei o emprego.
Não vai, não. Pense diferente, Raquel.
Como? Como devo pensar? É difícil arrumar um bom emprego.Estou desatualizada. Não tenho
casa, vivo com meu irmão e... Depois de breve pausa continuou: Parece que nasci para sofrer. Tudo
dáerrado para mim.
A cada instante a jovem se deixava envolver em vibrações inferiores. Pensando daquela forma, não reagia
e se entregava à manipulação de espíritos inferiores. Alexandre, mais racional, procurava animá-la:
Não fale assim, Raquel. Aproveite esse grande momento e descubra sua capacidade.
Que grande momento?
Aproveite esse desafio e mostre sua capacidade de vencer. Pense nas soluções, e não nos
problemas.
Você diz isso porque não está em meu lugar. Encarando-o nosolhos, ela admitiu: Estou
cansada. Não sabe o que eu já passei, nem imagina o que já tive de suportar e de superar. Não tenho mais
forças,Alexandre. Quero morrer!
Raquel! Não fale assim! "Faça uma jangada com o resto dos destroços do naufrágio." Já passei
por poucas e boas, também. Você sabe.E, veja, estou aqui. Não sei o que enfrentou, mas se foi um
problemamaior do que o atual e já superou, então, o desafio do momento não énada. Reaja, Raquel!
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Ela ofereceu um sorriso e um olhar tristonho com lágrimas que começaram a brotar novamente; falou
delicadamente:
Meu amigo, o difícil é saber que, até hoje, não solucionei meudesafio do passado e ainda tenho
um grande problema para resolver.
O que aconteceu, Raquel? perguntou interessado, sério e ansioso.
Encarando-o, ficou em silêncio, mas sem conseguir deter os soluços que se fizeram teimosos. Fitando-a
com serenidade, ele viu rolar as lágrimas em seu rosto trêmulo que, apesar de angelical beleza,
expressava-se triste. Seu olhar parecia implorar por socorro e amparo. Raquel sofria angustiada. Alexandre
sentiu um envolvimento irresistível entre eles. Instintivamente, puxou-a para perto de si, agasalhou-a em
seu peito, envolvendo-a com ternura e carinho. Raquel, parecendo entorpecida e um tanto paralisada, não
reagiu. Ele a ajeitou nos braços, quase a deitando em seu colo, prendendo-a firme contra si, mas com
delicadeza. Não acreditando naquele momento, Alexandre beijou-lhe a testa com todo carinho, com todo
seu amor. Sussurrando, pediu:
Raquel, conta pra mim a sua história.
Um choro desesperador se fez sem que ela conseguisse se conter, segurando-o com as mãos, puxava-o
pela camisa num gesto de aflição extrema, escondendo o rosto em seu peito. Alexandre começou a
embalá-la nos braços esperando que se acalmasse. Com voz generosa e piedosa, murmurou:
Oh, Deus! O que fizeram com você para ser assim?
Raquel não disse nada e continuou chorando enquanto escondia o rosto. Aos poucos ela se acalmou até se
recompor do desespero. Afastando-se dos braços dele, não o encarava, como que envergonhada. Com a
cabeça baixa, escondendo o rosto vermelho entre os cabelos, pediu:
Leve-me embora, por favor, Alexandre. Já é tarde.
Você não quer conversar comigo sobre isso?
Não consigo... respondeu hesitante.
Quer tentar? sugeriu bondoso.
142
A bela jovem ergueu o olhar, que parecia clamar por misericórdia, fitou-o por longo tempo, mas não teve
coragem de relatar sua história. Diante do silêncio que se fez, o amigo decidiu:
Tudo bem. Deixa para outro dia.
Ela concordou e depois pediu temerosa, envergonhada:
Dá para você me levar embora?
Lógico! Vamos respondeu Alexandre, com suave sorriso generoso.
Levantando-se rapidamente ele lhe estendeu a mão, ajudando-a. Não poderia trair a confiança que a amiga
lhe depositara, mesmo desejando que ficassem ali por mais algum tempo. Quando ela já estava em pé, ele
lembrou:
Quer ir lavar o rosto? O banheiro é ali ofereceu indicando.
Muito acanhada, Raquel aceitou. Ao retornar à sala sem fazer barulho, viu que Alexandre, sentado no sofá,
segurava a cabeça com as mãos, apoiando os cotovelos nos joelhos enquanto olhava para o chão,
pensativo. Aproximando-se do amigo, Raquel falou tímida e praticamente sussurrando:
Alexandre, por favor, me desculpe. Isso nunca me aconteceu antes e...
Levantando-se rapidamente, se pôs à sua frente e, interrompendo-a educadamente, disse bem seguro:
Por favor, não se desculpe. Tenho uma consideração, um respeitoe um carinho muito grande por
você, Raquel. Acredito em você e, comojá disse, eu a respeito muito. Gostaria que confiasse em mini, pois
quero, antes de qualquer coisa, ser seu amigo de verdade. Amigo mesmo tem que entender e sempre deve
estar pronto para tudo. Lembre-se disso.
É difícil encontrarmos pessoas sinceras, honestas e sem segundas intenções.
Sincero e honesto eu sempre fui revelou deixando-se conhecer. Mas não posso negar que,
no passado, eu não me aproximava de uma
143
moça, principalmente bonita como você, sem segundas intenções. Jásofri muito por isso também. Hoje é
diferente. Sorrindo meio sem jeito, ele completou: Creio que amadureci, cresci. Aprendi a respeitar as
pessoas. Após pequena pausa prosseguiu: Quero que confie em mim. Está certo? Não se sinta
ridícula, boba, nem coisa assim pelo que aconteceu aqui. Eu compreendo que precisava desabafar,
necessitava de atenção, carinho e tudo isso tinha que acontecer. Eu sei o que éprecisar disso.
Obrigada por entender agradeceu encabulada e abaixando oolhar. Depois elogiou: Seu
apartamento é muito bonito! Você disse que ele não era muito grande, você mentiu riu com leveza no
semblante e, antes que ele se pronunciasse, pediu: Vamos? Já é bemtarde, você me leva?
Sim. Claro. Deixe-me ver onde coloquei as chaves do carro.Alexandre a levou para casa, deixando-
a, como sempre, em frente da
residência de Marcos e indo embora após vê-la entrar. Raquel reparou que, mesmo tendo-a em seus
braços, confortando-a em um momento de desespero, Alexandre não se viu com a liberdade para abraçá-la
ou beijá-la para se despedir ao deixá-la em casa. Realmente ele a respeitava. Ao mesmo tempo, estranhou
sua própria reação, deixando-se envolver por ele. Não estava acostumada àquilo! O que será que
acontecera?
Aquela conversa com Alexandre lhe fizera muito bem. Ela não sentia seu coração tão oprimido agora. E em
meio a esses pensamentos, entrou em casa.
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Capítulo 7
Desorientada e sem rumo
Ao caminhar seguindo pelo corredor lateral da casa, Raquel passou a ouvir Marcos e Alice conversando em
voz alta e seu nome ser pronunciado. Sem imaginar que eles sabiam de sua chegada, caminhou a passos
lentos parando próxima de uma janela onde poderia ouvir melhor o que eles diziam.
Antigamente você não acreditava. Agora está aí nervoso e semsaber o que fazer.
Eu mato a Raquel! prometia Marcos, enfurecido. Aquelamentirosa!
Mentirosa mesmo! Eu vi, com os meus próprios olhos. Depoisde breve pausa, Alice
prosseguiu com voz de desdém: Quer dar umade mocinha ingénua, pura! Ela é uma safada, isso sim!
Você foi até eles?
Ora, Marcos! Você acha que eu ainda deveria me sujeitar a isso?Tenho testemunha, se quiser.
Porém, depois do que vi hoje, exijo quetome uma atitude, antes que ela apronte e sobre para nós.
Não suportando mais ouvir aquilo, Raquel entrou, parou após os primeiros passos e perguntou:
O que eu posso aprontar, Alice? Apesar de sentir seu coração apertado agora, Raquel tentou
ser forte e insistiu com veemência na voz fraca: É, diga Alice! O que é que eu posso aprontar e deixar para
dvocês?
Quem você pensa que é para exigir alguma coisa aqui na minhacasa? interferiu Marcos
rigoroso ao encorpar a voz.
Tomada de um súbito mal-estar, Raquel sentiu-se atordoada. Não esperava aquela reação de seu irmão.
Marcos nunca agira assim. Tentando se defender, a moça insistiu:
Quero saber o que Alice inventou a meu respeito. Como ela pode me tratar assim e...
Alice não inventou nada. Eu mesmo vi! interrompeu-a bruscamente.
Viu o quê, Marcos? perguntou Raquel.
Sinto muito, Raquel interferiu Alice coberta por um vernizcínico , estou cansada de esconder
tudo do seu irmão. Chegou omomento de dizer a verdade. Após pequeno intervalo de tempo,continuou:
Lá no serviço, assim que comecei a trabalhar, souberam que éramos parentes e pensaram que eu fosse
igual a você. Foi aí quecomeçaram a fazer inúmeros convites... convites indecentes.
O quê?! indignou-se Raquel. Que história é essa?
Chega de dar uma de santa, Raquel! gritou Alice, representando de uma maneira
impressionante. Você sabe do que eu estou falando. O Marcos também está ciente de tudo. Não precisa
mais fingirpara nós. Seu irmão já te viu chegando em casa com um e com outro!Marcos sabe que você está
acostumada a aceitar convites para esses programas levianos e se vende. O que ele não sabe é que você
já tirou filho várias vezes porque não achou um trouxa para assumir você e a criança!
Raquel começou a empalidecer diante da veemência da cunhada, que gritava. Ela ficou estática,
ensurdecida e não conseguia reagir contra Alice. Marcos, paralisado, também ficou boquiaberto e incrédulo
ao que ouvia da esposa. Ele ficou em silêncio enquanto sua mulher arrumava forças e convicção para dizer
muito mais sem que restasse qualquer dúvida sobre a verdade.
Estou sabendo também continuou Alice que você está tentando "segurar" esse tal de
Alexandre, dizendo que ele é o pai do filho que você está esperando. Chega, Raquel! Já chega! Se pensa
que vai largar esse filho aqui, está muito enganada.
A moça olhou para seu irmão e não conseguia falar por causa de seu estado de choque. Raquel passava
mal. Marcos, por sua vez, enlouquecido, colocou num grito seu ódio e sua repugnância para com aquelas
revelações, dizendo:
146
Diga algo, Raquel!!!
A jovem sentiu que o ar lhe faltou aos pulmões. Vendo-a desorientada, Alice perguntou aproveitando-se do
estado de choque da cunhada:
Vamos, Raquel, diga que é mentira o fato de você ter ido até oapartamento desse homem, que é
solteiro e mora sozinho!!!
Isso é verdade, Raquel? Você foi até o apartamento desse cara?Raquel ficou perplexa, muda! Não
acreditava no que acontecia. Alice
não oferecia uma trégua para que ela respondesse e exigia:
E então, Raquel! Como foi lá no apartamento do Alexandre hoje?Diga!
Marcos se aproximou da irmã, pegou-a pelo braço e inquiriu sacudindo-a:
E verdade, Raquel?!
Marcos, não é bem assim... gaguejou Raquel timidamente tentando se explicar.
Em vão.
Marcos, alteando mais ainda a voz, tornou firme:
Você veio da casa de um homem? Então é verdade... Decepcionado, ele a olhou nos olhos e
revelou: Você mentiu pra mim.Você me traiu, Raquel. Todo esse tempo...
Vamos, Raquel, tente explicar! inquiria Alice, irritando Marcos ainda mais. O que você foi
fazer lá? O que você fez com os seustraumas? E os seus medos? Onde é que está o seu pânico e
pesadelo?Nos fez acreditar que precisava de ajuda, atenção. Pagamos médicos,tratamentos! Para quê?
Sua sem-vergonha!
Raquel quase não ouvia o que Alice falava. Ela ensurdeceu em razão do nervosismo e nem conseguia se
defender.
Eu disse ao seu irmão que todo aquele trauma que você apresentava era mentira! Explique-se
agora! Hoje ele viu com os próprios olhos!
Marcos... aturdida e intimidada, tentou dizer.
Cale a boca, Raquel! gritou Alice. Eu e seu irmão vimosquando ele a trouxe de carro agora
há pouco. Eu vi, com meus próprios olhos, você indo ao apartamento do Alexandre. Foi assim: eu estava
147
com a Rita no shopping, nós vimos vocês dois lá na praça de alimentação, sentados e conversando muito à
vontade. Vocês estavam abraçados! A Rita ainda me disse: "Esse cara é o maior safado! Usa uma garota,
depois outra... Agora ele vai levá-la para o seu apartamento, vocêquer apostar?" Ela ainda me revelou:
"Você sabia que a Raquel estágrávida?". Eu me assustei e ela disse: "A essas alturas, o Alexandre
estáconvencendo-a a tirar o filho". Não demorou muito e vocês saíram abraçadinhos. Negue!!!
Isso é verdade, Raquel?! perguntou o irmão.
Com os olhos banhados em lágrimas, Raquel não dizia nada e Alice continuou:
Eu fui com a Rita até o estacionamento. Vimos vocês saindo.Entrei no carro da Rita e, a convite
dela, seguimos os dois até o apartamento. Nem acreditei quando vi você entrando naquele prédio. A
Ritaainda avisou que há tempos vocês estão se envolvendo. Fora isso ela me falou muitas coisas que a vê
fazer desde quando começou a trabalhar lá.Agora eu pergunto: onde estão os seus medos e traumas?
Não posso acreditar que você nos enganou esse tempo todo, Raquel! afirmava o irmão
desolado, pendendo com a cabeça negativamente, enquanto se apoiava no encosto da cadeira.
Raquel ficou paralisada, atônita. E em choque não conseguia falar. Erguendo-se, ficando na frente de sua
irmã, Marcos perguntou calmo e quase friamente:
O que Alice contou é verdade? Você foi até o apartamento desse moço e ficou lá até agora?
Eu fui, mas... tentou explicar-se com voz fraca e coagida.Interrompendo-a, com modos
bruscos, o irmão pediu exigente:
Quero que vá embora desta casa.
Raquel ficou incrédula. Paralisada, não saiu do lugar e Marcos gritou:
Agora!!!
A moça não tinha palavras. Ela tremia enquanto as lágrimas, antes abundantes, agora se escassearam. O
irmão virou as costas e foi para
148
outro cômodo. Enquanto Alice, com sorriso cínico, estampava na face um ar de vitória. Raquel, sem saber o
que fazer, estava sem forças para enfrentar novamente a dura realidade do abandono. Seu coração batia
acelerado, dolorido e triste. Encarando a cunhada que, com ar de desdém, fitava-a quase sorrindo, usou
suas últimas forças e falou firme para Alice:
Você não perde por esperar. Um dia você vai se lembrar de tudo o que está fazendo comigo hoje,
porque eu tenho certeza de que ainda vai passar por situação igual.
Virando as costas, carregando consigo somente sua bolsa, que continha alguns documentos, e a roupa do
corpo, Raquel deixou a casa de seu irmão sem saber para onde ir. Passou horas caminhando sem rumo e
os pensamentos conflitantes a deixavam mais confusa, atordoada. Ela não acreditava no que estava
acontecendo, não sabia o que fazer. Seu abalo era tanto que nem sentia a garoa fina que a molhava toda.
Aos poucos, Raquel parecia não saber o que se passava, a perturbação súbita intensa desequilibrou-a
mentalmente, mas de forma parcial. Ela não se lembrava de toda a discussão e acreditava ter perdido a
consciência daqueles últimos instantes vividos. Ela caminhava automaticamente e estava em choque,
desorientada e sem rumo.
Naquele mesmo instante, Alexandre, já deitado em sua cama, nem de longe podia imaginar o que estava
acontecendo. Ele começou a lembrar das dificuldades de Raquel e se preocupava.
"Como poderiam existir pessoas tão sórdidas e baixas como Rita, Alice e Vagner para inventar tudo
aquilo?", pensava. "Como eu pude acreditar naquela mentira tão infantil? Raquel é doce, delicada... Se bem
que ela é diferente. Sim, Raquel é diferente de todas as garotas que conheci. Seu jeito, seu silêncio é como
um mistério que me atrai e encanta."
Seus pensamentos vagavam deslumbrados. Em alguns momentos, ele acreditava que jamais poderia se
aproximar dela, em outros garantia que a teria junto a si. Fora tão bom abraçá-la! Beijar seus cabelos e
confortá-la nos braços! Como queria tê-la novamente! Queria protegê-la e tirá-la daquele medo, daquela
aflição extrema para apreciar, ainda mais,
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sua brandura. Como estava feliz por ter conseguido chegar até ali. Em dado momento, Alexandre elevou
os pensamentos em uma prece agradecendo por tudo o que tinha.
"Deus! Obrigado pela confiança que me depositou para proteger Raquel, de poder encontrar palavras que a
confortassem. Obrigado por tê-la colocado no meu caminho, por ter me considerado digno de alguém tão
nobre e fiel como ela, obrigado por me dar forças... Dê-me nova oportunidade para que ela confie em mim.
Dê-me discernimento, sabedoria... Proteja-a, Senhor. Proteja a minha Raquel. Envolva-a com amor e
carinho. Dê-lhe forças..."
A prece se seguiu. Alexandre voltou a relembrar os breves momentos com Raquel e passou a sonhar
acordado até que o sono o arrebatou, suave e definitivamente.
Alexandre... Alexandre, querido. Em poucos minutos, o rapazpassava a ouvir seu nome
pronunciado como que por uma vibração angelical, terna.
Ao dormir, no estado em que a alma se emancipou do corpo ou se desdobrou, Alexandre, ainda
assonorentado, passou a se deslumbrar com a bela imagem que lhe surgia na percepção. Era uma figura
doce, que trazia um rosto lirial, um aspecto suave e uma postura majestosa, impressionantemente bela.
Estendendo-lhe a mão, esse ser, que como um anjo se portava, sorriu com candura. Encantado, Alexandre
pegou-lhe a mão com cuidado e, olhando-a, sentiu como se um bálsamo sereno o envolvesse todo. Ele se
deixou largar naquele êxtase maravilhoso, indescritível. Aquele ser passou-lhe carinhosamente a sua
mensagem com brandura:
Meu querido, que bom tê-lo! Não foi fácil chegar onde está. Temos conhecimento disso. No entanto,
querido Alexandre, sabemos queé a porta estreita que nos conduz ao envolvimento sublime, à reparação e
à harmonização necessária. Querido filho, peço-lhe a paciência, a tranquilidade nas ações e a
perseverança no bem. Eleve os pensamentos nos momentos difíceis e tenha a certeza do amparo. Não
duvide. Procure oconhecimento para compreender, aceitar e se elevar diante dos fatos. Se
150
deseja respostas, busque-as você mesmo através do estudo sério. Conheça Jesus! Estude o Seu
Evangelho. Tenha fé. Diante das turbulências, renuncie ao fácil, à acomodação. Seja sensato para
conseguir separar o bom do mau. Agora descanse. Restaure as energias para se fortalecer. Nós o
amamos! Estaremos sempre com você!
Alexandre nada dizia, parecendo acostumado àquele envolvimento sublime. Eram suas preces e sua fé que
o elevavam àquele envolvimento. Seu silêncio parecia render culto àquele amor pela nobreza de seus
sentimentos.
No estado de sono, a alma encarnada dispõe de liberdade e atividade, pois quando o corpo se encontra
em repouso, não necessita da mesma e esta, com liberdade parcial, frequentemente se liga aos espíritos e
até às assembleias que possuem o seu nível moral, suas afinidades e seus objetivos; quando são os
mesmos. Encarnados que cultivam a prece sincera, pensamentos bons, conversação salutar e a tudo mais
que inclinem para elevados valores morais, quando dormem, procuram se reunir com os que lhe são
superiores, se instruem, se elevam e trabalham para o bem.
Mesmo não tendo recordações sobre esses ocorridos durante o sono, os conselhos salutares recebidos
surgirão no momento oportuno, como ideias exatas para se equilibrar diante da situação, ou sentir o que
poderáfazer de melhor. Assim também acontece com aqueles que são egoístas, maldosos, que desprezam
o bem, o bom ânimo e os valores morais elevados; esses, em estado de sono, vêem-se emancipados do
corpo e buscam assembleias, sociedades ou amigos no plano espiritual com os quais comunguem
"doutrinas vis, mais ignóbeis, mais nocivas do que as que professam", como nos ensina a questão 402 de
O Livro dos Espíritos.
Todo o tempo que tiramos para o repouso do corpo físico, seja para um simples cochilo, seja para um sono
profundo, entramos em contato com companheiros espirituais que influenciam imensamente nossa vida e
nossas experiências. "Dormir para o bem ou dormir para o mal" depende somente de nossas opiniões,
ações, pensamentos e práticas quando "acordados". As questões de número 400 a 418 de O Livro dos
Espí-
151
ritos nos explicam muito bem sobre a emancipação da alma e as visitas que podemos ter ou fazer durante
o sono do corpo físico, bem como os sonhos que, às vezes, recordamos.
Enquanto isso, Raquel chegava caminhando devagar até uma praça.
Com o coração descompassado, atordoada ainda, Raquel estava alheia e sem se importar com mais nada.
Desalentada, sentou-se em um banco, sem reparar os frequentadores do lugar, parecendo incapaz de ver e
ouvir. Minutos ali e um travesti, que a observava desde a sua chegada, incomodou-se com a presença da
moça.
Amigos espirituais, que foram designados para auxiliar Raquel, agiam naquele instante fazendo com que
aquele irmão pudesse ter compaixão da moça e se sensibilizar com as suas dificuldades. Eles procuravam
envolvê-lo, mas não era fácil. Raquel nada notou até o travesti dizer:
Por que não dá o fora daqui?! Esse lugar não é pra você!
Angustiada, Raquel ergueu vagarosamente o olhar, exibindo um semblante extenuado. Suas mãos
estavam trêmulas, geladas, aliás, todo o seu corpo tremia. Seguindo o rapaz com o olhar, pois ele enervado
andava de um lado para outro a examinando, Raquel, com voz fatigada, explicou:
Desculpe-me, não tenho pra onde ir.
Se vira!
Meu irmão me tocou de casa... Fui roubada... Após poucos segundos, abaixando o olhar,
disse, quase sussurrando: Tenho vontade de me matar, mas nem sei como.
O olhar de Raquel prendia-se em ponto algum do chão, enquanto as lágrimas caíam abundantes. O rapaz,
de súbito, sentiu um arrepio por todo o corpo ao ouvir aquilo, que o impressionou imensamente.
Credo, menina! Pare com essa história de morrer! Cruzes!!! respondeu o moço, horrorizado
fazendo o sinal-da-cruz.
Depois de observá-la um pouco, ele começou a se apiedar do estado de Raquel. Ela trazia o rosto
machucado e a leve blusa de frio rasgada. A
152
garoa intensa, que caía pouco antes, a deixou toda molhada e naquela hora fazia muito frio. Compadecido,
perguntou:
Você não tem nenhum namorado? Uma amiga?
Raquel ficava paralisada e parecia não ouvi-lo. Seu olhar continuava perdido. Menos agitado, o rapaz
perguntou:
Qual é o seu nome?
Raquel respondeu automaticamente.
Olha, menina, esse não é um bom lugar pra você ficar. Aqui, vaiacabar arrumando encrencas,
acredite! Você tem que ligar pra alguém.Tem que cair fora daqui. Entendeu?
Raquel, olhando-o sem expressão alguma, murmurou:
Não sei o que fazer. Não tenho para onde ir. Não tenho comoavisar alguém...
Suspirando profundamente, com modos e gestos típicos, ele respondeu:
Você já está me dando nos nervos! Não sei por que, mas voutentar te ajudar. Levanta daí! Vamos!
insistiu, puxando-a com delicadeza pelo braço.
Raquel, confusa, desorientada, não reagia e se deixou levar. Eles caminharam até um telefone público
próximo dali e ele ofereceu:
Tome! Ligue e vamos acabar logo com isso. Eu não sou babá e não posso ficar aqui pajeando
ninguém a madrugada toda! Mesmo me simpatizando com você.
Eu não sei... atordoada não conseguia ligar.
Vamos, Raquel! exigia inquieto. Não me faça perder tempo!
Vendo que a moça estava atormentada, ele resolveu:
Vai, me fala o número que eu ligo pra você.
Eu não tenho certeza, acho que... tinha os quatro números domeu ramal e...
O rapaz teve que fazer três ligações até conseguir acertar o número do telefone do apartamento de
Alexandre que, ao se identificar, assonorentado, acreditou tratar-se de um trote e desligou.
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Puxa! Que cara grosseiro! reclamou o moço. Vou tentaroutra vez, mas, se ele desligar...!
O nome dele é Alexandre informou com a voz fraca.
Alo! É da casa do Alexandre? perguntou ligeiro.
Por estranhar os trejeitos de entoar a voz, Alexandre admitiu, novamente exibindo insatisfação:
que?
É! Por
Não desliga. Não é trote, viu?! A Raquel vai falar com você.
Escuta aqui gritou Alexandre nervoso , vou...
Alexandre...? perguntou Raquel com voz suave e chorosa.
Raquel?! estranhou o amigo, sobressaltando-se. Onde vocêestá? Quem está com você?!
Alexandre... Raquel não conseguia parar de chorar, mas, entre os soluços, murmurou:
Alexandre, me ajuda...!
Onde você está?! perguntou o amigo, quase gritando, enquanto ouvia o choro sem obter
respostas.
Dá aqui, Raquel pediu o rapaz que a ajudava. Eu falo com ele. E pegando o fone, disse:
Alo?
Quem está falando? perguntou Alexandre.
Ah, meu bem! Não interessa! Olha, são três da madrugada. Esselugar é uma "barra". Vem pegar
a Raquelzinha, vem! Antes que ela se dêmal. Ela está muito nervosa, credo! Tá falando em morrer!!! O
irmão atocou de casa e ela também tá machucada. O problema é: ela tá bem aqui no "meu ponto", me
atrapalhando, né!
Procurando conter seu desespero, Alexandre perguntou com voz mais calma:
Onde vocês estão?
Após saber o endereço, ele saiu às pressas para o local. Minutos depois, Alexandre chegou à referida
praça e, ao parar o carro, ficou desconfiado, pois o lugar era muito sinistro. Mas antes mesmo de descer do
veículo, ele sofreu assédios daqueles que se encontravam ali por ficar olhando à procura de sua amiga, até
que ouviu:
Saiam! Saiam, meninas! Esse aí é amigo da minha colega, não éfreguês!
154
Alexandre reconheceu Raquel que, bem fragilizada, era conduzida por aquele rapaz. Saindo rapidamente
do carro, sem se importar com mais nada, Alexandre só viu Raquel. Aproximando-se, ele a envolveu com
carinho, perguntando:
Raquel! O que aconteceu?
E melhor vocês irem. Vão! Vão! pediu o moço que ajudava.Alexandre, conduziu Raquel e a
colocou dentro do carro. Virando-se
para o rapaz, agradeceu meio sem jeito, tendo em vista a situação.
Obrigado. Obrigado por tudo...
De nada. Mas... como é? Vai ficar só nisso? Gastei com a ligação.Não foi, Raquel? perguntou
curvando-se ao olhar para a moça que jáestava dentro do carro.
Alexandre muito preocupado e querendo sair o quanto antes dali, rapidamente tirou de seu bolso certo valor
em dinheiro e entregou ao rapaz. Agradeceu novamente e se foi.
No caminho para o seu apartamento, ficou em silêncio enquanto percebia que lágrimas contínuas rolavam
no rosto de Raquel, que parecia em choque, com o olhar perdido, imersa em seus próprios pensamentos.
Estacionando o carro na garagem do prédio, ele desceu, contornou o veículo e abriu a porta para que ela o
acompanhasse. A amiga estava em profundo abalo emocional. Percebendo seu estado, pediu gentilmente:
Vem, Raquel. Vamos subir.
Ela desceu como que maquinalmente do carro, obedecendo-o. Chegando ao apartamento, Alexandre
verificou que estava toda molhada e muito gelada. Ele não sabia o que fazer, estava nervoso e preocupado.
Colocando-a sentada no sofá, tomou o lugar ao lado e, segurando-lhe a pequena mão gelada entre as
suas, perguntou com voz mansa:
O que aconteceu, Raquel?
Ela fez um gesto singular com os ombros como quem não soubesse responder. Alexandre a abraçou, só
que ela ficou petrificada, sem reação e com olhar perdido.
Raquel, o que houve? tornou o amigo ao afastá-la de si. Mas ainda segurando em seus braços,
pediu: diga alguma coisa, por favor.
155
Ela olhou-o nos olhos e Alexandre só pôde observar as lágrimas compridas que rolavam seguidas, mas ela
não dizia nada.
Tudo bem. Tudo bem disse, com voz branda e pensando no que deveria fazer. Olha, é melhor
descansar. Você está muito gelada,molhada. Vem aqui. Ele a conduziu até a suíte e tirando um robe
doarmário, falou: Vou fazer alguma coisa quente para você beber. Tire essa roupa molhada e vista esse
roupão. Deite-se e... Vou ver o que faço,tá? avisou um tanto atrapalhado pelo imprevisto.
Raquel não respondeu nada. Alexandre saiu, fechou a porta do quarto e, somente após preparar um
chocolate quente, retornou. Batendo àporta, ele não ouviu resposta e perguntou firme:
Raquel, eu posso entrar?
Sem ouvir qualquer argumentação, vagarosamente Alexandre abriu a porta da suíte e, para sua surpresa,
Raquel ainda estava sentada na cama do mesmo jeito que a deixara.
Raquel... murmurou desalentado e sensibilizado. Deixando a bandeja que levava sobre uma
cômoda, aproximou-se e pediu: Raquel, ouça bem segurando-lhe o rosto, ele a fez olhá-lo e
continuou: , está sendo difícil para nós dois. Estou preocupado, nervoso,e não sei o que fazer ainda por
ter sido surpreendido com você neste estado. Não estou insensível, estou sendo racional. Vamos
minimizar os problemas, certo? Então, por favor, antes que fique doente, tire essas roupas molhadas. Você
está fria demais e...
Preciso ir ao banheiro murmurou com voz baixa e vacilante,interrompendo-o.
Ótimo. É aqui disse indicando. Aproveita, toma um banho bem quente e...
Não... recusou impensadamente.
Tudo bem, não toma, mas vista isso, certo? Ah! Ou melhor argumentou ele que, lembrando-se
e abrindo uma gaveta, pegou dizendo: , aqui tem esta camiseta e este agasalho. Estão limpos.
Ficarão grandes em você, mas é o melhor que posso oferecer. Por favor... pediu com brandura
oferecendo-lhe as roupas.
156
Raquel, estendendo a mão pálida e trêmula, pegou e o amigo disse com jeitinho:
Toma um banho bem quente, vai. No armário do banheiro temtoalhas limpas e secas. Pode usar.
Ao ver Raquel se levantar, ele pegou a bandeja novamente e saiu da suíte, dizendo: Vou esquentar esse
chocolate. Já deve estar frio.
Raquel não disse nada e Alexandre saiu. Após poucos minutos, do outro
cômodo, ao aguçar os ouvidos,
ele pôde escutar o barulho do chuveiro ligado. Alexandre estava muito preocupado com o que poderia ter
acontecido. Raquel estava agindo estranhamente. O que ele poderia fazer?
Em poucos segundos passou a ter dúvidas sobre o fato de ajudá-la ou não. Os companheiros espirituais
que Raquel trazia consigo e que, havia algum tempo, a envolviam com pensamentos tristes de maus
presságios, começaram a passar suas vibrações para o rapaz que, imediatamente, após os primeiros
sentimentos que o amarguraram, rogou por socorro.
"Deus, me ajude", pensou. "Eu queria tanto a Raquel comigo, agora... O que está acontecendo? Preciso de
forças. Eu a amo, mas a situação é confusa, complicada e eu estou com medo de ter problemas. Ajude-me,
por favor."
Mesmo preocupado, Alexandre sentiu-se mais confiante. Atento, ao perceber que Raquel saíra do banho,
foi até o quarto levando o chocolate quente.
Raquel, eu posso entrar? perguntou junto à porta da suíte.
Entre respondeu a jovem com voz fraca.
A moça estava sentada sobre a cama trazendo o semblante desolado e o mesmo olhar perdido. Ao vê-la
com sua camiseta e seu agasalho, Alexandre teve a iniciativa de lhe dar uma blusa e meias de lã, uma vez
que estava muito frio.
Toma, vista este suéter aconselhou com brandura. Examinando-a com o olhar ficou comovido
com o estado de Raquel, que faziatudo mecanicamente. Sem se constranger pegou as meias e pôs-se a
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colocá-las nos pés da amiga. Levantando-se, pegou a pequena bandeja que sustentava a xícara com o
chocolate quente e pediu: Beba isso para esquentar.
Ela não dizia nenhuma palavra. Ele tirou a toalha que envolvia os cabelos da moça, ainda molhados, e, de
joelhos sobre a cama, passou a secá-los, penteando-os com terna delicadeza. Raquel pouco se importava
com o que acontecia. Estava muito estranha.
Ao vê-la terminar de beber o leite, tirou-lhe a xícara das mãos e a fez deitar. Raquel só obedecia. Ao cobri-
la, Alexandre ficou de joelhos no chão ao lado da cama afagando-lhe os cabelos e o rosto. Depois de
alguns minutos, disse com extrema generosidade:
Procure dormir. Tocando levemente no pequeno hematomaque Raquel tinha na face, avisou:
Lamento não ter nenhum remédio para isso. Quando amanhecer, eu vou até a farmácia comprar
algumacoisa. Ante o silêncio, avisou: Estarei lá na sala. Vou deixar a porta aberta. Qualquer coisa,
você me chama.
Forçado pelas circunstâncias, Alexandre apanhou algumas cobertas no armário, foi para a sala e ajeitou-se
no sofá. Insone, pois as preocupações roubavam-lhe qualquer conciliação com o sono, observou o dia
clarear lentamente. Quando não conseguiu mais ficar deitado, levantou-se e preparou o desjejum, tentando
não fazer tanto barulho pensando em não acordar a amiga.
Após algum tempo, inquieto, pois não percebia nenhum movimento da moça, foi até o quarto.
Aproximando-se vagarosamente, verificou que Raquel estava deitada de lado, encolhida, na mesma
posição que a deixou. Seu olhar estava perdido e o avermelhado denunciava que também não havia
dormido. Ajoelhando-se ao lado da cama, acariciou-lhe os cabelos e o rosto, depois propôs:
Quer levantar? Preparei algo para você comer.Maquinalmente ela se sentou sem encará-lo e, para
deixá-la mais à
vontade, Alexandre avisou mais animado:
Aguardo você na cozinha, tá?
Alguns minutos depois Raquel saiu do quarto e o rapaz a recebeu na sala, conduziu-a até a cozinha,
fazendo-a se sentar.
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Desculpe-me, não sei fazer café. Mas aqui tem chá, leite, chocolate em pó, biscoitos, torradas...
avisou descontraidamente, tentando deixá-la mais à vontade.
Estou sem fome falou tímida e desalentada.Tranquilizando a animação de segundos antes,
agora estava insatisfeito. Ele ficou sério, sentou-se a seu lado e explicou:
Raquel, você precisa se alimentar. Tome ao menos esse chá bem adoçado, certo? disse
colocando-lhe a bebida fumegante na xícara.
A custo, Raquel ingeriu somente o chá, enquanto ele fazia sua refeição quase normalmente. A situação era
preocupante, Alexandre não conseguia relaxar por mais que tentasse. Após terminarem, Raquel se
levantou e, sem dizer nada, automaticamente ia levando a louça até a pia quando Alexandre a deteve:
Agora não. Isso pode ficar para depois. Vamos nos sentar ali na sala. Acredito que temos muito que
conversar.
Após se acomodarem no outro recinto, o amigo tomou a iniciativa e falou:
Raquel, quando chegamos aqui de madrugada, fiquei atento ao seu estado, às circunstâncias, e vi
que não era um momento propíciopara nós conversarmos. Sei que ainda está abalada, mas acredito
quepode me contar o que aconteceu.
Ela estava muito abatida e amargurada. Eles se entreolhavam e o silêncio reinou por alguns segundos. A
respiração curta e rápida da moça mostrava alteração de seu equilíbrio emocional e, por isso, murmurou
vacilante:
Estou com medo...
Lágrimas copiosas rolaram em seu rosto. Ele se sentou ao seu lado e, tentando abraçá-la, foi repelido com
um gesto delicado. Nesse instante Raquel, colocando os pés sobre o sofá, abraçou os próprios joelhos e
pôs o rosto entre os braços, chorando por alguns minutos.
Raquel chamou o amigo mais firme e equilibrado. Diga-me o que aconteceu.
Ontem começou tímida e com voz hesitante: , depoisque você me deixou em casa, entrei e
ouvi a Alice me caluniando para
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o Marcos. Ela disse que nos viu juntos no shopping e nos seguiu atéaqui.
E daí? perguntou ele diante da pausa.
Meu irmão ficou uma fera e me mandou ir embora da casa dele.
Só por causa disso?!
Não... respondeu Raquel, soluçando agora pelo choro queiniciava. A Alice disse para o
Marcos que...
Quê...? questionou ansioso não suportando a longa pausa.Com a voz abafada, pausada e
muito constrangida, ela revelou aflita:
... que eu estou grávida e... e o filho é seu.
Alexandre abaixou a cabeça e quase riu, não se incomodando com a seriedade do assunto. Mais sério,
argumentou:
Raquel, não se preocupe com isso. "A verdade é filha do tempo",em breve Marcos saberá que é
mentira.
A Alice disse que você estava me convencendo a tirar a criança.Ela falou ao meu irmão que eu já
fiz isso antes, que sou uma garotade programa chorou mais ainda em virtude de sua
sensibilidade natural.
Raquel, pelo amor de Deus! alertou com sutileza tentandoanimá-la. Em vez de ficar
chorando, você tem mais é que se dar porfeliz, pois saiu da casa deles.
Não é bem assim! replicou fragilizada.
Como não é assim? Além do mais, seu irmão é muito ignorante para agir dessa forma e por esse
motivo. Aproximando-se da colega,ele tocou-lhe na face machucada com jeitinho ao perguntar: Foi
ele quem fez isso no seu rosto? O Marcos bateu em você?
Não. Eu fui roubada. Saí da casa dele e não sabia para onde ir.Fiquei andando e... Nem sei
direito como aconteceu.
Machucaram você, além disso? expressou-se bem preocupado.
Não murmurou com leveza na voz.
Não mesmo?! insistiu ele desconfiado.
Não.
Como você foi parar naquela praça?
160
Andando.
Andando?! admirou-se o rapaz.
Raquel chorava ainda e, tentando consolá-la, Alexandre propôs:
Vamos resolver uma coisa de cada vez. Você vai ficar aqui comigo e necessita de algumas coisas.
Olhando-a e acreditando que Raquel estava adoravelmente linda em suas roupas, que lhe vestiam bem
grande, ele falou voltando à realidade: Vou buscar um remédio parapassar em seu rosto. Depois preciso
providenciar um colchão para eupôr no outro quarto e, ainda, irei até a casa do seu irmão para pegarsuas
roupas.
Não vou ficar aqui. Não é certo... avisou tímida.Quase friamente, para fazê-la raciocinar, ele
perguntou:
Então onde você quer ficar, Raquel?
Ela abaixou a cabeça e não disse nada. A situação era constrangedora e Raquel sentia-se humilhada.
Lágrimas copiosas corriam-lhe na face. Quando o amigo, comovido e carinhoso, tentou tocar-lhe o ombro,
como um carinho em sinal de apoio, ela se afastou vagarosamente acanhada e Alexandre respeitou sua
vontade. Levantando-se e não se deixando abater pelas circunstâncias, Alexandre decidiu:
Tenho de aproveitar que hoje é sábado para resolver o que lhe disse. Depois cuidamos de outras
coisas. Vendo-a ainda abraçada aospróprios joelhos, porém mais calma, perguntou: Você acha que
pode ficar sozinha?
Posso.
Pensando rápido, ele se lembrou que alguém de sua família poderia telefonar e, ao ser atendido por
Raquel, não iria entender o que estava acontecendo, por isso pediu:
Vou me trocar para sair e, quando eu estiver fora... Só peço umacoisa: não atenda o telefone. Se
precisar de algo, ligue para o meu celular. Vou deixar o número anotado aqui avisou, ao fazer a
anotação num pequeno bloco deixado ao lado do telefone. Você precisa de algo? Quer que eu lhe traga
alguma coisa da rua?
Não. Obrigada.
161
Alexandre foi para o quarto, trocou-se e saiu. Após ir a uma farmácia, retornou encontrando Raquel deitada
e encolhida no sofá da sala. Com o medicamento em mãos, passou um pouco da pomada no rosto
machucado de Raquel, pegou uma manta e a cobriu, oferecendo-lhe também um travesseiro para que se
ajeitasse melhor.
Quer que ligue a televisão? perguntou solícito. Raquel fez umgesto singular, como quem diz:
"tanto faz". Ele pegou o controle remoto, ligou o aparelho, deixando-o em seguida ao alcance dela.
Depois informou: Naquele saquinho, lá no banheiro da suíte, tem uma escova de dentes que eu comprei
para você. Há creme dental no armário.Vou sair para providenciar algumas coisas que vamos precisar.
Talvez eudemore um pouco. Se precisar, não hesite, ligue-me. Lembre-se de quenão vou telefonar. Depois
conversamos sobre isso.
Alexandre se aproximou, fazendo-lhe um suave carinho, quando observou que Raquel parecia encolher-se.
Despedindo-se, ele saiu rápido. Seus pensamentos estavam tumultuados. Ele queria Raquel consigo, sim.
Gostava muito dela, só que a situação era problemática. Conquistá-la seria difícil, não era bem isso o que
planejara.
Pouco mais tarde, parando o carro em frente da casa do irmão de Raquel, Alexandre ficou pensativo. Como
seria recebido? Ele nem conhecia Marcos! O que diria? Seu coração batia acelerado pelo nervosismo.
Não importa o que aconteça. Não vou pensar mais nisso disse em voz alta falando sozinho.
Vou lá e... Vamos ver.
Ao atendê-lo, Alice demonstrava-se desconfiada e até assustada. Ao tê-la próxima ao portão, após
cumprimentá-la cordialmente, Alexandre, sem oferecer trégua, foi bem direto e ponderado, nem mesmo a
cumprimentou:
Alice, eu vim aqui buscar as coisas de Raquel. Ela está em minhacasa e ficará lá.
As coisas dela?...
Sim, Alice. As roupas, os sapatos... Sei lá mais o quê. Creio quevocê deve saber melhor que eu,
certo?
Sim. Claro concordou amedrontada.
162
Alice exibia-se nervosa, não imaginava que Alexandre fosse capaz de fazer aquilo. Marcos estava em casa
e ela não queria que o marido visse Alexandre, pelo fato de ter inventado que Raquel esperava um filho
dele. Temia que tudo fosse esclarecido nesse encontro.
Você pode esperar aqui? Volto logo pediu Alice acanhada.
Sim. Eu espero. Obrigado.
Alice entrou. Marcos, entretido com um jogo que assistia, a princípio não deu muita importância à
movimentação da esposa. Entretanto, depois de muito vaivém, eles se inquietou, perguntando:
O que você está fazendo, Alice?
Nada.
Como nada? E olhando pela janela, por entre as cortinas, ele viu Alexandre parado em seu
portão. Quem é?!
Espere, Marcos, deixe que eu resolva isso.
Quem é esse moço, Alice?
Fique calmo. Ele veio buscar as coisas da Raquel. Não vamosprocurar encrencas, certo? Deixe
sua irmã viver com quem ela quiser eassumir a vida que escolheu.
Marcos ficou surpreso, sentindo-se gelar ao ouvir aquilo.
"Então Raquel tinha mesmo alguém", pensou atordoado. "Ela me enganou mesmo."
Até acreditou que sua irmã iria para a casa de uma amiga, mas não. Um homem, como Alice contou, e ele
mesmo via, foi quem veio buscar as suas coisas.
Fique aqui, Marcos pediu a esposa. Eu já volto. Só voulevar isso aqui.
Quando Alice entregava as sacolas nas mãos de Alexandre, Marcos não suportou ficar aguardando. Ele
estava indignado. Caminhando até o portão vagarosamente, Alexandre o notou e ao ver Marcos mais
próximo cumprimentou-o dizendo:
Boa tarde. Desculpe-me incomodá-los numa tarde tão fria, masjá estou indo. Virando-se para
Alice, agradeceu: Obrigado, Alice.
Quem é você?! perguntou Marcos, irritado.
163
Perdoe-me por não ter me apresentado. Meu nome é Alexandre.Você deve ser o Marcos, irmão
da Raquel. Prazer... Alexandre ficoucom a mão estendida, pois Marcos não lhe retribuiu o
cumprimento.Sem jeito, resolveu: Bem, preciso ir. Encarando o casal, aindaavisou: Não se
preocupem com a Raquel, ela ficará bem. Agora ela está muito abalada emocionalmente, em choque
mesmo. Mas vou cuidar dela. E olhando bem nos olhos de Marcos, admitiu sem se constranger: Eu
gosto muito da Raquel.
Então assuma o filho também! gritou Marcos. Não a obrigue a abortar.
Alexandre esboçou um sorriso satisfeito e irônico, respondendo:
Eu assumiria com o maior orgulho, com o maior prazer, se aRaquel estivesse grávida, sabia?
Mas, infelizmente, nunca tivemos nada. Mais sério e encarando-os, afirmou convicto: Não que eu
não quisesse. Não consigo me aproximar da Raquel, parece que há algumproblema, ela não se permite...
Cale a boca e suma daqui! gritou Marcos indignado.
Primeiro você vai me ouvir, Marcos! impôs Alexandre, tomando uma posição austera e
imperturbável. Impressionando Marcos a ponto de emudecê-lo, ao impostar um tom grave e firme na voz
baixa, continuou rápido e determinado: Nunca tive nada com a sua irmã, alémde uma grande amizade.
Nem sequer a beijei. Não namoramos ou ficamos, nem tivemos qualquer tipo de relacionamento íntimo.
Não consigo me aproximar dela até agora, não por eu não tentar ou desejar. Adoroa sua irmã, mas a
Raquel me esconde algo, ela não se permite e ainda não consegui descobrir o motivo. Mas eu a respeito
muito, tanto, que saberei esperar. Contudo, tenho certeza que você, Marcos, sabe do que se trata, sabe do
que estou falando, não é?! Pois alguém que vive em aflição extrema simplesmente por receber um toque de
carinho e nemse deixa abraçar, como sua irmã faz, só ficaria grávida por consequênciade uma violência!
Sou um homem experiente, Marcos! Ninguém me engana mais! No tempo certo, tudo ficará esclarecido.
Farei tudo pelaRaquel, tudo! Sabe por que, Marcos? Por causa da pureza, da lealdade e
164
honestidade que vejo nos sentimentos de sua irmã. Dificilmente encontramos pessoas nobres assim. Eu
acredito que você saiba o motivo que a leva a ser tão arisca, tão frágil e amedrontada, por isso deve saber,
lá no íntimo, que essa história de gravidez é uma mentira! Alexandre, agora menos tenso após o
desabafo, fez um ar de riso quase debochado e falou: Um dia, ficarei feliz em lhe dar essa notícia.
Lamento não ser agora.
Canalha! reagiu Marcos enfurecido e ofendido. E enquanto Alice o segurava, ele ainda gritou:
Diga à Raquel que se ela aparecer na minha frente eu a mato! Ordinária! •
Alexandre não se intimidou e prosseguiu, como se quisesse irritá-lo ainda mais:
É sério. Ficarei feliz mesmo. Só que agora não é o momento.Porém, como eu gosto de tudo
certinho, vou me programar bem paraque esse filho seja recebido com muita atenção e carinho, para que
ele e a mãe tenham tudo de melhor. A Raquel é adorável, será maravilhoso ter um filho com ela.
Suma daqui!!!
Não vou sumir, não disse Alexandre ao sair caminhando vagarosamente na direção de seu
carro , volto a fim de convidá-lo para ocasamento. Ao entrar no veículo, ainda desfechou: Cuidado
com o que você inventa, viu, Alice. Isso ainda vai fazê-la se dar muito mal.
Imensamente irritada pelo desaforo, pelo modo rápido, simples, cínico e provocante de desmascará-la,
Alice quase gritou:
Se houver um casamento, não se esqueça de levar a filha da Raquel pra junto de vocês!
Alexandre se foi. A princípio não deu importância, acreditando se tratar de mais uma mentira de Alice.
O casal entrou e Marcos começou a duvidar da esposa:
Ninguém falaria daquele jeito se devesse alguma coisa! Ele disse que nunca teve nada com a
Raquel. Falou muita coisa e de um modo bem seguro comentou desconfiado.
Você não vê que isso foi combinado?! Ele está mentindo!
165
Alice, se essa história for mentira sua...!
Analise comigo: quem a Raquel foi procurar para ajudá-la? O tal Alexandre, lógico! Por que ela
não foi pedir ajuda para uma amiga? E quando você perguntou se ela havia ido ao apartamento dele,
Raquelnão negou. Raciocine, Marcos!
O marido sentia que algo estava errado, mas todas as evidências apontavam contra Raquel.
166
Capítulo 8
Confidências necessárias
A caminho de seu apartamento, às vezes, Alexandre ria sozinho, perguntando-se onde tinha arrumado
modos tão corajosos e cínicos para falar daquele jeito. Em outras circunstâncias talvez tentasse ofender
com palavras bruscas para esclarecer aquela situação, querendo tirar satisfações com Alice pelo que ela
inventara. Entretanto, a ideia de estar com Raquel o agradava.
Ele a amava, tinha certeza disso.
Por um instante, Alexandre se lembrou das últimas palavras de Alice sobre levar a filha de Raquel para
junto deles. Por que ela dissera aquilo? Se fosse mentira, Alice deveria saber que ele falaria com Raquel e,
mais uma vez, seria desmascarada. Deveria ser mentira mesmo. Raquel lhe dissera que nunca tivera um
namorado.
Alexandre sentia um frio invadir-lhe o ser. A insegurança por ignorar os fatos lhe causava temores que
chegavam a abalar seu equilíbrio emocional, antes inalterável por ser muito racional. No apartamento, ao
entrar, não viu Raquel. Não a chamou, acreditando que estivesse dormindo. Reparou que tudo estava
muito arrumado. Por não ser muito ordeiro, sempre largava suas coisas pela sala, que agora estava bem
ajeitada. Indo até a cozinha, comprovou que alguém passara por ali colocando ordem, pois tudo estava
muito limpinho.
Chegando à porta da suíte, que estava entreaberta, ele a chamou baixinho, espiando ao mesmo tempo:
Raquel...?
Deitada em sua cama, ela se mexeu, voltando-se em sua direção. Em seu olhar havia uma expectativa
aflitiva em saber o que tinha acontecido. Alexandre entrou e se sentou na cama, ao lado da amiga,
perguntando:
Você está bem?
Estou. respondeu com voz branda, mas seus olhos estavam vermelhos, denunciando que
havia chorado.
Eu trouxe suas coisas. Bem, trouxe o que Alice me entregou. Se faltar algo, não se preocupe,
deixe para ela. Que faça bom proveito.Depois compramos o que lhe faltar.
Sentando-se para vê-lo melhor, podia-se notar que sua aparência exibia uma angústia intraduzível em
palavras, ela sofria fatigada e amedrontada. Frágil, avisou tímida:
Alexandre, eu não estou me sentindo bem.
O que você tem? perguntou preocupado, franzindo o semblante.
Não sei... sussurrou.
Como assim?
Parece que dói o corpo todo, algo que incomoda muito. Sinto-me tonta...
Raquel, você está abalada. Podemos dizer que é normal, tendo emvista o que sofreu.
Aproximando-se, tentou envolvê-la em um abraço.
Não, por favor... pediu meiga e sussurrando, afastando-se lentamente com lágrimas correndo-
lhe pela face.
Por quê? perguntou em tom deprimido e brando. Em razão do silêncio, expressou-se com sutil
generosidade: Não vou lhe fazermal algum. Confie em mim. Só vou lhe dar um abraço. Vem cá...
Aproximando-se cautelosamente, puxando-a para si, abraçou-a enquantoavisava: Vou cuidar de você.
Não quero vê-la sofrer mais, viu?
Alexandre afagava-lhe suavemente os cabelos, quando percebeu que ela estava tensa, amedrontada e
trêmula. Acreditando que lhe fazia sofrer mais com aquele carinho, afastou-a de si, percebendo que ela
escondia o rosto choroso.
O que foi, Raquel? tornou carinhoso.
Ela não respondeu e se afastou ainda mais. Secando o rosto com as mãos, ao se recompor um pouco,
perguntou acanhada:
Você viu meu irmão?
168
Alexandre pensou rápido. Não poderia contar à Raquel tudo o que dissera para Marcos. Apesar de não ter
mentido para o irmão dela em nenhum momento, tinha que reconhecer que se excedera. Para Raquel,
aquilo era prematuro demais, ela não aceitaria. Sem se estender, ele respondeu:
Sim, eu o vi disse breve.
Falou com ele?
Falei. Disse quem eu era e avisei que cuidaria bem de você. Que ele não se preocupasse.
E Marcos? Pediu que eu voltasse?!
Olha, ele não me pareceu muito bem e...
Preciso falar com meu irmão.
Lembrando-se da ameaça de Marcos, Alexandre aconselhou:
Aguarde um pouco. Agora não creio que seja um bom momento.
Vocês discutiram? perguntou encarando-o nos olhos.
Bem... Não.
Por ele não conseguir ser convincente, ela insistiu:
Não, mesmo?
Bem, eu tive que lhe dizer algumas coisas porque... Suspirando fundo, Alexandre falou:
Olha, nem me lembro como tudo começou, só sei que acabei falando que não há filho nenhum, que você
não está grávida e nós nem namorados somos, mas temos uma grande amizade e respeito. Alexandre
abaixou a cabeça, não conseguia encará-la,lembrando-se de tudo o que tinha dito para Marcos, pois num
impulso revelou quanto prazer teria em lhe dar a notícia de uma gravidez, sobre o convite do casamento e
tudo mais.
E ele? perguntou a moça, trazendo-o à realidade.
Não sei... Ele estava nervoso. Acho que nem me ouviu.
E a Alice, ela estava perto?
Sim, estava. Mais uma vez ela tentou jogar seus venenos...Raquel empalideceu ao deduzir o que
sua cunhada poderia ter dito.
Um novo tremor a dominou pela nítida e extrema aflição.
O que foi, Raquel? perguntou Alexandre, surpreso com o seu estado.
169
O que ela disse? indagou, já em choro, quase perdendo ocontrole.
O amigo, confuso, sem entender aquela súbita alteração, não sabia o que dizer, e ela insistiu, com
desespero na voz fraca:
Diga! O que ela falou?
Por que tanto pânico, Raquel? Alice é venenosa.
Fale, por favor implorou em meio aos soluços compulsivos.
Eu estava saindo explicou atordoado, sem saber como detalhar , já entrando no carro, Alice
disse algo sobre sua filha. Eu nemconsegui entender direito, nem sei se foi isso mesmo. Não ligue para
ascalúnias que ela inventa...
Não...! Ela não poderia... murmurou melancólica e em desespero.
Alexandre deteve as palavras e ficou olhando-a deixar o corpo cair, deitando-se novamente e escondendo
o rosto no travesseiro ao chorar muito. O amigo ficou ao seu lado por longo tempo afagando-lhe os cabelos.
Raquel estava inconformada. Ele se levantou, preparou uma água com açúcar e levou para ela.
Raquel, sente-se. Tome isso.
Ela parecia não ouvi-lo. Segurando em seu rosto, forçando-a a olhá-lo, Alexandre ia argumentar quando
percebeu sua temperatura muito alta. Tirando-lhe os cabelos da testa, ele sentiu que Raquel ardia em
febre. Após sair em busca de um medicamento que, ao encontrá-lo, gotejou na água, voltou e insistiu para
que ela bebesse.
Eu acho que a garoa fria te fez mal. Nossa! Você está com muitafebre.
Raquel demonstrava-se atordoada, aquela notícia e a febre a deixaram confusa. Parecendo mais calma,
ela reclamou baixinho ao fechar os olhos deixando-se largada:
Estou com frio...
Alexandre a cobriu, sentou-se na cama a seu lado, pegou suas mãos pequenas e frágeis, que estavam
suadas e bem frias, colocando-as entre as suas para aquecê-las. Preocupado com o estado da amiga, ficou
ali
170
sentado por longo tempo pensando no que Alice falou e na reação de Raquel. Ele não deveria saber de
muita coisa. Quando Raquel parecia estar em profundo sono, a deixou e foi preparar algo para comer.
Após fazer uma refeição, para se distrair e tirar da mente alguns pensamentos que o incomodavam,
começou a pôr em ordem um dos quartos, armando uma cama para se acomodar. De repente o telefone
tocou.
Droga! reclamou ao sair correndo e atirar-se no sofá para atender o quanto antes, pois se
lembrou que Raquel poderia acordar com otoque do outro aparelho que era extensão e ficava na cabeceira
de suacama.
Alo! Oi, mãe, tudo bem?
O que houve, filho? Você está muito sumido. Pensei que viesse aqui hoje.
Ah! Não deu. Arrumei algumas coisas para fazer e estou entretidoaté agora.
O que está fazendo de tão interessante assim?
Arrumando um quarto aqui. Sabe, está muito bagunçado. Estou com uns livros aqui que quero
catalogar. Então, aproveitei que estavafrio para me entreter com isso.
Você vem aqui amanhã?-É...
Se não vier, eu peço para seu pai me levar aí. Fiz algo que você adora!
Embaraçado, rapidamente decidiu:
Amanhã eu passo por aí, mãe. Não tem problema.
Vem para almoçar.
Olha, acho que não vou terminar isso aqui hoje, sabe? Quando vamos organizar um lugar, antes,
desorganizamos tudo. Façamos o seguinte: se eu terminar cedo, eu vou almoçar, mas antes eu telefono.
Não se preocupe.
Está bem, eu aguardo.
Certo.
171
Quando Alexandre pensou que sua mãe fosse se despedir, ela reparou:
Alex, o que você tem?
Eu?!...
Eu o conheço, Alexandre! Não me esconda nada. Você está bem?
Claro! Ora mãe, o que é isso? Estou ótimo!
A mãe fez silêncio por alguns instantes, depois resolveu:
Amanhã a gente conversa. Tchau, filho.
Tchau, mãe. Até amanhã. Dá um beijo na Rosana e outro no pai,por mim.
Apesar de seus trinta e dois anos, Alexandre, por ser muito amoroso, deixava sua família participar de sua
vida. Até porque, devido aos problemas de saúde, todos se importavam com ele.
"Será difícil tentar explicar tudo isso para minha mãe", pensava ele. "Como vou fazer? Quando eu disser
que coloquei uma moça para morar comigo aqui, não quero nem estar na minha pele! Ela vai falar tanto!
Além do mais, a Raquel está muito frágil e abalada para ser apresentada à minha família, principalmente
para minha mãe, tão exigente! Talvez só a Rosana entenda e..."
Um grito o fez voltar à realidade.
Raquel! exclamou correndo na direção do quarto.
Sentada na cama, ela estava ofegante. Seus olhos brilhantes denunciavam seu estado febril. Os cabelos
umedeceram com o suor e se colavam ao rosto e no pescoço da jovem. Com a respiração alterada,
coração acelerado, ela tentava balbuciar algo e não conseguia.
Raquel, calma. Estou aqui. Está tudo bem dizia Alexandrecom brandura ao tirar-lhe os cabelos
de seu rosto.
Não! Ele... Ele... tentava dizer ofegante.
Deve ter sido um sonho. Já passou, Raquel.
Não! Minha filha...
Alexandre sentiu-se gelar. Algo o decepcionava. Raquel deveria ter mentido justo para ele que não tolerava
ser enganado. Fazendo-se firme, perguntou quase friamente:
O que tem sua filha?
172
Ele vai maltratá-la... respondeu fitando-o com olhos vidrados,como que em delírio.
Calma, Raquel. Não vai acontecer nada.
Ela soluçou por algum tempo até parecer acordar para a realidade e serenar um pouco. Alexandre estava
nervoso. Aquele dia estava sendo difícil demais. Após alguns minutos, ele perguntou:
Você está bem? Abatida, ela afirmou que sim com um aceno de cabeça e ele aconselhou:
Faça o seguinte: pegue suas roupas etome um banho. Você precisa comer algo. Praticamente não se
alimentou hoje. Já é noite, sabia?
Atordoada, obedecendo a tudo maquinalmente, a bela jovem tentou se levantar, mas precisou da ajuda do
amigo, que a amparou quando a viu cambalear. Vendo-a mais firme, ele a deixou ir em direção do banheiro
e falou:
Vou fazer o mesmo. Pegarei minhas roupas e vou tomar um banho. Fique à vontade, não tenha
pressa. Vou usar o outro banheiro.Depois a gente janta, tá?
Alexandre saiu da suíte com o coração oprimido, amargurado, e não conseguia esconder suas emoções.
Algo acontecera e ele precisava saber ou não teria paz, odiava mentiras e traições.
Mais tarde um pouco, após fazerem uma refeição que o rapaz mesmo preparou, arrumaram a cozinha e ele
perguntou:
Você está melhor?
Sim, estou respondeu com voz suave e mais tranquila.
Venha cá ver o que fiz ele a chamou não se contendo. Levando-a até o outro quarto, mostrou:
Montei essa cama de solteiro que tinha aqui há algum tempo. É a que eu usava antes de mandar
fazeraqueles móveis lá da suíte. Não a usei mais porque seria desaforo abandonar aquela cama enorme
por essa aqui, não é? contou sorrindo.Raquel não dizia nada e ele, levantando a colcha sobre os lençóis,
continuou: Veja o colchão que eu comprei. Parece ser bom. Enquanto fuilá na casa do seu irmão, o
entregaram para o zelador e eu o peguei agora há pouco.
173
Por favor, Alexandre, deixe-me dormir aqui. Não quero incomodá-lo, tirando-o do conforto que
tem.
Não! De jeito nenhum afirmou cortês.
Será só por alguns dias. Vou arrumar um lugar para ficar, logo,logo.
Se é só por alguns dias, continue lá.
Não vou me sentir bem incomodando tanto.Colocando-se em frente de Raquel, falou brandamente:
Você não me incomoda. Pode ficar o quanto quiser e deixe-me, como bom anfitrião, fazer o que for
possível para acomodá-la bem, por favor.
Raquel abaixou a cabeça sem saber o que dizer. Sentia-se constrangida e era forçada pela situação a
aceitar a proposta. Pegando-a delicadamente pela mão, ele pediu:
Venha aqui na sala comigo. Precisamos conversar. Sentando-se ao lado da amiga, ele
perguntou, colocando-lhe a mão na testa: E afebre, cedeu?
Sim. Só sinto um pouco de moleza, mas já estou bem melhor.
Acho que ficou resfriada devido à roupa molhada naquele frio.
Ela não disse nada e Alexandre, respirando fundo, tomando coragem e buscando forças, falou
brandamente, porém determinado, procurando esclarecer a situação, uma vez que a inquietude e a
insegurança abalavam seus sentimentos:
Raquel, precisamos conversar. Eu sei que toda essa situação está sendo muito difícil para você.
Primeiro, quero que fique bem claro umacoisa: eu vou ajudá-la, aconteça o que acontecer, pois se for leal
comigo serei sempre fiel a você. Confie em mim. Mas, por favor, diga-me a verdade, seja ela qual for. Não
esconda nada. Não gosto de surpresas.Não gosto de estar envolvido em assuntos ignorando detalhes.
Apóspequena pausa, olhando-a firme nos olhos, ele continuou: Quero saber de tudo, mas tudo mesmo. E
provável que minha família não vá entender muito bem o que aconteceu e o que está acontecendo,
principalmente minha mãe. Na certa enfrentaremos dificuldades. Ninguémvai interferir nas minhas
decisões, sou totalmente independente. Entre-
174
tanto, quero que eles venham saber de tudo, se for preciso, por mim e não por intermédio de outros, como
fofoca. Por isso, conte-me tudo o que aconteceu.
Olhando-o fixamente, ela perguntou constrangida:
O que a Alice falou?
Não importa o que ela falou, uma vez que vou ouvir a verdade devocê.
Os pensamentos mais conflitantes a invadiam. Estava insegura e envergonhada. Vendo Alexandre como
único que não a decepcionara e nada exigia dela, teria que lhe contar toda a verdade. Ele merecia saber.
Então, Raquel começou:
Para que entenda, precisarei te contar toda minha vida, não sei se vou conseguir.
Sentando-se mais próximo da amiga, ele pegou sua mão, colocou entre as suas e disse:
Vai conseguir, sim. Eu estou aqui para apoiá-la no que for preciso.Um longo silêncio se fez até que
Raquel, bem acanhada, iniciou:
Há tempos, quando eu tinha uns oito ou nove anos, percebiaalgo diferente com o tratamento que
recebia. De modo estranho, ele tentava me agradar... A respiração da moça estava alterada, seu coração
batia forte e ela fugiu ao olhar de Alexandre, recolhendo a mão que ele segurava sem conseguir arrumar
palavras para continuar. Diante dapausa, ele perguntou:
Ele quem?
Imediatamente as lágrimas rolaram na face angelical de Raquel, mas ela não se deteve e sussurrou:
Meu tio.
Como ele a tratava diferente? perguntou gentil, mas resoluto.
Percebi que ele me acariciava... chorando aflita e constrangida,ela se reprimia, sem saber
como explicar, e o amigo argumentou tentando ajudá-la:
Seu tio te acariciava com certa malícia, ele era ousado, tocava em você
de modo incomum, é isso?
175
Abaixando a cabeça por estar ainda mais envergonhada, admitiu em voz baixa:
É isso. Após pequena pausa, Raquel prosseguiu: Eu fui criada no interior, em uma fazenda.
Não tinha muita malícia nem compreendia o que estava acontecendo. Na época falei para minha mãe,
queme pediu para não contar nada a ninguém, e eu a obedeci. Dias depois,eu a vi brigando com esse meu
tio.
Ele era irmão do seu pai?
Sim, era. Daí ele parou de ficar perto de mim, mas ainda me olhava diferente. Não muito tempo
depois, às vezes, mesmo perto dos outros, ele me punha para sentar em seu colo... No meio da agitação
ouda conversa, ninguém percebia que ele me acariciava... Eu queria me levantar, mas ele me segurava e
dizia que eu era arisca. Mas não era isso.O tempo foi passando e eu, quanto mais crescia, mais fugia dele.
Então,quando eu tinha quinze anos, meu pai sofreu um acidente. Foi assim:meu pai pegou carona com um
amigo que dirigia imprudentemente e,por excesso de velocidade, o homem bateu com o carro. Meu pai
quebrou o pescoço e teve traumatismo craniano. Ele nunca mais ficarianormal. Na época desse acidente,
todos nós ficamos abalados. Meus avós, minha mãe e meus irmãos foram para o hospital, na capital,
poismeu pai exigia tratamentos especiais que, na cidade próxima da fazenda, não havia.
Esse meu tio não foi com eles... Ele tinha mulher, três filhas e morava na fazenda mesmo, só que em outra
casa, não muito próxima da Casa-Grande, onde nós morávamos.
Raquel, agora extremamente sensível, fez uma pausa e caiu num choro compulsivo. Entre os soluços
persistentes, ela encontrou forças para continuar narrando:
Esse tio... Ele disse que dormiria na Casa Grande para tomarconta...
Alexandre ficou nervoso, bem que desconfiara; agora diante do relato já imaginava o que acontecera, mas
não podia mostrar para Raquel sua alteração pela indignação. Deveria manter-se equilibrado para ouvi-
176
la e ampará-la. A fim de fazê-la terminar de narrar aquele sofrimento o quanto antes, percebendo sua
dificuldade e constrangimento para relatar os fatos, ele perguntou cauteloso:
Não havia mais ninguém lá? Nenhum empregado?
Na Casa-Grande, não. Entre os soluços ela revelou: Ele seaproveitou de mim, me bateu,
me machucou muito... Após outracrise de choro intenso, ela continuou: Disse que, se eu contasse
paraalguém, iria ser pior...
Dois dias depois, quando minha mãe voltou, eu soube que meu pai estava em estado grave e, quando vi o
desespero de minha mãe, não tive coragem de contar nada. Não pude mais dormir bem, eu tinha sonhos
ruins, pesadelos horríveis. Acordava em desespero... Gritava... Todos pensavam que era por causa do meu
pai. Ninguém imaginava que...
Alexandre chegava a suar frio ao ouvir o relato, forçando-se imensamente para não exibir sua ira, sua
aversão à prática hedionda daquele homem. Vez ou outra, ele esfregava o rosto, circunvagando o olhar
pela sala para tentar espairecer por alguns segundos.
Mesmo chorando, entre soluços insistentes, Raquel continuou:
Esse meu tio tinha o perfil de um homem íntegro, digno e demoral inabalável. Ninguém poderia
duvidar dele. Quando perguntaram por que eu tinha aqueles machucados, ele disse que eu havia caído das
pedras da cachoeirinha que tem na fazenda, lugar onde eu gostavade ficar. Ninguém questionou. Não
havia motivo para duvidar dele. Otempo foi passando e ele nunca mais tentou nada, pois não houve
oportunidade. Eu não ficava mais sozinha nem perto dele.
Suspirando um pouco e tentando se recompor, ela prosseguiu logo depois:
Eu criei um objetivo. Queria estudar, pois sempre achei que aquela não era vida para mim. Eu não
gostava daquele "fim de mundo". Masmeu avô sempre foi contra o estudo. Principalmente para as
mulheres.Como eu digo, ele é o "czar" da família. Vive gritando e berrando, quando exige algo. Para eu
continuar estudando depois do primeiro grau foi muito difícil. Ele não queria. A custo, minha mãe conseguiu
convencê-lo.
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A cidade não ficava perto e, para estudar, eu teria que ir a cavalo.Não sei se você sabe, mas isso
é comum no interior. Esse meu tio tinha uma caminhonete e sempre fazia entregas ou recebimento de
produtos e mercadorias na cidade. Aí aconteceu que, um dia, sem mais nem menos, quando eu cheguei,
meu avô foi logo tirando o cinto e me batendo.Eu nem mesmo sabia por quê. Fiquei de cama depois da
surra. Maistarde, minha mãe me contou que meu tio disse ter me visto com umnamoradinho na cidade, e
isso foi o suficiente para meu avô me espancar daquele jeito.
Meu pai, praticamente inerte sobre a cama, nem imaginava o queestava acontecendo. Minha
mãe se intimidava e não dizia nada. Nessa época, meu irmão, o Marcos, por ter brigado com meu avô
inúmerasvezes, decidiu ir embora da fazenda. Ele havia estudado, pois anos antes já tinha nos deixado, e
se especializou em torneiro-mecânico, o que oajudou a arrumar um emprego. Marcos pegou Alice e os
meninos epartiu. Pouco nos dava notícias. Meus outros irmãos acreditaram no que meu tio falou e não me
defenderam, nem foram conversar comigopara saber, por mim, o que aconteceu. Nós não fomos criados de
maneira unida, meus irmãos não me davam muita atenção. Nesse instante a voz sensível de Raquel
embargou e ela quase chorou novamente, masprosseguiu: Porém, aconteceu o mesmo outras vezes,
pois meu tio inventou a mesma coisa e meu avô novamente me bateu, ou melhor, me espancou.
Alexandre a interrompeu e perguntou curioso:
E era verdade? Você tinha um namoradinho?
Não! Eu nunca namorei afirmou com sua simplicidade natural. Acontece que minha família
é um tanto preconceituosa, racista,e havia um rapazinho, bem moreno, que parecia gostar de mim, euacho.
Estudávamos juntos e, quando saíamos da escola, sempre conversávamos um pouco, mas, eu juro, nunca
tivemos nada! Não por ele sernegro, é que eu tinha planos. Iria estudar, arrumar um emprego e
deixaraquela vida miserável e aquele lugar maldito. Eu queria fazer como oMarcos. Lágrimas rolaram,
ela continuou, mas começava a ficar aí li-
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ta novamente: Quando eu tinha dezessete anos e voltava da escola, com a sua caminhonete meu tio
assustou o cavalo, que me derrubou e depois correu em galope. Caída no chão, fiquei atordoada, confusa.
Meu tio se aproximou, me pegou pelo braço e me levou para o carro. Soluços e lágrimas embargavam
sua voz e seu olhar exprimia uma revolta triste sem igual, breve pausa se fez e ela continuou com voz
vacilante: Ele travou a porta automática e eu não consegui sair. Ele me bateu e fiquei tonta, não
consegui reagir, acho que desfaleci. Acordei num casebre abandonado, no interior da fazenda mesmo e...
amarrada. Fiquei presa lá por uns três dias, eu acho...
Raquel não aguentou, caiu em choro compulsivo e Alexandre a envolveu num abraço. Não suportando a
amargura que sentia, ele chorou junto, sem deixá-la perceber. Com a voz abafada, escondendo o rosto no
peito do amigo, Raquel, às pressas, desesperada, relatou com extremo pavor, aflição:
Eu tentei lutar... Juro que tentei!!! Ele me amarrou, fez o quequeria e foi embora, me deixando lá.
Voltava no dia seguinte e... no outro, e fazia o mesmo...!
Nova crise de choro a dominou por alguns segundos. Ele beijou-lhe os cabelos, pedindo baixinho:
Calma, está tudo bem agora Alexandre tremia e chorava também.
Ele me levava água e algum alimento prosseguiu. A águaeu bebia, mas não conseguia
comer e ele me batia por isso. Conseguime soltar... Quase não achei o caminho de casa. Andei muito... o
diatodo.
Afastando-se de Alexandre, ela continuou apesar do choro:
Cheguei a custo na Casa-Grande. Todos já sabiam, por meu tio,que eu havia fugido com o tal
namoradinho e ainda previu que, nomomento em que eu me desse mal, voltaria para casa. Raquel
começou a falar rápido e em desespero, com muita emoção: Aos gritos, eucontei toda a verdade! Contei
o que meu tio tinha feito comigo! Que me violentou!!! Mas ninguém acreditou! Ninguém! Imagine, ele, um
ho-
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mem tão íntegro e com três filhas da minha idade! Minha tia, esposa dele, disse que eu queria destruir seu
lar e afirmou que já havia me visto com namorado. Ela acabou inventando muitas outras coisas sobre eu
me encontrar às escondidas... Meu avô me espancou como nunca. Fiquei mais machucada do que já
estava... Isso tudo foi na frente de todos da fazenda.
E sua mãe? interferiu Alexandre comovido.
Minha mãe ficou em choque. Ela parecia incrédula. Não reagiu,não disse nada. Somente mais
tarde eu entendi por quê. Meu avô meexpulsou de casa. Já era noite e, quando eu caminhava pela estrada
sem saber o que fazer, o capataz e sua esposa, que ficaram penalizados, me recolheram para sua casa só
por aquela noite, sem que meu avô soubesse. Na manhã seguinte, bem cedo, ele me deixou em uma
cidade vizinha. Eu não tinha nada. Muito mal a roupa do corpo. Fiquei perambulando... não sabia o que
fazer. Estava machucada, com muita dor...Quando a noite chegou, juntei-me a uma mulher que era
indigente.Ela me ofereceu abrigo em suas cobertas, só que eu não poderia chorar.Amélia se incomodava e
brigava.
O tempo foi passando. Essa indigente acabou se acostumando comigo; apesar de seus modos rudes,
grosseiros, era a única pessoa que me protegia contra aqueles que queriam mexer comigo. Mas exigia que
a ajudasse e nós tínhamos que buscar alimento até no lixão da cidade, além de sermos pedintes também,
porém eu não conseguia muita coisa ao mendigar por causa da minha aparência. Diziam que eu tinha que
ir trabalhar, que era nova e bonita, mas quem é que me oferecia emprego? Ninguém queria saber da minha
história nem de me ajudar. Com o passar dos dias, percebi que estava grávida... Raquel entrou em nova
crise de choro e, quando o amigo tentou abraçá-la, ela não permitiu. Com a voz embargada, continuou a
narração angustiosa: Eu quis morrer! Precisava de ajuda! Precisava da minha mãe! Queria vê-la
novamente e foi então que me lembrei de procurar por ela na igreja, pois, aos domingos, bem cedinho, ela
sempre estava lá. Eu não poderia aparecer, muitos na cidade me conheciam.
180
Contei para Amélia e ela me ajudou. Conseguimos carona até a cidade onde eu morava e eu me escondi
enquanto Amélia aguardava o final da missa, pois eu já havia lhe apontado, a distância, minha mãe. E foi
com o propósito de mendigar que ela se aproximou de minha mãe e disse: "Tenho notícias da Raquel".
Furtivamente, minha mãe seguiu Amélia, que a levou até onde eu estava. Nunca tinha visto minha mãe
daquele jeito, ela ficou assustada demais quando me viu. Depois que perguntou onde eu estava, ela tirou
de sua bolsa uma carta que Marcos havia lhe escrito, a qual acabara de pegar na cidade. Tirou a carta,
deu-me o envelope e pediu que eu procurasse por ele naquele endereço. Não queria magoá-la, mas tive
que contar que estava grávida. Ela ficou em choque, pálida. Incrédula!
Imediatamente pediu que eu jurasse que estava dizendo a verdade sobre ter sido o meu tio que fizera
aquilo comigo. Eu jurei.
Foi então que ela se afastou de mim, olhou-me de um jeito muitoestranho que jamais vou esquecer.
Empalidecida, com os olhos arregalados, ela disse friamente, sem piedade: "Seu tio é seu pai."
Fiqueiparalisada. Passei muito mal. Achei até que ia desmaiar. Minha mãeparou de chorar e ficou me
olhando. Sem dizer nenhuma palavra, ela foise afastando mecanicamente andando para trás. Eu queria
falar, queriaperguntar, mas não conseguia.
Nesse instante, Raquel parou de falar, secou as lágrimas que rolavam, ergueu os olhos para Alexandre que
perguntou em tom de compaixão:
O que aconteceu depois? Ela não te ajudou?
Não respondeu exaurida de forças, parecendo desalentadacomo se vivenciasse novamente
aquela situação. Minha mãe nuncame ajudou. Amélia, apesar de seus modos um tanto rudes, foi a
únicacriatura que ficou do meu lado e me abraçou, tirando-me dali. Nósvoltamos para a outra cidade. Eu
fiquei atordoada, debilitada de reações e fazia tudo de modo meio automático. Não queria acreditar no que
acontecia. Só me alimentava porque Amélia insistia, praticamente
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exigia. A única coisa que fiz foi guardar com a vida o envelope com o endereço do meu irmão. Dias depois,
o inverno chegou rigoroso e, numa noite fria, muito fria em que nevava, policiais passaram socorrendo para
um albergue os desabrigados. Deitada num canto escondido, eu estava com muito frio e me encostava em
Amélia. Nessa noite eu a achei muito quieta, não me preocupei, porque ela bebia, sabe como é...
Um policial se aproximou, cutucou-me e chamou para entrar num caminhão. Quando fomos ver, Amélia
estava morta. Chorei como se tivesse perdido a minha mãe. Amélia morrera de frio, talvez. Entrei em
verdadeiro desespero. Eu não tinha mais ninguém. Amélia agia como minha mãe. Às vezes eu penso que
ela fez mais por mim do que... Ela me defendia de ataques. A rua é muito dura, ninguém imagina como...
Alexandre, a essa altura, segurava a própria cabeça com as mãos, apoiando os cotovelos nos joelhos.
Estava perplexo, triste, incrédulo, e não sabia o que fazer ou dizer.
Raquel, agora sem tanta emoção, continuou:
Fui levada para um albergue. No dia seguinte, ao passar pelatriagem, viram que eu estava
grávida. Foi então que uma assistente social me encaminhou para um abrigo de gestantes desamparadas.
Nesse lugar, fui bem tratada. Havia médicos, freiras e voluntárias, gentis eeducados. Psicólogos, com certa
frequência, tentavam conversar comigo. Mas eu não conseguia falar nada, nem me lembro direito como
foi esse período. Muito mal informei meu primeiro nome. A única coisaque disse foi que não queria aquele
filho.
Quando a criança nasceu... Sua voz embargou e ela quase não conseguiu continuar, mas por
fim falou, desesperada: Eu queriamorrer! Eu me odiava! Aliás, quase morri no parto porque tive
complicações. Depois, soube que era uma menina porque a irmã Clarice me falou. Eu me recusava a pegá-
la, mal olhava para ela... confessouparecendo arrependida. Muitos conversavam comigo, mas a
partirdaí eu emudeci completamente.
182
Assim que me recuperei, pois estava muito fraca, abandonei o lugar sem olhar para trás e deixei lá a minha
filhinha. Raquel chorou exibindo um grande remorso que parecia castigá-la. Procurei meu irmão.
Marcos estava preocupado. Por carta, minha mãe lhe contou quase tudo e disse que eu o procuraria. Só
que demorei muito tempo desde quando ela havia lhe dito e, quando apareci, eu estava sem o bebé. Meu
irmão me recebeu. Ele sempre quis saber onde deixei a criança.
Alexandre ergueu a cabeça e perguntou:
Você sabe onde está sua filha? Lágrimas rolaram no rosto de Raquel, mas ela não respondeu, e
ele insistiu: Você sabe, Raquel,onde ela está? Novo choro se fez. Ele a abraçou mesmo sentindo-
aamedrontada e tornou a perguntar com generosidade na voz: Sabeonde fica esse albergue? Sabe onde
ela está?
Raquel se afastou do abraço, respondendo chorando:
Sim...
Você nunca a procurou? quis saber compadecido.
Sim, mas eu não contei para o Marcos. Há poucos meses, antes de ir morar com ele agora, entrei
em contato telefônico com o abrigo.Lembrei que a irmã Clarice me disse para chamá-la de Bruna
Maria.Então, todos a conheciam como Bruna Maria, a filha de Raquel. Quando liguei, pedi informações, me
falaram que ela havia sido levada paraum orfanato. Anotei o endereço, telefonei, mas me disseram que
sópoderiam dar maiores informações pessoalmente. Eu não tive coragemde ir até lá, eu...
Depois de pequena pausa, Alexandre perguntou:
E quando você voltou sem sua menina, como foi, seu irmão atratou bem?
Sim, sempre. Precisei de médicos e ele me forneceu tudo, até queeu me recuperasse bem. Fiz
tratamentos psicológicos... Eu tinha medos,entrava em pânico, sofri muito com os pesadelos. Marcos me
ajudava emtudo. Ele me arrumou emprego na recepção de uma fábrica, principalmente para me ajudar a
entrar em contato com as pessoas. Depois de umtempo, a fábrica fechou e eu arrumei serviço em outro
lugar. Então,
183
voltei a estudar e fiz alguns cursos. Minha mãe mandou a documentação que eu precisava e eu fui me
refazendo em todos os sentidos. Só não queria falar na minha filha. Nesse período, Alice fazia da minha
vida um inferno. Ela nunca me suportou, mesmo quando morávamos na fazenda.
Marcos me ajudou a alugar uma casa pequena e até pagava parte do aluguel para mim. Foi aí que comecei
a ficar independente. Numa conversa com meu irmão, descobri que minha mãe jamais lhe disse que meu
tio era meu pai. Nem o que ele havia feito comigo e que minha filha era filha dele. Marcos pensava que a
filha que eu tive era do tal namorado. Então, contei a meu irmão o que nosso tio havia feito, só não revelei
que ele era meu pai.
Depois de tudo isso, quando abriu concurso para operadores de computação na empresa aérea, eu
consegui uma das vagas e me tornei mais independente devido ao salário melhor, pois passei a me
sustentar sozinha. Marcos perdeu o emprego que tinha e arrumou esse outro onde está até hoje e... o resto
você sabe.
Olhando firme para Alexandre, encarando-o nos olhos, ela afirmou com sua peculiar voz delicada, mas
demonstrando imensa dor em seus sentimentos:
Essa é toda a verdade, Alexandre. É a primeira vez que eu a conto assim, na íntegra, como agora. Você
é a primeira pessoa a saber de tudo isso. Como vê, não é uma história que eu possa sair por aí relatando.
Tenho muita vergonha. Você nem imagina o que passei, como sofri, nem imagina...
O silêncio reinou por longos minutos.
O rapaz estava atordoado, perplexo e estático com toda aquela revelação. Ele jamais poderia imaginar que
tudo aquilo pudesse ter acontecido com Raquel. Por amá-la, aquilo também lhe doía muito. Agora entendia
algumas reações estranhas que percebia nela, compreendia seus sentimentos, suas aflições e fragilidade.
Alexandre a encarou, fitando-a por longo tempo, sem dizer nada. Raquel, visivelmente fragilizada, não lhe
fugia ao olhar, como quem aguardasse uma resposta e ele se explicou com voz terna, triste e piedoso:
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Perdoe-me por tê-la feito contar tudo isso. Mas eu precisavasaber.
De seus tristes olhos, ele viu brotar lágrimas que não demoraram a rolar em sua linda face sofrida.
Alexandre, observando-a, não conseguiu controlar seus sentimentos e, ao perceber seus olhos se
aquecerem, tentou reagir, mas sua emoção foi mais forte e ele chorou sem se constranger.
Raquel tremia talvez aflita de medo pelas traumáticas recordações com um misto de vergonha. Ele se
aproximou, envolveu-a em um abraço sem se importar com seu choro compulsivo que se fez
repentinamente. Ajeitando-a como quem aninha uma criança no colo, ele a embalou por algum tempo,
confortando-a. Afagando-lhe os cabelos sem dizer nada. vez e outra ele a beijava na testa. Ao sentir sua
fragilidade, seu pavor, ele percebeu que a amiga nunca tivera um carinho, ela parecia um bichinho coagido,
buscando conforto no seu fraco coração e abrigo no bálsamo de sua amizade ao esconder o rosto em seu
peito. Pelo longo tempo, que nem Alexandre percebeu passar, Raquel adormecera em seus braços.
Deus rogou , dê-me força e saúde. Raquel precisa de mim eeu dela. Não será fácil,
principalmente com a minha família. Ajude-me,Pai. Ajude-me.
Alexandre sentiu-se mais sereno e Raquel ainda dormia em seus braços. Cuidadoso, ele a pegou no colo e
a levou para o quarto sem acordá-la. Colocou-a sobre a cama, cobriu-a e acariciou-lhe a face por algum
tempo, fitando-a pensativo.
"Como Raquel é bonita!", pensava ele admirando-a. "Por que tudo aquilo tinha que acontecer? Tem que
haver uma explicação. Confio tanto em Deus. Ele não pode ser injusto."
Alexandre gostava cada vez mais de Raquel. Principalmente agora por sua lealdade em contar-lhe toda a
verdade mais dolorida que ela queria esquecer. Não seriam as dificuldades do seu passado, tampouco a
filha que tivera, que serviriam de empecilho para ele naquele momento. Determinou-se a ajudá-la e só não
ficaria com ela se ela não o quisesse.
185
Com carinho, ele a beijou na testa e foi se deitar. Por tanta emoção, Alexandre estava cansado e
adormeceu logo. Minutos depois, pela emancipação que ocorre durante o sono, ele se viu no plano
espiritual envolvido por aquela generosa entidade que sempre lhe acolhia no estado de sono. Alexandre
não era adepto de nenhuma religião, mas possuía uma fé inabalável em Deus.
Seu caráter íntegro, seu coração bondoso o inclinavam a consolidar bases espirituais em nível superior.
Nem sempre havia sido assim. Tempos antes Alexandre era um rapaz vaidoso, que se orgulhava de sua
aparência, de suas dádivas naturais, da inteligência que possuía.
Sendo de uma família financeiramente bem estruturada, nunca tivera grandes dificuldades, não sabia o que
era isso. Nunca levou a sério nenhuma namorada, mesmo porque as moças que se interessavam por ele
não se davam valor ou respeito. Ele também não se preocupava em ter uma qualidade religiosa de vida.
Com o tempo, conheceu sua ex-noiva e, por gostar muito da moça, começou a ficar mais responsável.
Nessa época, acreditou que era sério. Sandra era importante para ele. Estava apaixonado por ela. Mas a
decepção com a traição que sofrera levou-o a tentar o suicídio, que quase se consumou. Alexandre
vivenciou uma terrível experiência que jamais poderia esquecer e nunca conseguira, com palavras,
descrever.
Algo mudou nele. Tudo o fez despertar para a vida, despertar para Deus.
Mas ainda lhe faltava algo. Passou a ser mais calmo porque seu problema cardíaco exigia isso. Começou a
lembrar de Deus, não só nos momentos de insegurança como também para agradecê-Lo pela segunda ou
terceira oportunidade de vida que ele acredita ter. Poderia ter desencarnado com a parada cardíaca ou com
as tentativas de suicídio, mas não.
Alexandre realmente fora envolvido, principalmente agora, pela sua fé, sua gratidão ao Pai e por sempre se
religar a Ele através da conversação que soava como uma prece.
Mas ainda havia algo a fazer. Alexandre precisava ter conhecimento. Talvez ele não tivesse sofrido tanto se
buscasse Deus em seu coração há
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mais tempo, porém agora, após passar por dificuldades incríveis, estava refeito, pronto para o
entendimento das verdades sublimes e, consequentemente, para as provas com o trabalho redentor.
Esse era o momento.
Com carinho inenarrável, próprio de entidades superiores de elevada envergadura, aquele ser que sempre
o socorria quando ele, pelos pensamentos elevados em prece, buscava Deus, punha-se novamente a
enternecê-lo nos braços, tal qual a mãe que agasalha em seu aconchego o filho querido que lhe pede
amparo.
Acariciando Alexandre, que ainda estava um tanto adormecido naquela emancipação, essa criatura o
observava com ternura e amor.
Alexandre chamava-o. Sou eu, filho.
Como que assonorentado, ele sorriu ao vislumbrar tão grande beleza.
Meu querido, sei o quanto seu coração está dolorido. Sei tambémdo seu amor verdadeiro, das suas
dúvidas, dos seus medos. Enfrentará situações difíceis, mas continue com fé. Busque, Alexandre, busque
oconhecimento dos fatos. Procure entender o porquê da vida. Nada é por acaso, meu filho. Quando
entender e aceitar, estará pronto para trabalhar e, só assim, será verdadeiramente feliz.
Alexandre a fitava, até que tranquilamente argumentou:
Eu a amo tanto disse referindo-se a Raquel. Não quero vê-la sofrer. Preciso protegê-la.
Você vai conseguir entender a vida, se aceitar os ensinamentos deJesus.
Quero ficar com ela...
Terá que conquistá-la, filho. Eis o seu desafio. Mas somente atarefa produtiva pode oferecer
recompensas. Ensine-a sobre o porquê davida, dê-lhe razões para ocupar a mente de forma produtiva e
oportunidade para o trabalho útil. E, para isso, terá que aprender primeiro. Euinsisto, procure conhecer os
ensinamentos de Jesus.
Nesse momento, até que tudo se tranquilize, vamos envolvê-la. No entanto, Raquel terá que vencer as
dificuldades por si mesma, despertando sua fé e acreditando na justiça de Deus. Raquel não crê. Não
187
como deveria. E, por ter descido seu nível de pensamento a ponto de se deixar envolver por criaturas
espirituais tão ignorantes, ela mesma, pelas próprias forças, tem que reverter esse quadro. Você pode e
deve ajudá-la, afinal, foi a isso que se propôs diante de quaisquer dificuldades que pudessem ocorrer nesta
experiência encarnatória. No entanto, somente ela poderá se erguer.
Às vezes tenho medo... Tenho dúvidas.
Você sempre terá amparo, meu filho, enquanto estiver agindocorretamente.
E meus pais? Minha família?
Isso é algo que você terá que resolver. Aja sempre com bons propósitos. Tenha fé e não seja
insolente, não precisa disso, não é? Beijando-lhe na testa com imenso carinho e como despedida, ainda
argumentou: Precisa de repouso, filho querido. Cuide de sua saúde. Epassando-lhe a delicada mão
sobre o rosto de Alexandre, completou: Agora adormeça, você está protegido e amparado por causa da
sua fé.Eu o amo muito.
Adormecido e recolocado em seu leito para a devida recomposição, Alexandre teve um sono tranquilo e
reconfortante.
Na manhã seguinte, ele acordou cedo e, sentindo-se muito bem, ficou algum tempo em sua cama
pensando em tudo o que acontecera com Raquel. Alexandre não se recordava de nenhum sonho.
Lembrou-se então que prometera para sua mãe que iria almoçar com ela. Mas, e Raquel? Ele precisava
falar com sua amiga e explicar que tinha de conversar com sua família, mas ela não poderia se sentir um
incômodo.
O rapaz pulou da cama sem se importar com o frio, sentia-se animado e disposto. Às vezes ele era abatido
por algumas lembranças sobre as dificuldades que Raquel relatara. Quanto sofrimento! Como ela deveria
padecer moralmente pelo que lhe ocorrera. Que constrangimento! Que humilhação! Como poderia haver
homens tão indecentes, tão cafajestes, capazes disso?
Alexandre estava indignado, tanto que se pegava, vez ou outra, com um nó na garganta que o fazia chorar.
Queria apagar das lembranças
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de Raquel aquele sofrimento. Mas como poderia? Ele próprio não parava de pensar. De repente, acreditou
ter ouvido um barulho e foi ver o que era.
Raquel? chamou ao se aproximar da porta do quarto.
Alexandre...! exclamou a moça com a voz chorosa.
O que foi? O que aconteceu? perguntou ao entrar ligeiro nasuíte e se sentar na cama ao lado
dela. O choro não a deixava falar.Levantando-se, o amigo abriu a janela do quarto fechando o vidro parao
frio não invadir o recinto e puxou parcialmente as cortinas para que aluz entrasse. Ao retornar, observou
que ela já se refazia.
Veja, já amanheceu. Acho que estava sonhando. Não é nada. Esse sentimento já vai passar.
Com ternura na voz, pediu: Levante,tome um banho, vamos nos alimentar e... afastando-lhe os
cabelos lindamente desalinhados, falou: Espero por você na cozinha, tá? Raquel disse que sim e ele a
deixou só.
Após tomarem a primeira refeição, Alexandre falou:
Raquel, ontem eu pedi para que não atendesse o telefone, pelofato de ninguém saber que você
está aqui e, diante de tanto para realizare esclarecer, me fariam muitas perguntas às quais eu nem teria
respostas,no momento. Mas é o seguinte: minha mãe é exigente, preocupa-se muito comigo. Isso não tem
jeito de mudar, até já me acostumei. Ela vai querer saber quem você é, de onde veio, por que está aqui,
como estamos envolvidos. Só que, tudo isso, ela vai querer saber de uma vez só.
Espere, Alexandre interrompeu Raquel , talvez você nemprecise dizer. Quero sair daqui o
quanto antes. Vou arrumar umacasa e...
Como? Como você vai arrumar uma casa? perguntou friamente, porém muito educado.
Você tem alguma reserva em dinheiro?Tem móveis e utensílios necessários e básicos? Perdoe-me a
franqueza,Raquel. Sejamos racionais. Pelo que vejo vai precisar ficar aqui por umbom tempo. Não que isso
me incomode! De jeito algum! Aliás, devolembrá-la que essa proposta eu já lhe fiz tempos atrás, certo? E
não mudei de ideia.
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Vou incomodá-lo...
Não! Não vai. Eu só tenho que tomar algumas providências paraque não experimentemos
surpresas desagradáveis. Já imaginou: minhamãe ou minha irmã entrando aqui, num domingo de manhã, e
nospegando tomando café? O que vão pensar? Sou maior de idade, sou independente financeiramente,
mas ligo-me a eles no lado moral, por isso seria um desrespeito eu trazer uma "mulher qualquer" para
minhacasa e expor minhas irmãs ou meus pais a se depararem com uma cena dessas. Jamais fiz ou farei
isso. Emocionalmente, preciso de minha família. Eles são importantes para mim. Devo-lhes certas
satisfações porque os amo muito. Nem para minha irmã, Rosana, de quem nuncaescondi nada, falei sobre
você. Aconteça o que for, garanto que a Rô vai nos dar a maior força.
Eles não vão entender, Alexandre. Ninguém entenderia!
Você não é "uma qualquer", entendeu? Quando eu disse para virmorar aqui comigo, Raquel, foi
por apreciar sua índole, sua moral. Mas eu pensei em avisá-los antes, evitando alguma surpresa. Mesmo
que não gostassem da minha decisão estariam cientes de que você moraria comigo por algum tempo, e
pronto! Eu já tinha isso em mente! O que mudou é o fato de você estar aqui, eu não tê-los avisados por
falta de tempo, pois tudo foi muito rápido e, a qualquer hora, eles poderem chegar aqui sem saber o que
está acontecendo. Não quero que você se sintaconstrangida, nem que eles a julguem mal. Tenho certeza
que você entraria em pânico numa situação desse tipo por se sentir humilhada, ou coisa assim, entende?
Vou falar com eles. Ou melhor, vou avisá-los queestá morando comigo. Se vão entender ou não, se vão
aceitar ou não essa situação, é problema deles. Tenho que fazer a minha parte.
Por que está fazendo isso, Alexandre? ela perguntou.Seus olhos se encontraram e ele,
sinceramente, falou decidido:
Porque eu gosto muito de você, Raquel.
Você não pode... murmurou ela.
Por quê? questionou seguro de si, inalterável.
Não quero que se magoe comigo.
190
Como é que você me magoaria? Por acaso pretende me trair?Mentir para mim? Ofender-me com
agressões ou palavras? Somente essas coisas me decepcionariam muito.
Raquel tinha um nó na garganta. Com a voz trêmula, argumentou acanhada:
Não quero que se apegue a mim... Não quero que se apaixone,jamais poderei corresponder à
nobreza dos seus sentimentos.
Olhando com firmeza e austeridade, ele afirmou:
Raquel, quero que uma coisa fique bem clara: jamais eu farei algopara você ou por você com algum
interesse próprio ou segundas intenções. Quem pensar isso estará me ofendendo. Não faço isso nem
porvocê, nem por ninguém, entendeu? Se eu a ajudar, será por vontade própria e não para ter algo em
troca. Se você acredita que eu tenho algum sentimento nobre, deve reconhecer que a nobreza de um
amorfica evidente pela falta de interesses que escravizam. Tomando coragem, admitiu imperturbável:
Não vou negar que gosto muito devocê, Raquel. Não posso mentir para você, que foi tão sincera
comigo.Um dia, se descobrir que gosta de mim e quiser ficar comigo, será porsua livre escolha, jamais irei
pressioná-la e aproveitar-me da situação por precisar da minha ajuda. Isso seria agredi-la. Quando estiver
bem estabilizada, se quiser, sinta-se à vontade para ir embora daqui, entretanto só gostaria que
continuássemos amigos, se essa também for sua vontade.
Alexandre silenciou.
Ela ficou parada e quase incrédula. Não sabia o que pensar. Como poderia haver alguém como ele? Como
ele poderia querê-la consigo, enfrentando dificuldades com a própria família, em troca de nada? Raquel
sentiu nos olhos de Alexandre uma ternura sem igual e, acima de tudo, um grande respeito. Seus olhos
brilhantes se concentravam na imagem do rapaz, que agora se nublava por causa das emoções. Sem
alternativa e constrangida ela chorou muito.
Entendendo seus sentimentos, ele a deixou expressar as emoções o quanto foi necessário. Alexandre era
capaz de compreender sua dor, seu
191
desespero, em meio a tantas dificuldades. As decepções, os maus-tratos, as baixezas das atitudes alheias
e tudo mais, machucavam o coração sensível de Raquel, que não conseguia alívio, não conseguia
esquecer. Vendo-a mais recomposta, ele perguntou:
Você está melhor? Ela respondeu com um balançar de cabeça e Alexandre propôs mais
animado: Lave o rosto e arrume-se. Nósvamos sair um pouco.
Eu não quero... avisou com voz fraca.
Sorrindo docemente para vê-la disposta, avisou procurando brincar:
Se não quer, vai morrer de fome. Porque não tem comida pronta e eu ia levá-la para almoçar.
Pizzaria não funciona no horário do almoço.
Procurando sorrir agora, ela falou:
Eu sei cozinhar. Posso preparar algo.
Com o quê? Já olhou a despensa? Após rir, explicou: Sabe,eu não dou muita importância
para a comida, sozinho eu nunca me preocupo. Bem, isso é algo que precisamos resolver e eu quero a
suaajuda. Agora, vamos! Vá se arrumar para sairmos, tá? Vamos dar umavolta, depois almoçamos. Mais
tarde eu a deixo aqui e vou até a casa dosmeus pais para conversar, certo?
Raquel concordou e foi se aprontar.
192
Capitulo 9
Sequelas de um trauma
Bem mais tarde, ao retornarem para o apartamento, durante o trajeto Alexandre percebeu que Raquel,
apesar de mais animada, ainda não se sentia à vontade com ele. Muito falante, o rapaz não oferecia trégua
ao silêncio.
Assim que chegarmos em casa, eu a deixarei lá e vou até a casa dosmeus pais. Você acha que
pode ficar bem?
Claro. Após pequena pausa, ela revelou triste e tímida: Alexandre, estou inconformada com
a ideia de morar com você. Tudo foi muito rápido. Sinto-me envergonhada...
Ora, meu amor, por quê? perguntou ele com expressão carinhosa, que não se deu conta, a
princípio, percebendo somente depois o que havia falado. Disfarçando, continuou como se nada tivesse
dito, só que procurava ser ponderado e vigilante. Sabe, Raquel, eu penso quemuitas vezes a maldade
está nos olhos daqueles que a vêem. Tem umapassagem de Jesus em que Ele diz: "A luz do corpo são os
olhos. Se seus olhos forem bons, todo o seu corpo será luz. Se seus olhos forem maus,todo o seu corpo
será tenebroso". Existem pessoas que só conseguem enxergar malícia, maldade. Essas são criaturas com o
coração tenebroso e sem valor. Não devemos nos preocupar com elas, temos coisas mais importantes para
fazer.
Não consigo parar de me preocupar.
Não pare de se preocupar, somente mude o foco, mude o objetivo da sua preocupação. Pense:
o que você tem de fazer primeiro na suavida agora?
Não sei direito.
Que tal tirar os documentos que roubaram?
É mesmo sorriu ao lembrar.
Então, mãos à obra! Verifique o que você vai precisar, onde terá deir... Isso é importante e é uma
preocupação saudável.
Vai dar tanto trabalho lamentou a moça.
Que nada! Pense diferente. Tenho certeza de que você não gostavada foto que tinha na sua
identidade, ou que a assinatura não saiu comodeveria. É a oportunidade que tem para mudar tudo isso.
Então, fique feliz com esse trabalho.
Raquel sorriu ao perceber que Alexandre tirava, de qualquer dificuldade, um bom proveito e com humor.
Dirigindo, vez ou outra ele a olhava sorrindo, enamorado com o jeitinho de Raquel. Ao chegar bem próximo
do prédio em que morava, ele exibiu primeiro um semblante sério, depois, vendo que não teria alternativa,
sorriu pela situação que iria enfrentar.
Teremos que ser calmos, rápidos, práticos e objetivos!
Por quê?
Está vendo aquele carro, ali? perguntou, apontando. É ocarro do meu pai. Eles têm as chaves
do meu apartamento e já subiram.
Raquel estremeceu. Pálida, não sabia como reagir, nem o que fazer. Alexandre, mais ponderado e racional,
avisou:
A essa altura devem ter olhado todo o apartamento. Viram acama montada no outro quarto, viram
as suas roupas... Minha mãe éágil nisso.
Raquel parecia ter empalidecido mais ainda, sentia-se tonta e ensurdecia. Alexandre, equilibrado,
disfarçava suas preocupações. Ele queria falar com seus pais sobre Raquel, mas longe de sua casa e sem
a presença dela, a fim de não constrangê-la, pois sabia que sua mãe faria inúmeras perguntas à "queima-
roupa".
Após estacionar o carro na garagem, indo em direção de Raquel, olhou-a nos olhos brilhantes, que exibiam
preocupação, e falou firme:
Aconteça o que acontecer, não tome nenhuma decisão precipitada. Não se desespere. Estarei do
seu lado, entendeu?
Raquel parecia aterrorizada, nem imaginava o que a esperava.
194
Vamos subir? pediu ele.
Ao entrarem no apartamento, Alexandre jogou propositadamente as chaves do carro sobre um console,
anunciando a sua chegada. Indo ao encontro de seus pais, ele os beijou, cumprimentando-os, em seguida
apresentou a amiga:
Essa é a Raquel!
Ela os cumprimentou com extrema timidez. Todos se sentaram e Raquel não parava de tremer, sentia-se
sufocada e passava mal. A fisionomia da mãe de Alexandre denunciava que ela já havia olhado por todo o
apartamento e, com certeza, encontrado as coisas de Raquel. Essa surpresa a incomodava, fazendo-a
sisuda ao conversar com o filho.
Fiquei preocupada, Alexandre. Disse que iria almoçar conosco!
Eu disse que avisaria se fosse, mãe respondeu resoluto.
Você não telefonou. Então eu liguei para cá e ninguém atendeu.
Eu saí com a Raquel, nós fomos almoçar fora.
Dona Virgínia olhou firme para a moça medindo-a com seriedade. Sem vencer a timidez, Raquel fugia ao
olhar, procurando socorrer-se em Alexandre. Ela esfregava as mãos suadas e não conseguia se acalmar,
sua aflição podia ser percebida.
A senhora, virando-se para o filho, comentou:
Liguei para o seu celular e a ligação só caía na caixa postal.
Ah! Veja disse consultando o aparelho , esqueci de ligá-lo.
Então foi isso! interferiu o pai, senhor Claudionor, mais ponderado e observador, pois já
percebera o desespero da jovem. Você sabe como sua mãe é, fica preocupada e faz uma tempestade
por nada.Num belo domingo de frio, quando eu poderia tirar uma soneca depoisdo almoço, ela fez questão
de me arrastar até aqui.
Querem um refrigerante? perguntou Alexandre, levantando-se e indo em direção da cozinha.
Não. Almoçamos quase agora respondeu a mãe.
Você aceita, Raquel? perguntou ele.
Não. Obrigada falou baixinho.
Voltando-se para a moça, a mãe de Alexandre argumentou:
195
O Alex ainda não nos falou de você.
Interferindo no assunto que se iniciara, Alexandre respondeu:
Eu não tive oportunidade, mãe. Aliás, hoje eu ia lá para falar sobre isso.
Não estou entendendo, filho disse a mãe. O que você quer dizer?
Raquel ia passar mal. Sentia-se gelar e um suor frio umedecia seu rosto e suas mãos. Seus lábios ficaram
brancos e Alexandre percebeu que algo estava errado com ela. A passos rápidos, ele foi até perto da amiga
e, sentando ao lado, segurou seu rosto pálido e frio, perguntando:
O que foi, Raquel?! Não está se sentindo bem?!
Ela não conseguia falar e ensurdecia, parecendo largar o corpo, cerrou os olhos. Amparando-a em si,
estapeando-lhe o rosto delicado vagarosamente, ele a chamava exibindo carinho, apesar da preocupação:
Raquel?... Abra os olhos. Raquel?
Dona Virgínia ficou assustada, sem saber o que fazer. O pai de Alexandre foi até a cozinha e retornou com
um copo com água, dizendo:
Dê-lhe isso.
Ela não vai conseguir beber, pai. Percebendo que Raquel não reagia, ele decidiu: Vou levá-
la para o quarto. É melhor que se deite.
Para o quarto?! exclamou a mãe em voz baixa, que o rapaz nempôde ouvir.
Tomando-a nos braços, Alexandre a levou para a suíte, colocando-a na cama. Sua mãe parecia confusa e
indignada com o que via. Seu pai se preocupou e foi atrás deles, procurando ajudar em alguma coisa.
Deitada, após alguns minutos, Raquel começou a se mexer vagarosamente, enquanto sua cor tornou a
voltar. O senhor Claudionor tirou-lhe os sapatos e ainda a cobriu com uma manta.
Alexandre, preocupado, ficou ao seu lado esperando que melhorasse, fazia-lhe um carinho vez ou outra. Ao
ver que Raquel tomava consciência, mais calmo, Alexandre falou:
Fique tranquila, Raquel. Está tudo bem agora.
Onde estou? perguntou desorientada e com leveza na voz.
196
No meu quarto tornou Alexandre.
Beba isso, filha pediu o senhor Claudionor, oferecendo-lhe ocopo com água. Homem
experiente, examinou-a com o olhar já reconhecendo sua fragilidade e delicadeza. Logo vai ficar melhor,
vocêficou nervosa.
Raquel pareceu só molhar os lábios, que agora começavam a ficar rosados.
Obrigada senhor... agradeceu ainda estonteada.
Raquel, preste atenção disse Alexandre firme. Está tudo bem. Fique aqui e se recupere. Eu
vou ali na sala. Preciso conversar com meus pais. Acredito que você teve um mal súbito de origem
emocional.Não é nada sério, mas qualquer coisa é só me chamar. E voltando-separa seu pai, ele pediu:
Pai, vem comigo, por favor.
Alexandre não percebeu, mas o homem, sem que Raquel visse, nas costas do filho, deu um largo sorriso e
esfregou as mãos, como quem prevê encrencas.
Ao chegar à sala, sua mãe o recebeu dizendo:
Alexandre, você tem que me dar uma explicação! O que está acontecendo aqui?! Não adianta
querer apresentá-la como sua namorada.Antes de chegarem eu encontrei bolsas com roupas dela lá no
seu armário! Vocês estão vivendo juntos?
Não.
Como não? Não minta!
Não estou mentindo, mãe. A Raquel está com problemas, não tem onde morar e vai ficar aqui por
uns tempos, só isso.
Ficar aqui?!
Calma, Virgínia. Nosso filho deve saber o que está fazendo.Inconformada, a mãe tornou firme:
Que moça aceitaria ficar morando na casa de um rapaz sozinho? De súbito, ela lembrou: E
ela desmaiou, por quê? Por acaso estágrávida?
Ora, mãe!...
Está? E, se estiver, tem certeza que é seu?
197
Mãe, por favor!
Alexandre! Onde você está com a cabeça?! Você sempre foi ajuizado e agora vai andar com
qualquer uma?!
Encarando sua mãe, ele revidou firme:
Raquel não é "qualquer uma" revidou, agora bem firme, encarando sua mãe. E quando eu
acreditei ter encontrado uma "moça defamília", como você dizia, fui traído, agredido, difamado e ainda
quase morri!
Isso é um absurdo! dizia a mulher, andando de um lado para o outro. Meu filho coloca para
dentro de casa "uma qualquer"!
Alexandre não suportou, respondendo veemente e firme:
Primeiro: esse apartamento é meu e eu me sustento. Segundo:eu, infelizmente, não tenho nada
com a Raquel. Terceiro: não admito ser recriminado dentro da minha própria casa. Sou bem crescido,
mãe.Ainda não percebeu?
Você merece coisa melhor!
Eu não tenho nada com ela! Dá para entender?! gritou Alexandre irritado.
Calma, Alexandre interferiu o pai. Não fique assim. Não adianta.
O rapaz começou a ficar alterado. Ele percebia seu coração acelerar descompassado. Sentando-se no
sofá, esfregou o rosto com as mãos, pois se sentia gelar. Enquanto dona Virgínia não parava de falar.
Aproximando-se, o senhor Claudionor perguntou-lhe em voz baixa:
Você está bem?
Estou, pai. Eu estou bem respondeu o filho quase sussurrando.Sua mãe nem percebeu, o outro
assunto era mais interessante para ela.
Virgínia, por favor, abaixe o volume da voz pediu o marido,mais ponderado. A mulher considerou
e o esposo tornou ainda maiscalmo: À primeira vista essa situação também me surpreendeu. Mas eu não
sei o que está acontecendo, não posso opinar. Não temos o direito de deixar o Alex mais irritado. Será
melhor irmos embora e deixar essa conversa para outro dia.
198
Como você pode ser tão frio?
Não sou frio, sou cauteloso, Virgínia. A moça está fragilizada evocê não dá nenhuma
oportunidade para que nosso filho se explique.Em uma coisa o Alex tem toda razão: ele já é bem crescido e
você não percebeu.
Essa moça não pode ficar aqui! insistiu a mãe.
Alexandre se levantou quase enfurecido e perguntou com voz baixa, pausada e forte, em grave tom,
encarando sua mãe:
Quem é que vai tirar a Raquel daqui?! Você?Incrédula, sua mãe se calou boquiaberta.
Acalmem-se vocês dois interferiu o pai, firme. Isso estáindo longe demais. E virando-se
para a esposa, decidiu: Virgínia,vamos embora. O Alex já está muito alterado por hoje e você precisa
se tranquilizar. Desse jeito vocês nunca vão se entender.
Isso é um absurdo! exclamou a mulher, agora chorando, saindo do apartamento sem se
despedir do filho.
Alexandre baixou o olhar, sentou-se no sofá e ficou calado. Aquela situação o deixou magoado, não queria
que aquilo acontecesse. Sentia-se mal. O senhor Claudionor se aproximou e disse bem calmo:
Outra hora, quando tudo se acalmar, conversaremos melhor, certo, filho?
Certo murmurou Alexandre, parecendo exausto. Em seguida argumentou: Pai, não pense
que estou sendo irresponsável. A Raquel está passando por uma situação difícil e eu quero ajudá-la. Eu
não poria dentro da minha casa uma moça inconsequente, volúvel e leviana. Acredite.
O pai pensou e perguntou, com modos simples:
Ela está grávida?
Não... respondeu agora, quase rindo^ porém angustiado.
Você gosta dela, filho?
Gosto muito, pai. Só que, infelizmente, não temos nada. Nunca se quer a beijei. Nem namorados
somos... Infelizmente, pois eu a queromuito, mesmo.
199
Vocês não se envolveram, por quê?
Agora não é um bom momento para eu explicar e... Sabe, a história é longa. Outra hora eu conto
tudo.
Só mais uma coisa. Preciso saber, pois me preocupo com você,com sua segurança.
Pode perguntar, pai.
Ela é casada ou teve algum companheiro de quem está fugindo?Alexandre sorriu e respondeu:
Não. Ela não tem família aqui. Brigou com o irmão, por causa dacunhada, e teve que sair da casa
deles. A Raquel trabalha comigo, eu aconheço bem. Acredite se quiser, mas ela nunca teve namorado,
não tenho motivo para me preocupar com isso.
Apesar de ser bem jovem, é difícil de acreditar que não teve umnamorado. Ela é muito bonita.
Bonita e delicada comentou o paisorrindo.
E, quando ia se retirando, ao beijar o filho, este ainda falou:
Obrigado, pai. Mas pode acreditar sorriu.
Você deve saber o que está fazendo, Alex.
O rapaz caminhou até a porta e observou o pai ir embora. Ao vê-lo partir, ele entrou e foi atrás de seus
remédios, pois acreditou que precisasse deles.
E Raquel, como estaria? Indo até o quarto, entrou chamando por ela. Raquel saía do banheiro com uma
toalha que segurava, secando o rosto.
Raquel, o que você tem? Está pálida!
O almoço voltou... Sentando-se na cama, ela falou desolada: Eu escutei quase tudo.
Desculpe-me, mas não teve como não ouvir.
Eu sei.
Alexandre, que também se sentou, jogou-se para trás e ficou olhando para o teto, sem saber o que fazer.
Aos poucos o sono o arrebatou. Ao vê-lo dormindo, Raquel não quis incomodá-lo. Cobriu-o com uma
manta, foi para a sala onde se encolheu no sofá e, por algum tempo, ficou chorando em silêncio.
200
Bem mais tarde, recomposto, mas ainda chateado, Alexandre se levantou e eles ficaram na sala
conversando e procurando se distrair com a televisão. O rapaz, não suportando a curiosidade que lhe
assaltava a mente, perguntou:
Raquel, desculpe-me tocar nesse assunto novamente, mas... vocêtem vinte e um anos e...
Vinte e dois. Completei vinte e dois na semana passada ela respondeu, interrompendo-o.
Você fez aniversário e não me falou nada?! Só por vingança, não vou avisá-la sobre o meu
brincou sorrindo e surpreso.
Não fui acostumada a comemorações no dia do meu aniversário revelou com meio sorriso.
Sempre foi uma data comum lá emcasa. Ninguém nunca se importou.
Ele lamentou em pensamento o modo como ela havia sido criada, mas não disse nada. Aos poucos
percebia que Raquel tivera uma vida sem carinho, sem compreensão e com muitos maus-tratos. Isso era
uma pena, pois via em Raquel uma pessoa meiga e atenciosa. Abandonando aqueles pensamentos,
perguntou o que era de seu interesse:
Com quantos anos sua filha está?
Três. Na véspera do Natal ela completará quatro anos.
Falar sobre ela a magoa? tornou após breve pausa.
Não respondeu com modos simples. Se bem que não estouacostumada a conversar sobre
isso. Mas não fico triste quando penso naBruna,
Se você tivesse a oportunidade de vê-la, aproveitaria?Ela ficou em silêncio, refletiu, depois
respondeu:
Tenho medo.
Do quê?
Não sei, Alexandre. Às vezes penso muito nisso. Desejo vê-la e...Quando isso acontece com
intensidade, tenho sonhos ruins.
Que sonhos?
Eu a vejo no casebre, sendo agredida por ele... revelou deprimida.
201
Já pensou em procurá-la e saber como ela está?
Sim, muitas vezes. Mas não sei como vou encará-la, eu... Não seise tenho forças, coragem.
Atualmente não estou conseguindo nem suprir as minhas necessidades, se a tiver comigo então...
Ela tem boa saúde?
Não sei. Às vezes imagino que não, por ser filha do avô.Alexandre acreditou que sua posição de
arrimo a obrigava responder
às suas perguntas. Ao perceber que a amiga se entristecia, mudou de assunto, mas começou a se
determinar a aproximar Raquel da filha.
Amanhã, lá no serviço, não se manifeste. Finja que nada aconteceu. Nem olhe para Alice.
Nem sei como vou me comportar. Você viu hoje, aqui com seuspais? Além da maior vergonha,
eu o deixei numa situação difícil.
Aquilo ia acontecer de qualquer forma. Não tem problema.
Sua mãe está magoada.
Ora! Eu também. Por que ela não foi mais ponderada para ouvir e acreditar em mim? Após
pequena pausa, ele prosseguiu com o outro assunto: Mas, sabe, lá no serviço, aja normalmente. Vão
fazerperguntas. Talvez a Alice faça fofocas ou nos vejam chegando juntos...
E se alguém fizer perguntas?
Quando queremos as coisas não vamos pedir a ninguém, certo?Então não temos satisfações a
dar. Se alguém perguntar, diga: "Estamos morando juntos. Por quê?". A pessoa vai ficar sem graça e não
terá mais o que falar.
Que situação chata!
Ora! Por quê? Se prepare, pois é isso o que vou dizer, tá? E não vejo a hora! Raquel arregalou
os olhos e ele riu gostosamente, se divertindo com a situação. Ainda afirmou: Sou capaz de dizer
que vamos nos casar só para ver a cara do pessoal.
Não! Ficou louco?!!!
Ah! Fiquei, sim! afirmou ele sorrindo, desfechando com umagargalhada e completando: Aos
loucos ninguém pede satisfação. Pode ter certeza de que não vão nos incomodar se eu falar assim.
202
Não faça isso, Alexandre. Já estou tão constrangida por estar aquicom você e... pediu
preocupada.
Está sendo difícil me acostumar e encarar a todos, por favor.
Isso é só no começo. Depois passa.
Raquel estava inquieta, enquanto ele a olhava sorrindo e com ternura.
Na manhã seguinte, ela achou estranho sair de casa com Alexandre.
Chegando ao serviço, ela exibia-se nervosa ao pensar que teria de assumir uma vida incomum que os
outros julgavam e que eles tinham. Pela manhã tudo fora normal. Na hora do almoço, Alexandre esperou-a
para que fossem juntos, mas outra colega, sem pretensões, convidou-se para fazer companhia. Essa moça
não sabia o que estava acontecendo. E no restaurante, enquanto almoçavam, a colega perguntou:
O que houve com seu rosto? Você caiu, Raquel?
Fui roubada contou cabisbaixa.
Quando?!
Sexta-feira.
Como?
Alexandre percebeu o embaraço de Raquel, que olhou para ele pedindo socorro, e interferiu:
Ela ia para casa, dois pivetes puxaram sua bolsa e um deles bateu-lhe com algo que não pôde
nem ver.
Nossa! Também, hoje em dia não temos sossego em lugar algum.Sabe, eu também já fui
roubada. Puxa! Que sensação horrível! Fiqueitão traumatizada que não queria sair mais de casa. Eu
pensava que iaacontecer de novo. Ai, que horror! Você também está assim, não é?
É. Dá um medo... Fiquei muito abalada, sim.
Ah! Então foi por isso que pegou carona com você, não foi, Alexandre?
203
Os olhos de Raquel se alteraram e em seu brilho via-se a preocupação da moça ao saber que a colega os
viu chegarem juntos. Alexandre, prazerosamente, como se aguardasse por aquela pergunta, alardeou sem
se constranger:
Não. A Raquel não pegou carona por causa disso. Sabe o que é,Laura, eu e a Raquel estamos
morando juntos. A partir de agora você vainos ver sempre próximos.
Estampando um sorriso que não conseguia conter, Alexandre ficou observando o susto que a colega levou
com a notícia, quase se engasgando com a comida. Raquel enrubesceu e não conseguiu dizer nada.
Juntos?! Você e a Raquel?!
Sim, claro! Por quê? indagou Alexandre, com ar irônico.
Ora, Alexandre, desculpe a sinceridade disse sorrindo e atrapalhada , mas acreditávamos
que você seria inconquistável! E, voltando-se para a colega, completou: Você, hein, Raquel! Quem
diriaque, tão recatada, conseguiria conquistar o Alexandre.
Talvez seja por isso mesmo, por ela ser recatada revidou ele.
Esta nada respondeu nem mesmo sabia como agir. Alexandre rapidamente mudou o rumo do assunto e a
conversa continuou por mais tempo até terminarem a refeição. Depois, quando se viu sozinha com o amigo,
Raquel advertiu sussurrando:
Ficou louco? Você não deveria ter dito isso.
O que eu falei de errado? Nós não estamos morando juntos? Ao vê-la sem resposta e tímida,
ele esclareceu: Raquel, se você ficaroferecendo explicações e dizer que não há nada entre nós, que só
estamosnos ajudando, ninguém vai acreditar e vão ficar falando mais ainda.Assim como fiz, assumindo
tudo, de uma vez, o pessoal vai fazer menos alarido. Acredite em mim.
Ela não gostou da atitude do colega, não estava preparada para aquilo, mas não disse nada.
Mais tarde, Alice e Rita conversavam a respeito da situação.
Viu só? reclamava Rita, inconformada. Sua ideia atirouRaquel nos braços do Alexandre.
204
Calma, Rita. Você não perde por esperar. Eu já disse o que precisava dizer ao Alexandre. Talvez
ele não tenha me levado a sério, masquando souber da verdade... E para isso você terá de colaborar.
O que você disse a ele?
A Raquel tem uma filha e...
Filha?! A Raquel?!
Viu? Até você pensava que a moça fosse santa? Percebe agora que ela engana todo mundo?
Vem cá e me conta essa história, direitinho! pediu Rita interessada.
Do seu jeito e com a sua versão, Alice contou para a colega o que ocorrera com Raquel, deixando dúvidas
sobre a sua moral.
Então ela vem dizendo que a menina é filha do tio. Se for, o queeu duvido muito, só se ela o
seduziu. Ele é um homem tão digno,íntegro! Ninguém pode duvidar dele. Sabe, a Raquel foi burra, ela
poderia acusar qualquer um, menos aquele homem. Eu o conheci. Acho que nem em sonho ele faria algo
desse tipo.
E aí? O que podemos fazer?
Calma, Rita. Primeiro, vamos deixar a Raquel bem irritada. Eledisse que fará qualquer coisa por
ela. É agora que vamos ver se ele écapaz de suportá-la dentro de casa, com as crises emocionais, com
ospesadelos. Eu já vi isso acontecer. Quando Raquel fica nervosa, acordaaos gritos. Fica inquieta e
chorosa. Alice riu sarcasticamente e alertou: Depois, se ela perder o emprego...
Nossa!
Claro, Rita! Pense comigo, ela vai infernizar a vida do Alexandre.Ele vai se encher dela. Assim,
quando ela arrumar outro lugar para trabalhar, logicamente vai arrumar outro lugar para morar e o
caminhoestará livre para você. Temos que fazer o Alexandre ficar envergonhado por estar com ela.
Como?
Quem é que quer uma mulher com uma filha? Independente elivre como ele sempre foi, ao se ver
com encargos...
205
E como faremos isso?
Siga as minhas instruções e seja paciente. Só que precisaremos da ajuda do Vagner.
As duas confabularam por longo tempo. A insegurança de Raquel contava pontos positivos para Alice e
Rita. Raquel sempre se sentia temerosa, esperando que alguém a criticasse. Alexandre, por outro lado,
parecia gostar daquela situação.
Na primeira noite em que eles saíram juntos do serviço, eles foram ao mercado para suprir a despensa do
apartamento, pois estavam necessitando de algumas coisas. Juntos, ao fazer as compras, Raquel sentia-se
mais àvontade, sorria e correspondia a algumas brincadeiras de Alexandre, que não ficava quieto. Ele
estava encantado. Intimamente sentia-se satisfeito e feliz por tê-la consigo, imaginando, em seus
pensamentos, como se fossem casados. Aliás, quem os via pensava que fossem marido e mulher.
Chegando em casa guardaram as compras e jantaram. Sem ter mais o que fazer se sentaram no sofá e se
entreolhavam sem dizer nada. O rapaz exibia-se satisfeito e não conseguia tirar o sorriso do rosto,
enquanto ela se sentia encabulada ainda. Algum tempo depois a moça quebrou o silêncio e lembrou:
Não seria bom você ligar para sua mãe? Creio que ela se sentiriamelhor, não acha?
Alexandre concordou e, ao telefonar, foi atendido por sua irmã Rosana.
Alex? E aí?
Tudo bem! E você?
Estou jóia! respondeu a irmã, com ar de riso ao perguntar: Quanto a você deve estar bem
mesmo! Melhor do que eu, não é, seu safado?!
Alexandre ficou embaraçado por ter Raquel a seu lado e respondeu com meias palavras:
Não, Rô. Não é nada disso.
206
Meu!!! exclamou rindo ao se divertir: A mãe tá uma fera!Você nem imagina.
Sábado vou aí e te conto tudo respondeu sem jeito.
Se você não vier, vou até aí acordá-los!!! Entendeu? Quero saber dessa história, direitinho. Seu
safado! Mentiroso! tornou Rosana.
Eu?!... perguntou Alexandre não suportando e rindo.
Você mesmo! Disse que não queria mais ninguém na sua vida eeu, idiota, acreditei.
Alexandre ouvia e sorria se divertindo com os comentários de sua irmã mais nova. Rosana ria também e o
acusava, pois sabia que ele não poderia responder:
Seu sem-vergonha! Cachorrão! Safado! Até chorei por sua causa,por sua desilusão, e agora, que
está aí numa boa, nem me diz nada, fuia última a saber. A tristeza você divide, mas a alegria não quer
dividirnão, né? Canalha!
Alexandre gargalhou, pois não podia revidar. Depois respondeu:
Você não sabe de nada, Rô. Cale a boca, vai!
Ah! Sei sim! O pai até falou que ela é bonita!!!
É mesmo? Mas façamos o seguinte: sábado eu vou aí e a gente conversa, tá? Sem esperar
pela resposta, perguntou: E a mãe, está aí?
Não. Ela e o pai saíram à tardinha para ir na casa do tio Rômulo.Até agora não voltaram. Você
sabe como é, quando eles vão lá...
Ah! Eu sei. Então deixa. Outra hora eu falo com ela.
Se ela deixar. Porque normalmente é só ela quem fala.
Está bem, Rosana. Um beijo!
Outro. E manda um beijo para a Raquel também!O irmão se surpreendeu e perguntou:
Já sabe do nome, é?
Ô!!! Não parei de ouvi-lo desde que chegaram de sua casa.
A mãe está chateada?
Ela ficou magoada por causa da surpresa pela forma como faloucom ela. Mas, você sabe, isso
passa. Daqui a pouco ela esquece. Ela émãezona e tem um coração enorme.
207
Está certo, então, Rô. Outra hora eu ligo. E, pode deixar, voumandar seu beijo para ela. Após
desligar, Alexandre disse: Minhairmã te mandou um beijo.
Raquel ficou sem jeito. Ele começou a fitá-la com suave expressão no semblante que o fazia quase sorrir.
Enrubescida e encabulada, a colega perguntou baixinho:
O que foi?
Ele alargou o sorriso e respondeu:
Estou imaginando como será sua filha.
Como assim?
Acho que a Bruna Maria deve ser muito parecida com você. Pausa se fez e ele concluiu:
Traços finos, suaves... Delicada. Raquel abaixou a cabeça e ele falou sorrindo: Envergonhada.
Pare, Alexandre pediu Raquel com modos simples.
Deve ser tão gostoso ter um filho ou filha disse, agora parecendo sonhar. Acho que quando
temos uma criança de quem cuidamos,orientamos, ensinamos, nos preocupamos... Amamos, estamos
transmitindo a ela a nossa herança moral.
Como assim?
Eu penso que a herança genética pouco importa, mas o que transmitimos a alguém de bom, de
útil, de amor é o que podemos chamar deherança moral, isso será perpétuo. Os bons princípios, a auto-
estima, o respeito a si próprio e aos outros são coisas importantes e marcantes para a evolução de alguém.
Você seria um bom pai.
Eu vou ser! Gosto muito de crianças e pretendo ter filhos.Raquel esboçou leve sorriso forçado e
abaixou o olhar.
E você, Raquel, gosta de crianças?
Gosto respondeu, cabisbaixa. Ajudei a cuidar de meus sobrinhos quando eles eram
pequenos...
Alexandre não se intimidou e prosseguiu:
Por isso eu estava imaginando agora como sua menina deve ser umagracinha! Poucos
segundos e ele tornou: Não quer vê-la, Raquel?
208
Ao perceber a amiga escondendo os olhos que estavam embaçados pelas lágrimas que quase rolaram,
Alexandre foi para o sofá em que ela estava e colocou-se a seu lado. Curvando-se, tentando olhar em seus
olhos, falou com ternura:
Desculpe-me, Raquel. Não fique assim.Com a voz embargada, ela respondeu:
Eu tenho vergonha, Alexandre. Não me acostumo...
Como assim? perguntou o amigo, generoso.
Secando as lágrimas com as mãos, ela respondeu com a voz pausada pelo choro:
Solteira... com uma filha, resultado de um... Um soluço a fezparar, depois continuou: Agora,
morando de favor com um homem que mal conheço, que humilhação!
Alexandre tentou abraçá-la ao puxá-la para perto de si, mas Raquel ofereceu resistência e o empurrou.
Respeitando sua vontade, ele não a forçou, mas acariciou-lhe o cabelo e, tentando confortá-la, falou:
Raquel, um filho, vindo por quais meios for, é uma bênção.
Não... não é assim...
Como, não? Sua filha deve ser uma menina linda. Deve ser umacriaturinha delicada, frágil e que
necessita da sua atenção, do seu carinho, do seu toque, contato. Como deveria ser gostoso poder abraçá-
la... E sorrindo, ele admitiu: Deve ser bom pegá-la no colo, fazê-la rir,beijar, morder devagarzinho...
Eu me arrependo... respondeu chorosa perdendo as palavras.
Por tê-la deixado no orfanato?
Sim. Mas quando eu penso...
Se você se arrepende por tê-la deixado, você é uma criatura maravilhosa e, por ser assim, sua
filhinha merece tê-la como mãe. Vejo quenão fica pensando em como a concebeu. Isso significa que a
Bruna é sósua. Você a quer bem?
Como assim?
Sente algo bom por ela? Quer que a Bruna seja feliz?Sem titubear, Raquel respondeu:
209
Lógico! Encarando o amigo nos olhos, ela completou: Não quero que ela tenha a vida que
tive!
Então ela precisa de você, Raquel. Só assim será verdadeiramente amada. Poderá ensiná-la,
orientá-la. É tão importante termos uma boa mãe. Você mesma sabe disso.
Lágrimas copiosas desciam pela face de Raquel sem que ela pronunciasse palavra alguma. Seus
pensamentos eram de arrependimento por ter abandonado a filha. Agora as palavras de Alexandre a
faziam desejar a filhinha consigo, mas tinha medo pelo futuro incerto. Percebendo que a amiga estava
atordoada e com o coração oprimido, instintivamente ele a puxou para um abraço. Raquel não o repeliu,
mas estava chorando, trêmula de medo. Alexandre percebeu que ela era carente, nunca fora acostumada
ao contato carinhoso que socorre e conforta o coração. Afastou-a de si e beijou-lhe o rosto, momento em
que ela abaixou a cabeça. Abordando outro assunto para distraí-la, ele avisou:
A Rosana quer conhecê-la, Raquel.
Ai, meu Deus! Estou tão envergonhada. Todos pensam que estamosvivendo juntos.
Ora! E não estamos? perguntou rindo com gosto.
Estamos, mas... Não é assim como estão pensando.
Preciso, o quanto antes, arrumar uma casa, e...
Como? riu novamente.
Ora, Alexandre, não me confunda disse mais à vontade.
Raquel, fique tranquila. "Dê tempo ao tempo." Você nem existe para alugar uma casa.
Como assim, "eu não existo"?
Dê-me sua identidade!
Ah, eu vou tirar outra.
Mas agora, já, nesse exato momento, você não tem. Isso significaque não adianta pensar em
uma casa sem antes ter o principal.
O principal mesmo é o dinheiro.
Viu? Então primeiro cuide de tirar seus documentos, depois faça uma reserva em dinheiro e a
casa fica na fila.
210
Falando em dinheiro, amanhã acertamos as despesas das com-
pras.
Você não ficou sem o cartão do banco?
Não. Não costumo andar com cartão nem cheque. Estão aí, naquela pasta que a Alice colocou
entre as minhas coisas. É uma pasta dedocumentos.
Que sorte! ele exclamou.
Então, amanhã acertamos as despesas...
Raquel, se falar isso novamente... interrompeu-a franzindo o semblante de brincadeira.
A semana foi passando calmamente. No sábado, Alexandre decidiu ir até a casa de seus pais.
Vamos comigo, Raquel?
Só se for carregada! exclamou imediatamente descontraída.No mesmo instante, Alexandre
correu em sua direção e a agarrou
com força, levantando-a do chão, ao mesmo tempo que fazia um barulho com a garganta, como se
rosnasse, tentando brincar como se fosse carregá-la no colo. Sem esperar, Raquel deu um grito
horrorizado. Empurrando-o com toda sua força, entrou em desespero, acreditando estar sendo atacada.
Alexandre a largou rápido, dizendo:
Calma, Raquel! É brincadeira. Perdoe-me, pelo amor de Deus.
A moça empalideceu pelo susto, seus joelhos dobraram, ela se sentou sobre as pernas e em seguida no
chão, chorando muito. Ajoelhando-se ao seu lado, Alexandre não sabia o que fazer.
Você está se sentindo bem? perguntou preocupado. Raquelnão conseguia falar, seus lábios
estavam brancos e ela ensurdecia. Vem, levanta, sente-se aqui.
Não conseguia reagir. Ao tentar levantar, seus joelhos se dobravam e o amigo teve que segurá-la.
Alexandre a pegou e acomodou-a no sofá.
211
Abaixe a cabeça. Segurando-lhe na nuca, pediu: Force paralevantar. Sua pressão deve ter
caído.
Ele também se sentia mal, mas não disse nada, procurando ficar firme para ajudá-la. Indo até a cozinha,
tomou seu medicamento sem que ela percebesse e voltou em seguida para a sala, levando um copo com
água açucarada para ela. Ao pegar o copo, suas pequenas mãos tremiam e mal conseguia segurá-lo,
devolvendo-o após poucos goles. O restante Alexandre virou e tomou quase num só gole, largando-se, em
seguida, no sofá ao lado da amiga. Raquel nem percebeu, ela estava muito abalada. Debruçando-se sobre
o braço do sofá, ela escondeu o rosto entre os seus braços e procurou se acalmar. Ao se recompor ele se
aproximou e perguntou:
Você está melhor?
Estou. E com voz fraca, pediu: Por favor, me desculpe,Alexandre. Devo ter-lhe assustado
também.
Sou eu quem lhe devo desculpas. Eu estava brincando, tentei...Perdoe-me, não pensei que fosse
assustá-la. Estou acostumado a brincarassim com minhas irmãs e...
Tudo bem. Já passou sorriu meiga. Mas ao percebê-lo pálido,preocupou-se: Você está
bem?
Estou, sim.
Não sei como aconteceu. Tudo foi tão rápido, instintivo.Alexandre, arrependido por ter brincado
daquela forma, apiedou-se
ao lembrar do estado de pavor que ela exibiu em desespero aflitivo, que parecia custar a passar. Comovido
ele tentou abraçá-la, mas ela o recusou:
Por favor... sussurrou.
Levantando-se e tentando fazê-la reagir, perguntou sorrindo:
Não quer mesmo ir comigo à casa dos meus pais?
Raquel, usando seu senso de humor pela primeira vez com o amigo, perguntou:
Você tem um revólver em casa?
Por quê? respondeu desconfiado, tentando entender a brincadeira.
212
Porque eu ia responder: só vou lá morta.
Por isso não! avisou sorrindo. Estamos no sexto andar. Aqueda é boa e ainda me poupa de
carregá-la lá para baixo.
Eles estavam mais tranquilos e ele perguntou:
Vai ficar bem aqui sozinha?
Sim, eu vou. Não se preocupe afirmou com sorriso doce.
Ligue o rádio ou assista à televisão. Se ocupe com alguma coisa.Precisando, ligue-me.
Sorrindo, lembrou: Ah! Por favor, atenda otelefone, viu?
Sim, senhor! brincou mais à vontade.
Antes de sair, Alexandre se aproximou e, ao se despedir, deu-lhe um beijo no rosto. Ela se sentiu surpresa,
mas não disse nada, fora rápido demais.
Ao vê-lo partir, sentindo-se só, ficou preocupada e confusa. De imediato uma saudade lhe apertava o
coração. Seus pensamentos lutavam com o preconceito no qual fora acostumada, com a situação
humilhante em que se reconhecia e com a nobre sinceridade de Alexandre, que a fazia acreditar no amor
verdadeiro e incondicional. Raquel haveria de vencer seus medos e passar a deixar fluir suas emoções.
Mas como? Sóconhecera o desprezo, a solidão e as agressões que lhe cravaram profundas marcas
dolorosas.
Seu coração, apesar de tudo, era repleto de bondade. Ela não tivera a oportunidade de sonhar e conhecer
alguém que a amasse realmente, que, com generosidade e ternura, traduzisse seus sentimentos em
carinho, delicadeza e atenção.
Após a saída de Alexandre, sensibilizada, Raquel chorou por não conseguir vencer os traumas que lhe
castigavam os mais íntimos resquícios das lembranças, vivos a todo instante.
Já na casa de seus pais, Alexandre foi recebido com muito entusiasmo, como sempre, por sua irmã mais
nova. Apreensivo, cumprimentou
213
sua mãe, que agora parecia não estar tão nervosa como da última vez em que a viu. Após conversarem
um pouco, dona Virgínia perguntou sobre sua amiga:
E a Raquel?
Está bem. Eu a convidei para vir até aqui, mas ela não quis respondeu cinicamente,
aguardando a reação de sua mãe.
Rosana, que estava próxima, escondeu o rosto, que estampava um riso. Demonstrando-se calma, a mãe
argumentou:
Até agora, Alex, não consigo entender.
Virando-se para sua irmã, que se entretinha com algo desnecessário naquele momento só para ficar ali,
Alexandre pediu gentilmente para ficar mais à vontade com a mãe ao conversar:
Rô, eu precisava falar um pouco com a mãe, pode nos dar umtempo? Depois a gente conversa.
Já estou saindo! avisou a moça, sem ressentimento.
Na cozinha, sentando-se em frente de sua mãe, Alexandre explicou:
Mãe, a Raquel trabalha comigo há quase dois anos. Ela sempre foi uma moça quieta e bem
comportada. É difícil encontrar alguém assim.
Dona Virgínia ouvia atenta, sem o interromper, apesar dos pensamentos intrigantes que lhe ocorreram, e o
filho continuou:
Sabe, acho que a Raquel foi a única moça que não quis me conquistar lá na empresa, porque o
resto... Breve pausa e ele continuou: Bem, aconteceu assim: a família dela mora em uma fazenda no
RioGrande do Sul. Aqui, ela morava com o irmão e a cunhada. A Raquel,nos últimos tempos, não vinha se
dando muito bem com a cunhada.Eu a conheço também, ela trabalha lá com a gente e é uma
pessoaterrível. Houve uma discussão e a Raquel precisou sair da casa deles. Acunhada inventou certas
calúnias sobre ela e... Bem, eu acabei levandoa Raquel para morar comigo até ela arrumar um lugar para
ficar. Nós somos só bons amigos. Sempre fomos. Eu quero ajudá-la, e é sem interesse algum. Acredite.
Não somos namorados, não somos nada. Pra vocêter uma ideia, nunca sequer nos beijamos.
214
Ora, Alex!
Segurando o rosto de sua mãe, ele tornou a dizer, olhando-a nos olhos:
Nós nunca nos beijamos. Eu não mentiria para você. Por quefaria isso? Seria até mais fácil eu
dizer que estamos vivendo juntos. Masnão. Isso é, junto nós estamos, mas não temos nada. Eu respeito
muitoa Raquel e a quero muito bem.
Ela não está grávida?
Ora, mãe! Que absurdo! Claro que não! De onde tirou esta ideia?
Então por que passou tão mal a ponto de desmaiar?
Raquel é muito sensível, frágil e também não está de acordo com essa situação. Sua criação não
foi liberal, ela veio do interior. Não pense que ela está feliz ou à vontade por estar lá em casa. Está é
muito constrangida, aflita principalmente depois de tudo o que aconteceu entre ela e o irmão, de quem ela
gosta tanto. Além disso, ela foi roubada, uma situação dessa sempre é traumatizante, lhe bateram e até
machucaram seu rosto. Acho que pôde ver.
Quantos anos ela tem?
Vinte e dois.
Alex, você não está mentindo para mim?
Não, mãe afirmou categórico ao encará-la.
E se de repente essa menina fica grávida? E se ela disser que ofilho é seu?
Ele riu e falou:
Hoje em dia existem exames excelentes para confirmar a paternidade. Mas esse não será o
problema, tenho certeza. E outra... Quer saber a verdade mesmo? Para ser sincero, estou gostando muito
da Raquel. Gostando mesmo! falava baixo, mas com inflexão firme. Você entrou lá em casa e eu sei
que examinou meu apartamento, por isso deve ter visto, no outro quarto, a cama armada em que estou
dormindo. Não temos nada, e sabe por quê? Porque é ela quem não quer.Há tempos eu gosto da Raquel
e... Por mim... Alexandre deteve aspalavras suspirando profundamente ao exibir certa decepção.
Refletin-
215
do um pouco e demonstrando seus mais íntimos sentimentos, concluiu: Como eu disse, não temos
nada, infelizmente.
Como assim? Como é que ela não o quer?
Eu me sinto muito atraído pela Raquel. Não é pelo fato de ela serbonita, é seu olhar, seu jeito
meigo, seu modo recatado de ser. Não seise você vai entender... Acontece que ela não se permite, ela...
Como assim? Por que alguém iria recusá-lo, Alex? Você é jovem,bonito...
Mãe, mãe, não é nada disso. Acontece que ela não é uma moçafácil, tem boa moral e não sai
com rapazes como muitas outras. Pronto!É isso.
Será, Alex?
O filho olhou para ela sentindo que seria difícil fazê-la entender. Até que conseguira muito por tê-la feito
ouvir tanto.
Vamos fazer o seguinte, mãe: procure conhecê-la e tirar as suaspróprias conclusões. Após
poucos instantes, mais animado, argumentou: Pronto! Agora que já expliquei tudo, deixe-me ver a
Rosana,preciso falar com ela.
Dona Virgínia ficou intrigada e insatisfeita com aquela situação, mas decidiu não brigar mais com o filho,
isso iria afastá-lo dela.
Ao entrar no quarto de sua irmã, Alexandre foi logo lhe atirando uma almofada e dizendo, descontraído e
animado, brincando como sempre fazia:
Safada! Sem-vergonha! Você sabia que ela estava do meu lado ecomeçou a falar aquilo tudo, né!
Rosana se encolheu e caiu na gargalhada, enquanto o irmão se atirou sobre sua cama rindo junto.
Conte-me, como ela é?!
Ele, abraçando um travesseiro, com o olhar brilhante e perdido, parecendo sonhar ao esboçar um sorriso,
respondeu com uma única palavra:
Linda!
Loira? Morena? Baixa? Alta?
Adivinha?
216
Morena?
Errou respondeu animado e logo continuou: Seus cabelossão loiro-escuros.
Ela tem muito cabelo ou é como esse "cabelo de milho" que eutenho?
O irmão riu e falou:
Os cabelos são longos e um pouco ondulados nas pontas, muitobonitos!
O que mais? perguntou Rosana, sorridente e interessada.
Ela não é muito alta. Deve ter 1,60... Ah! É baixinha...Rosana atirou-lhe uma almofada, dizendo:
Cachorro! Tá me chamando de baixinha, é?Ele riu e continuou:
E delicada, doce, recatada, fala baixo, tem um sorriso bonito...Lindo! Seus olhos são castanhos
bem claros, cor de mel ou de amêndoas.
Ah!... Eu quero conhecê-la!... disse Rosana, com modos manhosos, rolando sobre algumas
almofadas que estavam num canto.
Você vai conhecê-la avisou sorrindo.
O que mais? Você falou das qualidades, diga o que você não gosta. Ou ainda não encontrou
nada?
Alexandre parou e refletia, quando a irmã falou:
Você está com uma cara de safado!
Já sei do que eu não gosto!
Do quê?
De não poder me aproximar dela, de não poder abraçá-la quando quero e como quero. Você sabe
o quanto sou "grudento".
Deixe de ser mentiroso! Vivendo juntos, lá, sozinhos... Quer queeu engula essa história também?
Só estamos dividindo o apartamento, Rô, nada mais.
Nada?!!! Você?! Impossível!
Não temos nada, Rô. Mais uma vez vou repetir: Eu nunca abeijei, nunca tive nada com ela...
sussurrando a seguir: Infelizmente.
217
Por que, Alex? Ela é casada?
Não, Rô. Não é, não! Respirando fundo, pediu: Não diga nada para a mãe. Eu não disse
tudo para ela. Foi assim... Após contarque Raquel brigou com o irmão e teve de ir morar com ele por
falta dealternativas, Alexandre revelou: Fora isso, ela passou por alguns problemas, bem graves, e isso
a inibe de qualquer contato... Intimidade...
Mais séria Rosana perguntou:
Verdade? Vocês não ficaram? Nem namoram?
Não respondeu firme, encarando-a sério.
Que problemas graves foram esses, Alex? preocupou-se.
Imagine o pior.
Nesse instante, os olhos do irmão marejaram com lágrimas que quase rolaram. Ele se deitou e ficou
olhando para o teto para impedir o choro. Rosana se levantou de onde estava, sentou-se ao seu lado e o
abraçou, dizendo:
Alex, por que você está assim?
Rô, fecha a porta, por favor. Preciso desabafar com alguém, estoutão mal.
Alexandre confiava em sua irmã. Em poucos minutos lhe contou tudo sobre Raquel. Abraçada ao irmão,
muito comovida, ela chorou sem que ele percebesse. Fazendo-lhe um carinho no rosto, Rosana perguntou:
Você está gostando muito dela, não é? perguntou delicada.
Eu a amo, muito. Nunca senti isso tão forte confessou lamentando.
Alex, não fique assim.
Não consigo conquistá-la. Poucas vezes eu a abracei. Na maioriaela se nega, me repele. Se eu a
beijar, Raquel é bem capaz de gritar e saircorrendo. Você ouviu o que lhe contei sobre a brincadeira infeliz
que fiz hoje de manhã, não esperava que ela fosse reagir daquele jeito. Como ela sofre, Rô! Que trauma!
Não fique assim. Vamos dar um jeito nisso. Temos muitas coisas a seu favor.
218
O quê?
Rosana sorriu e disse cinicamente:
Se ela não tem onde morar, deixe-a começar a pagar as contasjunto com você, aí ela não fará
nenhuma economia e ficará mais tempo lá.
Que absurdo, Rosana!
Absurdo nada! Sem dinheiro, sem casa! Sem casa, ela continuacom você. Assim teremos mais
tempo para agir, certo?
Você é louca!
Ah! Sou sim! E você é certinho demais para o meu gosto. Precisade alguém como eu para ter
equilíbrio. Alexandre riu e ela avisou: Conte comigo! Vou ajudá-lo no que for preciso. Eu entendo, o
que a Raquel passou foi muito cruel. Psicologicamente falando, isso só poderá ser vencido com a sua
atenção, com a sua paciência... com o seu amor.
Isso ela terá.
Eu sei. Você é maravilhoso, Alex.
Pare com isso. Lembrando-se Alexandre revelou: Estoupensando em fazê-la entrar em
contato com a filha.
Hum!... Não sei se isso seria bom agora. É melhor você esperar.
Você acha?
Não. Tenho certeza! Pense comigo: Raquel não me parece disposta ainda a encarar a menina.
Ela não sabe se verá a filha, a irmã ou seu sofrimento no passado. Aguarde, Alex. Seja paciente. Às vezes
você émuito precipitado. Agora disse Rosana bem animada, estampando um sorriso e dando-lhe um
beijo como a chantageá-lo , dê-me umsorriso que só você sabe dar e me leve para conhecê-la, vai.
Alexandre sorriu largamente, levantou-se e disse, tomando a iniciativa de já ir saindo do quarto:
Vamos!
Espere! Deixe-me pôr um ténis!
Alexandre saiu às pressas do quarto e, a fim de deixá-la agitada, falou:
No dez estou indo embora. Um, dois, três...
219
No caminho, Rosana instruía seu irmão de como deveria fazer para conquistá-la:
Não seja daqueles caras pegajosos, que vivem agarrando. Isso enjoa. Trate-a com gentileza.
Quando chegar ou sair de casa, dê-lhe umbeijinho no rosto, acostume-a como fazemos lá em casa.
Alexandre ria e não dizia nada. Quando estiver com ela em casa, comporte-se normalmente. Faça-a se
sentir à vontade com você. Dependa dela e faça-a se acostumar com seus hábitos, mas procure entendê-la
também,toda mudança é difícil.
O irmão achava graça por Rosana, bem mais nova, o aconselhar e ajudar com a nova situação.
Ah! E nada de ficar parado, feito bobo, olhando para ela. Raquelficará constrangida e não vai
querer ficar perto de você. E lembre-se: não seja "grudento", viu?!
E assim foi por todo o caminho até estacionarem diante do prédio.
220
Capitulo 10
Rosana a nova amiga
Chegando ao apartamento de Alexandre, Rosana, muito espirituosa, reparou com ar de espanto:
Não estamos no apartamento errado!?
Por quê? perguntou o irmão, com simplicidade.Sussurrando com um jeito engraçado e ar de
deboche, ela falou:
Tudo está tão arrumado!... Tem certeza que é o seu?Alexandre, que era acostumado a brincar,
deu-lhe um leve tapa na
cabeça, empurrando-a suavemente e dizendo baixinho:
Cale a boca! Entre logo.
Já na sala, nem sinal de Raquel. Espiaram na cozinha, e nada! Lembrando-se do susto que lhe dera pela
manhã, ele logo se preocupou e foi até a suíte, seguido por sua irmã. Ao encontrar a porta entreaberta,
acabou de empurrá-la ao chamar baixinho:
Raquel...?
A moça estava deitada e encolhida sob algumas cobertas. Lentamente ela se voltou para a porta e viu
Rosana, alegre, que entrou animada. Raquel se sentou rapidamente, ajeitando-se. Rosana, mostrando-se
muito à vontade, se sentou na cama, abraçou e beijou Raquel como se a conhecesse de longa data.
Raquel exibia constrangimento pela situação e principalmente ao receber, no rosto, um beijo de Alexandre,
que a cumprimentou pela sua chegada, agindo naturalmente ao se curvar e perguntar:
Tudo bem?
Raquel enrubesceu, mas Rosana agia muito natural, comportando-se como se estivesse acostumada,
procurando não deixá-la envergonhada. Observando-a melhor, Alexandre perguntou:
Você está bem, Raquel? Está pálida.
Estou com uma dor de cabeça horrível avisou quase sussurrando.
Tomou alguma coisa? perguntou ele preocupado.
Não. Não encontrei.
Alexandre foi até o armário onde guardava a caixa de medicamentos, procurou, mas também não
encontrou.
Puxa! Acabou mesmo.
Vá comprar, Alex! sugeriu Rosana. Eu fico aqui com ela. Virando-se para Raquel, Rosana
pediu: Você deita. Não se incomode comigo.
Não...
Que, "não", o quê! exclamava com seu jeito irreverente. Pegando as pernas de Raquel,
Rosana a colocou sobre a cama e puxou ascobertas, dizendo: Eu sei o que é estar com dor de cabeça e
ter queficar aturando os outros.
Segurando-a pelos ombros, a fez se deitar. Tudo foi muito rápido e a nova amiga nem
pôde reagir.
Alexandre, que olhava da porta, achou graça, sorriu satisfeito e saiu para comprar o remédio. Ele sabia
que, com Rosana, Raquel estaria bem.
Rosana sentou-se na cama de casal e, colocando um travesseiro sobre as pernas cruzadas, pediu, ao
estapeá-lo:
Coloque sua cabeça aqui. Vou te fazer uma massagem nas têmporas. Será ótimo.
Não precisa argumentou Raquel, envergonhada.
Deixe de ser boba, Raquel. Aproveita, não é sempre que me douao luxo de ser boazinha. Elas
riram e Rosana, puxando Raquel, a fezdeitar na posição adequada.
A irmã de Alexandre ficou longos minutos massageando as têmporas da moça, que acabou adormecendo.
Olhando-a por algum tempo, Rosana lembrou-se do que seu irmão contara e ficou comovida ao observar
Raquel. A irmã de Alexandre não podia acreditar! Uma moça como ela? Se agora era frágil, imaginava
como deveria ser anos antes. Rosana decidiu que iria fazer de tudo para ajudá-los, afinal ela gostava
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muito de seu irmão. Alexandre merecia ser feliz! Além de ser uma pessoa maravilhosa, ele já havia sofrido
muito. Ela sabia que depois de tudo o que aconteceu com seu irmão, ele jamais havia confiado em alguém
e não acreditava que pudessem existir pessoas fiéis. Agora, com Raquel seria bem diferente. Ela o
respeitaria... Eles precisavam um do outro.
Nesse instante, Alexandre entrou sorrateiramente e sua irmã, levando o dedo aos lábios, fez sinal pedindo
silêncio. Com muito cuidado, ela ajeitou Raquel, que estava com a cabeça sobre o travesseiro em seu colo,
e, saindo daquela posição, Rosana se levantou.
Gesticulando ao irmão para irem até a sala, saíram do quarto.
E aí? perguntou Alexandre, ao se ver mais à vontade.
Ela adormeceu. Encarando-o, Rosana falou: Fiquei olhando para ela e lembrando do que
me contou. Sabe que me deu umacoisa... emocionou-se. Estou com o coração dolorido e uma
vontade de chorar.
Não é fácil, Rô. Inúmeras vezes eu me pego pensando nisso. Se eu um dia encontrar esse
homem, eu o mato! afirmou Alexandre,exibindo indignação.
Não, Alexandre. Um cara desse é imundo, você não merece sujarsuas mãos nele. Deixe-o. Ele é
vítima dele mesmo.
Lá vem você... resmungou o irmão.
Pense, Alexandre. Você acha que um camarada desse não vai pagar pelo que causou a outro?
Raquel era praticamente uma menina, indefesa! Você viu comoela é frágil? Esse cara é um
animal!!!
Nascemos, morremos, mas sobrevivemos, meu irmão. Um dia,pode estar certo, esse homem vai
reparar ou experimentar o que fez o outro sofrer. E não acredite que ele é o único. Como eu já li em
algumlugar, acredito que "hoje sofremos o efeito do que causamos ontem, eamanhã seremos, ou
sofreremos, o que causarmos hoje". Por que vocêacha que alguém nasce sem a mão? Lembra-se, Jesus
falou que: "Se suamão te faz tropeçar, corte-a e lança-a longe de ti; pois te é melhor que seperca um dos
teus membros do que vá todo o teu corpo para o inferno".
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O que você quer dizer? Não entendi.
Ao ver o irmão se interessar, Rosana, mais animada, ajeitou-se no sofá para poder explicar.
É assim, suponhamos que em uma vida a pessoa furtou. Então sua mão o fez tropeçar. É bem
certo que na próxima existência ela tenhaque trabalhar com as mãos em serviços duros, braçais, ou até
com artesanatos, para harmonizar. Dentro desse trabalho com as mãos, é importante que ela faça também
a caridade.
Como assim?
Bem, se ela faz artesanatos, deve doar algumas coisas a bazaresbeneficentes que tenham a
renda revertida para instituições filantrópicas. Se ela realiza trabalhos braçais, poderá ajudar na construção
deobras também beneficentes. Vamos supor que uma pessoa que furtoureceba essa oportunidade, mas,
sendo preguiçosa, mesquinha, avarenta,despreocupada, não realizou a caridade que deveria. Então, talvez
em uma próxima vida ela venha sem a mão para sentir a falta de realizar eharmonizar o que deveria. E a "lei
de causa e efeito".
Tá bom, então eu tenho esse problema cardíaco e você vai me dizer que eu esfaqueei alguém no
coração?
Não necessariamente. Aqueles que destroem o corpo dos outrospodem voltar como cirurgiões. E
você não tem o dom para ser médico,coitado dos pacientes se o fosse! Mas Deus é piedoso, bom e justo
respondeu ela, sorrindo ironicamente.
Engraçadinha!... retrucou Alexandre com o rosto franzido demodo engraçado.
Você deve ter esse problema como algo que sinaliza o limite das emoções. Provavelmente, você
foi um cara muito agitado, nervoso, implicante e que magoou os outros, não dando oportunidades a
algunspara se explicarem, não perdoou... Hoje tem que trabalhar esses sentimentos para que não chegue
ao extremo da emoção. Observe, o seu tipo de problema cardíaco não tem muita ligação com a alimentação
ou o sedentarismo, seu coração é fraco. Quando se emociona, quando fica nervoso, seu coração se altera e
você tem que se virar para procurar a
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calma, a harmonia, certo? Ou então poderá ter uma parada, não é? Se analisarmos bem, podemos ver o
coração como sendo o órgão do amor, dos sentimentos elevados, incapaz de sentir ódio, pois o ódio só
existe quando nossos pensamentos, extremamente racionais e impiedosos, permitem. O ódio é gerado pelo
nosso egoísmo, pela nossa falta de perdão e o coração bondoso não se importa com os pensamentos
exigentes, o coração bondoso sempre se comove, sempre compreende, aceita incondicionalmente e isso é
amor. Você sabia que o coração é o único órgão que o câncer* não ataca? Ou melhor, é o único órgão que
não tem câncer?
Por que será? perguntou o irmão.
Porque o câncer é uma doença corrosiva. Eu acredito que é umadoença para a pessoa trabalhar
a avareza, o egoísmo sobre o que é material, trabalhar o cuidado pessoal, cuidando bem do corpo que lhe
foi emprestado, principalmente obedecendo a todo o tratamento.
O câncer consome ou corrói, em muitos casos, e nada se pode fazer. O câncer é egoísta, você já notou?
Hoje, com o avanço da ciência, a cura é comum em vários casos; acho que isso tem algo a ver com a
espiritualidade da pessoa. Outros, no entanto, sofrem por anos. E há os que experimentam a doença
fulminante, sem muito padecimento. Só Deus pode explicar.
E, sendo o coração o órgão símbolo do amor, dos elevados sentimentos, verificamos que o amor só doa, só
trabalha para o bem, o amor perdoa, aceita, eleva, renuncia, oferece...
O coração não é só o símbolo do amor, ele é o órgão do amor. Repare que ele é o único que trabalha em
benefício de todos os outros órgãos, em prol de todos os tecidos, todas as células. Tudo no corpo humano
depende do coração. Ele só doa.
O que foi feito para realizar tanta obra boa não pode ser corroído, não vai se infectar por algo egoísta como
o câncer, mas pode reclamar a
* N.A.E. Nenhum músculo experimenta o câncer, pois, a princípio, o músculo não tem secreção de
hormônio. E sendo o coração, propriamente dito, um músculo, o câncer não acontece nele. Entretanto, nas
regiões proximais, como membranas, tecido fibroso, glândulas, esôfago, pulmões etc., o câncer pode
ocorrer e obviamente prejudicar a função desse órgão.
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falta de trabalho na área do perdão, ele reclama a falta do amor incondicional, falta de controle dos
sentimentos eufóricos, nervosos, reclama a falta de calma, de harmonia. Ele sinaliza o seu "não-trabalho de
amor".
Então aquele que tem câncer deveria trabalhar se doando na caridade para não ser corroído?
Espere! Não foi isso o que eu disse. Ê assim, essa pessoa já deveriacomeçar a trabalhar na
caridade, não pelo egoísmo pessoal, ou seja, pelointeresse de não ser "corroído" por essa doença, mas
para começar adespertar o verdadeiro desinteresse material.
Em outra vida, ou até na atual, ela pode ter querido tudo para si, ou ter maltratado o próprio corpo com
drogas, álcool, fumo, tatuagem etc. Tudo isso que estou falando são só exemplos, não são regras, pode
haver inúmeros feitos que a pessoa necessite harmonizar ao sofrer um câncer. O egoísmo e o maltrato ao
corpo são só dois exemplos deles.
Hoje essa pessoa pode trabalhar para ajudar o bem-estar físico de algum doente, compensando ou
harmonizando o que deixou de fazer por si, ou, então, doar ou trabalhar em prol da doação para que outros
se conscientizem. Isso é um bom começo para se elevar.
Sabe, Alex, há pessoas que dizem assim: "Estou com câncer e vou começar a ser voluntária em alguma
coisa, para que Deus me recompense". Isso é querer negociar com Deus. Ela estará sendo egoísta do
mesmo jeito.
A pessoa deve procurar tarefa produtiva, caridosa, não para negociar com Deus, mas para trabalhar o seu
lado humano que ficou esquecido. Ela deve procurar a caridade, para se ocupar com serviços benéficos,
superiores e com o coração alegre, não pela obrigação de ter que fazer. Aí, sim, ela começa a se livrar das
marcas negativas das quais deve estar impregnada.
Assim ela terá menos tempo para se preocupar com a própria doença, se voltar para o amor e não ser
depressiva.
Aliás, não se deve fazer caridade nem trabalhar em algo beneficente somente quando as doenças ou os
problemas aparecem na nossa vida. Todos podemos fazer algo em benefício de alguém, isso é muito
impor-
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tante para se ter paz, pois os primeiros a serem socorridos são os tarefeiros úteis. Esses nunca podem
parar.
Você falou que a pessoa deve procurar trabalhos caridosos para não ser depressiva. No caso do
câncer, é impossível a criatura ter essa doença e não ser depressiva.
Impossível não é! Pode ser difícil. Mas, com uma tarefa de bondade e amor, em que se preocupe
com aqueles que têm poucas condições,são necessitados, ela vai se manter ocupada e esquecer um
pouco a doença. Não terá muito tempo para ficar curtindo as dores de tristeza e depressão. Você se lembra
do Herbert de Sousa, o Betinho?
Claro!
Ele sempre lutou pela ética política, pelos direitos humanos, pela reforma agrária, pelo controle da
Aids. O que o fez conhecido e respeitado mundialmente foi sua luta contra a fome. Você sabia que esse
mineiro foi tuberculoso, teve uma hemorragia quase fatal, viveu três anos enclausurado num quartinho nos
fundos de um quintal, isolado do mundo por causa da doença?
Não.
E sim! O Betinho, quando se recuperou, começou a participar dajuventude estudantil mineira
católica. Formou-se em Sociologia e Política. Teve de se exilar no Chile durante o regime militar, onde
lecionoue assessorou o presidente Salvador Allende. Depois ele viveu na Escócia,no Canadá e no México.
Quando voltou para o Brasil, participou dafundação do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e
Econômicas. E numa transfusão de sangue, pois era hemofílico, ele contraiu o vírus da Aids, isso em 1986.
E você pensa que isso o fez parar? Não! O Betinho tornou-se presidente da Associação Brasileira
Inter disciplinar da Aids, e foi dele a mais importante atuação na campanha que exigia maior controle sobre
os bancos de sangue. Você imagina quanta gente deve agradecer a ele por não ter pegado o vírus da Aids.
Eu acredito que todos nós devemos muito a essa criatura, o Betinho, que se usou como campanha de
informações e protestos para a orienta-
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ção e a vigilância. Poucos sabem o que é isso. E tudo aconteceu quando ele estava doente. Esse foi o
período em que mais trabalhou em favor dos outros. Quer caridade maior?
O irmão ficou calado e Rosana prosseguiu:
Por ele ter lutado em favor dos índios e da reforma agrária, ganhou do Programa das Nações
Unidas o Prêmio Global. No ano seguinte, em 1992, ganhou o prêmio Nacional de Direitos Humanos.Criou
ainda a Ação da Cidadania contra a Miséria, mais conhecida comoCampanha Da Fome, liderada por ele.
Betinho morreu em agosto de1997. Que perda lamentável tivemos. Sabe, até no leito ele lutava pelo ideal
da caridade e pela população carente.
Você não vai me dizer que decorou tudo isso só para me dizer?
Claro que não. Até porque você não merece! retrucou a irmã,brincando. Alexandre riu e
Rosana contou: Tive um trabalho paraapresentar na faculdade e escolhi falar sobre o Betinho. Que
exemplo deforça atuante podemos tirar de suas lições de vida!
É, mas nem todo mundo tem essa força.
Temos a força que queremos ter. Para tudo temos que nos esforçar.Não digo que temos de fazer
como o Betinho, como a irmã Dulce, comoa Madre Tereza de Calcutá, mas não somos indigentes a ponto
de não podermos reservar uma única hora como voluntário para uma ação caridosa. Paulo de Tarso disse
que das três virtudes: fé, esperança e caridade, a maior é a caridade. Outro dia eu estava lá no centro e
uma mulher procurou um dos diretores e falou mais ou menos assim: "Eu sou pobre e preciso receber cesta
básica. Não tenho nada para doar e gostaria muito de fazer caridade. Será que eu estarei fazendo caridade
se vier aqui ajudar a limpar o salão e outras dependências?". Sabe, ela é uma pessoa muito simples, mas
que coração! Que caridade ela estava fazendo! Não para umapessoa, não para uma família, mas para as
centenas de pessoas que passam por ali todas as semanas! Doar-se, de qualquer modo, é uma caridade.
Isso é verdade concordou Alexandre.
Você mesmo me disse que encontrou muitos doentes de coração que, com qualquer
cardiopalmia, achavam que estavam tendo um ataque.
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Alexandre sorriu e ela perguntou:
Não é mesmo? A pessoa fica tão preocupada consigo mesma,reagindo de forma tão egoísta que
passa até a sofrer com o que não tem.
Alexandre, olhando para sua irmã, sentiu vontade de lhe fazer uma pergunta, mas se inibiu:
Rosana, adivinhando-lhe os pensamentos, revelou:
Já sei! Você quer saber como fica o caso da Raquel? Ele se surpreendeu, mas não disse nada,
e ela continuou: Sabe, nem tudo de ruim que te acontece é porque você tem que sofrer aquilo. Muitos por
aí andam dizendo isso, mas, se assim fosse, Jesus não teria sido tão torturado. Então, aí nós temos um
espírito elevadíssimo passando pormissão de caridade ou provas por caridade a nós, e não por expiações.
Por que provas?
Provas porque era um espírito preparado e não se importou com os riscos que certamente
correria. No caso de Raquel, podemos ter duas coisas acontecendo. Primeiro: ela pode estar expiando o
que fez erroneamente no passado. Isso não a isenta de culpas e o seu mal feitor de hoje não será poupado
de expiar, experimentar ou harmonizar futuramente o que fez com ela. Jesus disse: "Quem com a espada
fere, com a espada será ferido".
E assim: o cara estava determinado a fazer aquilo, então a pessoa que tem de expiar, ou seja, passar por
essa experiência, fica na sua linha de ação.
A outra hipótese é a seguinte: se Raquel é um espírito com entendimento, com certa elevação, e tem nessa
vida algo que se determinou a cumprir, antes de ela reencarnar, quando lhe apresentaram os planos ou os
projetos reencarnatórios mostrando-lhe os riscos de sofrimento que ela poderia correr, para cumprir a sua
tarefa, ela certamente não teve medo e decidiu aceitar.
Isso não é injusto diante das Leis de Deus?
Não. Por exemplo: se Raquel, no caso, é um espírito com entendimento, ela não é inocente. Isto
é, ela tem entendimento, conhecimento. Vai sofrer, vai experimentar a dor, mas vai se elevar e superar
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tudo. Seria injustiça se isso ocorresse com um espírito sem elevação, sem entendimento e que não
necessitasse dessa experiência de sofrimento. O espírito elevado tem conhecimento, entendimento, não é
um espírito inocente e aceita correr o risco da experiência para ajudar ou ensinar a muitos, mesmo que
essa experiência seja abominável ou traumática.
Então essa vivência amarga lhe servirá como uma prova que, ao superar seus temores, e a criatura
elevada supera, ao perdoar o seu ofensor, ela terá tirado nota dez. Um espírito que não é inocente, que tem
entendimento, não se preocupa com o corpo físico, com o cultivo da vaidade, para ele o corpo físico é como
uma roupa.
Eu vou lhe dar um livro que se chama O Livro dos Espíritos, e nas questões 738a e 738b, apesar de
estarem falando sobre os flagelos destruidores que vitimam o homem de bem, nos ensina que, mesmo sem
precisar, a criatura pode sofrer como vítima por uma consequência que não necessitaria, mas que, depois,
pela justiça de Deus, ela terá uma compensação para o seu sofrimento se souber suportar sem reclamar a
Deus os seus direitos e sem julgá-Lo injusto. É mais ou menos isso.
Resumindo, sempre devemos nos preparar para perdoar nossos ofensores e estar dispostos à prática da
caridade sem julgar ninguém.
Para perdoar um ofensor desse, é preciso ser muito elevado!
Lembre-se do que Jesus falou: "Reconciliai com seu inimigo enquanto estiver no caminho com
ele, porque depois será difícil".
Alexandre estava sentado, curvo e com as mãos cruzadas na frente do corpo, olhando firme para sua irmã;
em dado momento ele reagiu, dizendo:
Esse cara nunca cruzou meu caminho e eu quero quebrá-lo ao
meio!
Está aí! É por isso que você é cardiopata alertou imediata. O irmão arregalou os olhos e ela
continuou: Já reparou, Alex? Você critica muitas coisas criando para você mesmo vibrações ruins. Tudo,
para você, é motivo de bater, quebrar ao meio... Isso é falta de compreensão, falta de amor, falta de
perdão. É por isso que seu coração reclama. Enquanto não compreender, não perdoar, criando um amor
incondicional
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para com aqueles que ainda não evoluíram, você será um preocupante cardiopata.Veja, você fica nervoso,
irritado, magoado, e o que acontece? Aquele órgão, símbolo do amor, reclama!
É simples.
Quer dizer que eu tenho que compreender, perdoar e amar a falta de amor e de compreensão dos
outros?
Isso mesmo. Além de controlar suas emoções irritadiças.
E o outro, que praticou o mal?
Alex, compreenda que a vida dos outros a eles pertence junto com tudo o que eles fazem. Você
tem que cuidar e vigiar as suas atitudes, os seus sentimentos. Se nem de você mesmo você dá conta,
como quer cuidar da vida alheia?
Onde você aprendeu isso? sorriu entendendo a filosofia dairmã.
Antes que ela respondesse, Raquel, um tanto assonorentada, surgiu na sala e ambos voltaram a atenção
para a moça.
Oi, Raquel! Melhorou? perguntou Rosana alegremente, levantando-se e indo em sua direção.
Nossa! Acho que dormi demais. Mas melhorei, sim.
Venha, sente-se aqui! Virando-se para o irmão, Rosana pediucom modos dengosos:
Alexandre, faz uma pipoquinha pra nós, faz.E sabe aquele chazinho? Ou até um chimarrão cairia bem com
esse frio!
Alexandre se levantou e Rosana, ao vê-lo na direção da cozinha, falou em voz alta:
Pipoca queimada é horrível, viu?
Lembrando-se que Raquel reclamara de estar com dor de cabeça há uma hora atrás, Rosana encolheu os
ombros, franzindo o rosto de um jeito engraçado, e falou:
Desculpe-me. Esqueci que estava com dor.
Não se preocupe, já passou.
Mas você nem tomou o remédio.
Verdade, passou, não sinto mais nada. Estou bem.
O silêncio durou alguns segundos, mas Rosana não perdeu tempo e se aproximou de Raquel,
perguntando:
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E então? Está gostando daqui?
Como não poderia gostar? Só que me sinto muito constrangida.A situação é difícil... Creio que o
Alexandre deve ter te contado.
Ele contou que você trabalha com ele e foi ajudar seu irmão, porfim não se deu muito bem
porque sua cunhada inventou calúnias a seu respeito. Isso não é motivo para você se envergonhar. Pode
acontecercom qualquer um.
Mas a situação é muito delicada. Alexandre é homem e eu, morando aqui... Isso não fica bem. As
pessoas estão julgando o que não estáocorrendo.
Não veja dessa forma, Raquel. O Alex quer ajudá-la. Dê-lhe essa oportunidade e agradeça a
Deus por tê-lo encontrado num momento tão problemático de sua vida.
Por minha causa ele brigou com a mãe...
Já está tudo bem! Hoje mesmo eles conversaram e o Alex tem umjeitinho todo especial para lidar
com ela. Por ser muito amoroso e atencioso, ele a conquista com a maior facilidade.
E como ela está?
Ótima! Você vai conhecê-la. Não fique com uma má impressão,dona Virgínia é uma criatura
maravilhosa. Tem um coração!... Sabe,Raquel, você tem mais é que aproveitar o momento e não ficar se
torturando. Acho que o Alex já contou que é cardiopata, não contou?
Sim, contou.
Desde então, minha mãe ficou super protetora com ele. Além do mais, ele sofreu uma decepção
muito grande.
Ele me contou isso também e até que tentou se matar.
Ê verdade respondeu Rosana, com voz meiga e piedosa. Depois disso, nossa mãe se
preocupa demais com ele. Não só ela, mastodos nós temos medo. Entende?
Não posso tirar a razão de sua mãe. No lugar dela talvez eu agisse do mesmo jeito.
Então não se importe com isso. Se ajudá-la está sendo bom para meu irmão, será bom para nós
também.
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É que vão falar coisas que não estão acontecendo.
Ei! Ei! E se estiverem acontecendo? Qual é o problema?
Mas não estão... defendeu-se Raquel, delicada.
Preste atenção. Não perca tempo preocupando-se com os outros.Se não acreditam na amizade
verdadeira entre duas pessoas que se ajudam, problema deles. Vocês são grandes amigos e isso é tão
bonito.
Raquel sorriu, parecendo mais calma. No olhar de Rosana ela encontrou compreensão e em suas palavras
o conselho reconfortante que aliviava seu coração aflito. A irmã de Alexandre retribuiu com um sorriso e
argumentou:
Nunca deixe acabar a amizade entre vocês dois. Converse com ele, ouça-o quando for preciso.
Sejam verdadeiros um com o outro. Issoé o que mais importa. Sabe, Raquel, às vezes eu fico preocupada
empensar que o Alex está aqui sozinho. Vai saber o que passa pelos pensamentos dele. Como será que se
sente só? Sem um objetivo para lutar,sem ter alguém com quem dividir. Quando eu soube que você
estavaaqui, e que ele a estava ajudando, pensei: que bom! Acredito que quem está sendo ajudado nessa
história toda é o Alex, e não você.
Por quê?
Porque as pessoas precisam se sentir úteis, fazendo algo que gostam. Ajudá-la é algo que o
satisfaz, ele gosta. Isso o mantém com amente ocupada. O faz se sentir útil. Ele tem um motivo, um
prazerbenéfico.
Com o olhar preso ao chão, Raquel ainda parecia em dúvida. Aproximando-se mais da nova amiga,
Rosana pegou-lhe as mãos e perguntou:
Fala. O que a perturba?
Seus olhos se encontraram e Raquel permaneceu pensativa. Ela não poderia confiar à irmã de Alexandre
os seus mais íntimos pensamentos. Principalmente pelo fato de elas terem acabado de se conhecer.
Entretanto, conversavam como se fossem amigas há muito tempo.
Eu... tentou dizer Raquel.
Você...? perguntou Rosana diante do silêncio.
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Aconteceu muito rápido. Tudo isso é novo e estranho para mim.Não fui acostumada a esse tipo
de situação em que vivo hoje. Tenho medo. Vergonha.
Medo do que, Raquel? Medo do Alexandre?
A moça ficou em silêncio e abaixou o olhar, que exibia preocupação. Sem perceber, ela apertava as mãos
de Rosana. Acreditando entender Raquel e conquistando sua confiança, generosa, Rosana perguntou
baixinho:
Você tem medo do meu irmão, é isso?
Não... Não é bem isso.
Raquel, o Alexandre a respeita.
Eu sei!
Ele a quer muito bem.
Olhando-a com firmeza, Raquel respondeu:
Talvez seja esse o problema.
É problema ele gostar de você?
Sim, é respondeu a amiga, abaixando o olhar.
Alexandre surgiu na porta e, no ângulo em que Raquel se encontrava, não poderia vê-lo. Esperta, Rosana
fez-lhe um gesto rápido com a cabeça e o olhar, indicando que voltasse para a cozinha. Virando-se para
Raquel, ela falou:
O Alex gosta de você e a respeita. Não creio que haja segundas intenções nesse apoio que ele
está te dando.
Eu sei. Ele já me disse isso.
Confie nele, Raquel sugeriu com brandura.
Eu confio sussurrou sensível.
Então qual é o problema?
Sou eu o problema respondeu Raquel com voz baixa, escondendo o olhar.
Como assim? questionou Rosana, com delicadeza.
Um minuto de pausa se fez até que Raquel resolveu tentar esclarecer:
O Alexandre é uma criatura muito nobre, Rosana. Eu jamaispoderei corresponder aos seus
sentimentos. Não da maneira como ele merece e... deseja.
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Pegando no queixo de Raquel, Rosana a fez olhá-la e perguntou, mesmo se lembrando do que seu irmão
lhe contara:
Por que, Raquel? Por que, se meu irmão te amar, você não poderácorresponder? Você não gosta
dele? esperta, desconfiou.
Sentindo seu coração apertar, a jovem Raquel não conteve as lágrimas que correram em seu rosto.
Desconfiada, Rosana perguntou com jeitinho e observando a reação da amiga:
Raquel, você gosta do Alexandre? Sem que Rosana esperasse,a amiga abraçou-a chorando.
Ela correspondeu ao abraço carinhosamente, enquanto dizia: Calma, Raquel. Fique tranquila. Que
bom que é isso.
Não... disse, com a voz abafada pelo abraço e rouca pelo choro. Isso não pode ser. Tem
muita coisa que você não sabe.
Você quer me contar? pediu Rosana após pequena pausa.Pensando um pouco, ela
respondeu:
Talvez outro dia.
Raquel se afastou do abraço e Rosana passou a secar suas lágrimas aparando-as com as mãos ao dizer:
Seremos grandes amigas, Raquel. Pode confiar em mim. Gostei muito de você. Admiro sua
sinceridade, seu coração puro.
Não...
Não o quê? Não teime comigo! respondeu Rosana brincandoanimada. Agora, vamos lá
para o quarto para lavar esse rosto, escolher uma roupa bonita e sair para passear um pouco.
E a pipoca?
Que pipoca?! Não está sentindo o cheiro de queimado, não? Essa pipoca já era! Agora vamos.
Elas foram para o quarto e Rosana, com seu jeito descontraído de ser, arrancou gargalhadas até de Raquel
contando seus casos. Pouco depois, enquanto Raquel acabava de se aprontar, a amiga foi para a cozinha
à procura de seu irmão.
O que vocês conversaram tanto? perguntou Alexandre, curioso.
Ah! É assunto de mulher. Não vou contar. Não posso trair minhaamiga.
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Pare com isso, Ro!
Nós vamos sair para dar uma volta. Empresta seu carro?
E eu?!!! reclamou o irmão, incrédulo e se sentindo rejeitado.
Você vai a algum lugar? Se for, nós o deixamos no seu destino e,de lá, sairemos nós duas.
Não! Eu vou junto com vocês!
Não mesmo!!! riu.
E o Ricardo? Não vai ver seu noivo hoje?
Ele foi para o Rio a serviço. Estou livre e desimpedida e a Raquel também.
Alexandre não acreditava no que estava ouvindo, o jeito irreverente da irmã o incomodava naquele instante.
Andando de um lado para o outro, Rosana falava de um jeito brincalhão e mais debochado:
Vai, Alex! Dê-me a chave do carro. Preciso ensinar a Raquel a se divertir.
Ah, não! Vocês não vão, não.
Tudo bem! Só vou usar o telefone um pouquinho, tá? Preciso chamar um táxi.
E eu?!!!
Estou falando sério. Sairemos só nós duas! Se o levarmos, você vai nos constranger... Ih! Isso
não vai dar certo. Você fica, meu filho!
Dizendo isso, Rosana foi para a sala onde Raquel acabava de chegar.
Você está ótima, Raquel. Vamos!
Voltando-se para o irmão, que estava parado à porta, incrédulo e com os olhos arregalados, Rosana
perguntou como se fosse pela última vez:
Você vai ou não vai dar a chave do carro?
Suspirando profundamente, exibindo-se contrariado, Alexandre falou:
Toma. E cuidado, hein! Meu carro é novo.
Você não vem? perguntou Raquel, que não sabia o que estavaacontecendo.
Não pergunte novamente, Raquel. Vem você, ele fica. Empurrando Raquel porta a fora,
Rosana foi falando, enquanto ele ouvia
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sua voz sumir: Come toda a pipoca, viu, Alex! Pipoca fria, murcha e queimada é horrível! E não fique
nervoso, olha o seu coração!
Sem concordar com a situação, por se sentir excluído, Alexandre, percebendo que não adiantava ficar
irritado com Rosana, começou a rir sozinho. Sua irmã parecia não ter juízo. Rosana era uma excelente
pessoa. Maravilhosa! Sempre alegre e extrovertida. Nunca a via triste nem deprimida. Alexandre confiava
muito nela. O engraçado era que, quando pequenos, eles brigavam muito, mas logo, na adolescência da
irmã, eles passaram a ser grandes companheiros. Perdido em seus pensamentos, ele começou a analisar o
que ouvira dela há pouco. De onde seráque sua irmã tirara aquelas reflexões tão lógicas?
Ele nunca se preocupara com religião, principalmente por não gostar de ter que seguir normas
pré-estabelecidas e rituais sem entender o motivo, ou sem ter uma razão lógica e proveitosa. Ao mesmo
tempo, ele acreditava em Deus, nas oportunidades positivas da vida. Ele mesmo podia dizer que enfrentara
situações em que pudera escolher entre o bem e o mal, seguindo qualquer um dos caminhos por vontade
própria, mas não havia pensado em ter que resgatar, com experiências próprias, os resultados do que
escolhera fazer.
Quando esteve internado, pensou muito em Deus, em Sua existência e pediu por uma oportunidade.
Parece que Deus havia lhe dado essa chance, se não por merecimento, fora por misericórdia. Ele sempre
quis entender por que, tão novo e com uma vida inteira pela frente, fora sofrer aquele problema cardíaco.
Por que fora traído por Sandra e por seu melhor amigo?
Essas perguntas começavam a ter explicações com a filosofia que Rosana lhe apresentara.
Mas por que Raquel, tão simples, tivera que provar aquela experiência tão amarga?
A forma e o raciocínio lógico que Rosana usava foi algo que o fez compreender o significado da vida, ou
então ele teria que acreditar que Deus não é justo. Onde ela aprendera aquilo?
Os pensamentos de Alexandre vagavam agora sedentos de mais conhecimentos. Largado no sofá, em
meio àquelas ideias, o rapaz foi se
237
entregando lentamente ao sono e, já emancipado do corpo físico, na espiritualidade, despertou
suavemente. Com outra consciência agora, procurou por aquela entidade que sempre o assistia.
Aproximando-se dele, aquela bela criatura o chamou:
Alexandre, que bom que o interesse já desperta em você.
Ainda tenho dúvidas respondeu ele.
E sempre as terá. Mas, com boa vontade, vai se esclarecer.
Tive explicações que, pela primeira vez, fizeram sentido para mim.
Que bom, filho.
O que faço?
Siga os seus desejos. Procure conhecimento, mas tenha paciência.
E a Raquel?
Ela, apesar dos obstáculos que terá de vencer, vai seguir o seu exemplo. Ela vai precisar de você.
E eu dela.
Raquel vai precisar da sua compreensão, da sua paciência e da suafirmeza em determinados
momentos.
Ela tem todo o meu amor.
Então tenha paciência e fé. Você quis e prometeu ajudá-la diante dos imprevistos antes dessa
existência. Agora aproveite beneficamente essaoportunidade. Muitos abalos hão de surgir. Seja arrimo de
Raquel. Controle seus impulsos. Será uma ótima oportunidade de aprender e ensinar o perdão. O perdão é
uma caridade para consigo mesmo, Alexandre.
Mas existem pessoas que...
Que são crianças. E das crianças não podemos exigir muito. Perdoe sempre, não importa a
quem, não importa o quê.
Vou me esforçar.
Eu sei. Você é perseverante.
E minha filha? Posso vê-la? perguntou Alexandre.
Ela está bem. Mas agora não é um horário adequado. Entenda.
Eu a quero tanto perto de mim. Preciso reparar...
Tudo tem seu tempo e sua hora, Alexandre. Seja paciente.
E que eu a amo.
238
Ela também. Aguarde.
Nada mais foi dito. Alexandre sentia-se refeito e extasiado.
Subitamente o toque do telefone o assustou. Aqueles poucos minutos de sono pareceram valer por uma
noite inteira. Ele não se lembrava de nada, sentindo somente um bem-estar.
Alo? atendeu assonorentado.
Oi, Alex! Sou eu, o Ricardo.
Olá! Tudo bem?
E aí? Como estão as coisas?
Se não fosse o tempo estaria tudo melhor. E aí, está frio?
Que isso, cara! É difícil fazer frio aqui no Rio de Janeiro, né? Otempo aqui está ótimo. Deu até
para pegar uma praia hoje.
Ainda bem. Aqui está um gelo. Nem dá para crer que moramos no mesmo país!
Quem mandou querer morar no sul? riu. Escuta, e a Rosana,está aí?
Não, cara! Ela acabou de sair. Ela foi acho que ao shopping junto com uma amiga minha.
Puxa! A Rosana não pára mesmo! lamentou Ricardo.Alexandre riu e falou:
Nossa mãe costuma dizer que a Rosana "tem rodinha nos pés".Após rir, Ricardo disse:
Então diga que eu liguei. Já falei com sua mãe e foi ela quem me disse que a Rô estava aí. Diga
que mandei um beijo e que estou com saudade. À noite eu telefono lá para a casa do seu pai.
Pode deixar que eu falo.
Obrigado, Alex! Tchau!
Tchau, Ricardo.
Alexandre se levantou e foi consultar o relógio.
Puxa! reclamou ele, falando sozinho. Deveria ter lembrado de dar o celular para aquela
maluca!
Resolvendo, foi tomar um banho e depois passou a jogar no computador que havia no outro quarto. Bem
mais tarde, Rosana e Raquel
239
voltaram. Sua irmã, como sempre, alegre e brincalhona. Raquel, entretanto, mesmo dentro de sua timidez,
estava um pouco mais animada.
Pronto! anunciou Rosana. Raquel está entregue, sã e salva!
Puxa! Vocês demoraram, hein!
Nem tanto, Alex. Agora é o seguinte: terão que me levar para casa.
Ah! Antes que me esqueça, o Ricardo telefonou.
Rosana pareceu arrependida por não estar para atendê-lo, depois falou:
Não sei como nos conhecemos.
Por quê? perguntou o irmão.
Vivemos nos desencontrando. Não temos tempo para ficar juntos. Quando não é o horário dele,
são as viagens. Mais animada, ela pediu: Vamos, Alex, me leva para casa, vai.
Fica! Vamos pedir uma pizza?
Não. Quero ir embora.
Mesmo?
Mesmo.
E observando as sacolas, Alexandre, curioso, perguntou indo espiar:
O que compraram?
Dando-lhe um tapa na nuca, Rosana falou:
Deixe de ser curioso. Isso não te interessa!
Ai! Ô! gritou o irmão, esfregando a cabeça.
Não é da sua conta! tornou ela. Agora me leve embora.Raquel ria da cena entre eles. Ela
nunca vira tamanha amizade entre
irmãos.
Com licença pediu Raquel, risonha. Deixe-me levar isso lápara o quarto.
Aproveitando por estar sozinha com seu irmão, Rosana alertou:
Idiota! sussurrou ela.
O que é, ô?!
Você, querendo que eu fique aqui. Se manca e convida ela para irconosco. Depois vocês dão
uma volta, vão comer fora, se distrair. Não vai querer ficar aqui socado.
240
Tá, tudo bem, mas e aí? O que tanto vocês conversaram?
Enquanto estávamos na rua, só passeamos. Fomos ao shopping,tomamos um suco, fizemos
pequenas compras. Dando ênfase, ela completou: Mas aqui, antes de sairmos!...
Os olhos de Alexandre brilhavam tamanha era a sua expectativa. Não suportando conter sua curiosidade,
perguntou:
O que vocês falaram?
Não vou contar! respondeu com prazeroso sorriso irônico.
Eu mato você, Rô!
Fica frio! Olha o seu coração, hein! aconselhou debochada ecom um jeito muito engraçado.
O irmão começou a rir, era impossível ficar sério ao lado de Rosana. Mas para não deixá-lo ansioso, ela
falou mais séria:
Vem cá na cozinha.
E já no recinto indicado, mais à vontade, após se sentarem, ela continuou:
Gostei muito dela. Pareceu-me uma pessoa sincera, honesta. Eutenho o dom de conhecer alguém
quando vejo. Raquel é muito legal.
Alexandre sorriu e respondeu tranquilo:
É, eu sei.
Pegando em sua mão, olhando-o nos olhos, Rosana alertou:
Sabe, Alex, parece que a Raquel nunca teve um amigo verdadeiro,alguém em quem pudesse
confiar mesmo.
Vocês conversaram?
Sim. Mas ela não me contou tudo, lógico. Não poderia falar dafilha, nem do tio... Nós nos
conhecemos hoje.
Claro concordou o irmão.
Ela tem medo.
Eu sei.
Não. Você não sabe, Alex.
Como assim?
A Raquel tem medo dela mesma.Alexandre a encarou sério, aguardando o desfecho.
241
Sabe, Alex, Raquel o ama. O medo que ela sente é esse.
Espera! Ela não me ama.
Aí é que você se engana. Raquel o ama, sim. É por isso que vive em conflito. O seu medo é de
não poder corresponder. Ela o respeita, oadmira imensamente, acha que você é uma pessoa nobre e vê a
si própria como uma "coisa". Raquel se subestima, ainda se sente humilhadapelo que sofreu no passado,
sem contar os traumas que vive.
Alexandre ouvia atento, procurando se orientar pelas palavras da irmã que continuou:
Só que, ao mesmo tempo que ela se atrai por você, vive o pesadeloda experiência do passado.
Analise comigo, qual o exemplo que Raquel pode ter ou lembrar de carinho entre um casal? Que vivência
pôde ter,como experiência, de um relacionamento amoroso feliz? Que visão, que sonho ela pôde ter?
Raquel só tem lembranças amargas por ter sido tão subjugada. Alexandre, pensativo e amargurado,
abaixou a cabeça,enquanto ouvia: Agora é o seguinte: você tem que ser forte e tranquilo, compreensivo
e prudente se quiser passar e transmitir para ela esses exemplos bons. Raquel tem que aprender que isso
existe. E pode aprender com você.
Rô, ela está traumatizada.
Eu sei. Mas, se você a ama, proponha-se a reverter esse quadro.
Para isso ela precisa me amar.Perdendo a paciência, a irmã reagiu:
Você é um burro! Caramba! Preste atenção, Alexandre. Você pode imaginar o quanto ela teve que
se superar para vencer o medo que sente e te dar um abraço? E ela só faria todo esse esforço por alguém
que significasse muito para ela.
Ele se lembrou que, na maioria das vezes, a amiga o rejeitava. Mas quando se deixava ficar em seus
braços, parecia que tinha de vencer um medo terrível para se deixar envolver.
Alex, você entendeu? Entende o que ela sente?
Às vezes me vejo como um menino inexperiente. Eu nunca sei o que fazer.
242
Você não é um menino, mas é totalmente inexperiente com uma garota assim. E sabe por quê?
Porque todas as mulheres quevocê teve, até hoje, não te deram trabalho, nem o prazer da conquista. Elas
foram muito fáceis, não foram? Coisa fácil não tem valor. Rosana, sorrindo, completou: Você é um
menino no amor, Alex.Creio que nunca amou alguém como agora. É por isso que se pega sonhando,
imaginando, preocupado e pensando: por que eu me sujeito a uma situação como essa? Vivo fantasiando
que Raquel é minha esposa, que quando eu chegar em casa ela estará lá me esperando, arrumará meu
jantar, saberá dos meus gostos, contará sobre suascoisas, seu dia...
Alexandre olhou assustado, pois Rosana havia lido seus mais secretos pensamentos.
Não é isso, Alex? Sem esperar pela resposta, continuou: Sefor isso, verdadeiramente você
a ama. Faça com que Raquel não só oame, mas também sonhe com você, fantasiando assim como você
faz.
Como farei isso?
Não seja precipitado, não a aborde. Seja natural, deixe-a se acostumar com você. Creio que já
estou ganhando a confiança dela comoamiga. Aos poucos conversaremos e aí eu vou falando a ela sobre o
seudespertar para as coisas boas da vida, que ainda desconhece.
Um barulho os fez perceber que Raquel se aproximava. Os irmãos se levantaram e Alexandre falou:
Obrigado, Rô.
A irmã simplesmente sorriu. Ao irem para a sala, Rosana olhou para Raquel, dizendo:
Vamos?
Eu?!
Claro, estávamos esperando por você para nos acompanhar. OAlex vai me levar em casa,
vamos.
Não, eu...
Puxando Raquel, alçando seu braço, Rosana a conduziu em direção da porta, dizendo:
243
Não se preocupe. Nem precisam entrar. Do portão mesmo vocês voltam.
Após deixarem Rosana em casa, Alexandre propôs que fossem jantar fora, agindo naturalmente, conforme
sua irmã sugeriu.
Eles conversaram sobre o passeio que elas fizeram naquela tarde e Alexandre contou-lhe coisas
engraçadas que lembrou de sua infância. Voltaram tarde para casa.
Ele queria ficar conversando por mais tempo, porém observou que Raquel exibia cansaço e decidiu seguir
a recomendação de sua irmã e deixá-la livre para fazer o que quisesse.
244
Capítulo 11
A preocupação dos pais
Alice, a cada dia, arquitetava novo plano para se destacar na empresa em que trabalhava. Agora, por
prestar serviços para a diretoria, fazia tudo para ser chamativa. Aos poucos, ela foi conseguindo atrair a
atenção de um dos diretores, o senhor Valmor. Eles iniciaram um romance e começaram a sair juntos, mas
por ter que chegar em casa no horário de costume, quando possível, saíam mais cedo do serviço para seus
encontros.
Alice não respeitava o marido nem os filhos. Eles nem podiam desconfiar. Em casa, como mãe, quase não
dava importância aos meninos, que necessitavam de seu acompanhamento e atenção.
Nilson, o filho mais velho, arrumou um emprego em um supermercado como repositor. Certo dia, Elói
procurou por ela e disse:
Mãe, o Nilson está fazendo coisa errada.
O que é?
Ele traz para casa algumas coisas do mercado. Isso não é certo.
Sabe, Elói, gente honesta nesse país não tem valor, não sobe navida, nem dorme tranquila
porque vive preocupada com o despejo.
Mas mãe, a senhora não vai falar nada?Com ar de desprezo Alice perguntou:
Falar o quê?
Apesar da pouca idade, Elói sentia que algo estava errado, ele tinha discernimento.
Contrariado, mais tarde, quando se viu sozinho com o irmão, perguntou, ao vê-lo:
Onde achou isso?
Não é da sua conta.
Vou contar para o pai!
Vai nada!
Os adolescentes iniciaram uma briga que após poucos minutos foi separada por Marcos, que chegou para
ver o que estava acontecendo.
Parem com isso, vocês dois!
Foi ele quem começou alegou Elói em sua defesa.
O que está acontecendo aqui? perguntou o pai veemente.Elói contou o que ocorria, enquanto
Nilson o fuzilava com o olhar.Indignado, Marcos inquiriu firme:
Isso é verdade?
Alice, que se aproximava, interrompeu-os.
O que foi?
O Nilson está furtando no serviço. Ele está trazendo mercadoriaspara casa. Eu nem posso acreditar
numa coisa dessas!
Tranquila, a esposa respondeu em tom irônico e voz debochada:
É! E o que você pensa em fazer? Bater nele? Sabe, Marcos, seufilho é mais esperto do que você.
Ele já aprendeu que se a sociedade não lhe dá uma oportunidade, ele tem que fazê-la.
Você ficou louca, Alice?! gritou o marido. Se ele não está contente com o que tem, que
estude e trabalhe muito para ter mais. A sociedade não é culpada pelo fracasso de alguém. No mercado de
trabalho existem vagas, sim, mas não tem pessoas capacitadas para as ofertas deemprego que exigem
qualificação profissional, estudo, conhecimento.Ninguém está a fim de estudar, de se esforçar para
aprender e depoisreclama que não consegue emprego. Quando muito, arrumam um serviço; em vez de
agradecer a oportunidade, respondem, são malcriados, preguiçosos, vivem reclamando do chefe, do dono.
A culpa não é da sociedade, não. Mas tenha em mente uma coisa: eu não vou criar um ladrão!
Ladrão, não. Mas esperto, sim!
Marcos não podia crer no que estava vendo e ouvindo. Alice lhe tirara toda a autoridade, além de não
oferecer ensinamentos morais adequados ao filho. Voltando-se para Nilson, Marcos o repreendeu,
segurando-o pelo braço:
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Não quero mais saber disso aqui em casa. Dou-lhe uma surra sevocê trouxer novamente para casa
qualquer coisa que não tenha pagopor ela.
O menino abaixou a cabeça sem dizer nada, mas em seu olhar podia-se notar uma expressão de
insatisfação pela bronca, principalmente pelo apoio que a mãe lhe dava.
Após ir atrás da esposa, Marcos a repreendeu:
Nunca mais diga aquilo. Você está incentivando nossos filhos aagir errado. O que lhe deu, Alice?
Quer criar um criminoso? Se muitos pais repreendessem e orientassem os filhos quando notassem algo
estranho, logo na primeira vez, teríamos menos marginais nas ruas. Jamaisdevemos aceitar algo duvidoso
em casa, é assim que eles começam.
Alice não respondeu e Marcos continuou:
Acho melhor você parar de trabalhar para tomar conta direito desses meninos.
Enrubescida, ela mirou o olhar enraivecido e quase gritou:
Não sou sua empregada, nem dos seus filhos! Não vou me escravizar só porque você quer. Não
se esqueça que sustento essa casa tanto quanto você. Eu tenho capacidade para trabalhar.
Trabalha porque minha irmã a encaixou em um bom emprego.
Canalha! Você duvida de minha capacidade, ainda? Pois eu voulhe provar quem é incompetente
aqui. Se perder esse seu empreguinho,não terá onde arrumar outro, tamanha é a sua desclassificação.
Quantoà sua irmãzinha, ela também não perde por esperar.
Por que você odeia tanto a Raquel?
Nunca a suportei! Nojenta, toda cheia de querer ser coitada! Canseide ouvi-lo só falar dela. Foi
bem feito o que aconteceu, você viu a cobra que estava agasalhando.
Cale a boca, Alice!
Se eu cometi um erro algum dia, foi o de ter me casado com você!
Por que não pega suas coisas e vai embora?
Alice não disse nada, virando as costas e saindo logo em seguida. Mais tarde, ao conversar com a amiga
Célia, ela desabafava:
247
Então foi isso. Ai! Que ódio!
E seu caso com o tal Valmor?
Fale baixo! Alguém pode escutar sussurrou Alice. Estamosbem. Ele entende meus
problemas.
Ele a ajuda?
Claro. Onde você acha que arrumei dinheiro para me vestir assim? O Valmor é muito bom,
generoso. Ele me leva a lugares chiques.Parece exibir-me quando está comigo.
Ele fala alguma coisa sobre deixar a mulher para viver com você?
Não. Mas isso não importa. O que eu quero é que monte umapartamento para mim e me dê todo
conforto que necessito e mereço.
Você tem coragem de largar o Marcos e os meninos?
Do Marcos eu não quero nem saber. Meus filhos já são crescidos.Eles se viram. Minha maior
dificuldade, atualmente, é ter que chegartarde em casa sem levantar suspeitas.
Arrume um longo tratamento odontológico para depois do serviço sugeriu a amiga.
Célia! Sabe que você me deu uma ótima ideia?
Célia não imaginava quantas amarguras estava atraindo para si mesma por oferecer sugestões que
ajudassem atitudes imorais, ilícitas.
Alice, então, em busca de estabilidade e falsa felicidade, não tinha resignação nem renunciava à
imoralidade dos desejos vis. Ela tentava se defender e justificar alegando ter direito de aproveitar a vida.
Comumente ouve-se dizer aquele que cometeu adultério tem o direito de ser feliz. Quem garante a ele que
a felicidade almejada está fora da união jáestabelecida e longe dos filhos que Deus confiou?
Não se constrói felicidade verdadeira em cima das lágrimas dos entes que se deixou para trás e que,
certamente, com o tempo, serão desprezados com pequenos atos, esquecidos ou relegados ao abandono
cruel.
Não se é feliz quando se é irresponsável. Isso explica o sentimento de vazio.
Não encontramos paz e harmonia na consciência, muito menos a tranquilidade de um sono bom, quando
abandonamos um lar, mesmo
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estando nele e deixando de amparar e confortar o filho que chora, que tem medo, que precisa de
orientação, seja em que fase da vida for.
Aquele que busca fora do lar as falsas alegrias e dentro da vileza a felicidade momentânea tem em si a
predominância do orgulho e do egoísmo.
É dentro do lar que necessitamos usar a nossa força de vontade, o nosso amor verdadeiro para encontrar o
equilíbrio e a harmonia da nossa vida. Não nos unimos a alguém por mera casualidade. Ninguém tem o
direito de separar um casal, seja pelo que for.
Que a piedade invada nossos corações ao pensarmos na infeliz criatura que junto adultera, que, em lugar
de se impor moralmente e se resguardar dos desejos vis de criatura pervertida, promove a desunião e
desfaz um lar, condenando aquele que fica só a assumir em dobro as responsabilidades da família, o peso
de conduzir sozinho o que era para ser dividido por dois, não perguntando se o que ficou só terá forças
suficiente para confortar e harmonizar tudo o que lhe restou, inclusive o coração dos filhos.
Quando Deus acredita que alguém é suficientemente forte para estruturar sozinho um lar e os filhos, retira
um dos companheiros através do desencarne.
O respeito e a sincera amizade entre um casal devem reinar absolutos, traduzidos em mútua compreensão,
afeto sincero e fidelidade.
E todo aquele que incentiva, direta ou indiretamente, uma separação terá muito para harmonizar a duras
penas.
Na casa dos pais de Alexandre, dona Virgínia e o senhor Claudionor conversavam a respeito da vida do
filho.
Não posso concordar com isso, Claudionor dizia a mãe, parecendo angustiada.
O Alexandre já é bem grandinho. Até quando vai pajeá-lo? Aprincípio eu também não gostei,
mas, na verdade, não sabemos direito
249
o que aconteceu. E se ele estiver dizendo exatamente a verdade? De repente ele está somente ajudando
uma moça de boa índole. Não podemos julgá-la. Lembre-se que nosso filho sofreu calúnias e difamações
que não devia. Se por acaso a Raquel fosse um rapaz, nós estaríamos preocupados assim, ou não?
Com o semblante franzido, demonstrando-se insatisfeita, a mãe do rapaz balançou a cabeça contrariada e
falou:
Só você para acreditar nessa história mesmo.
Vamos pensar diferente. Suponhamos que a Raquel fosse nossa filha. Daríamos graças a Deus
por ela encontrar alguém de bem paraajudá-la. O Alex é digno, a trata bem...
Primeiro que, se ela fosse minha filha, não estaria na rua largadadependente de favores.
Segundo, meu filho é digno, mas é homem!Não sei até onde vai esse respeito. Os dois são jovens e... Sabe
que ele chegou a me dizer que está gostando dela mesmo! O que você acha que vai acontecer? Se já não
aconteceu!
E daí, Virgínia? Hoje em dia tudo é tão liberal.
Para as pessoas imorais, sim. Tudo é muito liberal. Mas paraaqueles que se prezam e que têm
amor-próprio, para aqueles que preservam uma boa moral e bons princípios, tudo tem o seu tempo certo e
comportamento adequado. Ainda quero conversar com essa moça direitinho!
E eu quero saber o que está acontecendo, também. Mas vamos devagar.
Eu quero saber tudo sobre ela reafirmou a senhora exigente.
Virgínia, pense bem, não será somente agora que nosso filho está sendo feliz? O Alex já sofreu
tanto na vida.
Sofreu porque encontrou uma mulher mau-caráter, que se disfarçou por muito tempo. Quando me
lembro que ele ofereceu de tudo paraela, montou até a casa do jeito que ela queria! E a sem-vergonha,
além detraí-lo, levantou calúnias dele para Deus e todo mundo. Ordinária!
Veja, nós confiávamos e até valorizávamos tanto a Sandra, conhecíamos a família dela, no fim,
olha o que deu? Quem sabe agora, com
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essa desconhecida, que nem família tem para zelar por ela, o Alex vai ser feliz? Quem sabe essa moça o
respeite e o valorize, o que a outra não fez? Após breve pausa, ele revelou: Nem conversei com a
Raquel, mas sabe que eu gostei do jeitinho dela.
Dona Virgínia ficou pensativa e não respondeu nada. Aproximando-se da esposa, o senhor Claudionor a
envolveu num abraço pelas costas e, enquanto a embalava nos braços, roçando o rosto no dela com
carinho, ele falou com voz meiga:
Virgínia, uma coisa me comoveu.
O quê?
Uma frase que o Alex disse quando conversamos um pouco, naquele dia em que fomos lá no
apartamento e descobrimos a Raquel.
O que ele disse?
Ele disse, de um jeito tão sensível: "Nunca sequer a beijei. Nemnamorados somos... Infelizmente,
pois eu a quero muito". Isso me deu um nó na garganta. Seu olhar transmitia um sentimento tão verdadeiro!
Ele também me disse isso e até falou que não tem nada com ela porque ela é quem não quer.
Será que está gostando dessa moça, mesmo?
Eu creio que sim. Mas está frustrado por não conquistá-la.
Mas...
Minha velha, isso é coisa para ele resolver.
Se ela abandoná-lo será outra crise.
Vamos aguardar, Virgínia. Vamos aguardar.
Longe dali, numa fazenda no interior do Rio Grande do Sul, prostrada de joelhos diante de um pequeno
altar da igrejinha daquela fazenda, chorava uma mulher em desespero tendo os pensamentos remoídos de
aflições por ignorar notícias de sua filha.
Era Tereza, mãe de Raquel.
Imaginava a filha encarando as misérias do mundo e as mais pesarosas dificuldades. Ela não tinha notícias
de Raquel havia muito tempo,
251
só sabia que ela estava com o irmão, mas as últimas notícias que chegaram não foram boas. Jamais
recebera uma linha traçada pela filha. Raquel não respondera às suas cartas. Tereza acreditava que a filha
deveria odiá-la muito por ter a vida destruída em razão de sua desventura no passado. Pois Tereza,
cedendo às seduções de seu cunhado, que se aproveitou da longa viagem do irmão, concebeu, nesse
envolvimento, a filha Raquel.
Quando o marido, Casimiro, pai de seus outros filhos, voltou, Tereza, já sabendo da gravidez, escondeu-a
por mais algum tempo e a anunciou pouco depois, calculando o nascimento daquela criança para dali a
sete meses, a fim de dizer que ela nascera prematuramente. Não foi difícil ocultar aquele segredo. Foi
então que nascera Raquel. Ninguém soube daquela história, somente Raquel. Talvez o cunhado
desconfiasse, mas não tivera a confirmação.
Raquel deveria estar sofrendo! Como estaria sua filhinha? Como ela era?
Marcos lhe escreveu dizendo que Raquel não estava com a criança. Depois Alice havia escrito informando
que a cunhada não tinha bom comportamento, queria levar uma vida irregular e não respeitava o irmão. O
que houve depois? Ninguém nunca mais lhe escreveu. Nem responderam às suas cartas.
Talvez Raquel tivesse contado ao irmão sobre o seu pai verdadeiro, e Marcos a repudiava por isso. Mas
nem quando avisou sobre a morte do pai ele se importou.
Casimiro! Perdoe-me! gritou Tereza aflita. Perdoe meu pecado que trouxe tanta miséria, tanto
flagelo para a filha que tu amaste como tua. Quero morrer e me entregar ao fogo do inferno, porque
somente assim vou limpar minha consciência pelo mal que fiz.
A mulher se jogava nos poucos degraus da igrejinha, chorando ao clamar por perdão.
Não é correto fazermos pedidos a espíritos desencarnados, uma vez que aprendemos com Jesus a rogar e
a tecer preces somente a Deus, mas, pelo costume religioso, pelo seu envolvimento no desespero e na
252
dor moral, Tereza lembrou-se da sogra, dona Edwiges, mulher bondosa e tolerante que sempre apaziguava
os conflitos com sabedoria e que havia desencarnado logo após o filho. Tereza suplicou-lhe ajuda:
Mãe Edwiges pois era assim que a chamava por costume, mesmo sendo sua nora , proteja a
Raquel. Cubra-a com o manto de Maria, mãe de Jesus! Cuide para que alguém a socorra. Eu tenho
remorso por tratá-la diferente, sempre deixei Raquel longe de mini e dos irmãos porque nela eu enxergava
o símbolo da minha traição cobrando, recriminando constantemente a falta cometida. Por minha causa os
irmãos não a tratavam como deveriam e somente Casimiro, que na verdade era seu tio, a tratava com
carinho. Mas as longas viagens o deixavam ausente e, no fim, a enfermidade roubou-lhe a oportunidade de
defendê-la. Mãe Edwiges, cuide da Raquel, esteja ela onde estiver.
Os pensamentos de Tereza a consumiam na dor do remorso que a culpava por toda a infelicidade da filha.
Espíritos amigos e em condições de ajudar, verificando a necessidade, começaram a trabalhar envolvendo,
a princípio, a mãe, que se encontrava em desespero, e, posteriormente, a amparar Raquel, o que não
estava sendo fácil devido às condições vibratórias que ela apresentava.
A cada dia Raquel se desanimava mais e mais, passando a agir de forma diferente, reclamando de suas
condições, insatisfeita com as colegas de trabalho, com seu salário, com a dependência de estar morando
na residência de Alexandre.
Raquel sempre fora muito sensível; agora, porém, parecia estar com mais facilidade para experimentar e
expressar impressões de melindres, chorando com facilidade e por qualquer motivo.
Até Alexandre, que a adorava e lhe oferecia toda a atenção e paciência, às vezes se magoava com o
comportamento da amiga. A quietude da moça passava a ser depressiva e seus comentários, queixosos e
tristes. O amigo tinha que fazer grande esforço para que ela o compreendesse em pequenos detalhes e
para vê-la animada ou sorridente.
Entretanto, apesar de estar com esse comportamento, Raquel era amável e bondosa. Realizava algumas
tarefas domésticas com boa vonta-
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de, empenhando-se com certos cuidados e caprichos por prazer, fazendo, sem perceber, daquele
apartamento um caminho aconchegante.
Vez ou outra ele sempre comentava algo sobre Bruna Maria, e Raquel passava a ouvi-lo atenta e desejosa
por saber como estava a filha. Às vezes ele a surpreendia quieta, refletindo e perguntava:
Está pensando na Bruna?
Como você sabe?Alexandre sorria e dizia:
É que você parece brilhar quando fala ou pensa nela.
E assim o tempo foi passando...
Com a ambição de sempre querer mais do que já possuía, sem amar o que tinha, com o desejo de
vingança e ambição, tendo a maledicência como prazer, Alice se sentia insatisfeita com tudo.
Eles haviam se mudado para uma casa um pouco maior por causa da exigência de Alice. Estando a sós,
contemplando suas miseráveis e mesquinhas conquistas, Alice pensava:
"Ainda bem que não terei mais que dar um sumiço nas malditas cartas daquela velha. Era um sufoco ter
que ficar atrás daquelas correspondências antes que Marcos as visse. Ainda bem que a Célia me deu a
maior ajuda, porque, trabalhando, o Marcos poderia pegar aquelas cartas 'lazarentas' antes de mim. Porém,
agora chega", reclamava em pensamento. E após pouco tempo, continuou: "Nas cartas Tereza só sabia
perguntar de Raquel! Raquel! Raquel! Só sabia exigir de nós e da vida. Mulher orgulhosa, prepotente,
avarenta desgraçada! Trouxa do jeito que o Marcos é, seria bem capaz de querer ajudar a mãe ou até
trazê-la para cá. Isso se não quisesse voltar para aquele fim de mundo ao saber das misérias que estão
passando. Prefiro a morte a voltar para lá. Ainda mais agora com o Valmor me ajudando, não volto
mesmo.Tenho certeza de que, em pouco tempo, ele vai me propor para morar longe do Marcos. Estarei
realizada!"
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O espírito Sissa, com extrema satisfação, rodeava Alice, que desejava e realizava tudo a seu contento.
Valmor, o amante de Alice, por não controlar seus impulsos e não tendo moral, ligava-se a companheiros
espirituais que o envolviam, passando-lhe seus desejos e os impulsos mais mundanos. Alice e Valmor
traíram suas próprias consciências e se emaranhavam por amargos caminhos, e, por isso, futuramente,
muito teriam que reparar. Os momentos em que juntos julgavam estar sendo felizes era ilusório e
passageiro. Toda traição conjugal traz, cedo ou tarde, um lastro de dor e de angústia. A situação fica ainda
mais difícil quando se tem de explicar aos filhos o porquê.
Quis Deus que fossem dois a cuidar de um ou mais, para amá-los e tratá-los com carinho e fazê-los
progredir, mas o egoísmo do ser humano não o deixa ver isso.
A criatura que se deixa envolver por paixões efêmeras, que se deixa levar por um relacionamento fora da
união conjugal, traindo não só o cônjuge, mas também os filhos, quando os tem, que foram confiados à sua
guarda, ao seu amparo e à sua proteção, não pode servir de exemplo nem ensinar nada sobre moral, muito
menos reivindicar respeito, atéque harmonize, mesmo que a duras penas, tudo o que desarmonizou e
desequilibrou.
Disse-nos Jesus que: "Qualquer, pois, que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e assim
ensinar aos homens, será chamado o menor no reino dos céus".
Alice não queria acreditar que para tudo o que conseguimos de modo fácil e sem cultivarmos valores
morais elevados, pagamos uma alta taxa de juros nos refazimentos no futuro. Ela sonhava e não via a hora
de conseguir o que chamava de liberdade. O relacionamento com o marido havia tempos não era bom, e a
cada dia piorava.
Alice sempre o criticava, humilhando-o o quanto podia. Agora ela jánão ligava mais para os cuidados com a
casa, como antes fazia, muito menos se preocupava em dar atenção aos filhos, perdendo horas cuidando
de si e em reflexões mesquinhas.
255
Naquele instante, a aproximação de Marcos chamou a esposa à realidade. Parecendo pensar em voz alta,
o marido disse:
Como será que minha irmã está?
Eu nem acredito! respondeu a mulher. Depois de tudo o que aquela safada fez você ainda
se preocupa?!
Fico cada vez mais surpreso com você, Alice! Nem parece que tem sentimento! Afinal de contas
ela é minha irmã!
Mas não deixa de ser mentirosa e sem-vergonha. Agora você sabe quem ela é. Raquel tirou a
máscara e assumiu a "vida fácil" que sempre levou.
Tomara que esteja vivendo bem, mesmo. Faço votos que ele goste muito dela, pois, apesar de
ousado, senti que era honesto. Raquel merece paz.
Quem ouve você dizendo isso vai até acreditar que se trata de uma menina inocente, de uma
donzela! Alice ofendia com palavras ásperas e irônicas e Marcos começava a se irritar.
Raquel, na verdade, nunca teve uma oportunidade. Minha mãe sempre foi uma mulher muito
distante, principalmente com a filha. Eupercebia isso. Quando me lembro da nossa infância, trago sempre
asrecordações de Raquel sendo desprezada por mim, pelos meus irmãos eprimos. Ela sempre ficou com a
pior. Depois foi posta na rua, só Deus sabe o que ela passou. E foi abandonada não só por eles, mas por
mimtambém. Eu me arrependo do que fiz. Aquele dia eu estava "de cabeçaquente"... Hoje, pensando, vejo
que nem a deixei se explicar, e justo ela que sempre me ouviu. Deveria ter ido tirar tudo a limpo e até
procurar aquele rapaz, se fosse preciso, pois minha irmã sempre foi submissa,nunca reagiu... E quando o
moço falou comigo, aquele dia, ele detalhoucoisas que não poderia saber se não tivesse tentado conhecer
melhor a Raquel. Tomara que a esteja tratando bem...
Não seja idiota. Veja que Raquel é que não se adapta com ninguém. Você vai ver, não dou muito
tempo para ela largar o Alexandre earrumar outro trouxa.
Ela pode ser o que for, mas foi a única criatura que nos ajudouquando mais precisamos, Alice
falou sentido. Foi ela quem te
256
arrumou os dois únicos empregos que conseguiu em sua vida. Não seja cruel, mulher! Não podemos contar
com mais ninguém. Meus irmãos jamais me procuraram, meu pai está inválido, minha mãe só me escreveu
duas ou três vezes nesses anos todos. Ela nem mesmo respondeu às cartas que tenho mandado. Se a
Raquel não leva uma vida decente, todos temos uma parcela de culpa, principalmente minha mãe, que
nunca se importou com ela. Talvez ela tenha sido coagida por meu avô, quem sabe. Prefiro nem pensar
nisso.
A verdade é que na sua família ninguém presta!Enraivecido, Marcos a segurou pelo braço,
ordenando:
Cale a boca! Não fale da minha família. Não vou mais admitir isso. Nem parente você tem!
empurrando-a completou: Se expulsei minha irmã daqui só com a roupa do corpo naquela noite tão
fria,sem me importar com o que pudesse acontecer, a culpa foi sua! Mesmo se ela se envolveu com aquele
moço, Raquel sempre me respeitou, mas ela era recatada, amedrontada demais para fazer aquilo tudo que
você aacusou de modo tão brutal, tanto que ficou em choque e nem reagiu.Ele mesmo admitiu, não vou
esquecer aquele jeito firme como faloucomigo recordava Marcos, vivamente relatando bem devagar ,
cadapalavra dele ecoa na minha cabeça, bem exata, ele falou: "Não namoramos ou ficamos, nem tivemos
qualquer tipo de relacionamento íntimo.Não consigo me aproximar dela até agora, não por eu não tentar
oudesejar. Adoro a sua irmã, mas a Raquel me esconde algo, ela não sepermite e ainda não consegui
descobrir o motivo". Ele foi muito atrevido, mas sabia do que estava falando quando disse: "alguém que
vive em aflição extrema simplesmente por receber um toque de carinho e nem se deixa abraçar, como sua
irmã, só ficaria grávida por consequência de uma violência! Sou um homem experiente..." Um estranho foi
capaz de ser mais caridoso que você.
Nos olhos de Alice podia-se notar a expressão de ódio que se fez. Ela ficou em silêncio, temendo a reação
de Marcos, mas seus pensamentos vibravam rancorosos contra o esposo.
257
Capítulo 12
As primeiras brigas
Com os dias, Alice e Rita começaram a provocar ainda mais Raquel, para vê-la em desequilíbrio. Rita, por
sua vez, passou a contar para outras colegas que Raquel tinha uma filha e a notícia se espalhou.
Vagner sentia-se contrariado em saber que Raquel e Alexandre estavam morando juntos. Irmanado a Rita
e Alice, ao saber que Raquel tinha uma filha, decidiu tentar ofender e abalar os sentimentos de Alexandre,
pois o considerava traidor, uma vez que este, sabendo de seu interesse por Raquel, não o respeitou,
conquistando-a.
Ao término de uma reunião que ocorrera em uma sala especial para tal evento, enquanto todos recolhiam
seus materiais, Vagner, que estava ao lado de Alexandre, virou e falou-lhe:
Como vai a vida de casado?
Bem respondeu Alexandre, esboçando um sorriso, pois já esperava, a qualquer momento,
alguma argumentação daquele colega.
Já se adaptaram?
Claro! E muito bem.
E o baby, para quando é? Ou não vão querer filhos?
Cínico e irônico, Alexandre parou o que fazia, olhou para o colega e argumentou sorrindo:
Sabe que eu ainda não havia pensado nisso. É uma ótima ideia.Vagner, com olhar vingativo,
desfechou:
Para você será novidade, mas para a Raquel não será uma experiência nova. Que pena, né? Aliás,
porque não levam para morar comvocês a filha dela? Deve estar crescidinha, não dará tanto trabalho.
Alexandre sentiu-se golpeado por aquela ironia. No entanto, mantendo a aparência, respondeu sem
titubear:
Eu e a Raquel já estamos conversando sobre isso. Eu quero a filhada Raquel conosco. Que, aliás,
será minha filha a partir daí. Contudo,Vagner, não pense você que um outro filho não seria uma
novidade muito agradável para a Raquel. Sabe por quê? Porque esse filho será meu! Sorriu. - E isso a
fará muito feliz e realizada. Sem esperarpor um revide, Alexandre pediu: Dê-me licença. Vou almoçar
com aminha mulher.
Ao chegar à seção, Alexandre não conseguia tirar o sorriso do rosto.
Ele sentia-se vingado!
Não poderia ter respondido melhor àquela tentativa de constrangimento que o colega queria lhe impor. Indo
para sua mesa, que ficava próxima de Raquel, ele convidou:
Vamos almoçar agora?
Ao encará-la, percebeu que Raquel estava diferente, encabulada e quase chorando.
O que foi, Raquel?
Nada.
Ele já imaginava! Se Vagner estava sabendo que Raquel tinha uma filha, era porque Alice havia espalhado
para todo mundo esse fato.
Quem foi? perguntou ele, quase irritado.
Quem foi "o quê"?
Quem falou e o que para você ficar assim?Ela começou a chorar e pediu:
Por favor, não vamos falar disso agora. Estou tão magoada.
Tudo bem. Mas vamos almoçar, senão fica tarde decidiu Alexandre insatisfeito com a situação.
Você acha conveniente ainda irmos juntos?
Ora, Raquel, o que é isso agora? Pare de se preocupar com os outros. Vamos logo almoçar!
falou quase exigindo.
Sem dizer mais nada, ela pegou sua bolsa e eles saíram. No caminho ele comentou:
Se não ficarmos juntos, os comentários serão piores. Vão dizercoisas ainda mais desagradáveis a
nosso respeito. Se eu for almoçar com
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outra colega, dirão que estou te traindo, se for um amigo terei de ficar respondendo a perguntas que não
quero. Você, por outro lado, sofrerápor ter companhias inoportunas, indiscretas.
Ela não dizia nada. Pouco depois, quando quase terminavam a refeição, Alexandre perguntou, ao observá-
la muito quieta:
O que aconteceu para você ficar assim?
E que já estão sabendo contou exibindo-se chateada.
Sabendo o quê? perguntou, com voz mansa e paciente.Raquel abaixou a cabeça por se sentir
envergonhada e ele perguntou
novamente:
Você quer dizer que estão sabendo que você tem uma filha?
E. Como você soube?
Alexandre contou superficialmente o que Vagner lhe falou e omitiu o que deu como resposta.
Além de me ajudar, você ainda tem que se prestar a esse tipo dehumilhação argumentou
Raquel.
Que humilhação?!
A de servir de chacota para os outros.
Não me atingiram. Aliás, já pensei em ver como poderíamos terconosco a sua filha, para...
Não! reagiu Raquel estranhamente.
Alexandre, calmo, a encarou firme e brandamente perguntou:
Por que, Raquel? Você não gostaria de vê-la?
Por favor, Alexandre. Não quero falar nisso.
O amigo achou estranho. Aquele assunto não a perturbava antes, mas agora ela reagia diferente. As ideias
de Raquel estavam confusas. Ela passou a pensar que, por estar morando com ele, Alexandre se achava
no direito de se intrometer em sua vida. Não poderia deixar que isso acontecesse. Teria que dar um jeito de
se tornar independente novamente e sair de sua guarda, mas estava sendo tão difícil, até seus sentimentos
por ele a atordoavam. Tudo o que tentava dava errado. Estava chateada, triste, não conseguindo ver o
auxílio, a proteção digna que estava recebendo. Raquel nem mesmo agradecia a Deus por tudo o que
261
lhe acontecia. Sem elevar os pensamentos, se deixava envolver por companheiros espirituais que se
compraziam com aqueles sentimentos, não conseguia ter auto-estima nem se valorizar mais, acreditando
que nascera para sofrer. Em pequenos detalhes ela começava a demonstrar falta de compreensão.
À noite, ao chegarem em casa, Alexandre ainda a orientava.
Você não pode se incomodar com o que dizem de nós, isso serátemporário. Quando
encontrarem algo mais novo para se importar, issovai acabar.
Mas eu não consigo. Tento, mas não posso. O assunto vive na minha mente e eu me incomodo
com isso, tanto que nem consigo maistrabalhar direito.
Alexandre ficou pensativo e decidiu falar sobre outras coisas que julgava importante e, lembrando-se
imediatamente da novidade que o satisfez imensamente, comentou contente:
Sabe, hoje na reunião solicitaram a minha transferência para outro departamento! Vou assumir um
novo cargo! contou animado e sorridente. Mas se decepcionou ao encará-la.
Raquel empalideceu, ficou paralisada. Nos últimos tempos era ele quem a auxiliava com o serviço. Ela
sabia que, sem ter Alexandre ao lado, passaria por inúmeras dificuldades. Mais sério Alexandre
sócomplementou:
Profissionalmente falando, isso será muito bom para o meu currículo. Terei um salário melhor,
ficarei à frente de projetos. Mas eutambém fico chateado com a mudança, por ficar longe de você.
Ficará na mesma função? questionou disfarçando sua decepção.
Não respondeu cabisbaixo.
Será coordenador? indagou sem ânimo.
Sim, serei afirmou insatisfeito, pois não esperava aquela reação.
Você merece. Esforçou-se para isso. Parabéns! cumprimentou.Percebendo-a triste pela
mudança, aproximou-se e com voz meiga
revelou seus planos:
262
De repente, essa transferência é a melhor coisa a nos acontecer.Como coordenador, daqui uns
tempos, posso solicitá-la para trabalharcomigo.
Enquanto isso não acontecer, vou tolerando a Rita me difamando e o Vagner me assediando
comentou a moça pessimista.
Calma, Raquel. Não é assim.
Eu estou cansada de ser calma! exclamou ela gritando pelaprimeira vez. Fico calma
enquanto observo tudo acontecer errado naminha vida! Chega!
Alexandre tentou envolvê-la para conduzi-la a sentar, mas ela reagiu esquivando-se. Contrariado, ele se
calou. Para não alimentar nenhuma discussão, virou as costas, foi cuidar de seus afazeres. Mesmo se
sentindo magoado com a situação, procurou agir normalmente. Entretanto,
mais tarde, com modos simples,
ele perguntou:
Raquel, você viu meus chinelos?
Eles estavam jogados por aí e eu os guardei na sapateira, por quê?Não deveria?
Ele nada respondeu, mas ficou remoendo seus pensamentos, insatisfeito com o modo de ela lhe responder.
Raquel nunca fora assim. Pouco depois, ela o procurou, questionando:
Estou incomodando você, não é verdade, Alexandre?
Não, não está respondeu firme, encarando-a com seriedade.
Diga a verdade! Você não se sente mais à vontade em sua própria casa.
Raquel, pare. Pare com isso, por favor pediu determinado olhando-a nos olhos. Depois sugeriu
quase veemente: Se vamos conversar a respeito de um assunto sério, nós o faremos como duas
pessoas inteligentes, racionais, e não como rivais.
Mas você está aborrecido, importunado por minha causa disse; porém, agora, se expressava
mais ponderada. Eu altero todo o seu ritmo.
É lógico que uma pessoa altera um ambiente e muda os hábitos da outra. Com você e eu aqui
não seria diferente, mas isso não me incomoda.
263
Tirei você do seu quarto, mexo em suas coisas...
Espere, Raquel. Não se altere. Preste atenção: há alguns meses queestá aqui e desde o início
você não me tirou de lugar algum, fui eu quequis sair daquele quarto. Eu não a vejo mexer em minhas
coisas, vejo-aorganizando, só isso. Não lhe escondi que tenho a mania de largar minhas coisas
espalhadas. Entenda, de uma vez por todas, que você não me aborrece, certo?
Errado. Eu o incomodo, sim.
Você não me incomoda com o que faz em minha casa, nem com o quemexe ou muda de
lugar,
disse inalterável e olhando-a firme. Mas, às vezes, fico magoado com a maneira depressiva e triste de
me responder, de falar alguma coisa. De umas semanas para cá você está muito estranha. Creio que esteja
chateada com tudo o que aconteceu,sim. Mas essa mágoa, essa agonia em que se coloca não a deixa ver
ascoisas boas que estão a sua volta, Raquel.
Que coisas boas? perguntou de modo singular.
O que está lhe faltando aqui em casa, Raquel?! perguntou friamente decidido, sem titubear.
Diante de nenhuma resposta, relatou: Eu a respeito. Procuro tratá-la o melhor que posso. Minha família
não aincomoda. Ofereço-lhe o melhor ao meu alcance em todos os sentidos.Agora me diz: o que está
errado? Tudo isso não são coisas boas?
Raquel ficou calada. Seus olhos brilhantes demonstravam surpresa. Procurando picuinhas para exibir
insatisfação, falou a fim de se defender:
Você mandou a dona Lourdes lavar minhas roupas e eu não queria.
Raquel, deixe de ser boba. Essa mulher vem aqui três vezes porsemana, como você sabe. Ela
limpa o apartamento, lava e passa. Eu não a mando fazer nada, ela sempre fez o que precisava ser feito.
Ela deve ter encontrado sua roupa por aí e a pegou para lavar.
"Por aí", não! Eu não larguei nada jogado!
Demonstrando-se surpreso e contrariado, Alexandre suspirou e alegou:
"Por aí" foi força de expressão. Mas me diga, estragou algumacoisa?
264
Não.
Então qual é o motivo da reclamação?
Não quero que ela lave minhas roupas.
Tudo bem! Como queira continuou ele, sempre inalterável. Vamos falar com ela e aí, no fim
de semana, a senhorita ficará presa, odia todo, na lavanderia.
Você não entende! falou chorosa indo para a sala.Seguindo-a, Alexandre respondia, agora
quase nervoso, gesticulando
com as mãos e dizendo:
Não! Não entendo mesmo, Raquel. Daria para você me explicar?
Eu falo que vou arrumar e limpar a casa e você ainda contrata essamulher explicou-se com
lágrimas correndo e voz embargada.
Não, não estou entendendo aonde quer chegar!
Estou aqui de graça. Você não me deixa pagar nada. Quero contribuir com alguma coisa. Eu sei
cuidar de uma casa! Quando morava sozinha...
Não vou dispensar os serviços da dona Lourdes. Ela trabalha paramim desde que vim morar
aqui. Além do que, não vou usar você comofaxineira. Essa mulher, até hoje, tem sido ótima e de muita
confiança, o que é mais importante. Além disso, ela precisa desse serviço.
Vou sair o quanto antes de sua vida. Não posso ajudá-lo... Vocênão me deixa fazer nada por
você disse chorando magoada, fugindopara o quarto.
Nervoso e sem saber o que fazer, esfregou o rosto e sentou-se no sofáda sala no instante em que o
telefone tocou:
Alo! atendeu secamente, exibindo irritação.
Nossa, Alex! Que "alo"!
Oi, Rosana cumprimentou friamente.
O que aconteceu, Alex?
Nada.
Com essa voz, dizer que não aconteceu nada é assinar certificado de mentiroso riu. Está
tudo bem?
Está respondeu indiferente, mas com certa insatisfação.
265
A mãe está reclamando que você não aparece e nem liga pra ela.
Por que sempre sou eu quem tem de agradar aos outros?! Caramba!Estou cheio! respondeu
ele, agora verdadeiramente irritado.
O que está acontecendo, Alex? perguntou Rosana mais firme.
É a Raquel?
A Raquel está chorando no quarto, pra variar.
Por quê?
Não sei. Quer perguntar para ela?!
Deixe de ser malcriado e me responda direito exigiu Rosana,com veemência. O que houve?
Olha Rô, de uns dias pra cá a Raquel está estranha decidiuexplicar, agora mais controlado.
Parece que não se adapta aqui em casa.Chora à toa, nada está bom para ela, sempre se acha causadora
de algumproblema, sempre acha que está incomodando. Hoje, lá no serviço... Alexandre passou a contar
o que se sucedeu. No final, sua irmã avisou:
Sábado vou aí falar com ela e...
Não interrompeu-a de imediato.
Por quê?
Porque eu não quero, Rô. É melhor não se envolver em meusassuntos.
Então se prepara, porque a mãe disse que vai até aí no domingo.Ela quer conhecer melhor a
Raquel e tirar aquela má impressão do primeiro encontro e...
Fala pra a mãe ficar por aí! Certo?!
Credo, Alexandre! Nunca o vi falar assim!
Pois está vendo agora!
Rosana pensou em brincar com seu irmão como sempre fazia, mas percebeu que ele estava realmente
irritado e decidiu não arriscar.
Alexandre, escute: precisamos conversar melhor.Parecendo um pouco mais flexível, respondeu
ponderado:
Olha Rô, até sábado tem tempo. Depois a gente se fala, tá? Só me faça um favor: vê se a mãe
não vem aqui, não.
Você vai sair neste fim de semana?
266
Talvez. Não estou a fim de ficar socado em casa. Pensei até em ir à praia, mas quero voltar no
mesmo dia. Preciso relaxar um pouco.
A Raquel, vai junto?
Não sei. Se não quiser ir também...
Calma, Alex. Não fique assim.
Rosana conversou por mais tempo com seu irmão, aconselhando e acalmando-o. Naquela noite ele não foi
se despedir de Raquel antes de se deitar, como sempre fazia. Magoara-se muito com ela e queria mostrar-
lhe isso. A amiga, por sua vez, ficou insone e rolando de um lado para o outro, chorando pela distância que
Alexandre manteve.
O fim de semana chegou e nem a irmã ou a mãe de Alexandre compareceram para uma visita. Algo por
demais pesaroso pairou no ambiente e o rapaz não se sentiu animado para sair, muito menos Raquel.
O remanejamento de Alexandre para outro departamento ocorrera conforme o previsto. Isso deixou Raquel
abalada, uma vez que a presença do amigo lhe dava segurança e auxílio. Mesmo trabalhando em outro
andar, ele se preocupava e ligava interessado em saber como ela estava ou se poderia ajudá-la em algum
serviço. Rita e Alice ficaram mais à vontade para deixar Raquel inquieta, importunando-a com provocações.
Isso deixava a moça apreensiva e amargurada, fazendo-a sofrer imensamente. Raquel passou a ter muitas
dificuldades com seu trabalho, provavelmente provocadas pela falta de equilíbrio emocional. Erros
singulares começaram a ser cometidos com frequência, comprometendo seu desempenho.
Era sexta-feira, nesse dia Alexandre estava mais animado e passou no andar onde a amiga trabalhava para
irem embora juntos, como de costume.
Vamos? chamou ele, exibindo-se satisfeito.
Raquel, calada e séria, pegou suas coisas e eles foram embora. A caminho de casa, Raquel não dizia uma
palavra, enquanto Alexandre não conseguia conter seu entusiasmo e contava alegre:
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Que diferença! Antes o Vagner me "sufocava" e eu não podia pôr em prática minhas ideias, nem
exibir meus conhecimentos...
E durante todo o trajeto para casa ele não parou de falar. Ela, em silêncio, às vezes parecia nem ouvi-lo.
Após algum tempo, Alexandre percebeu sua reação, mas não disse nada. Entraram no apartamento e ele
imediatamente perguntou:
Tudo bem, Raquel?
Surpresa, ela o encarou e não conseguiu responder, pois sentia vontade de chorar. Virando-se,
rapidamente, foi para o quarto sem argumentar nada com o amigo. Contrariado, sem suportar mais aquela
situação que se arrastava há dias, ele a seguiu entrando na suíte e, forçando-se para não se exaltar,
perguntou:
O que está acontecendo, Raquel?! O que está te faltando?Raquel atirou-se sobre a cama e,
chorando, respondeu com a voz
abafada, por estar debruçada com o rosto entre os braços:
Eu estou com dor de cabeça.
Não, Raquel. Não minta. Sente-se, por favor. Vamos conversar.Contrariada, ela obedeceu, mas
escondia o rosto entre os cabelos,
chorando e não conseguindo conter os soluços. Alexandre sentou-se ao seu lado e, procurando olhá-la no
rosto, perguntou mais calmo:
O que está acontecendo com você? Não está feliz aqui comigo? É isso? Não está suportando
mais a minha presença? Não quer a minhacompanhia? Seja o que for, fale, por favor. Não aguento mais
essa situação. Conforme Alexandre falava, o choro de Raquel ficava mais intenso. Sou eu?
prosseguiu brando diante do silêncio. É aminha companhia que a deixa assim, por que não me suporta
mais?
Não respondeu com voz fraca, entre os soluços.
Então o que é? tornou com extrema tolerância.
Lá no serviço estou me sentindo uma incompetente. Não consigofazer nada, e, ainda... contou
com as palavras entrecortadas pelos soluços.
E ainda, o quê? quis saber exibindo apoio.
A Rita e a Alice ficam me provocando. Como se não bastasse, oVagner... Ela não conseguiu
terminar, mas Alexandre já imaginava
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que, sem sua presença ao lado de Raquel, o colega iria assediá-la. Diante da pausa, ele insistiu
interessado:
O que ele fez?
Não vou te oferecer mais problemas e preocupações.
O que o Vagner fez?! perguntou com sua voz grave, indignado pelo que imaginava.
Não fique assim pediu amedrontada, fugiu ao seu olhar.
Então me conta, ou na segunda-feira vou perguntar a ele.
Na verdade ele não fez nada revelou chorando. Mas sempre fica do lado... Cada vez que eu
erro algo, ou quando tem que me passar algum serviço, ele fica muito perto, falando baixinho e se curvando
em cima de mim...
Ele fez alguma coisa? Tocou em você ou falou algo? Devido ao silêncio, insistiu mais
ponderado: Por favor, Raquel. Diga-me a verdade. Não gosto de surpresas.
Constrangida e secando as lágrimas, ela revelou:
Ele fica dizendo que estou bonita agora... estou melhor que antes... Olha de um jeito... estou com
medo. Com muito medo dele.
Ele a tocou ou tentou algo?
Eu tenho medo. Ele... outro dia... Não consigo... Tenho medo de... tentou dizer entre os soluços
e a emoção forte.
Do que você tem medo, Raquel? O que esse desgraçado fez?! Que medo é esse? Ela
chorava. Desconfiado, mas bem ponderado, Alexandre segurou seu o rosto com carinho e perguntou mais
gentil: Oque ele fez, Raquel? Por que esse medo?
Porque há um tempo atrás contava ela chorosa , eu estavaindo embora, quando passava
pelos carros que estavam no estacionamento... Uma crise de choro se fez, ele foi acalmá-la, mas Raquel
se esquivou do carinho que o amigo tentou fazer em seus cabelos.
O que aconteceu, Raquel?
Vagner me agarrou, com força e... tentou me beijar e... choroucopiosamente.
Desgraçado!!! Infeliz! reagiu Alexandre nervoso, levantando-se, irritado ao andar de um lado
para o outro.
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Infeliz, sou eu! Estou cansada dos outros se aproximarem de mimcom segundas intenções, com
convites indecorosos, insinuações e... Estou cheia dessa vida! Só vêem que sou bonita, só pensam que eu
lhe sserviria... Outros só sabem me acusar, me caluniar. Ninguém imagina que eu tenho dignidade, que eu
tenho uma alma, um coração, que sou gente e sofro com isso. Maldito instante em que nasci bonita!
Alexandre ficou magoado porque acreditou que Raquel o encaixava no conjunto daqueles que a admiravam
pela beleza e a queria por isso. Sentando-se novamente abaixou a cabeça pensando no que poderia dizer
para confortá-la. Raquel, que parecia disposta a desabafar, mesmo chorando, continuou:
Não suporto mais, a Rita fica falando que eu o roubei dela, que atraí. Quando estamos no toalete,
perto de outras colegas, ela e a Alice me provocam, dizem que sou vadia, ou nomes piores, por ter uma
filha e que não sei quem é o pai. Quando entro, elas falam: "Olha quemchegou!" E dizem um monte de
nomes feios. A Alice fica provocando,repetindo que vou perder o emprego e voltar a ser indigente;
aindapergunta se eu não tenho vergonha em ficar esmolando casa e comida.
Após outra crise de emoções, falou magoada: Todo mundo estásabendo que morei nas ruas.
Enternecido, ele a olhou piedoso, pois era capaz de compreender o que a amiga vivenciava. Sentando-se
mais perto, Alexandre colocou o braço em seu ombro, puxando-a delicadamente para si, dizendo:
Vem cá, Raquel. Não fique assim.
Raquel encostou o rosto em seu peito e chorou ainda. Ele a abraçou com carinho, dizendo-lhe com
tranquilidade e ternura na voz:
Elas querem isso mesmo. Querem que você fique nervosa, irritada. Querem que brigue comigo.
Seja esperta, Raquel. Não correspondaà vontade delas. Não se subestime.
A Alice disse que nunca vou conseguir rever minha filha e que ela vai me odiar por tê-la
abandonado, isto é, se ela tiver saúde para compreender, porque, se for filha do tio... Ela nem sabe que ele
é meu pai
contava com a voz abafada pelo abraço. De outras vezes, Alice afirma que ela já foi adotada e...
270
Raquel chorou escondendo o rosto no peito do amigo. Em poucas palavras, Alexandre rogou para que
pudesse encontrar um meio de confortá-la e tirá-la daquele desespero. Ajeitando-a nos braços, deixando-a
de frente para si, aninhou-a como a uma criança e a embalou, agora argumentando com voz terna para
acalmá-la:
Viu como tudo isso é um complô contra nós? Foi só dizer aoVagner que traríamos a Bruna para
morar conosco e ele já foi contarpara a Alice, agora ela está infernizando você com essa história de que
amenina já foi adotada. Os fatos são diferentes das suposições, Raquel.Não ligue para essas fofocas.
Ocupe sua mente com coisas proveitosas,ideias boas e terá mais harmonia. Após alguns segundos falou
parecendo sonhar: Nós vamos encontrar a Bruna. Ela é linda! É comovocê. Deve estar esperta e
esperando a sua volta. Tenho certeza disso.Sei, de algum modo, que a Bruna Maria quer conhecê-la.
Vocês vão se amar muito.
Raquel, ainda em seus braços, parou de chorar e ficou olhando Alexandre que, entusiasmado, passava-lhe
vibrações felizes e desejos salutares.
Não sei por que prosseguiu ele sorrindo levemente , mas,quando penso na Bruna, imagino o
seu rosto, seu jeito... Ela é perfeita,doce...
O silêncio se fez.
Alexandre passou a olhar Raquel, agora mais tranquila e quase sorrindo, que estava como que aninhada
em seus braços fortes, quase deitada e abraçando-o, também. Ele a envolvia com carinho e ternura. Ficou
olhando-a por longo tempo e Raquel correspondia com semblante inebriado. Não resistindo ao desejo
maior que o dominava, Alexandre, vagarosamente, aproximou-se de Raquel, até que seus lábios se
tocaram e ele, com todo seu amor, a beijou delicadamente. Raquel ficou parada, sem reação. Apertando-a
suavemente junto a si, ele não conteve os sentimentos e beijou-lhe em seguida por várias vezes, no rosto e
nos lábios, acariciando-lhe os cabelos com paixão. Repentinamente, Raquel colocou a mão em seu peito,
impedindo-o. Ele parou imediatamente, dando-se conta da situação, observando-a e sem saber como agir.
Ela exibiu-se aflita, passou a tremer, até seu queixo mostra-
271
va forte estremecimento pelo medo ou pavor que passou a sentir. Ao afastá-lo de si, sentando-se
novamente, às pressas, sussurrando disse ao abaixar o olhar:
O que você fez...?
Perdoe-me, Raquel. É que eu a amo muito e... pediu sem argumentos em sua defesa.
Alexandre se levantou, sentia seu coração descompassado, acreditando ter traído a confiança de Raquel,
não sabia o que fazer. Passando as mãos pelos cabelos, andou um pouco,voltou e parou na frente de
Raquel que estava sentada na cama e não oencarava. Ajoelhando-se, segurou com delicadeza seu rosto e
pediu com voz terna:
Perdoe-me, por favor. Nunca mais vou fazer isso. Nunca mais voutrair sua confiança, se me der
outra chance.
Raquel fugia-lhe ao olhar e não disse nada, abaixando a cabeça em seguida. Magoado consigo mesmo,
Alexandre se levantou e saiu do quarto. Raquel não sabia dizer o que havia acontecido, sentindo-se
confusa, constrangida. Quase automaticamente tomou um banho. Ainda com os cabelos molhados, ao sair
do quarto, foi para a cozinha aquecer o jantar, quando viu Alexandre arrumado para sair, procurando as
chaves do carro. Surpresa, ela não sabia o que argumentar. Sem encará-la muito, após encontrar as
chaves, o rapaz avisou:
Vou sair. Não me espere.
Você não vai jantar? perguntou temerosa.
Não respondeu timidamente virando-se rápido.
Alexandre? chamou-o com voz meiga parecendo amedrontada.O amigo se virou e ficou
esperando, mas sem olhá-la.
Você voltará tarde? perguntou muito constrangida.
Talvez. Não me espere. Jante e vá dormir. Não tenho horas paravoltar, mas, se precisar de algo,
ligue para o meu celular.
A moça não disse mais nada. Vendo-a parada, ele se despediu a distância:
Não se preocupe comigo. Tchau. Dizendo-lhe isso, ele virouas costas e saiu.
272
Raquel se atirou no sofá e teve longa crise de choro compulsivo. Angustiada, remoía seus pensamentos
por conta daquela situação. Sempre desejou serenidade, mas parecia algo distante demais. Não sabia o
que fazer. Tão jovem conhecera tantas amarguras que a impediam de ser feliz. Agora estava em conflito
com os sentimentos e os traumas.
Por volta das quatro horas da madrugada, Alexandre chegou. Procurando fazer silêncio a fim de não
acordá-la, entrou vagarosamente no apartamento. Sentindo um pouco de fome, foi até a cozinha e
observou que a comida não tinha sido tocada por Raquel.
"Será que ela estava me esperando para jantar?", pensava. "Mas ela deve estar chateada com o que fiz,
considerando-me tão cafajeste quanto o Vagner, pensando que eu quis me aproveitar da situação só por
ser o dono da casa, por estar apaixonado por ela, por..."
"Droga! Estraguei tudo. Não fui digno e ela havia acabado de me falar que os outros só se aproximavam
dela com outras intenções."
Alexandre ainda se sentia perturbado, contrariado consigo mesmo. Apesar disso, preparou um lanche,
pegou um refrigerante e, só ao chegar à sala que estava na penumbra, viu Raquel adormecida no sofá.
Não sabia se deveria acordá-la. Se o fizesse, o que teriam para conversar? Deixando sobre a mesinha
central o refrigerante e o prato com seu lanche, foi em direção ao sofá, olhando-a de perto, certificou-se de
que ela estava dormindo. Em seguida, foi até a suíte, arrumou a cama, posicionou o travesseiro e retornou
para a sala. Pegando Raquel no colo, ia levá-la para o quarto com todo cuidado. Mas no caminho Raquel
despertou e quase gritou pelo susto.
Calma, sou eu. Fica tranquila. Sou eu avisou brandamente.Ela o agarrou na camisa temerosa e
ele acabou de levá-la para a suíte,
colocando-a sobre a cama. Observando-a, viu que estava como que assombrada com sua ação. Apesar do
coração dolorido, com modos quase frios, Alexandre justificou:
Cheguei agora. Fui assistir à televisão e você estava no sofá. Não queria incomodá-la, por isso a
trouxe. Desculpe-me pelo susto.
273
Desculpe-me por ter ficado lá, eu... respondeu com voz acanhada.
Não se preocupe com isso. Está tudo bem. argumentou.Quando se virou para sair, Raquel ia
se levantando, ao perguntar:
Você jantou?
Preparei um lanche. Pode dormir sossegada.Ao vê-lo sair, Raquel consultou o relógio.
"Quatro e vinte! Onde ele esteve até essa hora?", pensou. "Alexandre está tão diferente... frio. Que
estranho".
Na manhã seguinte ela se preocupava, eram quase meio-dia e Alexandre não tinha saído do quarto. Não
sabia se deveria chamá-lo, isso talvez não ficasse bem. Lembrou-se de que ele entrava na suíte quando
estava preocupado, ou quando precisava, ela então poderia fazer o mesmo. No entanto, aquele
apartamento era dele, poderia ter toda liberdade. E se Alexandre tivesse levado alguém para seu quarto?
Ele era homem e o dono da casa.
Raquel começou a se envenenar sozinha com inúmeros pensamentos conflitantes. Imediatamente,
lembrando que Alexandre tinha problemas cardíacos, pensou que pudesse ter passado mal. Sim, poderia
ser isso. Além de tudo, ela seria culpada uma vez que o fez ficar nervoso. Inquieta, preocupada e
cautelosa, foi até o quarto e, batendo suavemente, chamou:
Alexandre, tudo bem? Nada. Ele não respondia. Após tentarnovamente, sem obter nenhuma
resposta, Raquel abriu a porta, espiando ao chamar: Alexandre?
Entra... respondeu ele, com voz grave e baixa.
Posso acender a luz? pediu ela, pois apesar de ser meio-dia as janelas fechadas e as cortinas
escureciam o quarto.
Pode sussurrou.
Ao vê-lo mais de perto, notou que estava encharcado de suor. Raquel sentiu um odor horrível percebendo
que ele havia vomitado no chão.
Alexandre! O que é isso?! assustou-se ela. O rapaz se largara sobre a cama, não se importando
com seu estado, e a amiga afirmou: Você precisa de um médico! Ao tocá-lo, falou: Está com febre!
274
Acho que sim murmurou ele falando lentamente.
"Acho", não! Você está queimando! Meu Deus! O que faço?!
Você dirige? perguntou lento e com dificuldade.
Não, mas vou chamar a sua irmã, agora.
Não... sussurrou o rapaz ao vê-la sair.
Vou sim! afirmou caminhando sem lhe dar importância.Pouco depois, após falar com a mãe de
Alexandre, explicando seu
estado, Raquel retornou ao quarto.
Vamos, sente-se pediu ela quase ordenando. Você tem quetrocar essa camisa.
Não precisa... balbuciava.
Precisa, sim. Observando seu estado, perguntou: Você não conseguiria tomar um banho
sozinho?
Acho que não replicou ele, quase se largando.
Com dificuldade, Raquel o levou para o banheiro fazendo-o se sentar em uma cadeira. Tirou-lhe a camisa,
o fez lavar o rosto e passou-lhe, várias vezes, uma toalha umedecida no tronco e braços. Alexandre
encontrava-se tão mal que precisava se amparar na amiga ou ser segurado por ela, mesmo sentado.
Rápida, limpou o quarto antes que a irmã e a mãe dele chegassem e, minutos depois, isso aconteceu.
Onde ele está? perguntou dona Virgínia preocupada.
No quarto.
As três levaram Alexandre ao médico, retornando bem mais tarde. Já de volta em sua casa, ainda com certo
mal-estar mesmo depois de medicado, ele tomou um banho demorado e se deitou no quarto sem ter
condições de se importar com o que acontecia à sua volta. Agora, menos aflita, dona Virgínia procurou por
Raquel que preparava um chá para Alexandre e um café para elas. Entrando na cozinha chamou-a
calmamente ao entrar:
Raquel?
Senhora respondeu Raquel, sentindo-se gelar. Além de ser aprimeira vez que se via sozinha
com dona Virgínia, acreditou que seria advertida.
275
Agora, mais calmas, podemos conversar. O que aconteceu? perguntou mantendo-se tranquila.
Com voz fraca, exibindo-se muito constrangida, Raquel contou:
Nós chegamos do serviço ontem e, bem, o Alexandre não quisjantar dizendo que iria sair.
Você não foi com ele?
Não, senhora respondeu sempre tímida e educada.
Por que, ele não a chamou?
Não admitiu recatada ao abaixar a cabeça.
Aonde o Alex foi?
Não sei dizer, dona Virgínia. Ele não me contou. Quando chegou já era bem tarde e nós não
conversamos direito.
A que horas ele chegou?
Por volta das quatro informou com educação peculiar e acanhada.
Após alguns segundos, desconfiada, a mãe do rapaz perguntou:
Vocês brigaram, Raquel?
Raquel demorou de responder, mas por fim disse:
Não.
Sente-se aqui, Raquel pediu com simplicidade.
A moça sentiu-se esfriar ainda mais. Acreditava que a mãe de Alexandre poderia querer desmoralizá-la por
ela estar morando ali e principalmente por aquela situação. Sentando-se no lugar indicado, trazendo as
mãos geladas e molhadas de suor, Raquel exibia nítido nervosismo ao torcê-las.
Calma, filha. Não precisa ficar assim pediu dona Virgíniaobservando sua aflição. Só quero
entender o que está acontecendo edar a minha opinião. Eu estou preocupada com o Alexandre,
Raquel.Não só com o que aconteceu hoje, mas também com tudo o que vem ocorrendo ultimamente.
Gostaria que você se colocasse em meu lugar eprocurasse me entender.
Eu a entendo, dona Virgínia. Aliás, gostaria de já ter conversado com a senhora há mais tempo.
Não quero que pense mal de mim.
276
Então vamos lá. Primeiro, quero saber se vocês brigaram ontem.
Não exatamente. Eu estava chateada com algumas coisas que não estão dando certo no serviço
explicou com sua voz suave e temerosa. Alexandre deve ter contado que estou morando aqui de favor
e temporariamente. Se algo der errado agora e eu for demitida, não sei o quevou fazer. Quero deixar esse
apartamento o quanto antes. Então, ontem, falávamos sobre isso e o Alexandre se irritou. Eu disse que o
incomodava e ele afirmava que não... falávamos de coisas assim. Ele ficouchateado. Depois disso, tomou
um banho, se arrumou e disse que não o esperasse. Perguntei se queria jantar, mas ele disse que não.
Fiqueinervosa, magoada. Após ele sair, passou muito tempo e eu dormi. Acordei depois, quando ele
chegou e...
"E" o quê?
Eu me assustei e o achei meio esquisito. Frio com as palavras ecom as atitudes. Após alguns
segundos, ela revelou sempre sensível etímida: Acho que senti cheiro de bebida. Perguntei se queria
comer alguma coisa, mas ele disse que estava fazendo um lanche. Na verdade,depois disso não dormi
direito. Pela manhã eu levantei e vi que ele nemtinha comido todo o lanche que fez.
O que ele comeu aqui?
Um sanduíche de queijo e presunto. Deu uma ou duas mordidase largou. Achei o resto aqui em
cima da pia. Ele nem jogou fora. Quandoachei que estava demorando muito para levantar, fui ver o que
haviaacontecido, porque comecei a ficar preocupada, ele costuma levantar cedo sempre e como eu sei que
ele é cardiopata... Foi isso o que aconteceu.
Após ouvir a história, a mulher ficou em silêncio por algum tempo e, observando o nervosismo aflitivo de
Raquel. Pouco depois, dona Virgínia perguntou:
Vocês estão juntos há alguns meses. O Alexandre, nesse tempo, jásaiu assim sem dizer aonde ia
e voltou de madrugada?
Não. Ele nunca fez isso antes.
Olha, filha disse a mulher, respirando profundamente , eunão sei direito como vocês estão
se relacionando...
277
Interrompendo-a, Raquel avisou a fim de se defender, mas com modos simples, educados, e foi
categórica:
Não temos nada, dona Virgínia. Infelizmente eu estou necessitando de um lugar para morar.
Passei e passo por uma situação muito difícil e o seu filho está me ajudando. Mas nós não temos nada.
OAlexandre é um grande amigo, me respeita muito. Eu o respeito também. Ontem, foi a primeira vez que
ele saiu e voltou de madrugada.Sabe, não me cabe perguntar aonde ele vai ou de onde veio. Não sounada
dele para fazer isso justificou com voz meiga. Enquanto moro aqui, procuro cozinhar, arrumar,
contribuindo com o que posso e da melhor maneira possível. Sentindo-se ofendida na dignidade,apesar
de temerosa, defendeu-se ao desfechar: Sou grata ao Alexandre, mas não me vendo em troca de nada.
Espere, menina reclamou a mãe de Alexandre, quase ofendida. Eu não disse isso. Você
nem me deixou terminar.
Então me desculpe pediu Raquel, abaixando o olhar. Porémcontinuou: Mas sabe o que é?
Nos últimos tempos só encontropessoas que me julgam erroneamente e não conseguem acreditar em uma
grande amizade entre um homem e uma mulher sem que haja"algo mais", não acreditando que uma
pessoa pode ajudar a outra sem interesse.
Mas, Raquel, você há de convir comigo que é difícil vermos um rapaz jovem, bonito, estabilizado e
que mora sozinho, colocar para dentro de sua casa uma moça, também jovem e muito bonita, sem
queexista algum relacionamento mais íntimo entre eles. A princípio sim,mas com o tempo...
Dona Virgínia... tentou explicar em tom vacilante.
Por favor, Raquel... pediu a mulher, com gesto singular, fazendo-a esperar. Levantando-se em
seguida continuou: Não quero que me prove nada, mas gostaria de entender e acreditar nisso,
se possível. Vou ser sincera, não vejo com bons olhos esse relacionamento, principalmente pelo fato de
você ter surgido repentinamente noapartamento do meu filho. Nunca ouvi o Alex falar de você. Não sei se
278
antes se conheceram o suficiente ou se namoraram. Contudo, nessas alturas dos acontecimentos, isso não
me importa mais. Entretanto, Raquel, ninguém pode me impedir de zelar pela segurança e pelo bem-estar
do meu filho! Meu Alex já passou por sérios problemas, você sabe disso. Não quero vê-lo sofrer
novamente. Meu filho nunca teve que sair de casa à noite, e ainda sem jantar, para fugir de algum tipo de
conflito que não quisesse encarar, voltando só de madrugada. O Alexandre é racional, equilibrado e
determinado! Se ele fez isso éporque alguma coisa séria aconteceu. Se dentro da opinião do Alex você,
Raquel, não é um problema na vida dele, que seja uma solução. Olhando-a bem nos olhos, dona
Virgínia quase a intimou: Trate bem o meu filho, por favor. Se você o respeita, se o considera por tudo o
que vem te fazendo e ajudando, faça-o feliz! É o mínimo que ele merece! Pense bem no que você fez ou
deixou de fazer para ele sair de sua própria casa.
Após dizer isso, dona Virgínia deixou Raquel sozinha. A moça sentia-se ofendida e humilhada. Pensando
bem, ela não poderia tirar a razão daquela mãe, principalmente pelo fato de ela ignorar muito do que estava
acontecendo.
No instante em que esclareciam os fatos, espíritos sem instrução e dispostos a comprometer
negativamente a conversa envolviam a mãe de Alexandre a fim de fazê-la maltratar Raquel. Dona Virgínia,
mulher que sempre fora educada e compreensiva, apesar de procurar se conter a fim de não magoar a
moça, acabou se deixando levar pelo envolvimento que sofria. Mesmo não tendo se extrapolado, uma vez
que o objetivo dos desencarnados era o de vê-la excessivamente irritada e nervosa, dona Virgínia passou
péssimas impressões e criou pesarosas vibrações para Raquel. Agora, a amiga de Alexandre estava se
sentindo incrivelmente perturbada, como se não bastasse tudo o que sofreu e sofria, fora ofendida e estava
magoada. A jovem teve de criar forças para não chorar naquele momento.
Levantando-se, pegou o chá e o café que havia preparado e levou para Rosana e dona Virgínia, que
estavam no quarto junto com Alexandre.
279
Após servi-los, deixou-os imediatamente. Pouco depois, Rosana foi à sua procura e Raquel, com os olhos
vermelhos, se encontrava na lavanderia.
O que está fazendo? Ora, deixa isso para a Lourdes!
De jeito nenhum respondeu escondendo o rosto entre os cabelos para que a outra não visse.
Raquel, o que foi?
Prefiro não falar... Sua mãe está aí e... respondeu cabisbaixa.
Não fique assim. Depois conversamos argumentou compreendendo.
Raquel não respondeu nada, continuando com o que estava fazendo. Rosana, ignorando ser sua mãe a
causadora daqueles sentimentos, preferiu deixá-la só. Mais tarde, quando se despediam, a mãe de
Alexandre comentou:
Raquel, desculpe-me se fui tão sincera com você. Mas eu disse o que meu coração pedia.
Do que você está falando, mãe? perguntou a filha sem entender o que se passava.
Nada. Depois conversamos respondeu-lhe. Voltando para Raquel, continuou: Você fez bem
em ter nos chamado. Lembre-se, oAlexandre não pode tomar qualquer medicamento. Por favor,
qualquercoisa, nos avise imediatamente.
Pode deixar, dona Virgínia, cuidarei bem dele tímida, mas firme.Depois que elas se foram,
Raquel voltou ao quarto para confirmar se
ele estava bem ou se precisava de algo. Ao vê-la, Alexandre deixou um largo sorriso iluminar o seu rosto
pálido e pediu:
Vem cá. Sente-se aqui.
Você me assustou comentou após aceitar o convite.
Você vai sobreviver a isso brincou rindo.
O que comeu para lhe dar um problema gástrico infeccioso? Você teve até febre! Nossa!
Deram o nome de "enterite".
Pouco importa o nome. O que comeu? tornou com simplicidade.
280
Nem sei. Não comi muita coisa respondeu ao recostar-se nos travesseiros. Até cheguei com
fome. Preparei um lanche e nesta horacomecei a me sentir mal. Nem terminei o lanche.
Aonde você foi? perguntou automaticamente, sem se dar conta de sua curiosidade.
Não quero falar sobre isso fugindo-lhe ao olhar sem perceber.Raquel, parecendo magoada,
quase irritada, ia se levantando ao dizer:
Desculpe-me por ser indiscreta. Não tenho nada com isso. E...Rápido, Alexandre a segurou pelo
braço e falou sério, encarando-a
firme:
É importante para você saber aonde eu fui?
Preocupo-me com você. Gostaria de saber. Só isso afirmouacanhada.
Ele simulou um sorriso com o canto da boca, respondendo:
Eu não estava com nenhuma outra mulher, não. Segurando-lhe com delicadeza, completou
meigo: Eu não poderia traí-la, Raquel. Se você quer saber, eu digo. Fui a um barzinho. Fiquei sozinho
otempo todo. Algo que não fazia há muito tempo fiz. Tomei uma bebida,o que não deveria. Comi algo que
nem sei direito o que era, mas sentigosto de maionese. Angustiado, confessou: Sabe, eu não
parava de pensar rio que aconteceu. Desrespeitei você. Traí sua confiança. Aomesmo tempo fiquei confuso.
Fiz o que mais desejava... Você entende?Entrei em conflito comigo mesmo. Apesar de tudo, quero que me
perdoe. Raquel, com olhar baixo, tentou se levantar, mas ele não a largou, insistindo: Você me
perdoa, Raquel?
Não vamos falar sobre isso. Vou preparar sua alimentação.
Não quero comer nada. Responda-me, você me desculpa?Ela ficou em silêncio, depois
argumentou:
Não tenho que desculpá-lo. Você não me ofendeu.
Mesmo?
Eu me assustei, não esperava. Fiquei com medo, eu...Alexandre percebeu algo estranho nos
sentimentos de Raquel que
parecia estar cedendo, se revelando timidamente, ele sentia. Sua irmã
281
tinha razão, ela gostava dele, só não admitia, não sabia como agir nem como tratá-lo.
Perdoe-me se eu a assustei pediu o amigo com olhar suplicante e voz terna, tentando envolvê-
la. Ela abaixou o olhar novamente e ele pediu: Você pode me dar um abraço?
Raquel o encarou, ficou temerosa, confusa, mas por fim aproximou-se e o abraçou com cuidado. Ao tê-la
junto de si, ele sussurrou-lhe:
Obrigado, Raquel. Obrigado por cuidar de mim.
No dia seguinte, quando conversava com sua irmã que fora novamente visitá-lo, Alexandre contava:
Ela agiu diferente. Sorrindo afirmou: Estava quase irritadapara saber aonde eu tinha ido.
Rosana já estava sabendo o que acontecera entre Alexandre e Raquel no dia anterior.
Ciúmes! anunciou a irmã com ênfase. Só pode ser isso.
Mas é tão difícil conquistá-la, Rô. Eu nunca sei o que fazer.
Você não acha que ela precisaria da ajuda de um psicólogo? Quemsabe uma terapia?
Ironicamente o irmão respondeu:
Certo! Perfeito! Chegarei nela e direi: "Raquel, querida, vamos aum psicólogo porque eu quero te
namorar! Quero beijá-la e você não deixa". Ora, Rosana! Isso não tem cabimento.
Também não é assim, né! respondeu a irmã se defendendo econcluiu: Aos poucos você
pode indicar uma terapia. Diz que você aajuda, a apoia.
Nem namorados somos, Rô. Como eu poderia? Raquel não se permite. O silêncio se fez por
alguns instantes, mas logo Alexandreavisou: Estou pensando em falar com ela sobre trazer a filha
parajunto de si. Já há algum tempo venho conversando sobre a menina,fazendo-a se acostumar com a
ideia. Como eu sei que um profissional
282
dessa área será necessário para a readaptação da Bruna, posso sugerir que ela aproveite a oportunidade.
Vai devagar, Alex. Eu não entendo muito de lei, mas o caso de Raquel é um tanto complicado. Veja,
ela abandonou a filha ao nascer,não a procurou depois e nem sabe como a menina está hoje, ou
comquem.
Alexandre, em defesa, lembrou:
Mas ela tem o direito de ter a filha, Raquel é a mãe.
E o abandono, não conta? avisou a irmã.
Mas Raquel abandonou a filha por seu estado emocional. Ela sofreu abuso sexual intrafamiliar e
agressivo, era menor de idade, foi coagida, intimidada, sua gravidez não foi planejada e não aconteceu
por irresponsabilidade dela ou por prostituição. Além disso, teve problemas graves com a família, que a
expulsou de casa. Depois, quando procurouapoio da mãe, ela virou-lhe as costas e a deixou com o peso de
saber quea criança que ia nascer era filha de seu próprio pai. O que mais vocêquer? Há inúmeros
atenuantes a seu favor.
Calma, Alexandre. Lembre-se de que falaram que Raquel tinhaum namoradinho e depois de
expulsa de casa foi morar na rua. Primeiro podem dizer que ela se relacionou com o namorado ou que se
prostituiu quando morou na rua e daí concebeu a filha.
Mas ela não namorou o rapaz.
Será a palavra dela contra a dos outros. A família pode acusá-la delevar uma vida irregular. Não
sei como é isso, mas creio que haveráinvestigações. Não vão entregar uma criança para alguém que diga
ser amãe. Mesmo hoje, ela precisa ter uma vida íntegra.
Isso eu sei avisou o irmão.
Mas em que condições se deu o abandono? Raquel já era maiorde idade?
Quando a menina nasceu, sim. Mas quando concebeu, não afirmou.
Ela reconheceu a filha, ou melhor, registrou-a e depois entregoupara a adoção?
283
Não. Raquel mal disse o seu nome. Ela estava em choque. Não conversou nas entrevistas e nem
pegou a filha no colo. Só sabe dizer quechamavam a menina de Bruna Maria. Depois disso ela fugiu do
lugar.
Cuidado para você não dar esperanças a ela em uma situação complicada. Veja, houve ruptura
da filiação no nascimento e Raquel era maior de idade. Psicologicamente falando, será que houve um
trabalho de luto por essa separação? Será que ela sofreu por ter que deixar a filha?
Pelo amor de Deus! Raquel concebeu essa filha num estupro!!! alterou-se defendendo.
Você não pode exigir algo de uma pessoa que sofre uma violência dessa! Considero-a até uma vitoriosa por
hoje estarfalando da filha sem rancor, mágoa ou coisa assim.
Tudo isso está a favor dela, Alex, sem dúvida. Mas e depois, como passar dos anos, ela foi
procurar pela criança? Sabe onde ela está? Se tem problemas de saúde física ou mental?
Há pouco tempo ela telefonou e pediu informações. A meninahavia sido transferida para outro
orfanato logo após o abandono.
Eu estou te alertando para que vocês não sofram. Vamos primeiro saber o que diz a lei. Após
pequena pausa, Rosana perguntou: Não quero desanimá-lo, mas você sabe me dizer se essa menina já
foiadotada ou não? Alexandre arregalou os olhos e Rosana continuou: Será que o abandono da mãe,
que caracterizou ruptura após o parto,não fez com que Raquel perdesse o pátrio poder sobre a filha?
Isso não acontece!
Claro que sim. Principalmente que, diante dos assistentes sociais e dos psicólogos a, Raquel te
contou que nunca disse nada, ficou muda.Não falou sobre os problemas que viveu, não contou que
engravidounum estupro, não relatou seus medos e não disse que a filha era suairmã. Eles não sabiam
nada sobre a Raquel e ela simplesmente desapareceu após o parto. O juiz pode tê-la destituído do pátrio
poder e passado o mesmo a um casal que quisesse adotar a menina.
Contrariado, Alexandre não se conformava com as possibilidades que a irmã alertava. Preocupado, ele
alegou:
Mas nenhuma mãe perde tão facilmente a guarda de um filho.Raquel tem esse direito.
284
Aí é que você se engana disse Rosana encarando-o. Nãoentendo muito bem, mas vida
imoral e prostituição fazem com que amãe perca, sim. O que Raquel fez depois que abandonou a filha?
Obviamente haverá uma avaliação psicológica e social de tudo o que aconteceu a ela e o que fez. Por que
ela nunca foi procurar a menina? Porque somente agora? Quando houver uma investigação, o que a
cunhada vai dizer como referência?
Como assim?
E se Alice aparecer e informar que a Raquel se prostitui? Não foiisso que ela disse ao marido e,
por isso, Marcos chegou ao ponto deexpulsar a irmã de casa? Eles não disseram que ela chegava de
carro"com um e com outro"?
Mas era eu! Eu havia trocado de carro. O resto é mentira da Alice.
Prove isso! Prove que era você! Além do mais, por maldade, lá no serviço não a acusaram de
"jogar no outro time"? Podem continuar dizendo isso para prejudicá-la, pois a moça, a tal de Rita, que diz
ter sido"cantada" pela Raquel, gosta de você, não é?
Terão que provar isso irritou-se Alexandre.
Olhando-o e percebendo que o irmão não havia se dado conta da situação, Rosana foi mais realista:
E você, Alex? Como você fica na vida da Raquel?
Como assim?
Como vai ficar a sua situação com a Raquel? Vocês vivem como dois amigos, mas ninguém vai
acreditar. Acreditando, o que é difícil,verifica-se que não há uma estabilidade, ela vive aqui de favor,
nemconcubinato é. Provavelmente haverá visitas de assistentes sociais, entrevistas com psicólogos, como
vai ser? Eu acho que vai existir um período de adaptação, em que a criança será entrevistada. Ela tem
quatroanos, não é? O que ela vai dizer de vocês dois?
Vai fazer quatro anos em dezembro.
Então, se for uma menina esperta, vai falar que cada um dorme num quarto, ou coisa assim. O
que vocês são um do outro? São pequenos detalhes que formam um estudo psicossocial que pode ou não
lhe sser favorável. Isso tudo, claro, só depois de vocês entrarem com um
285
pedido de guarda na Vara da Infância e da Juventude para o juiz da comarca de onde o orfanato se
encontre.
Alexandre ficou decepcionado. Ele não imaginava que teria tanto trabalho.
E se prepare alertou Rosana lamentando, mas, porém, realista.
Por quê?
Com três anos falou meiga , se essa menina já tiver sidoadorada, vocês vão precisar de
muita coragem para tirá-la desses verdadeiros pais que a assumiram, que a ampararam, cuidaram,
amaram, atéagora. Diga-me uma coisa, você terá coragem de fazer isso, Alexandre?Você vai ajudar a tirar
a menina dos pais?
Empalidecido, ele a olhou sem dizer nada. Não tinha pensado nisso. Rosana se aproximou do irmão,
sentou-se a seu lado, envolveu-o com um abraço e, com jeito meigo e ternura na voz, perguntou:
Eu sei que você tem uma memória excelente. Lembra-se muito bem de quando era pequeno. Por
acaso, se quando você tivesse quatroou cinco anos sua mãe verdadeira aparecesse e quisesse levá-lo
embora,como você reagiria, Alexandre? Como você acha que o papai se sentiria? E a mamãe? Eu e a
Vilma? Eles morreriam, Alexandre! Imagine:advogados e juizes não respeitando a sua vontade, o seu amor
e arrancando-o dos braços de sua família querida para entregá-lo a uma estranha. Como ficariam os
nossos corações?! questionava com lágrimas a correr-lhe na face. Fitando-a com seriedade, ele a
encarava firme, e airmã continuou: Perdoe-me por lembrar disso.
Não tem problema. Eu me esqueço disso e está sendo bom parapensar no que estou a fim de
fazer.
Então pense bem. Procure, antes de oferecer esperanças, informações e esclarecimento dos
fatos. Alexandre, mãe verdadeira é aquela que assume, que passa noites em claro, que fica alegre com as
primeirasgracinhas e que se preocupa quando elas não ocorrem. Mãe mesmo éaquela que corrige, orienta,
fica brava e até dá um castigo para a gente aprender. Não sei o que você faria, mas se fosse eu e hoje
aparecesse umamulher me dizendo "Eu sou sua mãe", eu lhe daria um grande abraço e
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diria: "Obrigada por você ter me deixado encontrar a minha verdadeira mãe. Eu a respeito e posso entender
todas as suas decisões, mas minha mãe de verdade é a dona Virgínia". Vendo-o com a cabeça baixa,
ela completou: Alex, por favor, perdoe-me por falar disso.
Emocionado, abraçou-a com força, balançando-a com carinho, ao dizer:
Eu amo vocês. Agradeço muito a Deus por eu ter essa família. Foibom você ter se lembrado disso.
Não terei coragem de seguir adiante caso a menina já tiver um lar. Não sei como não pensei nisso.
Afastando-se do abraço, Rosana alertou:
Alex, pense bem. Prepare a Raquel para o caso de a filha já ter uma família e para algumas
dificuldades que podem surgir. Faça-aencarar a realidade. Pense nisso, meu irmão. Alexandre a
abraçounovamente com carinho e Rosana falou: Eu o amo tanto, Alex. Não posso imaginá-lo longe de
mim. Não quero vê-lo sofrer nem em dificuldades.
Eu também amo você, Rô. Obrigado. Conte comigo, sempre.Sempre, entendeu?
Eles ficaram abraçados por alguns minutos entregando-se às fortes emoções que os levaram às lágrimas.
Raquel, que havia saído do banho, bateu levemente na porta entreaberta, mas os irmãos não a ouviram e,
ao entrar, ela parou logo após os primeiros passos e ficou sorrindo, contemplando a cena tão bela. Ao se
afastarem, Alexandre secou as lágrimas teimosas que rolaram e voltando-se para Raquel, pediu:
Sente-se aqui pediu batendo sobre a cama onde estava.
Vim só saber se precisa de alguma coisa.
Sente-se e faça companhia para a Rô. Vou tomar um banho e jávolto.
287
Capítulo 13
O reconforto em uma prece
Raquel chamou Rosana para a cozinha, onde foi preparar um lanche para elas e um chá para Alexandre,
que estava restrito a alimentações leves. Não suportando o silêncio da amiga, Rosana comentou:
Ontem falei com minha mãe e soube o que ela conversou comvocê. Eu queria dizer que...
Rosana interrompeu a moça , não tente argumentar a meufavor. Sua mãe tem toda razão.
Minha mãe é um tanto conservadora. Ela ainda não consegue entender o que se passa, mas com
o tempo...
Não haverá muito tempo afirmou decidida. Pretendo sairdaqui o quanto antes. Nesses
últimos meses, reservei uma quantiasatisfatória e creio que já seja o suficiente. Na próxima semana vou
procurar uma casa e...
E com o coração partido deixar o homem que você ama, respeita e que gosta de você, Raquel?!
Rosana, imediatista e verdadeira, deixou Raquel sem palavras. Sensível, a amiga abaixou a cabeça,
procurando controlar a voz que vacilava:
Você não entende. Jamais poderei ser feliz...
Por que, Raquel?
Tenho medo sussurrou triste.
Medo do quê? E, Alex jamais iria maltratá-la.
Mas eu não posso.
Por quê? O que aconteceu, Raquel?
Pergunte ao seu irmão. Ele sabe e por isso me compreende respondeu acanhada ao esconder
o rosto.
Não disse Rosana, sentando-se ao seu lado e segurando seu rosto para olhá-la melhor. Quero
ouvir de você. Se confiar em mim,vai me contar.
Mesmo chorando, Raquel contou tudo o que Rosana já sabia, inclusive sobre sua filha. A irmã de Alexandre
ouviu como se não soubesse de nada, observando e sentindo o desespero, a angústia e a tristeza da
amiga por tudo o que lhe acontecera. No final estavam abraçadas e Rosana emocionada com o relato dizia
com sensibilidade e brandura:
Raquel, tudo isso já passou. Você tem o direito de ser feliz ao lado de alguém que lhe quer bem.
Meu irmão a ama. Acredite!
Eu não disse à sua mãe, mas o Alex ficou nervoso e saiu de casaporque...
Porque...
Raquel contou sobre o beijo que houve antes de o irmão de Rosana sair de casa, como se esta não
soubesse. Ela ignorava que a amiga já sabia de tudo por Alexandre.
Você também o ama, Raquel. Isso é certo.
Não...
Como não? Você só não está admitindo isso porque sofreu muito no passado. Diga-me uma
coisa: ele a tratou com carinho? Raquelafirmou com a cabeça. Rosana aproximou-se perguntando quase
sorrindo, com um jeitinho delicado e muito especial: Não foi bom sentir-se amada?
É tão gostoso ficar
nos braços de quem a gente ama e confia,não é?
Pare com isso, por favor pediu com leveza na voz.
Por que, Raquel? Estamos falando de algo bonito, verdadeiro.Não é nada indecente. O que tem
de mais falarmos sobre amor, sobre uma troca de carinho meigo, puro? Ela não respondeu, e
Rosanacontinuou: Por que você não se deixou envolver mais?
Eu não consigo.
Como não? Se no começo se deixou beijar foi porque se sentiubem. Sentiu-se segura ao ficar
nos braços dele e o desejou, também.
Eu não sei o que aconteceu, Rosana.
290
Eu sei. Você só tem lembranças tristes, lembranças que a magoam.Eu imagino o quanto deve
sofrer quando as recordações amargas surgem.Toda moça tem um sonho. Quer ser amada, protegida, bem
tratada por um "príncipe encantado". Só que seu sonho, Raquel, é um pesadelo.Você não foi amada, foi
violentada, não foi protegida, foi agredida, nãofoi bem tratada e não respeitaram a sua vontade. Raquel
caiu em umpranto compulsivo e Rosana falou, ao abraçá-la com carinho: Chore,minha querida. Coloque
para fora, de uma vez por todas, essas lembranças tristes. Depois abra seu coração para a oportunidade
feliz de hoje. Se alguém destruiu seus sonhos, não o deixe vitorioso. Reconstrua-se, Raquel! Permita-se, no
mínimo, ter um carinho, um amor.
Não consigo disse entre os soluços.
Tente quantas vezes forem necessárias. Eu sei que meu irmão éum homem bom, decente. Além
disso, por amá-la, ele vai entender eajudar sempre. Procurando olhar nos olhos da amiga, Rosana
perguntou: Você o ama, não é?
Acho que sim... eu... admitiu com voz baixa e amedrontada.Rosana sorriu satisfeita, envolveu-a
novamente, e falou:
Então fale a ele sobre o seu amor. Diga o que sente e converse sobre seus medos e limites. O meu
irmão a compreende e a respeitamuito. O Alex a ama. quer tanto tê-la a seu lado que vai ajudá-la avencer
esses temores e traumas. Se for preciso procurar a ajuda de umprofissional, pode contar que o terá a seu
lado.
A chegada de Alexandre na cozinha interrompeu a continuação da conversa. Ao ver Raquel chorosa e
abraçada à sua irmã, ele perguntou preocupado:
O que foi, Raquel? O que está acontecendo?
Nada respondeu Rosana firme e insatisfeita com a aproximação do irmão.
Raquel secou as lágrimas e tentou se recompor, meio sem jeito pela presença do amigo. O toque do
interfone os surpreendeu. Alexandre atendeu e depois informou:
É o Ricardo. Ele está subindo.
291
Ah! Nem deveria tê-lo mandado subir. Já estou indo avisou Rosana.
O que é isso, Rô? Mande-o entrar. Vamos tomar um lanche.
E ficar noivando aqui?! respondeu ela, com seu modo irreverente e brincando como sempre.
Não mesmo! Além disso, vocês têm muito que conversar. Raquel precisa falar com você.
A amiga sentiu-se corar e Alexandre ficou na expectativa, curioso. Despedindo-se rapidamente de Raquel e
de seu irmão, ao toque da campainha Rosana abriu a porta e disse:
Ricardo, esta é a Raquel.
Oi, Raquel! Tudo bem? cumprimentou animado.Interrompendo-o, com seu jeito especialmente
alegre e irreverente,
Rosana falou:
Tá tudo bem com ela. O Alex nem precisa cumprimentar. Ele está ótimo e sob os cuidados da
Raquel ficará melhor ainda.
Enquanto cumprimentando Ricardo, Alexandre reclamava para a irmã:
Deixe de ser maluca, Rosana!
Mas Rosana se fez de surda e puxou o noivo, saindo do apartamento. Alexandre olhou para Raquel,
balançou com a cabeça negativamente e disse:
E bom se acostumar com ela. Rosana não tem jeito.
Eles riram. Logo Raquel foi buscar o chá que havia preparado junto com as torradas e levou para
Alexandre. Ele a olhou e curioso perguntou:
O que minha irmã quis dizer sobre termos algo para conversar?Raquel se viu coagida e não sabia o
que responder. Sentando-se ao
lado dele, ela ensaiava para falar a respeito da conversa que teve com Rosana. Porém, ideias
contraditórias começaram a invadir seus pensamentos, fazendo-a perder a coragem, até que Alexandre
perguntou:
O que está acontecendo, Raquel? Você não está satisfeita aqui?
Não é isso. Ainda não me acostumei com a ideia de morar aqui.Creio que sou tão conservadora
quanto sua mãe. Você me trata muito bem, sempre me respeitou, mas não posso continuar vivendo desse
modo.
292
Nesses últimos meses reservei certo valor e creio que na próxima semana vou procurar um lugar para
morar. Preciso levar a mesma vida de antes. Acho que você entende, né?
Alexandre sentiu como se estivesse levado uma punhalada, mas não demonstrou. Ele não conseguia
aceitar a ideia de ficar sem Raquel. Amargurado, tentando fazê-la refletir, arriscou:
Saindo daqui, você sabe que terá de enfrentar muitos comentários desagradáveis sobre essa
suposta separação, não é? Abaixando oolhar Raquel não disse nenhuma palavra e ele continuou:
Acredito que você vai querer procurar sua filha. Sua conduta moral, seu comportamento contarão pontos a
seu favor ou não. Além disso, terá custos com os honorários de um bom advogado, precisará de apoio,
amigos e...
Não é assim acreditou com simplicidade. A filha é minhae eu poderei pegá-la quando
quiser.
Lamento, Raquel, mas não é bem assim, não. Conforme o caso,será necessário atestado de
saúde física e mental, atestado de idoneidade moral, comprovação de residência e domicílio, estabilidade
familiar etalvez até situação financeira estável. Pelo menos é assim que funciona no caso de adoção. Como
a Bruna foi abandonada e você nunca a procurou, eu acho que talvez não seja diferente. Haverá, inclusive,
exames para a comprovação da maternidade. Creio que será um processo longo,principalmente se sua filha
já estiver...
Alexandre começou a passar para Raquel todas as informações que acreditava, principalmente o fato de
Alice oferecer pareceres negativos sobre sua moral. Raquel ficou desalentada. Inúmeros pensamentos
chegaram com ideias catastróficas sobre seu futuro. Ligada pelo seu nível de pensamento a espíritos
ignorantes, se deixava desanimar e contaminar com as piores reflexões.
Alexandre, que estava sentado no sofá e a observava atento, chamando-a para perto de si, pediu:
Sente-se aqui. Vamos falar sério. Raquel obedeceu quase quemecanicamente. Ele colocou o
braço sobre seu ombro e falou: Eu
293
quero lhe oferecer toda a minha ajuda, todo meu apoio. Farei tudo o que puder por você. Confie em mim.
Parece que vivo só para sofrer. Eu não deveria ter nascido chorou.
Não diga isso.
Nunca tive sorte. Nunca consegui ser feliz. São poucos os momentos que me lembro de ter
experimentado alguma alegria. Tenho tanta vontade de morrer.
Alexandre a deixou desabafar, percebendo que ela necessitava disso. Raquel agora não chorava mais,
comportava-se diferente, parecia fria, fatigada.
Não perca seu tempo comigo. Você é uma pessoa vitoriosa e demuita sorte. Sua família o ama, o
respeita. Eles se preocupam com o que te acontece. Quanto a mim, nem mesmo minha mãe se importa...
Meus irmãos jamais me procuraram. Hoje mesmo, quando vi você e a Rosana,abraçados, emocionados, eu
lembrei que nunca tive um abraço de um de meus irmãos. Você sabia? Eu vi o quanto sua mãe se
preocupou porcausa do seu estado. Só hoje ela já ligou três vezes por não poder vir atéaqui, por causa de
seus parentes que chegaram lá e ela não queria trazê-los. Não tenho o direito de ficar aqui na sua casa
estragando sua harmonia, sua tranquilidade. Como sua mãe falou...
Não se importe com minha mãe! Ela não sabe o que diz interrompeu, quase irritado. A
Rosana me contou que vocês duas conversaram. Minha mãe sempre foi ciumenta e...
Ela tem todo o direito de ser assim! cortou-lhe Raquel, sem deixá-lo terminar. Ela demonstra
o seu amor de mãe. Mas, comoela me disse, "Se eu não faço parte do problema, devo fazer da solução". E
isso eu não estou conseguindo fazer. Por essa razão eu tenho que ir embora. Alexandre abaixou o olhar
e, sentindo um nó nagarganta, decidiu não dizer mais nada. Raquel estava ferida e pareciadecidida
também.
294
Mais tarde, por não conseguir conciliar o sono, Alexandre se levantou, foi até próximo da porta da suíte.
Certificando-se de que Raquel estava dormindo, voltou até a sala e foi telefonar para sua irmã.
Alex? atendeu Rosana.
Que bom que foi você que atendeu, Rô. A mãe está aí perto?
Não. Ela está dormindo. Estou no meu quarto. Ela deve ter desligado o telefone do quarto dela,
pois às vezes alguma colega, ou mesmoo Ricardo, me liga um pouco tarde e eles acabam acordando. Mas
me conta, o que aconteceu? Você e a Raquel conversaram?
Conversamos. É sobre isso que quero falar com você.
Rosana estava certa de que as coisas entre seu irmão e Raquel estavam bem, uma vez que Raquel admitiu
gostar dele e, após a conversa que tiveram, a amiga parecia ter concordado em receber sua ajuda.
Contando com isso, Rosana alegremente perguntou ao irmão:
Eu já sei! Ela disse que o ama!
Não. Que história é essa? sussurrou.
Como não?!!!
Raquel está decidida a sair daqui.
Como assim?! assustou-se a irmã. Conversamos e ela confirmou, para mim, que gosta de
você. Que achava que o ama...
Raquel admitiu isso?! indagou Alexandre incrédulo.
Claro! Eu pedi a ela que conversasse com você e aceitasse suaajuda. Disse o quanto você gosta
dela e a respeita e que, com toda certeza, iria ajudá-la a vencer esses desafios.
Raquel não me disse nada disso. Quando lhe perguntei o quevocê disse que íamos conversar,
ela se embaraçou e veio com a históriade querer sair daqui. Rosana ficou em silêncio refletindo sobre
tudo o que ouvia de seu irmão, e ele continuou: Eu já contei a você, outro dia, que a Raquel está muito
diferente. Ela anda triste, depressiva e até irritada, coisa que nunca demonstrou. Em alguns momentos eu a
percebo tranquila, calma, doce como sempre foi, mas um segundo depoisela parece se transformar. Fica
chorosa, descontente, abatida.
Ela reclama de alguma dor? perguntou Rosana.
295
Alguns dias ela tem se queixado de dor de cabeça, dor na nuca,mas creio que seja por causa do
travesseiro ao qual não se acostumou.Nós compramos outro e trocamos, mas não adiantou muito.
Por acaso, quando esteve com dor de cabeça, ela tomou algumanalgésico e a dor não passou?
Sim. Acho que sim. Por isso pensamos que o motivo era o travesseiro.
Como Raquel se sente? Está desanimada, inapetente, enjoada,fraca?...
Alimenta-se mal, sim. Mas parece que é de sua natureza alimentar-se pouco. Fraqueza, não. Não
a vi reclamar disso, aliás ela vive arrumando esse apartamento, cuida de algumas coisas e deixa tudo em
ordem, até demais. Desanimada, sim. Mas isso é com o serviço lá na empresa.
Enjoo? tornou Rosana a questionar.
Creio que sim. Uma ou duas vezes achei que ela não estava bem.Eu a vi fazendo um chá e
tomando com alguma coisa. Perguntei, mas ela disse não ser nada. Não insisti em saber por que achei que
seria indelicado, poderia não ser da minha conta e, como almoçamos em restaurantes, acreditei que algum
alimento não lhe fez bem.
Sabe o que eu acho, Alex? Lembra que você me contou que ela ea cunhada foram a um "tal
lugar" pedir ajuda para os espíritos?
Lembro.
Eu acredito que a Raquel esteja com algum envolvimento espiritual.
E daí?
Daí que, se nos deixamos envolver por espíritos ignorantes, sofredores, quem não tem
pensamentos firmes, não tem opinião própria nemvoltada para o bem, para a elevação moral e espiritual,
passa a definhar,em todos os sentidos. Raquel se volta para o bem, tem uma boa moral,mas no que diz
respeito a ter pensamentos positivos, firmes e opinião própria, ela deixa a desejar. Quando envolvida por
espíritos sem instrução, fica preocupada com qualquer coisa, fica triste e depressiva, temmaus
pensamentos, às vezes pesadelos, sonhos ruins, sono perturbado.
296
Pesadelos ela tem! interrompeu Alexandre. Já acordei com ela chorando, até gritando. Fui
ver o que era e como estava e ela ficavachateada, envergonhada por ter me acordado. Sabe, algumas
vezes tive que acordá-la de pesadelos horríveis.
Então: pesadelos, dormir mal, alguns problemas de saúde quenão têm justificativa são comuns
em caso de envolvimento por espíritos ainda inferiores. Mas espere aí! advertiu Rosana. Também não
ésó você ter uma ou outra dor, junto com uma noite mal dormida ou um enjoo, que é o caso de você estar
envolvido. Esses sintomas podem ser os gritos de socorro do seu organismo que reclama de uma má
alimentação ou coisa do gênero, e não envolvimento espiritual. Porém, diante detudo o que você me contou,
e principalmente pelo fato de a Raquel ter se envolvido, junto com a cunhada, em lugares ou situações que
as colocaram em ligação com espíritos brincalhões, pseudo-sábios e ignorantes, ela pode estar sofrendo o
assédio de um obsessor.
Alexandre ficou confuso, ele não estava acostumado àqueles nomes.
Espere aí. O que é espírito pseudo-sábio e obsessor?Rosana refletiu um pouco e respondeu:
Vou lhe dar um livro chamado O Livro dos Espíritos, de AllanKardec. Quero que leia da questão
100 até a... deixe-me lembrar... acho que 113, mais ou menos. Não desanime. Leia tudo! Aí você vai
entender e aprenderá os riscos que corremos quando nos propomos a solicitar ajuda de "qualquer um".
Resumindo perguntou o irmão , não devemos pedir ajudaaos espíritos?
Você deve orar, fazer preces e conversar com Deus disse Rosana sabiamente, dando ênfase à
frase. O Pai Criador sabe o que vocêprecisa. Quando você pede só para outros e roga por ajuda, você
está deixando de acreditar em Deus.
E obsessor? O que é isso?
Olha, Alex, esse assunto é muito extenso. Você precisa ler bonslivros a respeito, mas bem de
longe eu vou te dar uma ideia do que é.Obsessor é o nome dado a um espírito sofredor e sem evolução
que fica
297
ao lado de uma pessoa, passando-lhe suas dores, seus pensamentos, seu sofrimento e a pessoa se sente
como que torturada mentalmente. É algo ferrenho, ostensivo e vingativo. Ou então o espírito passa seus
desejos no mal, seduções, pensamentos conquistadores, ambiciosos, sempre voltados para o lado imoral,
ilícito, também de maneira ostensiva, para vê-lo em situação difícil no futuro. Se a pessoa, por si só, já é
ambiciosa, gosta de prejudicar os outros, as suas companhias espirituais serão de espíritos que sentem
prazer com esses feitos. Esses espíritos também têm pesares, dores, sofrimentos, e aqueles que se
deixam ligar a eles também vão sentir esse tipo de vibração. Todos nós temos defeitos ou vícios. Podemos
ter o vício de não ser paciente, de ser orgulhoso, de não desejar o bem dos outros, podemos ter o vício da
preguiça, da má vontade. Podemos ter os vícios materiais, como o do cigarro, das drogas, do sexo, do
álcool, com isso, vamos atrair para perto de nós espíritos que tenham prazer nisso, pois, quando
encarnados, eles praticavam as mesmas coisas.
E no caso da Raquel, como pode ser um obsessor?
Por causa das inúmeras dificuldades que ela provou, Raquel sempre foi uma pessoa sofrida,
calada, triste, depressiva, pois tudo o que experimentou nunca pôde comentar, é algo pavoroso, aflitivo...
Então,pode ser que um espírito que é triste e depressivo, mas daqueles depressivos de aterrorizar qualquer
humor, qualquer ânimo, por vê-laquieta, triste e por encontrar condições de pensamentos favoráveis
aosseus, passou-lhe suas vibrações.
A Raquel não reagiu e, inconscientemente, concordou com os pensamentos que chegavam, não os
mudando. A partir daí, o espírito, a cada dia, a envolveu mais e mais com a sua tristeza, com o seu desejo,
com os seus pensamentos. Quando ela não reage, isto é, quando não pensa diferente, não fica otimista,
não faz uma prece a Deus pedindo orientação e ajuda, mudando os pensamentos e procurando enxergar
ao seu redor as coisas boas da vida, ela se entrega a essa obsessão. Olha, Alex, isso tudo eu só estou
ensinando de maneira muito superficial. Existem inúmeros tipos de obsessor. Nesse exemplo que dei
agora, os
298
obsessores são compatíveis com o tipo de pensamentos que temos. Nem sei se deveriam ser chamados
de obsessores. Coitadinhos! Pois a culpa, nesse caso, não é deles, é nossa. Somos nós que normalmente
facilitamos e aceitamos as ideias que esses espíritos nos passam. Assim, nós sofremos e os ajudamos a
sofrer. Há outros casos em que o obsessor é um inimigo do passado e quer se vingar de algo que
tenhamos feito a ele. Pode-se tê-lo prejudicado, então ele vive perseguindo você, encarnado ou
desencarnado, por vingança. Mas isso pode ser resolvido e não convém explicar agora.
O que eu faço, Rô?
Teremos que despertar a Raquel para que se religue a Deus. Façapreces, lembre-se de
agradecer, tenha fé...
Ela não consegue ter bons pensamentos.
E claro que não. As ideias dela são invadidas como pot flash instantâneo de pensamentos
depressivos de um espírito sofredor.
E o que podemos fazer?
Primeiro envolvê-la, despertá-la para que reaja com pensamentosbons e instruí-la para que se
desligue desse nível de pensamentos tristes. Existem, em bons Centros Espíritas, assistência espiritual e
orientação que nada mais são do que palestras evangélicas que vão esclarecer aspessoas a reagir e agir
diferente no seu dia-a-dia.
Ela não vai aceitar ir conversar com espíritos. Ela não gostouquando o fez um dia e disse que se
sentiu muito mal.
Mas quem falou que ela vai lá pra conversar com espíritos?! Centro Espírita é aquele que se
propõe a ensinar o que Jesus deixou, que é o Seu Evangelho. Centro Espírita, Sociedade Espírita se
propõem a divulgar conceitos dentro da Luz da Doutrina Espírita, codificada por Allan Kardec em 1857.
Espiritismo é Jesus. O Espiritismo ensina oEvangelho do Cristo. Você não vai a uma Sociedade Espírita ou
a umCentro Espírita para conversar ou pedir nada para espírito nenhum.Você vai lá para se melhorar,
ganhar conhecimento, para evoluir. Paramudar o comportamento que o faz sofrer, que o faz ser triste.
Atravésdas palestras evangélicas, através dos estudos, você se eleva, se ajuda, se
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liberta. Ninguém fará isso por você para que depois, num futuro próximo, tenha que sofrer e fazer tudo
novamente porque não teve mérito. Jesus disse: "Não dê o peixe ao seu filho; ensine-o a pescar". E é isso
o que a Doutrina Espírita faz, ela lhe mostra a luz no caminho correto para que siga, ela ensina ?. ter
forças, perseverança, pois só assim evoluímos e nos livramos dos pesares terrenos. Através de tudo o que
conhecer no Evangelho de Jesus, sem dogmas, sem rituais, pois o Espiritismo não tem isso, você se
descobre como criatura capacitada e não se prenderá mais na felicidade falsa, temporária e mundana.
Conhecendo o Espiritismo, Alex, você vai se esforçando e consequentemente conseguindo se reformar
intimamente. Reformando-se, mudando os seus hábitos, deixando os vícios, vai pensar diferente e agir
melhor, para que o seu futuro seja mais promissor e feliz.
Como faço para a Raquel ir a um lugar desses?
Não é um lugar qualquer, é uma Sociedade de Estudos Espíritas,ou um Centro Espírita. Mas nós
vamos conversar com ela. Agora, exata-mente, estou com tanto sono que nem consigo raciocinar direito.
Pensando um pouco, Rosana falou: Amanhã, ou melhor, hoje vocênão vai trabalhar, não é?
Não. O médico me deu três dias de convalescença.
Então eu passo aí depois que sair da faculdade. Creio que terei sóas duas primeiras aulas.
Poderemos conversar bastante.
Obrigado, Rô.
Não por isso. Desculpe-me não conseguir dar maiores informações no momento, é que estou
"trincando" de sono.
Conversaremos depois.
Após se despedirem, Alexandre ficou pensativo sobre tudo o que estava fazendo.
Será que agira corretamente querendo que sua amiga continuasse ali? Afinal, Raquel tinha o direito de ser
livre e de fazer o que quisesse. Ele não podia prendê-la a si só pelo fato de gostar dela. Em meio a essas
ideias que começaram a envolvê-lo em tristes conclusões, Alexandre começou a pensar, conversando
como que em prece sincera:
300
"Deus, ajude-me a fazer o que é correto. Não quero magoar a Raquel nem quero que ela sofra. Preciso de
orientação e amparo. Dê forças para que ela reaja, seja mais animada, procure ver o que de bom há em
sua volta. Tenho medo de que decida mesmo sair daqui e se envolver em situações piores. Ela está
decepcionada, confusa... Proteja sua filhinha."
Em meio a essa prece, que mais era um diálogo de fé, Alexandre adormeceu. Passada mais de uma hora,
acordou ao ouvir Raquel. Confuso e assonorentado, foi até o quarto onde ela se revirava no leito,
parecendo ainda estar dormindo. Aproximando-se, sentou na cama e a segurou, chamando-a com
brandura:
Raquel, acorda. Você está sonhando.
Ela se debateu e, mesmo abrindo os olhos, parecia não reconhecê-lo. Raquel segurou os braços de
Alexandre com força e, com o semblante assustado, tentava falar algo que era entrecortado por soluços.
Sou eu, Raquel! Acorda insistiu ele.
Ela gritou assustada, parecendo, só então, ter despertado. A princípio o empurrou, mas depois, chorando,
abraçou-o em desespero.
Calma, Raquel. Foi só um sonho avisava calmo acariciando-a.
Eu quero morrer! rogou ela em aflição e com a voz abafada. Deus! Por que eu não morro de
uma vez? Acaba com isso logo!
O amigo se lembrou do que sua irmã havia falado pouco antes e disse, ao ampará-la.
Vamos pensar em Deus, Raquel. Há quanto tempo você não reza? Raquel chorava muito,
parecendo não ouvi-lo. Mas, sem se importar, Alexandre continuou: Você sabe rezar, Raquel?
Aprendeu?
Ela escondia o rosto em seus braços e Alexandre só obtinha como resposta os soluços aflitos.
Vem cá pediu ele, ajeitando-a e também se acomodando melhor. Fique assim para não se
sufocar aconselhou ao abraçá-la não se importando com o choro. Sabe, quando eu era
pequeno,minha mãe me ensinou a rezar imaginando uma grande luz clareando todo o ambiente em que eu
estava. Eu tinha medo do escuro, apesarde ter meu próprio quarto e ser o filho mais velho, muitas vezes
tinha
301
que ir dormir com a minha irmã, a Vilma, por causa desse medo. Para eu começar a ir dormir no meu
quarto, minha mãe me pedia para fechar bem os olhos e procurar imaginar essa luz enquanto rezava. Eu
não sabia direito no que pensar, por isso sempre imaginava o sol. Sabe que funcionou? - disse ele
brandamente, esboçando um leve sorriso ao se lembrar. Raquel parou de chorar e prestava atenção no que
ele contava. Então, Alexandre prosseguiu: Deixei de ter medo e aprendi a buscar Deus e me socorrer
Nele cada vez que eu tinha algum medo, alguma dificuldade na vida. Foi tão importante minha mãe ter
despertado a minha fé, ter me ensinado a rezar. Passei por momentos difíceis e sempre busquei a escora
de Deus. Por isso, agora continuou ele com voz meiga , vamos imaginar que Jesus nesse momento
nos oferece um raiozinho da Sua Luz. Alexandre mantinha o semblante sereno, a voz pausada e mansa.
Raquel ficou atenta e se deixava envolver pelas palavras suaves do amigo. E ele continuou: Essa Luz de
Jesus está nos envolvendo como se fosse um grande abraço. Podemos até senti-la. Essa Luz clareia a
todo esse quarto e o deixa repleto de harmonia e paz. Essa Luz invade os nossos pensamentos, nos deixa
tranquilos, bem tranquilos. Nós nos sentimos seguros e amparados porque temos a Luz de Jesus nos
protegendo. Agora, Raquel, vamos fazer a prece que o próprio Jesus nos ensinou e ternamente quase
sussurrou:
"Pai Nosso, que estás nos céus. Santificado seja o Teu nome; venha a nós o Teu reino, seja feita a Tua
vontade, assim na Terra como no céu. O pão nosso de cada dia nos dá hoje; perdoa-nos as nossas
dívidas, assim como nós também temos perdoado aos nossos devedores; e não nos deixes entrar em
tentação; mas livra-nos do mal. Porque Teu é o reino o poder e a glória, para sempre. Obrigado Senhor."
Raquel, sem dizer uma única palavra, sentia-se anestesiada. Um êxtase a dominava em ternas bênçãos.
Aos poucos, não conseguindo se dominar, adormeceu.
302
Capítulo 14
Assumindo os sentimentos
Com a claridade que penetrava suavemente no quarto, ele despertou tranquilo, mas surpreendeu-se por ter
dormido ali. De bruços, Raquel estava em sono profundo, deitara sobre o braço de Alexandre, que o sentia
até dormente, pois ela fizera seu ombro de travesseiro e ainda o abraçava pela cintura. Alexandre, sorrindo,
admirou-a por alguns segundos, mas logo ficou aflito; ela poderia acordar e, do jeito que se melindrava com
tudo ultimamente, pensaria que ele fizera aquilo de propósito. À custa de muito jeito, o rapaz se livrou do
envolvimento com Raquel sem acordá-la. Levantou-se vagarosamente, mas quando ia saindo do quarto, o
rádio-relógio ligou e ela despertou. Alexandre pensou rápido e, ao invés de sair, virou-se como se estivesse
entrando na suíte. Antes de cumprimentá-la, pensou:
"Que sorte! Mais alguns minutos..."
Raquel o olhou e ele disse:
Bom dia! Você está bem? Vim ver como passou o resto da noite.
Bom dia. Nossa...!
O quê?
Parece que estou anestesiada. Não me lembro de já ter experimentado um sono tão profundo
assim afirmou a amiga, ao se sentarna cama.
Dormiu mal?
Não! Ao contrário afirmou sorrindo docemente.
Que bom! Antes de sair ele ainda falou: Vou arrumar ocafé. Depois vou levá-la para o
serviço, só que voltarei para casa. Vou me dar ao luxo da convalescença.
Não precisa me levar respondeu Raquel, mas Alexandre não lhe deu atenção.
Depois de teimar um com o outro, Alexandre, vitorioso, levou Raquel até o trabalho e retornou para seu
apartamento, onde a senhora que prestava os serviços de limpeza já havia chegado.
Que surpresa, seu Alexandre! Não esperava o senhor aqui.
Não me chame de senhor, Lourdes. Mas hoje estou em casa porque não me senti bem. Precisei
ir ao médico, que deu três dias para me recuperar.
Sem saber direito como se referir a Raquel, pois fora da noite para o dia que percebeu as coisas da moça
no apartamento, sem que alguém a informasse, a senhora falou:
Sabe, seu Alexandre, estou meio sem graça, mas...
O que foi, Lourdes? perguntou ele atencioso.
Sua mulher... Sabe, não quero falar nada contra ela. Mas, seuAlexandre, estou preocupada.
Alexandre sorriu ao ouvir Lourdes se referir a Raquel como sendo sua mulher, apreciando o tratamento,
mas não disse nada, perguntando com prazer:
O que tem "minha mulher"?
Ela foi muito educada comigo. Não posso reclamar. Mas é que,sabe aquele dia que eu cheguei e
vocês não tinham ido trabalhar? Porque no dia da faxina eu sempre chego cedo, né?
Sei, sim. O que tem? tornou interessado.
Então, a dona Raquel me chamou e, com aquele jeitinho delicado dela, pediu para eu não lavar
mais as suas roupas pessoais, só as do senhor e lençóis da casa. Fiquei tão preocupada que nem dormi
direito.Será que estraguei alguma coisa, seu Alexandre? Olha, se eu...
Não! Não foi nada disso. É que a Raquel foi acostumada a cuidar de suas coisas. A mãe a
ensinou assim e ela gosta de fazer a seu modo.
Isso eu percebi assim que ela veio pra cá. Nunca mais lavei louça e a casa sempre está
arrumadinha.
O bagunceiro então sou eu mesmo, não é, Lourdes? perguntou rindo.
Não! Eu não disse isso, seu Alexandre. Mas é que percebi que ela é uma moça ordeira. Isso é
difícil hoje em dia. Sabe, eu também traba-
304
lho no apartamento de duas irmãs que moram aqui perto e os pais delas vivem no interior. Puxa! Elas não
são nada caprichosas. A dona Raquel, ao contrário, é muito prendada.
E sim, eu sei afirmou Alexandre, que agora folheava o jornal que havia comprado.
Ela é muito educada também. Mesmo conversando poucas vezes com ela, vi que é uma moça
muito comportada. O senhor teve sorte.
Alexandre riu e começou a ficar desconfiado. Ele percebeu que Lourdes estava curiosa e puxando
conversa para saber o motivo de se ter uma cama de solteiro preparada no outro quarto. Intimamente, ele
achava graça da senhora, que não sabia como lhe perguntar. Mas não ofereceu oportunidade, não saberia
o que responder e foi para outro cômodo.
Mais tarde, quando se entretinha com o computador, Rosana chegou.
Oi Lourdes! Tudo bem?
Tudo, "fia". E você?
Estou ótima. Cadê o Alex?
Lá dentro! informou a mulher, apontando para o quarto.
Valeu! disse bem animada saindo à procura de seu irmão. Ao encontrá-lo, após se beijarem,
ela o abraçou perguntando: E aí,Alex? Melhorou?
Meu organismo está um pouco sensível e ainda tenho que correrde vez em quando riu.
Mas sua aparência está melhor. Até que você se recuperou rápido.
Não me lembro de ter passado tão mal assim, Rô! Credo!
Rosana sentou-se em uma cadeira e o irmão se voltou para dar atenção. Alexandre, querendo brincar com
sua irmã, que era espirituosa e muito curiosa, fez um semblante malicioso e desfechou rápido:
Eu dormi com a Raquel esta noite.
Rosana fez uma feição descrente e silenciou. Ele a encarou e não conseguiu deter o riso por longo tempo,
gargalhando. Sem suportar ficar calada, a irmã perguntou:
Você bebeu de novo e sonhou? É isso?!
Não. É verdade, eu juro. Eu dormi com a Raquel, sim.
Alexandre, é verdade?! E a Raquel?
305
Ela não sabe que isso aconteceu revelou o irmão dando risada.
Como assim? Você está brincando comigo?
Alexandre deu uma gargalhada gostosa e depois contou o que aconteceu.
E ela não sabe? admirou-se a irmã se divertindo.
Não. Foi por um triz que o rádio-relógio não me colocou numafria. E ainda sorrindo, concluiu:
Raquel, assim que acordou, disse que dormiu tão bem que nem se lembra de uma noite tão boa de
sono assim. Mas ela não sabe que isso aconteceu porque dormiu sobre meu ombro e me abraçando
gabou-se brincando muito alegre.
Deixe de ser exibido! Mas viu como a prece sincera funciona?Alexandre, com semblante feliz,
porém mais sério, ficou parado e
olhando para sua irmã sem saber o que dizer.
Alex, temos que dar um jeito de dizer para a Raquel o quanto éimportante ela se desprender de
pensamentos, de sentimentos perversos, tristes, melancólicos. Encarando-o, Rosana afirmou:
Vocêdeve amá-la mesmo. Eu sei o quanto detesta melancolia, tristeza e depressão.
Nunca tolerei ninguém assim. Tenho que confessar que, às vezes,a Raquel me tira do sério.
É
difícil, mas nem sei como ainda me controlo. Não sei até quando. Preciso de muita força.
Rosana o interrompeu.
Olha, aqui está O Livro dos Espíritos de que falei e ainda trouxe esse: O Evangelho Segundo o
Espiritismo disse entregando-os nasmãos do irmão. Você é um cara racional, lógico e inteligente.
Não terá dificuldade para entendê-los. Leia primeiro as perguntas de 100 a113, que falei, em O Livro dos
Espíritos, para você entender melhor a nossa conversa. Este é um livro que você pode abrir em qualquer
páginapara ler. Se bem que será bom lê-lo desde o início.
Enquanto o irmão olhava os livros que tinha nas mãos, Rosana aproveitou:
A propósito, espera aí que eu vou ligar para a mãe. Saí da faculdade e vim direto pra cá e não a
avisei. Não quero que ela fique preocupada.
306
Rosana foi até a sala e ao tentar telefonar não conseguiu, pois a ligação anunciava que sua mãe usava o
telefone. Indo até a cozinha e procurando algo para beber, observou que Raquel havia deixado a
alimentação adequada para Alexandre, que se recuperava ainda e não podia comer qualquer coisa.
Rosana ria sozinha quando Lourdes a surpreendeu revirando a geladeira.
Viu como a dona Raquel é preocupada? Deixou até a comidaarrumadinha pra ele.
É mesmo.
Sabe prosseguiu a empregada , não é que estou reparando,mas antes quase não se via
boa coisa para comer aqui. O seu Alexandreparece que comia fora ou passava com qualquer coisa.
A Raquel cozinha, e muito bem afirmou a moça.
E, quando ia saindo levando um refrigerante, a senhora falou:
Rosana, não é da minha conta, mas por que a cama no outro quarto?
A irmã de Alexandre se surpreendeu, mas não se intimidou. Para não alongar explicações, pensando
rápido, falou:
Meu irmão ronca muito alto, você nem imagina. Para que a Raquel não fique sem dormir, pois ela
tem o sono leve, ele dorme no outroquarto.
Dizendo isso, Rosana se retirou, segurando o riso por sua molecagem. Ao tentar telefonar novamente,
conseguiu avisar sua mãe que estava no apartamento de Alexandre, para que ela não se preocupasse.
Quando ia em direção do quarto, o telefone tocou.
Atende, Rô! gritou Alexandre, de onde estava, que não queria se dar
aquele trabalho, pois
naquele quarto não havia extensão do aparelho.
Alo!
Rosana? perguntou Raquel.
Oi, Raquel! alardeou Rosana.
Rô... disse a moça, interrompida por um soluço.
O que foi, Raquel?! A amiga emudeceu e Rosana percebeu que ela abafava o choro.
Raquel, o que aconteceu? insistiu.
307
Alexandre aguçou a audição e percebendo tratar-se de Raquel foi atéa sala procurando saber o que era.
É a Raquel? perguntou para ter certeza.
Rosana sinalizou que sim e perguntou novamente, devido o silêncio que se fez do outro
lado:
Raquel, não chora. Fale o que aconteceu.
Dá aqui pediu o irmão sem muito rodeio, pois estava preocupado. Raquel, sou eu. O que
aconteceu?
Eu... eu fui demitida avisou gaguejando pelos soluços.
Calma! Tudo bem! disse ao ouvi-la chorar. Para ter maiores informações e saber como deveria
agir, perguntou: Você ainda estáno serviço?
Estou.
Fique aí. Eu vou pegá-la. Ele sentia-se gelar, imaginando comoestaria.
Não...
Raquel, não seja teimosa disse ele firme.
Não vou ficar aqui para todo mundo ficar me olhando.
Então faça o seguinte. Vá para o estacionamento e me espera láonde eu sempre deixo o carro.
Ela não disse nada e Alexandre insistiu: Raquel, você me ouviu?
Ouvi... murmurou.
Então vá para o estacionamento. Daqui a uns vinte minutos eu estarei aí.
Ela desligou. Os irmãos se entreolharam e Rosana perguntou:
Ela foi demitida?
Foi respondeu Alexandre chateado. Raquel deve estar péssima. Vou buscá-la. Você vem
comigo?
Claro!
No caminho, procurando ver algo bom em tudo o que acontecia de maneira desordenada, Rosana lembrou:
Sabe, Alex, foi bom isso ter acontecido. De repente esse desemprego foi para ajudar a Raquel.
308
Como assim?
Ela não queria alugar uma casa e se mudar?
Queria.
Fazendo isso, a Raquel sairia da sua guarda, da sua proteção, sabe lá Deus o que poderia
acontecer com ela. Agora, desempregada, não terá como sair de lá. Assim teremos uma oportunidade
maior, um tempo maior para erguê-la, para despertá-la e tirá-la desse processo obsessivo, se houver. Se
for um envolvimento espiritual que a faz agir assim, a instrução, a evangelização tornarão Raquel menos
acessível às impressões do espírito que a influencia. Foi bom isso ter acontecido.
Ora, Rô! Não podemos ficar satisfeitos com uma situação dessas.
Não estou satisfeita, estou vendo o lado lógico das coisas. Se aRaquel se mudar e sair da sua
casa, você acha que terá alguma chance deajudá-la? Alexandre ficou pensativo e nada respondeu. Mas
Rosanacontinuou: Alex, essa é uma oportunidade abençoada. Enxergue o bem no suposto mal que está
acontecendo.
Ela deve estar triste. Sentindo-se humilhada...
Sim, é claro que está. E sabe aonde ela vai chorar a perda doemprego? rindo, Rosana
concluiu: Em seu ombro, seu bobo!Deixe de ser tonto!
O irmão não disse que estava preocupado. Chegando ao estacionamento ele não viu Raquel. Após algum
tempo de espera, Alexandre pediu:
Fique aqui. Vou subir e se ela aparecer diga que já venho.
Ele foi até o departamento onde Raquel trabalhava e após cumprimentar uma colega, perguntou:
E a Raquel? Você a viu?
Faz mais ou menos uns vinte minutos que ela saiu. Aliás, foi apóstelefonar. Foi para você que ela
ligou?
Foi, sim.
Então, em seguida ela saiu daqui.
Você sabe me dizer se ela pode estar no "recursos humanos"?
Creio que já passou por lá e já assinou toda a papelada. Fiquei tão chateada...
309
Ele, que estava com aspecto preocupado e um tanto abatido, perguntou:
Você falou com ela, Carla?
Tentei. Mas não tinha muito que dizer. Você sabe, num momento desses... A Raquel é calada,
ela não disse nada. Abaixou a cabeça e sódepois percebi que estava chorando. Quando se virou e foi
saindo, acreditei que nem deveria ir atrás.
Após se despedir da colega, Alexandre passou por outros departamentos procurando por Raquel. A certa
distância percebeu que Rita o acompanhava com os olhos. Ao esperar pelo elevador, encontrou com
Vagner que somente o desafiou com o olhar. Alexandre estava inquieto e nervoso. Procurou Raquel em
todos os lugares mais prováveis e nada.
Claro! Na portaria! Se ela saiu da empresa certamente passou porlá! lembrou falando sozinho.
Ela foi embora, perguntei até na portaria avisou à Rosana.
Será que ela não entendeu errado quando falou sobre o local quedeveria esperá-lo?
Não. Eu fui bem claro. Disse que ficasse aqui. Pegando ocelular Alexandre ligou para o
apartamento. Raquel também não estavalá nem havia telefonado. Se ela telefonar, Lourdes, diga que
me ligue o quanto antes, tá? Após desligar, olhou para sua irmã e perguntou: Onde posso procurá-la?
Rosana nada respondeu. Alexandre começou a pensar que Raquel poderia tentar algo contra si mesma,
havia dito que queria morrer, chegando a pedir a Deus por isso. Ela estava desiludida com a vida, sentia-se
perdida, triste e só. Seu caminho, até hoje, sempre foi solitário, ela sobreviveu utilizando as garras do
desespero e trazendo em seu coração as mais profundas marcas de sofrimento que alguém podia
experimentar. Sem esperanças, Raquel não tinha onde buscar a felicidade.
Que felicidade?
Ela jamais conhecera o significado real dessa palavra. Jamais a experimentara! Não poderia confiar nele,
pois não acreditava que pudesse existir um ombro amigo. Pelo que Raquel lhe contou, nunca tivera um
310
abraço de mãe ou o carinho de um irmão. Raquel não conhecia os preciosos instantes onde o medo nos
faz esconder no seio da família, no lar. Sua infância sempre foi confiscada de liberdade e emoção, pois
temia o carinho repugnante que recebera e odiava do tio. Na adolescência, viu seus sonhos brutalizados
pelas práticas agressivas e hediondas de um homem sem caráter, sem decência e sem moral. Quando
gritou por socorro, ninguém a ouviu ou acreditou. Quando procurou na mãe o miraculoso abraço que
conforta e orienta, que talvez agasalhasse seu coração despedaçado, encontrou pesarosa revelação cruel
e o abandono definitivo que dilacerou, completamente, todas as esperanças, transformando tudo em
pesadelo.
Estranhos não conseguiram reavivar-lhe o ânimo. O irmão, que parecia tê-la acolhido melhor, duvidara de
seu caráter, acreditando nas maledicências que macularam sua moral. O sonho de ter sua filha junto de si
haveria de vencer o próprio medo e as razões mais dolorosas da sua alma. Decepcionada pelas leis que
poderiam impor e exigir, Raquel se desiludira antes de pleitear, sequer, a primeira vez, para ter a doce filhi-
nha consigo.
Quanta dor! Quanto esforço para se vencer e se entregar a um simples abraço, a um beijo que nem
correspondera. Quantos traumas! Quanta tristeza teria de enfrentar para amar e ser amada.
Ignorante dos motivos reais da existência da vida, Raquel parecia nunca ter se socorrido em Deus. Como
poderia confiar Nele depois de tudo? Não tinha quem a orientasse por isso. Ela nunca tivera o apoio de
ninguém, perguntando sempre: Para que viver?
Chorando intimamente ao pensar tudo isso, Alexandre, em silêncio, rogou a Deus que protegesse Raquel e
lhe desse forças para encontrar um meio de esclarecê-la e ampará-la.
Rosana, agora muito preocupada, sentada no carro ao lado dele, ficava calada e em prece, respeitando o
silêncio do irmão. Até que ele disse:
Vamos até a casa do Marcos.
Decorrido algum tempo, chegaram ao antigo endereço e uma vizinha informou que Marcos e a família
haviam se mudado.
311
Desgraçada! disse Alexandre irritado ao retornar para o carro. Alice é uma ordinária! Nem
pra falar que havia mudado. Afinal,Raquel e Marcos são irmãos.
Não fique assim, Alex! advertiu a irmã. É hora de vocêcomeçar aprender a se controlar.
Essa raiva é que lhe faz mal. Controle-se.
O irmão passava as mãos pelos cabelos exibindo-se inquieto, desesperado.
Não há nenhum outro lugar onde ela possa estar? Na casa dealguma colega? perguntou
Rosana preocupada.
Não. Eu tenho certeza.
Voltaram ao apartamento e nem sinal de Raquel. Sem demora ele avisou:
Vou levá-la pra casa.
Não mesmo! Vou ficar com você.
Para a mãe ficar desconfiada e vir me encher perguntando o queestá acontecendo?! Não!
afirmou ele com voz grave. Você vai pracasa. Deixe que eu cuido disso. Depois eu telefono e dou
notícias. Nemfique me ligando pra a mãe não desconfiar.
Está bem. Mas, por favor, me avisa! pediu contrariada.
Após deixar a irmã em casa, ele voltou para o serviço a fim de encontrar Raquel no local onde combinaram.
Para sua grande surpresa, Alexandre pôde observar, a certa distância, Alice e Valmor abraçados trocando
beijinhos e carícias.
O que é isso?!!! assustou-se ele que chegou a falar sozinho.
Por estar mais preocupado com a amiga, procurou saber dela, tirando informações novamente na portaria.
Diante da negativa, retornou ao estacionamento e ficou lá até escurecer. Sem esperanças voltou para seu
apartamento. Ao chegar, viu que a empregada já havia ido embora, e nem sinal de Raquel.
Por volta das nove horas da noite a campainha tocou. Era ela. Alexandre precisou se conter, não sabia se
brigava ou se a abraçava. Decidiu primeiro saber o que se passava.
312
Raquel entrou abatida e desalentada. Parada, após dar os primeiros passos, ela esperava alguma reação
de Alexandre, mas isso não aconteceu. Ele fechou a porta, olhou-a de cima a baixo e ficou à sua frente
aguardando algum comentário. Ela abaixou o olhar e não disse uma única palavra.
Não resistindo, Alexandre rendeu-se para envolvê-la num abraço. Raquel o abraçou forte como nunca e o
amigo a levou para que se acomodasse no sofá. O rapaz não perguntou absolutamente nada e ela, mesmo
com as lágrimas correndo pelo rosto, pediu:
Por favor, podemos conversar depois? Ainda estou atordoada epreciso de um banho.
Claro. Vou preparar algo para você comer.
Raquel, envergonhada, se retirou para o quarto. Após se recompor fisicamente ela se sentia melhor e foi
para a sala, percebendo que Alexandre estava no banho. O telefone tocou e, mesmo sem vontade,
atendeu:
Raquel! Que bom falar com você! anunciou Rosana, ao ouvir avoz da amiga. Você está
bem?
Mais ou menos. Sinto-me péssima.
E o Alex? perguntou Rosana.
Está no banho.
Vocês conversaram?
Não.
Rosana estava pouco à vontade para fazer perguntas, pois sua mãe estava em outro
cômodo e poderia
ouvir a a conversa.
Isso é uma fase, Raquel. Vai passar, acredite. Tudo muda.
Vamos ver, Rosana.
Sei como se sente, mas tenha ânimo. Converse com o Alex. Ele ficou muito preocupado com
você.
Vou conversar. Obrigada pelo apoio.
Conte comigo, Raquel!
Obrigada. Após uma pequena pausa, Raquel perguntou: Quer que eu diga para o Alexandre
ligar para você?
313
Não. Eu só estava preocupada com você. Sabendo que está bem,fico tranquila. Amanhã eu falo
com ele.
Após Rosana desligar, dona Virgínia ficou intrigada com o pouco que ouvira daquela conversa. Sem
demora procurou pela filha e perguntou:
O Alex está bem?
Está.
É, não deu para eu ir vê-lo e eu liguei para lá, a Lourdes atendeue disse que vocês haviam saído.
Saímos mesmo.
Almoçaram fora com ele daquele jeito?
Não. Na verdade nem almoçamos. Rosana não mentia para suamãe e vendo que não
adiantaria esconder-lhe a verdade, pois esta viria àtona a qualquer momento, resolveu contar: Sabe
mãe, assim que falei com você que estava na casa do Alex, o telefone tocou, eu atendi e era aRaquel. A
mãe ouvia demonstrando paciência, apesar de ansiosa parasaber o que acontecia e Rosana prosseguiu:
É... bem, ela estava chorando... Sem trégua, anunciou: A Raquel foi demitida.
Demitida?! admirou-se dona Virgínia.
Sim, foi. Ela estava péssima. O Alex disse que iria buscá-la. Eles marcaram um lugar, mas
quando chegamos lá, nos desencontramos epor fim ele me trouxe. Acho que a Raquel chegou bem depois
ao apartamento.
E o Alex? preocupou-se a mãe.
A princípio, creio que ficou aflito pela dificuldade da Raquel,pela decepção que ela enfrentava.
Mas, depois, sabe como é... Depois que conversamos, acho mesmo é que o Alex ficou contente.
Por quê?!
Ora, mãe! Não adianta querer "tapar o sol com a peneira", como o papai diz. Está na cara que o
Alex gosta da Raquel. Ele está apaixonado mesmo! Só você não quer ver isso. Aí é o seguinte: sem
emprego serádifícil ela arrumar um lugar para ficar e, consequentemente, até arrumar outro serviço, terá
que morar com ele.
Isso é um absurdo. Filha, estou preocupada com essa história.
314
Aproximando-se de sua mãe, Rosana a abraçou com carinho, dizendo:
Mãe, a Raquel é uma boa moça. Conversei muito com ela e sei oquanto de dificuldade já passou.
Afastando-se, Rosana a olhou nos olhos e completou: Mãe, por favor, procure compreender a
situação e conhecer essa moça, procure ver Raquel como a uma filha. Pense, se acaso não me tivesse
gostaria de ter uma companheira, uma amiga aqui dentro de casa e a Raquel pode ocupar esse lugar, ela
tem a índole que você gosta. É bem capaz de gostar mais dela do que de mim brincou. Mas, por favor,
procure conhecê-la e terá certeza do que estou falando. O Alex gosta muito dela, mãe, e há muita coisa
que você e o papai não sabem e eu sei que, quando souberem, ficarão comovidos, passarão a respeitar e a
entender o que o Alex está fazendo.
O que não sabemos, Rosana?
Não posso trair a confiança do meu irmão. Na hora certa, o Alexvai contar, mãe. Acredite nele e
não destrua a realização dos seus sonhos, ele precisa dela. Confie em seu filho e não faça julgamentos
precipitados.
Olhando para Rosana, a mãe perguntou:
Estou achando você pálida. Está tudo bem?
É só um pouco de dor de cabeça. Quando você me der um beijinho vai passar brincou a filha.
Sorridente, a mãe se aproximou, a abraçou carinhosamente e com ternura deu-lhe um demorado beijo na
testa, como sempre fazia com os filhos quando se queixavam de alguma dor.
O senhor Claudionor, que acabava de chegar ali, abraçou as duas embalando-as vagarosamente com
generosidade e, antes de se afastar, beijou cada uma.
Tudo bem? perguntou esboçando felicidade pela amorosa cena.
Quase tudo, meu velho. A Rô está com dor de cabeça e...
Precisa ir ao médico, filha. Isso não pode ser normal alertou o pai.
Estou preocupada também com o Júnior. A Vilma ligou hojedizendo que ele teve febre alta e está
com a garganta inflamada informou dona Virgínia.
315
Isso é coisa de criança.
Eu sei prosseguiu a esposa , mas não consigo ficar tranquila.
Papai, isso é coisa de avó coruja. Eles riram e depois Rosanaavisou: Vou
tomar um
remédio e me deitar.
Dizendo isso, a filha saiu e dona Virgínia continuou, agora bem séria:
Claudionor, fiquei sabendo, pela Rosana, que a Raquel perdeu oemprego. O homem ficou
pensativo e a esposa prosseguiu: Vocênão acha que é o momento de termos uma boa conversa com
nosso filho?
O que diríamos?
Você não acha que essa moça o está usando?
Não quero julgar, Virgínia. Mas, por outro lado...
Rosana me disse que o Alex gosta dela.
Isso é óbvio!
Mas, e ela? Será que o respeita? Será que não o está enganando?Que moça é essa que não
tem ninguém da família que a apoia? Nenhuma amiga?
Façamos o seguinte: na sexta-feira você liga para o Alex e diga queeu quero conversar com ele.
Peça para que venha aqui no sábado ou nodomingo.
E se ele trouxer a Raquel?
Daremos um jeito. Vou tentar pegá-lo a sós para conversar. Isso éfácil.
Indo em direção da esposa, o marido a envolveu, beijou-lhe e a apertou contra si, procurando deixá-la
segura, dizendo-lhe, sem palavras, que ele a estaria apoiando.
Naquele momento, no apartamento de Alexandre, Raquel estava muito deprimida ao arrumar a cozinha
depois do jantar. Eles não conversaram e ela mal havia tocado na comida.
316
Raquel chamou Alexandre , deixe isso e venha aqui, porfavor. Precisamos conversar. Ela
obedeceu e foi para a sala, onde ele aesperava. Sente-se, por favor.
Ocupando o lugar indicado gentilmente, ela aceitou, mas não o encarava, abaixando o olhar. Controlando-
se para não mimá-la, Alexandre procurou ser generoso, porém firme e direto, perguntando o que mais
interessava:
Por que não me esperou no estacionamento conforme combinamos?
Não sei respondeu com voz fraca sem olhá-lo.
Fiquei de um lado para o outro procurando você feito um louco.Que falta de consideração,
Raquel! Nem para me telefonar!
Permanecendo ela não o encarava. Mas, insistente, ele perguntou:
O que você tem para me dizer?
Após longa pausa, ela respondeu reprimida:
Não sei o que dizer. Eu não queria ser despedida. Desculpe-me,mas não pude fazer nada. Sei que
sou um estorvo, por isso vou dar umjeito de sair daqui.
Alexandre começou a ficar nervoso com a maneira de vê-la encarar a situação, pessimista e sem visão
lógica da realidade. Aumentando o volume da voz perguntou:
Quem falou que você vai sair daqui?!
Ninguém. Eu...
Irritado, ele a interrompeu levantando-se ao falar:
A primeira coisa que você vai fazer é parar com essa história de que me incomoda e é um estorvo!
E outra, entenda, de uma vez por todas, que você vai ficar aqui! Não forçada por
mim, mas pelas
própriascircunstâncias da vida! Caramba, Raquel! Pare de se subestimar! Procure ver que você não está
sozinha nessa situação. Estou com você. Na minhacasa estará segura, amparada. Para onde irá se sair
daqui?
Sem pensar, ela respondeu:
Para a rua, de onde vim. Lembra-se? respondeu sem pensar. Você não me encontrou em um
bom lugar. Foi da rua que vim para cá.
317
Alexandre estava incrédulo! Procurando controlar sua impulsividade, ele moderou a voz, parou à frente
dela, abaixou-se e perguntou:
Por que você faz questão de me agredir assim, Raquel? Já paroupara pensar o quanto me ofende,
me magoa, dizendo isso? Observe o que está jogando fora! Sei que teve dificuldades horríveis, no
entanto,Raquel, quem mais a está maltratando, deixando-a na penúria, é vocêmesma! Seu coração está
sendo vaidoso por não aceitar o pouco que posso oferecer. Seus sentimentos estão sendo orgulhosos por
não poderse sensibilizar com aquele que ainda se preocupa com você. Agindo desse jeito, está se
auto flagelando, Raquel.
Nesse instante, devido ao silêncio, ela ergueu o olhar lacrimoso encarando-o. Alexandre, que estava
abaixado na sua frente, acreditou ser aquele o momento decisivo. Tomando coragem, continuou
impassível:
Eu a amo, Raquel ele afirmou sem conter as lágrimas. Eu aamo como nunca amei alguém.
Não posso crer que você não sinta nadapor mim, nem mesmo consideração ou respeito.
Raquel caiu num choro copioso e ele teve que se fazer forte para não abraçá-la, mantendo-se na mesma
distância. Pouco depois, continuou:
Hoje, fiquei feito um louco, aflito, procurando-a em todo lugar que pude imaginar. Você nem para me
telefonar e dizer: "Estou dando uma volta. Quero ficar só, não se preocupe". Puxa, Raquel! Posso não ser
nada seu! Posso não significar nada para você, posso não ter importância alguma, mas acho que mereço
um pouquinho de consideração e respeito da sua parte. Você pode não sentir nada por mim, mas, pelo amor
de Deus! Eu sei que tem educação, eu sei que é atenciosa!
Raquel chorava muito. Estava confusa por não saber como se defender. Alexandre, ainda de joelhos,
olhando-a firme, decidido e sem perder a postura, prosseguiu:
Eu disse a você que vou ajudá-la, aconteça o que acontecer. Estoudisposto a isso para que se
estabilize, consiga vencer seus desafios, possa trazer sua filha para junto de si e muito mais. Acredito que é
o fato devivermos juntos, assim como estamos, que a incomoda tanto e, por saber que eu a amo, vive em
conflito. Então preste atenção, para provar
318
que quero ajudá-la mesmo e que a amo de verdade, amanhã eu estarei deixando esse apartamento.
Raquel ficou paralisada em choque e ele continuou: Estou saindo daqui e indo morar, a princípio, na
casa dos meus pais. Você receberá todas as provisões que necessitar e pode ficar aqui o tempo que for
preciso. Se sou eu que a incomodo com minha presença, com meu jeito, com meu amor, estou indo
embora para que tenha tranquilidade.
Alexandre se levantou e quando ia se virando Raquel se ergueu e agarrou-o pela camisa, desferindo um
grito:
Não! implorando aflita: Pelo amor de Deus, não me abandone! Raquel abraçou-se ao
amigo, em desespero. Com a voz entrecortada pelos soluços, confessou: Eu não posso ficar sem
você...Há algo errado comigo... mas eu também te amo!
Alexandre a abraçou, fazendo-a se sentar novamente, não acreditando no que ouvia. Acomodando-se ao
seu lado, tirando-lhe os cabelos do rosto ao fazer-lhe um afago e, generoso com voz terna, perguntou
incrédulo:
Você disse que me ama, Raquel?
Sempre o amei confirmou em meio ao choro. Escondendo o rosto em seu peito, ela continuou
com a voz abafada: Sempre te amei, Alexandre. Sempre senti algo muito forte por você, mas não sabia o
que era... Desde quando começamos a trabalhar juntos, mas eu não queria... mas foi mais forte que minha
vontade. Só que eu tenho medo...Eu... Eu não sei o que é...
Ele a apertou com força, sussurrando-lhe ao ouvido:
Calma. Está tudo bem. Eu a amo muito, Raquel. Muito!
Não saia daqui... Fique comigo, por favor implorava sem controlar as emoções.
Não. Eu não vou sair. Cuidarei de você. Eu prometi isso e querofazê-lo.
Raquel, escondendo o rosto em seu peito, abraçava-o e ainda aflita chorava. Enternecido, ele beijou-lhe os
cabelos, trazendo em seus sentimentos um misto de surpresa, alegria e tristeza por conseguir tê-la perto de
si, mas com tantos obstáculos a transpor e traumas a superar.
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Capítulo 15
Turbulência inesperada
Na manhã seguinte, Alexandre levantou bem cedo e, preocupado com Raquel, telefonou para sua irmã e
pediu:
Depois da faculdade vem pra cá e fica com ela? Não quero deixá-la sozinha, entende? Tenho
que ir trabalhar e não quero ficar telefonando à toa.
Tudo bem, eu vou aceitou Rosana. Mas, e aí? Como foi?Vocês conversaram?
Tenho muita coisa pra contar, mas agora não dá. Falaremos depois.
Tudo bem.
Tchau, Rô. Agora preciso ir.
Após desligar o telefone, Alexandre percebeu a aproximação de Raquel que parecia estar um pouco
desorientada. Acostumada a se preparar para ir ao trabalho, aquela manhã estava sendo muito diferente.
Você não está esquecendo o atestado de convalescença, está? perguntou.
Não. Já peguei avisou tranquilo arrumando sua pasta.
Acho que amanhã vou com você. Preciso passar pela entrevista e pelo exame médico que exigem
para a demissão. Mais tarde vou telefonar para confirmar.
Claro, iremos juntos, sim. Após pequena pausa, ele perguntou: Raquel, tem certeza de que
vai ficar bem aqui sozinha?
Vou, sim. Não se preocupe sorriu ao responder acanhada.
A Rosana, depois da faculdade, virá pra cá ficar com você.
Isso é bom. Preciso conversar com alguém.
Ao vê-lo pegar as chaves, ela colocou-se a sua frente e falou:
Alexandre, desculpe-me pelo que fiz ontem, por fazê-lo sofrertanto. Eu nunca imaginei que
alguém pudesse ficar assim por minhacausa.
Desculpe-me você por ter sido tão firme argumentou com leve sorriso , quando fico assim
parece que estou insensível, mas não é.
Eu precisava ouvir aquilo. Não vou dizer que meus pensamentos estão livres de perturbações ou
de ideias terríveis, porém, estou bem melhor.
Alexandre a abraçou forte e beijou-lhe a testa. Afastando-se, teve o impulso de beijá-la nos lábios, instante
em que percebeu que Raquel, por medo, parecia tremer prevendo sua intenção. Alexandre deu um sorriso,
passou-lhe a mão carinhosamente pelo seu belo rosto, apertou seu queixo beliscando-o levemente, como
quem brinca, e falou:
Agora preciso ir. À noite conversaremos.
Tchau disse Raquel, estampando um sorriso emocionado.
Alexandre foi embora satisfeito, sentindo-se feliz. A caminho do serviço não tirava o sorriso do rosto.
Lembrou, porém, que teria muito trabalho com Raquel, pois sabia que ela precisava vencer seus medos,
seus traumas. Mas isso não importava, pensava, ele seria paciente. Iria tratá-la com todo carinho e
respeito. O principal já sabia, Raquel o amava.
Sim! O amor dos dois haveria de vencer todas as barreiras, todos os medos, triunfando.
Por um instante ele riu e lembrou-se de como a vida era engraçada. Todas aquelas mulheres que
praticamente se ofereciam, ele não quisera, agora estava apaixonado e disposto a tudo para conquistar a
mais difícil que já vira.
Que ironia do destino!
Mais tarde Rosana chegou ao apartamento do irmão e foi recebida por Raquel, que lhe ofereceu um abraço
demorado e muito apertado. Ela ficou surpresa ao observar o ânimo da amiga e disse:
322
Fico feliz em vê-la! Você está bem?
Vem cá! pediu Raquel sorrindo. Sente-se aqui.Acomodadas, Raquel pegou as mãos da
amiga, que se sentara ao seu
lado e, curiosa, estava com grande expectativa, pois sentia que algo tinha acontecido. Sem demora Raquel
contou-lhe tudo.
E aí?! interessou-se Rosana em saber mais.
Foi só isso. Sabe, apesar de decepcionada com muitas coisas, conversando com ele e dizendo
que o amava... Senti-me tão... Sei lá.
Você está apaixonada afirmou Rosana rindo.
Raquel ofereceu meio sorriso tímido. Depois, mais séria e temerosa, confeçou:
Tenho medo, Rô.
Medo do quê? perguntou a amiga com voz terna.
Raquel abaixou a cabeça e recostou-se nela. Afagando-lhe, Rosana falou:
Alexandre é tão bom.
Eu sei... murmurou
Ele é carinhoso, compreensivo. Vai ajudá-la. Saberá lidar com essa situação.
Após pensar um pouco, Raquel lembrou:
Sabe aquele dia em que ele me beijou?
Sei.
Não esqueço. Não consigo contou Raquel, com o olhar perdido.
Então! Deixe que aconteça novamente! incentivou Rosana,entusiasmada.
Mais séria, encarando-a, Raquel admitiu angustiada:
Rosana, você não pode imaginar o drama que vivo. Ao me deitar,por um minuto recordo meu
primeiro beijo, porém, por uma hora, vivoo horror da violência sofrida no passado.
Comovida, Rosana perguntou:
Faz cerca de quatro anos! Não dá para esquecer? É assim mesmo?Os olhos de Raquel se
nublaram e ela, se encolhendo, exprimindo
medo, falou:
323
Sim, é. Abraçando a amiga, escondendo o rosto em seu peito,continuou: A cena é viva, Rô. É
como se tudo acontecesse novamente. Após pequena pausa, com a voz fraca e embargada, relatou:
Eu escuto aquela risada sarcástica, aquelas palavras sujas... É como se pudesse sentir aquele toque
violento... nojento... O silêncio se fez poralguns minutos, mas, enquanto Rosana afagava-lhe os cabelos,
ela argumentou mais pausadamente: Que humilhação, escárnio... É como se eu pudesse sentir a dor
física... moral. Eu gritei!... Chorei! Pedi aDeus, mas Ele não quis me ajudar. Por isso nunca mais rezei.
Aquele homem bruto e violento me amarrou, machucou... muito... Raquel agora parava de chorar e se
afastou do abraço. Exibindo angústia no olhar que sempre fora dócil completou, fitando lugar algum:
Vivoapavorada, Rosana. Relembro vivamente esses momentos, que não ocorreram uma única vez e
acreditando que tudo pode acontecer de novo.Vivo em constante medo. Adoro seu irmão, mas, quando ele
me abraça,essas lembranças voltam, é como se ele fosse fazer o mesmo... Não consigo controlar. É uma
aflição constante. Fico perturbada, tenho medo de... Quero gritar. Raquel chorou e, voltando ao abraço,
completou: Ainda fui saber que ele era meu pai.
Rosana, que não conteve as lágrimas, apertou-a contra si afagando-lhe com carinho ao dizer:
Eu imagino, Raquel. Entendo o quanto você sofre.Em meio ao choro sufocado, a amiga
perguntou:
Como eu poderei fazer o Alexandre feliz? Como vou amá-lo assim?
O Alex é um homem muito bom, compreensivo, paciente. Permita, aos poucos, que ele apague
esse passado triste, Raquel. Ele saberácomo fazer isso, o Alex é carinhoso e a respeita muito, além de te
amardemais. Troque seus pesadelos pelo sonho de ter o Alex perto de você.Sei que não vai conseguir isso
da noite para o dia. Haverá momentos em que vai se melindrar, sofrer, mas ele vai ajudá-la. Ele a ama,
Raquel.
Eu tenho tanto medo sussurrou.
Olha, por que você não procura ajuda profissional? Um psicólogovai orientá-la, ajudá-la a vencer
isso. Leve o Alex com você.
324
Não!
Por quê?
Tenho vergonha.
No amor não pode haver segredos ou vergonha.
Às vezes penso que o Alex merece coisa melhor.
Raquel, acorda! O que tem "aí fora" ele não quer. O Alex quer você!Mas numa coisa você tem
razão. Ele merece coisa melhor, sim. Merece que você melhore, que busque se ajudar para que possam ser
felizes juntos. Prometa uma coisa pra mim? pediu Rosana, perguntando.
O quê?
Tente.
Raquel a encarou sem nada dizer e ficou pensativa.
Ei, menina! continuou a amiga, animada. Se você teve todas as razões para ser triste,
aproveite todas as oportunidades para serfeliz! Sabe aquele pedido que fez a Deus e acreditou que Ele não
a ouviu? Ele está lhe respondendo agora, colocando no seu caminho alguémdigno, que a respeita, que a
ama.
Após alguns minutos, Raquel argumentou:
Alexandre não vai me tolerar. Não tenho emprego, tenho umafilha, não tenho onde ficar, tenho
meus medos...
Mas o ama, o respeita, o valoriza, não vai traí-lo e isso basta paraele! Tenho certeza de que o
Alex é bem forte para assumi-la com todas assuas dificuldades. Contudo, Raquel, preste bem atenção, meu
irmão écapaz de suportar todos os problemas que vocês tiverem, mas talvez ele não tolere depressões,
insistência em pensamentos catastróficos, climastristes, brigas, mentiras e intrigas. Mude seus
pensamentos.
É tão difícil.
Você acredita em Deus, Raquel? A amiga ficou em silêncio e Rosana insistiu: Acredita em
Deus?
Com o olhar perdido, Raquel paralisada, argumentou:
Quando mais rezei, mais precisei, fiquei só.
Rosana, como que inspirada por amigos espirituais de elevado nível, impostou a voz dizendo brandamente:
325
"As raposas têm seus covis e as aves do céu têm seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem
onde reclinar a cabeça..." "Pai, se é possível,afasta de mim este cálice, porém, não se faça a minha, mas a
Tua vontade..." Raquel, até Jesus experimentou o cálice amargo que não precisavabeber. Então, quem
somos nós, míseros pecadores, para exigir pão emel? Jesus ficou sem abrigo, mas você, Raquel, mesmo
depois de tudo,tem a quem recorrer, tem onde ficar. Agradeça a Deus por isso, poisquem a acolhe hoje não
o faz por dever ou obrigação pelos laços consanguíneos. Quem a acolhe e ampara o faz por amor.
Raquel abaixou acabeça como que envergonhada e Rosana continuou: Dê uma chance a você mesma.
Faça preces. Liberte-se desses pensamentos negativos quea acorrentam às antigas misérias
experimentadas. Sabe, Raquel, a pronúncia de palavras imorais, os chamados palavrões, os pensamentos
negativos, as fofocas, os julgamentos errôneos que fazemos precipitadamente nos prendem às tristezas, às
flagelações e a tudo o que de ruim podemos imaginar. Se você quer mudar, vencer e se elevar,
comece melhorando os seus pensamentos.
Eu tento, mas...
Você gosta de ler?
Gosto.
Já leu a Bíblia, ou o Evangelho?
Um pouco.
Gostaria de ouvir comentários sobre os ensinamentos de Jesus?
Creio que sim.
Então, amanhã à tarde eu venho aqui e iremos a uma reunião evangélica para ouvir uma
explanação dos ensinamentos de Jesus numCentro Espírita.
Desculpe-me, Rosana disse a amiga meio assustada e tímida. Jurei a mim mesma que
nunca mais vou num "lugar" desses. Já fui e...
Não! Você não foi, não! Centro Espírita é um lugar de instrução.Nesse "lugar" que você foi ouviu
alguma palestra sobre o que devemosfazer para nos melhorar? Alguém disse que você precisava mudar
seus
326
pensamentos para o bem, as suas palavras para a fé e o amor e as atitudes para a gentileza e a alegria?
Não.
Então você não foi a um Centro Espírita. Se você foi a um "lugar"que informou que você é
invejada, precisava levar isso ou aquilo se não iria perder o emprego, que deveria fazer um "trabalho
espiritual" paraconseguir alguma coisa, ou que de algum modo os espíritos iriam ajudá-la, você não foi a
um Centro Espírita, nem a uma Sociedade Espírita.Doutrina Espírita, Espiritismo, não é isso.
O que é Espiritismo? perguntou Raquel, com modos simples.
Espiritismo é Jesus. O que Jesus falou, o Espiritismo, a DoutrinaEspírita codificada por Allan
Kardec, fala e explica. O Espiritismo não admite a fé cega. Para tudo há uma explicação. O que Jesus fez e
usou,o Espiritismo faz e usa.
Raquel pensou e perguntou:
No Espiritismo não tem velas, nem flores, nem incenso queimando, nem imagens para adoração?
Rosana sorriu e respondeu com uma pergunta:
Você mesma pode e vai responder. Jesus usou velas, flores, incensos ou imagens para
adoração?
Não.
Viu como é fácil distinguir? Espiritismo é Jesus. Esse MestreAmigo orientou através de palavras.
Ele ensinou através da lógica, dafé, da razão, do amor. A Doutrina Espírita continua orientando domesmo
modo. Isso não significa de devemos repugnar as flores, a natureza, adornos bonitos que enfeitam e não
apreciar um perfume, um aroma gostoso. Vamos lembrar que tudo isso é criação de Deus. Adoro ter flores
em casa, meu quarto limpinho e perfumadinho... com minhas coisinhas prediletas no lugar... Isso me
agrada, me faz sentir bem e faz parte da minha evolução. Não posso crer que no plano espiritualbem
elevado, espíritos superiores repudiem flores, aromas celestiais...Não estamos aqui vivendo nesse
"planetinha" por acaso. Temos um objetivo, um propósito a cumprir: nossa evolução. Se não possuímos o
327
que desejamos, ou o que ambicionamos, há um motivo e uma explicação lógica para isso.
Se quisermos o que não nos pertence e conseguimos por meios não corretos, teremos que ressarcir os
danos que oferecemos aos outros, além de muito refazimento pela frente.
Mas isso você vai aprender com o tempo. No momento, o que precisa é de conforto para o seu coração
dolorido, sofrido. Depois vocêadquire, aos poucos, o conhecimento através dos livros da Codificação
Espírita, começando pelo O Livro dos Espíritos, e, lá na frente, vai aprender a não sofrer mais. Resumindo,
você fica livre, independente de superstições e cumpre sua tarefa, leva sua vida de modo mais tranquilo e
sem julgar ninguém. Aprendemos isso com a Doutrina Espírita.
Existe coisa que nos liberta assim?
Para quem tem boa vontade e desejo no bem, sim. Depois depequena pausa, Rosana
perguntou: Quer conhecer?
Estou um pouco receosa ainda e... admitiu sem jeito.
Está certo. Quando se sentir preparada, nós vamos, tá?
Tá certo.
Rosana disse aquilo para que Raquel não ficasse preocupada e temerosa com o que ela iria propor. A
amiga planejava, no dia seguinte, aparecer lá e levá-la para a Sociedade de Estudos Espíritas que
frequentava, mas não disse nada e lhe abordaria de surpresa, a fim de que Raquel não tivesse tempo de
pensar.
Na tarde do dia seguinte, Rosana foi até o apartamento de seu irmão sem avisar, mas não encontrou
ninguém. Esperou por longo tempo e nada. Raquel havia ido fazer a homologação de sua dispensa do
serviço e passara o dia fora. Cansada, olhando no relógio, acreditou que seu noivo poderia ir buscá-la. Indo
até o telefone público, Rosana ligou para Ricardo e acertaram o encontro.
328
Você teve sorte! Eu não ia sair nesse horário avisou o noivo sorrindo.
Não vem com essa, não! disse Rosana com um jeito engraçado. Eu sei que você sai às três
da tarde.
Quero levá-la ao nosso apartamento. Você tem que ver uma coisa!
Ah, não! O que saiu errado agora?...
Você vai ver afirmou com jeito insatisfeito.
Pouco depois, não muito longe dali, o casal entrou no apartamento, que estava mobiliando para o
casamento.
Feche os olhos por que você não vai acreditar pediu Ricardo.Conduzindo a noiva, ele a fez
entrar e disse: Pronto!
Está pronto! Eu não acredito que terminaram! gritou admirada.
Pensei em trazê-la para ver só no sábado, mas como tivemos tempo hoje...
Abraçando o noivo, distribuindo exagerados beijos por todo seu rosto, ela exclamou:
Amo você! Que lindo!
Lindo quem? Eu ou o apartamento? perguntou ele brincando.
Seu bobo. Claro que é o apartamento!
Eles riram e Rosana foi verificar os quartos e depois a cozinha.
Gostou? indagou Ricardo.
Menos eufórica, Rosana agradeceu mais romântica:
Obrigada, bem. Está lindo! Do jeitinho que planejamos.
Ainda precisamos ver o colchão, as cortinas e os tapetes.
Ah, não! Tapete não. Dá muito trabalho.
Você quem sabe concordou o noivo. Se também não quiser,nem precisamos de colchão.
Assim você não terá roupa de cama paralavar.
Estou tão feliz! disse abraçando-o.
Mesmo?
Lógico!
O que você acha de marcarmos uma data? perguntou o rapaz.
Para o nosso casamento?!
329
Não. Só para o meu.
Seu bobo. Claro! Só que eu gostaria de terminar este ano da faculdade. O que você acha?
Ótimo. É o tempo que precisamos para ver alguns detalhes. Vocêquem sabe concordou
Ricardo satisfeito.
Ah! Eu já escolhi meus padrinhos.
Já sei! anunciou ele. A Vilma e o marido.
Não. O Alex e a Raquel.
Será que eles aceitam?
Terão que aceitar!
E eles, como estão?
Estão indo disse Rosana, meneando a cabeça. O Alex terá um grande trabalho com a
Raquel.
Por quê? Você não disse que ela era legal?
Sim. Claro que é. Mas acontece que a Raquel tem problemas e ele terá grande dificuldade para
conquistá-la.
Conquistar?! Rô, olhe bem pra a cara do seu irmão! O Alexandreganha qualquer uma! Você não
vai vir para cima de mim dizendo queacreditou naquela história de eles não terem nada, de serem só
amigos?Nem sua mãe acreditou!
Séria e pensativa a noiva avisou:
Não julgue, Ricardo. Você não conhece "um terço dessa missa".
Qual é, Rô? O Alex é o maior safado!
Não fale assim. Ele gosta muito dela e a respeita. Eles realmente não têm nada. Estou torcendo
para que tenham.
Ora, qual é! Conta outra.
Então vou contar falou bem séria e decidida. Rosana resolveu esclarecer o noivo sobre tudo o
que aconteceu com Raquel. No final, ela perguntou: Entendeu agora por que digo que será difícil
ele conquistá-la?
Estou chocado. A Raquel...? Coitada... comoveu-se surpreso.Levantando-se, pois estavam
sentados no chão, Ricardo caminhou vagarosamente pela sala, parou exibindo uma expressão indignada, e
dissse:
330
Estou até me sentindo mal com essa história, talvez por ser alguém que eu conheça, admiro sua
sensibilidade, seu jeito. Nossa!...
Eu sei compreendeu Rosana, que ainda sentada no chão, o seguia com os olhos. Eu
também me senti assim.
Sentimos aversão quando ouvimos contar casos assim, mas quando conhecemos a vítima é um
sentimento muito pior. Dá vontade de pegar o cara e... Após ligeira pausa, perguntou: Foi ela que te
contou?
Primeiro foi o Alex que me disse tudo. Olha, sofri muito ouvindo o relato dramático dele que se
afligia a cada palavra por gostar tanto dela. Mas depois, quando a própria Raquel me contou... Ouvindo
aquela voz doce detalhar o abuso repulsivo que viveu... Tive que ser forte para não entrar em desespero e
chorar junto. Ainda ontem, quando conversávamos, ela praticamente narrou minuciosamente como
foitraumatizante... algumas coisas disse reviver com frequência, como seestivesse acontecendo. Falou da
dor física, do nojo que sentia... Nossa,Ricardo! Que horror! angustiou-se Rosana extremamente
comovida,e depois continuou: Eu adoro meu irmão e a Raquel também. Euquero ajudá-los. Você se
importa?
Não! Claro que não. Vamos ajudá-los, sim. Pode contar comigo.
Só vou lhe pedir uma coisa.
Fale.
Não brinque mais com o Alex daquele jeito. Ele me contou que outro dia, por telefone, você ficou
perturbando e... Você sabe.
Puxa, Rô, é mesmo! Que brincadeira infeliz. É coisa de homem,entende? Se eu soubesse... Mas
ele não disse nada, eu não poderia imaginar.
É lógico que não iria dizer. Agora, porém, fique mais atento.
Pode deixar prometeu sentando-se a seu lado novamente.
E não conte nada para a minha mãe!
Claro que não!
O noivo enternecido a abraçou e beijou-a com carinho, dizendo:
Você tem um coração tão bom, Rosana. Tão compreensivo, sensível...
331
Ela sorriu e o beijou novamente.
No sábado pela manhã, os primeiros raios do sol invadiam, sem convite, o apartamento de Alexandre. Ele
acordara cedo e ao se levantar percebeu que Raquel ainda dormia. Decidiu tomar um banho e fazer o
desjejum. Acreditando que não iria incomodar Raquel, Alexandre foi até o outro quarto e, tomando nas
mãos o velho amigo violão, sentou-se em uma almofada que estava no chão e começou a afiná-lo. Após o
som estar em harmonia, ensaiou as primeiras notas de uma linda canção e, impostando a voz somente
com a garganta, fechou os olhos para acompanhar aquele solado suave e doce que ecoava quase como
um lamento. Não demorou muito e Raquel despertou. Ela seguiu a música até encontrar no outro quarto
Alexandre sentado a tocar e cantar. Quase de costas para porta, ele não a viu. Sem se deixar perceber, ela
se retirou, não interferindo naquele agradável momento. Indo se cuidar, tomou alguns afazeres até que,
bem depois, Alexandre silenciou.
Nesse instante ela decidiu ir vê-lo. Encontrando-o abraçado ao violão, com a cabeça baixa e os olhos
fechados, Raquel arrebatou-o das reflexões ao dizer com sua voz suave e meiga:
Estava tão lindo! Continue, por favor.
Alexandre sorriu e estendeu-lhe a mão, convidando-a para que se sentasse a seu lado. Raquel assim o fez.
Sentindo-se orgulhoso pelo elogio, ao empunhar o instrumento, dominando-o, disse:
Esta canção é para você.
Roubando as mais belas notas e arranjos que podia, ele executou outra linda canção para Raquel. No final
ainda afirmou:
Há tempos eu não a tocava.
Que linda! Obrigada.
Sorrindo, Raquel se aproximou e beijou-lhe o rosto. Quando ela ia se sentar novamente, Alexandre a
segurou pela cintura, impedindo-a de se afastar dele. Colocando o violão no chão, procurou envolvê-la com
332
um abraço suave. Raquel, paralisada, quase resistente, exibia uma aflição parecendo ter perdido a cor,
mas resistia e deixava-se conduzir.
Alexandre, bem sério, observando suas reações, trouxe-a para junto de si, deitando-a sobre suas pernas,
que estavam cruzadas. Olhando-a por longo tempo, acariciou-lhe os cabelos, desalinhando-os, enquanto
inúmeros pensamentos corriam por sua mente. Receosa, Raquel encolhia-se em seus braços pelo temor
que sentia e parecia nem respirar, fitando-o, apreensiva. Alexandre sorriu piedoso e pensativo ao
compreender o pânico que ela vivia e, para distraí-la, comentou:
Você está gelada. Raquel esboçou um sorriso forçado e ele completou com voz generosa, quase
sussurrando: Confie em mim.Eu te amo tanto!
Os lábios de Raquel tremiam, mas, procurando vencer-se, com voz baixa, pronunciou murmurando:
Eu também te amo.
Alexandre curvou-se ainda mais roçando seu rosto naquela face macia, mas, quando encontrou seus
lábios, ele a percebeu chorar. Seu coração apertava, jamais Alexandre experimentara tanta dor, tanta
piedade por alguém. Olhando para Raquel percebera como era miúda, frágil, delicada e indefesa. Ela não
podia reagir contra ninguém, não teria forças. Com carinho, ele a abraçou contra seu peito, embalando-a e
dizendo:
Meu amor, não tenha medo. Eu vou protegê-la enquanto viver.Desfeito o abraço, ao se afastar,
Raquel quis se ajeitar e ele a ajudou.
Novamente sentada a seu lado, secando as lágrimas e constrangida, escondia o rosto ao pedir:
Desculpe-me.
Alexandre ficou de joelhos, ajeitando seus cabelos e acariciando-lhe o rosto falou generoso:
Não peça desculpas. Você não tem culpa alguma. Segurando-lhe as pequenas mãos, ele
completou com voz terna: Preste atenção,meu amor: não tenha medo ou vergonha de chorar perto de
mim, nemtenha medo de me pedir para parar. Por favor.
333
Raquel o encarou e ameaçou abraçá-lo. Num impulso ele a envolveu como amigo fiel e parceiro para todas
as horas. Procurando animá-la, convidou-a:
Vamos na casa dos meus pais comigo? Preciso ir lá.
Acho que não devo respondeu com jeitinho.
Vamos, vai?
Por favor. Além de envergonhada por estar aqui, ainda perdi oemprego e...
Vou levá-la comigo, sim afirmou, levantando e erguendo-aconsigo. E ainda vou apresentá-
la como minha namorada.
Não!
Então o que somos?
Nós... tentou dizer confusa ao raciocinar.
"Nós" o quê? Pare de enrolar e vamos logo. Aliás, você quer se arrumar ou vai assim mesmo?
Não vou.
Olhando de um jeito esquisito, brincando e com sorriso no rosto, falou:
Vou carregá-la no ombro, se for preciso, hein!
Ela sorriu e ficou sem jeito, decidindo não resistir. Antes de sair de casa, Alexandre telefonou para sua mãe
avisando:
Mãe?
Oi, filho. Tudo bem?
Tudo.
Você não vem pra cá? Estou esperando.
Mãe, tem almoço para dois? A Raquel vai comigo.Mesmo surpresa, ela respondeu:
Claro! Traga-a, sim.
Daqui a pouco estaremos aí. Um beijo.
Outro, filho. Vem com Deus.
334
Minutos depois, Alexandre estacionava o carro em frente da casa de seus pais e observava que sua mãe
conversava com alguém.
Eeeeeh...! ele reclamou, sentindo-se incomodado.
O que foi, Alex? perguntou Raquel, que já estava nervosa einquieta.
É aquela mulher ali conversando com minha mãe.
Quem é?
Fazia muito tempo que não a via.
Quem é ela, Alexandre? insistiu Raquel.Ele a olhou sério e avisou, pausadamente:
Ela é a mãe da minha ex-noiva. Raquel sentiu-se gelar e ele continuou: Olha, aconteça o
que acontecer, fique perto de mim.
Por quê?
Eu não sei. Vamos nos prevenir.
Após dizer isso, Alexandre desceu do carro. Alcançou Raquel na calçada e pegou-a pela mão.
Aproximando-se de sua mãe, ele a cumprimentou com um beijo e Raquel imitou-o, quase sem perceber.
Voltando-se para a mulher, educadamente a cumprimentou, dizendo:
Tudo bem, dona Otávia? Como vai a senhora? perguntou ele sério e trazendo a mão de
Raquel presa à sua.
Que surpresa, Alex? Há quanto tempo!
Observando que a mulher logo olhou para Raquel, que estava um tanto constrangida, Alexandre
apresentou com firmeza:
Esta é a Raquel. Minha namorada.
Raquel enrubesceu, mas com um simples e simpático sorriso, estendeu a mão delicada e cumprimentou a
senhora. Sem demora Alexandre voltou-se para sua mãe, que também ficou surpresa ao ouvi-lo, e
perguntou:
A Rô está lá dentro?
Está sim. Entre! Tem uma surpresa lá pra você!
O que será?! perguntou ele sorrindo e adivinhando sem que amãe dissesse. Mas antes,
virando-se para a mãe de Sandra, pediu: Dê-nos licença, dona Otávia.
Claro, filho. Pode ir.
335
Vamos! Venha, Raquel disse ele colocando a mão no ombro da moça.
Até se chegar na casa havia um belo e grande jardim gramado e contornado com altas árvores e flores
alegres. No estreito corredor, ladeado de delicada cerquinha de madeira branca, caprichosamente alinhada,
eles caminhavam, quando Raquel sussurrou:
Eu mato você.
Alexandre riu gostosamente, parou e a fez ficar na sua frente, perguntando baixinho e com ar de riso:
Então me fala: o que você é minha?
Raquel sentiu-se corar. Envergonhada, ficou parada sem saber o que dizer. Com um impulso, ele roubou-
lhe rapidamente um beijo, tomando sua mão, continuou a andar. Raquel, surpresa e confusa, não disse
mais nada.
Ao entrarem na grande sala muito bem decorada, Alexandre gritou:
Tem alguém em casa?!
Vilma, sua irmã casada que morava no Rio de Janeiro, veio correndo e se atirou sobre ele. O irmão a
segurou e giraram em meio ao riso gostoso que podia ser ouvido por toda a sala.
Alex! Que saudade! avisava a irmã, após ser posta no chão.Vilma o contemplou de cima a baixo
e depois voltou a abraçá-lo.
Após abrandar a grande euforia, ele apresentou orgulhoso:
Esta é a Raquel, minha namorada.
A irmã de Alexandre recebeu Raquel com carinho, abraçando-a com mesma alegria.
Oi, Raquel! Prazer em conhecê-la!
O prazer é meu respondeu com o coração apertado.
Sinta-se à vontade, por favor pediu Vilma bem-educada.
Onde está a Rosana? perguntou Alexandre.
Lá nos fundos com o papai e o Júnior.
O Valter, não veio? estranhou o irmão.
Veio sim. É que a Priscila quis sorvete e eles saíram para comprar.Não quero que o Júnior veja
porque ficou doentinho há pouco tempo com problema de garganta e não quero arriscar.
336
Rosana, eufórica, entrou e admirou-se:
Raquel!!! Que bom que você veio! disse abraçando a amigademoradamente e meneando-a com
alegria. Segurando em suas mãos,Rosana disse: Preciso te contar uma novidade. Vem comigo!
Ao conduzir Raquel para seu quarto, ouviu da irmã:
Ô! Mal-educada! Vai arrancá-la assim, é? Espere! Deixe-me conhecê-la melhor!
Vão conversando aí, tenho de falar muito com ela.Enquanto Alexandre e Vilma, que não se viam
com frequência,
atualizavam as novidades e matavam a saudade, Rosana, animada, levou a amiga para seu quarto para
contar as novidades::
Ai!... Deixe-me contar! Meu apartamento ficou pronto.
Que bom!
Vamos marcar a data do casamento.
Fico tão feliz por você! afirmou emocionada ao abraçá-la.
Você e o Alex serão meus padrinhos! anunciou Rosana.Raquel sentiu uma surpresa gostosa.
Sem ter nenhuma palavra que
expressasse sua emoção, ela se abraçou novamente a Rosana e, quase chorando, perguntou:
Tem certeza? Eu?
Não! Você sozinha, não! O Alex tem que ser o padrinho.
Ah, Raquel! Estou tão feliz! exclamou após rirem.
Posso imaginar disse a amiga sorrindo docemente.
Sabe, tenho que comprar algumas coisinhas ainda. Quero te fazer um pedido.
Diga!
Você vai comigo para ajudar a escolher?
Eu?!
Por que não?
Bem, não sei se tenho bom gosto. Não estou acostumada a escolher ou decorar.
Isso é simples. Quando eu mostrar uma coisa, você diz: gostei!Ou: não gostei! Elas riram e
fizeram brincadeiras, mas na primeiraoportunidade Rosana perguntou: E você e meu irmão, como
estão?
337
Oferecendo um leve sorriso, Raquel abaixou o olhar e revelou:
Tenho muito que me recompor, Rosana.
Olha, o Ricardo tem um primo que é psicólogo e...
Mas eu...
Espera! pediu Rosana continuando: Esse primo trabalhaem uma empresa e à noite numa
escola. Ele não tem consultório, não lida com esse tipo de caso. No entanto, ele tem um colega,
tambémpsicólogo, que é especialista em terapia de casal. Por favor, marque umaconsulta.
Raquel ficou pensativa e a amiga insistiu:
O Alex vai acompanhá-la, tenho certeza. Terá a ajuda dele e aminha também.
Tenho medo de decepcionar o Alex.
Irá decepcioná-lo se não tentar. Tente!
Hoje eu o ouvi tocando e cantando... começou contar.
O Alex?!!! surpreendeu-se Rosana.
É. Por quê?Rosana sorriu e contou:
Desde quando ele teve aquela série de problemas nunca maisalguém o ouviu cantar ou tocar. Eu
mesma já cansei de pedir, mas não fui atendida.
Então ele anda ensaiando às escondidas, porque se saiu tão bemcomo se houvesse treinado
muito sorriu Raquel ao comentar.
E aí? Conta! O que aconteceu?
Quando o Alex terminou, não sei bem dizer como aconteceu,mas... Ele me abraçou e me
segurou, ficou olhando e... Ah, Rosana... Eutive que fazer um esforço tão grande para não gritar, para não
reagir, ou...
Diante da pausa, a amiga perguntou:
O que aconteceu?
Nada. O Alex passou seu rosto no meu e acho que notou que euestava em pânico. Lágrimas
rolaram no rosto de Raquel e ela continuou: Ele me abraçou forte e pediu para que não tivesse medo.
Queconfiasse nele...
338
Oh, Raquel. Vem cá disse a confidente abraçando-a, depoiscontinuou: Não fique assim.
Nesse instante, dona Virgínia entrou no quarto. Raquel se afastou e se recompôs, enquanto Rosana,
esperta, puxou um assunto qualquer para disfarçar aquela cena. Vilma chegou logo atrás de sua mãe e
Rosana perguntou:
Onde está o Alex?
Lá no quintal. Foi ver o papai.
Naquele instante, Alexandre beijava o pai cumprimentando-o e após o seu sobrinho, que se divertia.
Passaram a observar o garoto, que correu na direção do balanço para brincar.
A mãe falou que você queria conversar comigo.
É. Quero sim respondeu o pai, um pouco sem jeito.
O que foi? Aconteceu alguma coisa?
Sem muito rodeio, o senhor Claudionor o chamou para que ficassem a certa distância do menino e indicou
ao filho que se sentasse num banco que ficava jeitosamente acomodado sob uma frondosa árvore.
Sentando-se ao lado, falou:
Filho, eu queria deixar esse assunto para mais tarde, mas já queestamos à vontade aqui... Eu e sua
mãe estamos preocupados com você e a Raquel.
Alexandre se curvou, apoiou os cotovelos nos joelhos, cruzou as mãos na frente do corpo e inclinou a
cabeça para ouvir já adivinhando o assunto.
Sei que você vai dizer: "Sou maior. Independente", mas, Alex,você não pode nos tirar o direito de
amá-lo ou de nos preocuparmoscom o que te acontece. Você é nosso filho!
É por causa da Raquel morar na minha casa, pai?
Nós estamos acreditando que essa moça está usando você.
Pai, eu...
Espere, Alexandre. Deixe-me terminar, filho. Depois você fala. Ele suspirou fundo, ficou em
silêncio, e o pai prosseguiu: Filho,essa moça apareceu do nada. Trabalhou com você, descobriu que
mora
339
sozinho, é independente e estabilizado. Reparou, por acaso, que ela não tem uma amiga para ajudá-la? Já
que perdeu o emprego, por que não volta para o interior, onde está a família? O que ela fez, de tão grave
assim, para o irmão não querê-la na casa dele? Você tem que pensar em tudo isso, Alex. Após
pequena pausa, em que o rapaz não reagiu, o pai continuou: Eu e sua mãe somos experientes.
Sabemos que estágostando dela e... Sabe, Alex, por ter se saído muito ferido da experiência com a Sandra,
talvez esteja se sentindo só e tenha se apegado a Raquel para...
Não! Não é isso, pai.
Alexandre, espere. Eu sei que a Raquel é muito boazinha, educada,mas primeiro essa moça foi
morar com você porque não tinha ninguém que a ajudasse, depois perdeu o emprego e agora você ficou
com o encargo de ajudá-la ainda mais. Todas as evidências mostram que ela estáte usando, filho. Ela está
se aproveitando dessa situação e se acomodando lá.
Não diga isso. Não é a verdade.
Não se iluda novamente, Alexandre. Ela é muito bonita, sim.Mas...
O filho estava irritado e quase ofegante. Ele nunca desrespeitara o pai, que sempre fora seu amigo. Agora,
com aquelas colocações, o pai o agredia.
Enxergue a realidade, Alexandre! Essa moça está enganando-o equando você acordar vai se
decepcionar tanto quanto da última vez. Eu e sua mãe vamos conversar com ela e...
Com os olhos brilhantes, enrubescido pelos sentimentos que se afloravam, Alexandre se levantou, o
interrompeu. Com a voz pausada, falou firme mesmo com lágrimas a correr em sua face:
Espere, pai. Eu sei que você cuidou de mim a vida inteira. Ofereceu-me educação, amparo,
orientou, deu-me a oportunidade de estudar, de ter uma boa profissão... Perdoe-me, pai, mas isso tudo não
pode lhe dá esse direito. Vocês não sabem o que está acontecendo e não vão falar com ela! Eu amo a
Raquel e estou disposto a tudo. Alexandre
340
virou as costas, após alguns passos, voltou-se e completou: O que mais me magoa, pai, é que jamais,
jamais pensei que, um dia, eu pudesse ser obrigado a falar assim com você.
Alexandre olhou para seu pai por alguns segundos, secou o rosto com as mãos e depois entrou. Enervado,
saiu procurando por Raquel. Após ouvir as vozes que vinham do quarto de Rosana, a passos rápidos, foi
até lá e disse, firme:
Vem, Raquel. Preciso ir embora.
Todas ficaram em silêncio e sem entender o que estava acontecendo. Alexandre, com tom grave na voz,
repetiu o pedido, franzindo o semblante ao estender a mão, e chamando:
Venha, Raquel. Preciso ir!
Surpresa e assustada, a jovem se levantou, olhou para as outras sem saber o que fazer. Alexandre a
tomou pela mão e, sem dizer nada, conduziu Raquel quase a puxando.
Alex! chamou Vilma, que se levantou e foi atrás do irmão.
Espere, Alex! O que aconteceu? perguntou Rosana seguindo-os.No meio da sala, Alexandre se
virou e, parecendo mais branco, exibindo mágoa em seus sentimentos, falou magoado:
Eu não gosto de surpresas. Tão menos de ser enganado. Quando me chamaram aqui deveriam
ter dito o motivo.
O que está acontecendo? perguntou Rosana apreensiva.
Pergunte para a nossa mãe!!! vociferou. Olhando para donaVirgínia, que parecia desapontada,
falou mais brando: Mãe, eu aamo muito, mas tenho o direito de ser feliz a minha maneira. Gostaria de ser
respeitado por você, mas...
Filho! Você não entendeu!
Entendi, sim. Eu falei com o pai. Você não precisa me explicarmais nada.
Num impulso, por estar contrariada devido à tensão do momento, e por ignorar os fatos, dona Virgínia
quase gritou:
Que inferno, para todos nós, essa moça ter aparecido na sua vida!Alexandre não disse nada;
virando-se, foi embora.
341
A caminho do apartamento, o silêncio imperou. Raquel não se sentia bem. Novamente aquele mal-estar
junto com pensamentos cruéis. Acreditava ser um incômodo para todos. Isso a torturava imensamente e ela
precisava fazer grande esforço para se dominar. Ao estacionar o carro na garagem do prédio, Alexandre
debruçou-se no volante por alguns minutos.
Você está bem? perguntou Raquel com voz enfraquecida.
Não sussurrou ele.
E seus remédios?
Alexandre não respondeu nada. Pálido, o rapaz desceu do carro e amparou-se em Raquel até chegar no
apartamento, onde ela o levou para a suíte. Ajudando-o a se deitar, tirou-lhe os sapatos e abriu-lhe a
camisa, pois ele parecia não respirar normalmente. Imediatamente, aflita, perguntou:
Onde estão os remédios?!
Não sei murmurou ele.
Raquel saiu à procura dos medicamentos. Após alguns minutos voltou trazendo os vidros nas mãos,
perguntou, em desespero:
Qual?! Alexandre estava tonto, fraco, sentindo-se como se fosse desmaiar e não respondia,
quando ela gritou em pânico: Qual,Alexandre?!!!
Os dois balbuciou ele.
Raquel o ajudou a se curvar para beber a água com os comprimidos. Depois, falou:
Vou chamar uma ambulância!
Não disse ele baixinho.
Então vou ligar para a Rosana.
Vem cá pediu ele estendendo-lhe as mãos.
Alex murmurou Raquel sentando-se a seu lado e segurando sua mão. Estou com medo.
Nunca o vi assim.
Por favor, não chame ninguém. Isso vai passar.
Mas...
Faça o que estou pedindo, pelo amor de Deus! Não chame ninguém... sussurrou ele
novamente. Por favor, não chame.
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O nervoso a fazia tremer. Aflita, Raquel afagava-lhe vagarosamente os cabelos e resolveu fazer sua
vontade, não chamando ninguém. Por um instante, Alexandre ficou quieto e pareceu ter perdido os
sentidos. Quando o viu naquele estado, Raquel gritou:
Deus! Ajude-o, por favor!!! Raquel entrou em pânico. Curvando-se e agitando-o, ela implorou
chorando: Pai do céu! Salve-o! Tome minha vida pela dele!
Pegando o rosto de Alexandre e segurando em desespero, apertou-o contra si enquanto chorava. Breves
minutos se passaram e ele fez leves movimentos. Com lágrimas correndo em sua face, Raquel o
amparava, chamando-o:
Alexandre, você está me ouvindo?
Vagarosamente ele abriu os olhos, fitou-a por poucos segundos, depois tornou a cerrá-los suavemente.
Sua respiração já parecia quase normal. Em soluços, banhada de lágrimas, Raquel encostou sua face na
dele e beijou-o no rosto seguidas vezes, dizendo baixinho:
Não faça isso comigo.
Aos poucos Alexandre reagia vagarosamente. Talvez ele demorasse a se exibir animado porque nunca
tivera Raquel tão perto e acariciando-o como naquele momento. Bem depois, ela perguntou ainda chorosa:
Alex, você está melhor?
Estou afirmou ele com voz fraca.
Raquel o olhou por algum tempo, depois perguntou:
O que aconteceu?
Não sei. Fiquei nervoso. Talvez seja por isso.
Vamos ao médico pediu ela.
Agora não. Na próxima semana eu tenho horário no especialista.
Passado alguns minutos o rapaz sentou-se na cama e Raquel, olhando-o e sentindo-se ainda angustiada,
não conteve o impulso e o abraçou chorando novamente.
Não faça mais isso comigo pediu ela entre o choro comovido. Pensei que fosse morrer.
Alexandre sorriu, levantou seu rosto com carinho, e disse:
343
Ainda não é a hora. Lembre-se, eu tenho :você.
Raquel o fitava, parecendo invadir sua alma com aquele olhar. Nervosa, ela aproximou seu rosto de
Alexandre e o beijou rapidamente nos lábios. Alexandre ficou parado, não sabia como deveria agir,
temendo assustá-la, caso expressasse seus sentimentos com algum gesto de afago. Procurando se
aproximar delicadamente, ele se curvou e conseguiu retribuir igualmente àquele carinho. Fugindo-lhe ao
olhar, Raquel acanhou-se.
Fica aqui perto de mim, Raquel pediu com voz generosa.
Você está melhor? perguntou.
Mesmo sentindo que ainda não estava bem, ele afirmou que sim. Nesse instante o telefone começou a
tocar. Alexandre pediu à Raquel que não atendesse e ela assim o fez.
344
Capítulo 16
Compreensão e amorfilho adotivo
A situação ficou um pouco difícil na casa dos pais de Alexandre. Para sua mãe, era impossível deter o
choro. O pai, nervoso e inquieto, sentia-se culpado pela reação do filho e, preocupado, telefonava para o
apartamento, a fim de ter alguma notícia. Vilma e Valter, seu esposo, eram colocados a par de toda a
situação pela versão de dona Virgínia, que ignorava boa parte da história e falava de suas desconfianças
sobre a moral e as intenções de Raquel.
Ricardo havia chegado. Ele e Rosana, em outro cômodo da casa, olhavam as crianças, enquanto
conversavam a respeito do assunto.
Eu acho que vou contar, Ricardo. Vou esclarecer tudo, pois somente assim eles vão entender por
que Raquel não tem onde ficar.
Não sei, não. Se o Alexandre quisesse que soubessem, ele mesmoteria contado tudo. Hoje teve
uma oportunidade para isso, lembre-se de que ele conversou com seu pai e não disse nada.
Rosana ficou pensativa, depois decidiu:
Fica aqui com eles pediu ela indicando os sobrinhos , vouaté a sala de jantar para ver como
estão.
Rô, pense bem... advertiu o noivo.
Deixe comigo.
Ao chegar onde todos estavam, Rosana se comoveu ao ver a preocupação dos pais.
Ninguém atende reclamava o pai de Alexandre, aflito.
Deixe o telefone desocupado, Claudionor pedia dona Virgínia , ele pode tentar nos telefonar.
Será que não chegaram em casa? Deve ter acontecido alguma
coisa.
Nosso filho nunca mais vai nos procurar chorava a mãe.Rosana, não suportando mais assistir
aquela aflição, resolveu:
Sente-se aqui, papai pediu ela indicando uma cadeira na grande mesa da sala de jantar, onde
todos os outros já estavam acomodados.Após isso, Rosana ocupou um lugar e disse: Preciso conversar
comvocês para que entendam a situação, não julguem mal a Raquel e compreendam o Alex.
A mãe chorava sem conter os pensamentos contrariados, argumentando:
Como não julgá-la? Essa moça está se aproveitando da ingenuidade do Alexandre!
Espere aí, mãe! contestou Vilma bem ponderada. Ingénuoo Alex não é, não! Ele é bem
grandinho. E ela me pareceu uma pessoa bem recatada, humilde...
Essa moça apareceu do nada! prosseguiu a mãe. Diz quenão tem família, que o irmão não
a quer. Boa coisa ela não é!
Posso falar? pediu Rosana. Todos silenciaram e ela começou: Eu acredito que seria bom
que o Alex contasse a vocês o que vou revelar agora. Mas, para que todo esse conflito termine logo...
Após dizer isso,Rosana narrou, sensibilizada, descrevendo exatamente tudo o que sabia a respeito de
Raquel. Todos ficaram perplexos, assombrados. No final, ela disse: Não sei qual a opinião de vocês
depois de saberem de tudo isso.Creio que podem entender agora por que ela não volta para a família,
nem fica com o irmão e quais os motivos que a fazem não ter amizade ou não confiar em mais ninguém. Eu
estou acompanhando-os de perto e conhecendo bem a Raquel, por isso sei do que estou falando. Respeito
demais oAlex para julgá-lo e dizer o que ele deve ou não fazer. Ele adora a Raquel e,por amor, está a fim
de ajudá-la a qualquer preço. Por outro lado, quando vocês a conhecerem melhor, verão, ou seja, sentirão o
quanto essa moça já sofreu, o quanto é meiga, fiel e que merece, de todos nós, respeito e auxílio.
O silêncio se fez absoluto por algum tempo.
346
Vilma, que estava com a cabeça baixa, falou:
Mamãe, pense bem. Se Raquel fosse eu ou a Rô, você gostaria que"um Alexandre" aparecesse em
nossa vida, não é?
O senhor Claudionor, que estava chocado com aquela revelação, se pronunciou:
Por que o Alex não me contou? Após alguns segundos, questionou: Por que ele precisa
passar por tudo isso?
Valter, que até então não dissera nada, acreditou:
Ele passa por isso porque amadureceu, é um homem consciente,determinado, forte e que assume
seus sentimentos, não se acovardando como muitos outros fariam. Nesse instante, ele se levantou,
aproximou-se da esposa, que estava sentada e, abraçando-a pelas costas, completou: No lugar dele, se
fosse você, eu faria o mesmo.
Dona Virgínia, por fim, comentou:
Que Deus me perdoe se eu estiver errada, mas tenho que sersincera, eu ainda pergunto: por que
tudo isso? Sabe, com tanta moça no mundo e meu filho tem que sofrer novamente? Tem que se
sacrificarnovamente? Após pequena pausa, ela admitiu: Estou morrendo de dó dessa moça. Ai, meu
Deus! O que eu fiz com ela?! Como ela deve estar por minha causa?!
Valter tomou a palavra novamente e disse:
Se o Alex a ama e está disposto a apoiá-la, a ficar com ela, ele estácorretíssimo no que está
fazendo. Lembrem-se do seguinte: essa tragédia, essa violência poderia acontecer a qualquer mulher
casada, comoacontece, e por isso vocês acham que o marido deveria descartá-la,abandoná-la e procurar
outra? Claro que não. E nesse momento que o homem tem que ser digno e se mostrar amigo, parceiro. O
fato de eles não serem casados, não é diferente. Se o Alexandre gosta dela, não deve abandoná-la por isso.
Ele terá todo o meu apoio e, acima de tudo, omaior respeito de minha parte!
Rosana aproveitou a oportunidade e argumentou:
Agora é o momento de decidirem. Ou vocês ficam do lado do Alex e,
consequentemente, apoiam a
Raquel, ou não. Quanto a mim,
347
sem dúvidas, eles terão toda minha ajuda para o que for preciso. Eu gosto muito da Raquel e adoro meu
irmão.
Eles se entreolharam e Vilma, levantando-se, anunciou:
Estou com o Alex. Virando-se para o marido, pediu: Leve-me agora lá na casa dele, por favor.
Valter concordou, mas o senhor Claudionor decidiu:
Não. Esperem. Deixe que eu e sua mãe façamos isso. Será melhor.Somos os pais e... Se formos
todos, a Raquel não vai se sentir muito bem. Estou preocupado com ela que parece bem sensível, frágil.
Se fosse minha filha...
Todos concordaram e assim foi feito.
No apartamento de Alexandre, Raquel preparava uma refeição enquanto conversava com ele, que se
sentara na cozinha. O rapaz ainda não se sentia normal, mas para que ela não se preocupasse, não dizia
nada sobre isso e falavam de outro assunto:
Nossa! A casa dos seus pais é linda!
Ele sorriu e reparou a simplicidade de Raquel que não estava acostumada àquele tipo de residência.
Lembrando-se de repente de uma curiosidade que tivera, perguntou, mudando o sentido da conversa:
Diga-me uma coisa, Raquel. A Bruna tem olhos claros? Azuis?
Sim, tem surpreendeu-se.
Como os meus?! Não é?!
Sim, como os seus. Como você sabe, se eu nunca falei?
Sonhei com ela.
Como tem certeza de que era a Bruna? perguntou Raquel.
Porque ela é a sua cara. No sonho, só os olhos mudavam. Quegracinha!
Não olhei muito para ela quando a vi. Eles a colocavam do meulado e eu não a pegava. Não me
recordo mais dela, porém me lembrodos seus olhos muito bonitos... bem azuis.
348
Alexandre decidido a mudar de assunto para não vê-la melancólica, pois sentia que Raquel se arrependera
do que fizera, mudou o rumo da conversa:
Não ligue para o que aconteceu hoje na casa dos meus pais.
Ainda me sinto tão mal. Sou culpada por aquilo! lamentou triste.
Não. Você não é culpada por nada! Eu os conheço, vão nos entender, tenho certeza! Minha
família é amorosa, não ficarão muito tempolonge de mim.
De quem você herdou esses olhos? São tão lindos! sorriu docemente.
Sabe que não sei? respondeu ele, de modo muito simples.
A Vilma se parece com sua mãe. A Rô tem um pouco de cadaum, mas você... Ainda não sei
direito.
Deixe-me contar uma coisa revelou sorrindo , sou filhoadotivo. Raquel se surpreendeu e,
antes que se recompusesse, ele contou bem descontraído: Houve uma oportunidade, eu era um
bebê
recém-nascido e meus pais me adotaram.
Como foi? indagou educada. Em seguida reconheceu: Desculpe...
Não me incomoda falar sobre esse assunto, hoje. Mas isso compessoas íntimas. Acho que não
preciso fazer alarido explicou comnaturalidade. Depois contou: Acreditam que logo após uma
mulher ter dado à luz, coisa de horas, me abandonou envolto em panos e ainda com os resíduos do parto.
Onde? perguntou ela quase em choque.
No lixo respondeu sorrindo ao encará-la.
Alexandre...! exclamou Raquel boquiaberta.
Nessa oportunidade meus pais me assumiram. Depois tiveram aVilma e a Rosana, filhas deles
mesmo. Diante da perplexidade daamiga, ele avisou: Sabe que até me esqueço disso.
Deve esquecer mesmo. Seus pais o amam, Alex! Adoram você!
Quando perguntam a origem da minha família eu esqueço que sou adotivo e acabo dizendo que
tenho antecedentes italianos, comomeus pais, mas na verdade não sei.
349
Você conhece sua mãe biológica?
Não.
Importa-se em falar sobre isso?
De modo algum. Só evito perto da minha mãe. Ela não gosta desse assunto. Para ela, sou filho
dela e acabou.
Você nunca quis conhecer sua mãe?
Sabe, Raquel revelou com espontaneidade , não vou dizer que nunca tive curiosidade de
saber como ela era, ou quem foi meu pai.Mas o amor, o carinho e a atenção que recebi de meus pais
supriram todas as minhas necessidades. Eu amo meus pais!
Raquel ficou em silêncio por alguns minutos, depois lembrou:
E eu o fiz se desentender com eles. Estou me sentindo tão mal por isso!
O que aconteceu hoje foi falta de esclarecimento da minha parte.Mas eu não poderia fazê-lo sem
antes falar com você.
Como assim?
Eu disse a meus pais que gosto muito de você. Nunca escondinada deles, por isso queria contar
tudo a seu respeito. Eles a vêem como uma intrusa interesseira, por ignorarem os fatos, não saberem os
motivos e as razões que a deixaram nessa situação. Só um bom esclarecimento iria fazê-los nos apoiar e
entender. Eu pensei em contar, mas queria sua aprovação...
Não... murmurou o pedido como um lamento amedrontado.Ele se levantou, aproximou-se dela e
a encarou dizendo com brandura:
Essa é a única maneira de eles entenderem e acreditarem no queestá acontecendo, Raquel.
Tenho certeza de que vão tratá-la como filha. Sorrindo, ainda completou: Vão adotá-la.
Não vou me sentir bem. Tenho vergonha. Pálida e preocupada, ficou ofegante e aflita pedindo:
Por favor, Alexandre, não conte ainda.
Tudo bem, meu amor concordou ao ir abraçá-la. Pedindo: Não fique assim. Não vou contar.
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Raquel, deprimida e temerosa, não retribuiu o carinho. Alexandre compreendeu sua vergonha devido à
delicada exposição de sua intimidade. Nesse instante, a campainha tocou. O rapaz a encarou avisando:
Para subir assim sem o porteiro avisar, só pode ser a Rô ou meus pais.Ele foi atender e ao abrir a porta
sua mãe o abraçou forte, sem dizer
nada. Após entrarem, o pai fechou a porta e abraçou-se a eles. A distância Raquel espiava em silêncio,
sem ser percebida. Dona Virgínia não detinha as lágrimas. Alexandre os fez se sentarem na sala e quando
o senhor Claudionor estapeava as costas do filho, pediu:
Desculpe-me, Alex, por tudo o que disse. Não tinha o direito de...
Ora, pai! interrompeu Alexandre. Pare com isso. Olhando para a mãe, que estava sentada a
seu lado, pediu: Pare com isso vocêtambém, mãe. Não precisa ficar assim.
Sorrindo em meio ao choro, a mulher começou a passar a mão no rosto do filho, acarinhando-o, depois o
abraçou com ternura.
Onde está a Raquel? perguntou o pai.
Na cozinha. Ela está preparando o almoço para nós.
Estou com fome. Nós não almoçamos e pelo cheiro a coisa é boa! exclamou ao se levantar e ir
na direção da cozinha.
A Raquel cozinha bem avisou o filho contente e vaidoso, semse inibir. Vocês almoçam
conosco, tá?
É lógico! aceitou respondendo a certa distância. E, na cozinhachamou um tanto temeroso:
Raquel?
Senhor respondeu a moça, trazendo grande expectativa e medo.
Vem cá, filha! exclamou alegre estendendo-lhe os braços eenvolvendo-a num abraço antes
que ela pudesse perceber.
Imediatamente Raquel começou a tremer assustada, não conseguindo corresponder ao apreço. O senhor
Claudionor percebeu a resistência da jovem e seu pânico aflito ao vê-la
trêmula e chorando ao encolher-se
rígida em seus braços. Raquel parecia deter a respiração. Ele se afastou um pouco, segurou-a pelos
ombros e perguntou preocupado acariciando-lhe o rosto meigo:
O que foi, Raquel?
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Alexandre e dona Virgínia entraram na cozinha e presenciaram a cena. O rapaz já tinha entendido o que
ocorrera. Sabia que todos de sua família jamais conseguiam ficar sem um toque de carinho e afeto. Com
jeito simples ele pediu:
Solte-a, pai. Não toque em Raquel. Está tudo bem.
Eu não sei o que fiz! justificou-se o pai assustado e sem jeito.Alexandre se aproximou,
conduziu-a para que se sentasse e Raquel,
envergonhada, começou a secar as lágrimas, sem encará-los.
Raquel, o que foi? perguntou dona Virgínia comovida ao aproximar-se dela e afagando-lhe os
cabelos.
Não foi nada, mãe respondeu Alexandre. É melhor não falarmos nisso que já passa. Raquel
está bem. Tentando oferecer outro rumo para a atenção de todos, Alexandre pediu: Bem, vamos
lá!Pai, pega os copos aí nesse armário atrás de você e leva para a mesa da sala. Mãe, pegue os talheres, e
Raquel sorriu , vamos lá! Sejamosbons anfitriões.
Os pais procuraram seguir o proposto a fim de também melhorar o ânimo da moça. Só bem mais tarde,
após almoçarem, o senhor Claudionor e o filho conversavam na sala, enquanto Raquel e dona Virgínia
arrumavam a cozinha.
Alex perguntava o pai , por que não me contou?
"Contou" o quê?
Sobre a Raquel.
Do que você está falando, pai? insistiu desconfiado.
A Rosana me contou tudo.
"Tudo"? perguntou Alexandre, para ter certeza.
Tudo! Tudo, sim. Inclusive sobre a filha da Raquel, que você pretende fazê-la reaver.
Alexandre sentiu-se gelar, Raquel não queria que soubessem. Perplexo, o rapaz respondeu contrariado:
A Rosana não podia...!
Ela fez o que você deveria ter feito, filho. Passados alguns segundos, o pai argumentou:
Apesar de saber das reações de Raquel,
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pois a Rô contou, eu não imaginava que fosse assim. Assustei-me lá na cozinha, eu só queria
cumprimentá-la...
Eu sei, pai. Não é fácil gostarmos de alguém e não poder tocar,abraçar, beijar, envolver com
carinho...
Deixe-me fazer uma pergunta. Talvez indiscreta. Alexandre oencarou e ele prosseguiu: É
assim todo o tempo? Ela não admite sertocada e reage desse jeito, toda vez?
Não. Raquel melhorou muito. Há uns meses atrás, assim que ela chegou aqui, se você fosse
abraçá-la, como deve ter feito agora, na certa ela gritaria em pânico e extrema aflição. Hoje, às vezes, ela
aceita um abraço. Tremendo de medo, apavorada, mas aceita. Há dias em que fica mais apreensiva, arisca
e inflexível.
O que você faz, filho? indagou perplexo, quase incrédulo.
Tenho paciência e tento conquistá-la um pouquinho a cada dia. Sem se constranger, revelou:
A Rosana está me ajudando. Elas conversam muito e a Rô me "norteia".
Pelo que eu o conheço, você deve gostar muito dela, para supor
Fixando seus olhos nos do pai, Alexandre informou convicto:
Muito! Eu a amo, pai. Como nunca amei alguém!
O que vai fazer, Alex?
Farei o que for preciso. Talvez vocês não entendam o quanto eu quero a Raquel comigo.
Depois de alguns segundos, anunciou: Quero procurar orientação profissional. Vou apoiá-la em tudo.
Acho que não conseguiria viver sem ela.
Conte comigo, filho.
Sorrindo, Alexandre o olhou e lhe deu um forte abraço. Sem demora o pai falou, tentando brincar:
Você sempre foi "grudento", vivia agarrado a todos. Não sei como se sente agora. Com tantas
mulheres que "viviam aos seus pés"...
Sorrindo e admitindo a verdade, Alexandre falou:
Aquelas não se valorizavam, não eram leais, se corrompiam... Coisa fácil não tem valor. Sempre
admirei a Raquel no trabalho, antes de conhecê-
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la. Acho que comecei me apaixonar por ela nessa época. Agora, entretanto, tendo-a comigo... e mesmo
sabendo dos graves problemas que deram origem a seus traumas, sinto-me frustrado. Queria tanto poder...
Dona Virgínia chegou às pressas na sala e pediu:
Alex, vem aqui!
O rapaz se levantou e ao chegar à cozinha viu Raquel em crise de choro. Ao sentir a mão de Alexandre em
seu ombro, ela se esquivou vagarosamente, afastando-se.
O que houve, mãe?
Estávamos conversando... Eu não sei. Não sei se disse algo que a magoou.
Raquel, com a voz embargada e abafada, virou-se para Alexandre e falou sentida:
Você me prometeu que não contaria pra ninguém.
Foi aí que o rapaz entendeu que sua irmã não revelara aquela história somente para o pai.
Saia daqui, Alex pediu a mãe com jeitinho. Deixe-me com ela. Eu posso acalmá-la.
Revoltado, ele esmurrou a porta da cozinha e foi para a sala, irritado e sem saber o que fazer.
O que foi, Alex? perguntou o pai, seguindo-o de um lado para o outro.
Para quem mais a Rosana contou?!
Ora... Pra todos nós! respondeu com simplicidade.
Diabo! Por que ela não ficou quieta?! Quem foi que mandou a Rosana dizer alguma coisa?!
Precisávamos saber, Alex! Somos seus pais!
Acontece que eu prometi à Raquel que ninguém mais saberia.Sentando-se ao lado do filho, o
senhor Claudionor também ficou
calado e sem saber o que fazer.
Dona Virgínia, a custo, acalmou Raquel. Abraçando-a, a mulher a balançava com carinho, como fazia com
os filhos em momentos difíceis, ou quando necessitavam de seu afeto, da sua atenção. Raquel serenou
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completamente. Ela nunca tivera um acalento de mãe. Amparando-a em seu ombro, dona Virgínia afagava-
lhe o rosto e, em dado momento, disse:
Você é muito bonita, Raquel. Tão delicada! Parece uma boneca!
Obrigada agradeceu em voz baixa.
Cautelosa, a mulher resolveu fazer-lhe perguntas que não a agredissem.
Você cozinha bem. Onde aprendeu?
Na fazenda. Desde pequena fui criada em meio a tarefas domésticas.
Rosana ainda precisa de algumas aulas de culinária. A Vilmacozinha bem, mas a Rô pouco se
importa em aprender. Pra ela é sólanche.
Raquel, mais recomposta, afastou-se delicadamente do abraço e comentou:
O Alexandre também gosta muito de lanche.
Ah! É verdade. Levantando-se, a mulher perguntou: Quer mais um copo com água?
Não. Obrigada. Encarando a mãe de Alexandre, Raquel, ainda com os olhos vermelhos, falou
com jeitinho: Quero que me perdoe por tudo. Eu não vou estragar a vida do seu filho. Já quis sair
daqui,mas não consigo. Agora perdi o emprego e...
Raquel, por favor, filha! interrompeu a dona Virgínia, com voz lamentosa. Esqueça tudo o
que falei. Quero conhecê-la melhor. Quero tê-la como a uma filha! Aproximando-se novamente,
afagando-lhe o rosto, pediu: Dê-me essa oportunidade?
Verdade? perguntou acanhada olhando-a firme.
Lógico, Raquel! Por que eu mentiria para você?
Elas se abraçaram e Alexandre, que foi ver como as coisas estavam, surpreendeu-se.
Tudo bem? perguntou ele admirado e satisfeito.
Vocês vão almoçar lá em casa amanhã! convidou a senhoraanimada. Alexandre consultava
Raquel com o olhar, e a mãe insistiu: Vamos, Raquel, por favor!
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O Alex é quem sabe respondeu acanhada e sorriso meigo.
Então, vamos! afirmou o rapaz contente pela decisão.
Ótimo! Amanhã conversaremos mais disse a mãe.
Virgínia, vamos logo lembrou o senhor Claudionor. A Vilmaestá lá e só vai ficar dois dias.
Vamos, sim.
Espero vocês amanhã! confirmou o pai. Abraçando e beijando o filho, ele pediu: Se cuida,
hein! Achei você muito abatido hoje. Ecuida da Raquel também!
Pode deixar respondeu Alexandre, com largo sorriso de satisfação pelo rumo que as coisas
tomavam.
Voltando-se para Raquel, o senhor decidiu, rápido:
Vou lhe dar um abraço, sim! Fazendo isso às pressas, ele aindabeijou-lhe o rosto e rápido a
largou, dizendo: Você tem que se acostumar comigo, menina.
Raquel enrubesceu e abaixou o olhar, esboçando um sorriso constrangido.
Tchau! Tchau! disse o pai de Alexandre ao sair.
Dona Virgínia se despediu mais demoradamente, oferecendo várias recomendações de mãe.
No dia seguinte, a caminho da casa de seus pais, Alexandre, que conversava com Raquel, foi interrompido
por ela.
Alex! Olha meu irmão! Marcos caminhava pela calçada de uma rua num bairro vizinho. Ansiosa
ela lembrou: Você me falou que ele havia mudado. Deve estar morando aqui perto.
Quer que eu pare? Raquel titubeou e ele decidido parou.Saindo do automóvel, chamou num
grito: Marcos!
Ele olhou assustado e reconheceu Alexandre, ficando incrédulo ao vê-lo. Caminhando na direção do carro,
Marcos avistou Raquel, que descia do veículo. Alexandre contornou o carro, parou ao lado de
Raquel,
356
que se guarnecia na porta do mesmo. Bem perto, Marcos parou e perguntou, temeroso:
Como vai, Raquel? Quanto tempo.
Lentamente ela saiu de trás da porta e foi para perto do irmão, dizendo:
Estou bem. E você? disse tímida.
Com a vida de sempre. Voltando-se para Alexandre, Marcos perguntou apreensivo: E você,
como está?
Bem disse sorrindo e estendendo-lhe a mão ao ser correspondido. Vendo que o silêncio
reinava, Alexandre decidiu perguntar: Apropósito, Marcos, você se mudou? Estive, outro dia, onde
morava e uma vizinha me disse isso.
Alice não lhe deu o endereço?
Não responderam juntos Raquel e Alexandre.Marcos ficou surpreso e tentou justificar.
Vai ver que é por você não trabalhar mais lá, Raquel.
Mas eu ainda trabalho lembrou Alexandre. Observando-o pensativo o rapaz advertiu: Cuidado,
Marcos. Os fatos são diferentes dos boatos.
Nesse instante, o irmão olhou Raquel de cima a baixo e, em tom ponderado de voz, perguntou baixinho:
Você não estava grávida, não é?
Não sussurrou a bela jovem constrangida, abaixando o olhar.
Sabe aquele carro verde-musgo que você viu levando a Raquel para casa? Era meu! Eu o troquei
por esse de cor prata esclareceuAlexandre mais corajoso.
Marcos abaixou a cabeça, envergonhou-se ao lembrar do que fizera com sua irmã, depois disse:
Olha, Alexandre, naquela época eu me vi tão envolvido pelasconversas da Alice que fiquei cego.
Só depois de algum tempo comecei a raciocinar. Não sei dizer o que me deu.
Não faz mal, Marcos disse Raquel, que, ao tentar continuar,foi interrompida por Alexandre.
357
Ah! Faz mal sim! Marcos, eu estou sabendo que foram as conversas da Alice que colaboraram
para a demissão da Raquel. Não que eu me importe com isso, mas foram também as opiniões dela que
fizeram vocêse separar de sua irmã, criando todo aquele clima ruim entre nós dois,inclusive.
Alexandre... murmurou ela vacilante.
Espere um pouco, Raquel pediu com educação. Continuando em seguida: Não quero
envenená-lo contra sua esposa, mas tomecuidado. Fique mais atento. Naquela época eu e a Raquel só
éramosgrandes amigos sorriu ao avisar , hoje namoramos. Só namoramos.
Alexandre parou e decidiu não dizer mais nada. Marcos ficou pensativo até que Raquel logo pediu:
Pode me dar seu novo endereço?
Claro!
Alexandre pegou um bloco de anotações e anotou o novo endereço e o telefone do serviço do irmão de
Raquel, passando-lhe, também, o de seu apartamento. Ao se despedirem, Marcos abraçou a irmã meio
sem jeito, com pouco afeto e nenhum carinho. Gentil e afetuoso, Alexandre ajudou Raquel a entrar no
carro, fechando a porta e, ao se despedir de Marcos, aproveitando os breves segundos que lhe restavam,
lembrou de dizer:
Não se preocupe com ela. Enquanto eu viver, Raquel estará muito bem. Você não imagina como eu
gosto de sua irmã.
Marcos apertou-lhe a mão, sentindo a garganta ressequida e os olhos ardendo pelos sentimentos que
afloraram. Ele não foi capaz de dizer nada a Alexandre que, sorrindo, se virou e foi embora. Parado na
calçada, o irmão de Raquel ficou observando o carro sumir, revolvendo os pensamentos aflitos e
desordenados.
Enquanto seguiam, Alexandre ainda falou:
Fiquei com vontade de falar tanta coisa para o Marcos.
Não! Você não pode contar que viu a Alice com o... Ele vai matá-la!
Não é sobre isso. Queria falar-lhe sobre o destino e a vida.Raquel ficou em silêncio.
358
Quando chegaram à frente da casa de seus pais, Alexandre se anunciou pelo interfone e, junto com
Raquel, aguardaram ser atendidos quando uma voz chamou:
Alex!
Raquel se voltou e Alexandre, reconhecendo, ficou parado e sem se virar.
Alex! insistiu.
Ele, lentamente, se voltou e encarou Sandra sem dizer nada, mas seu semblante sisudo exibia insatisfação
ao vê-la.
Como você está? perguntou Sandra.
Ele nada respondeu e virou-lhe as costas novamente. Raquel, que segurava em sua mão, puxou-o
levemente, como que a repreendê-lo. Ela não sabia que se tratava de Sandra que era uma moça alta,
elegante, muito bonita e bem-vestida, exibia-se um pouco abatida, mas de uma ótima aparência. Ela, quase
esboçando um sorriso, contornou-o colocando-se à sua frente e disse com simplicidade:
Alex, eu preciso muito falar com você.
Ele pareceu nem vê-la, mais uma vez não disse nada. Raquel ficou sem jeito e sem saber o que fazer. De
repente o portão se abriu e, praticamente puxando Raquel consigo, Alexandre entrou quase atropelando
sua mãe.
O que é isso? perguntou dona Virgínia antes de ver Sandra.Enquanto o filho seguiu sem olhar
para trás, a mulher, surpresa com
a presença de Sandra, a encarou dizendo:
O que você quer, filha?
Preciso falar com o Alexandre respondeu séria e voz branda.
Não. Não vai, não, filha. Creio que já chega. O Alex está bem enão precisa de mais nada. Agora,
com licença. Dizendo isso donaVirgínia fechou o portão e entrou.
Dentro da casa, cumprimentando a todos, Alexandre já se sentia animado, parecendo não se importar com
o que tinha acontecido. Alegres, eles se confraternizavam muito bem fazendo com que Raquel, com seu
jeito recatado, se acostumasse e se sentisse à vontade.
359
Vez ou outra Raquel se intrigava, olhando para Alexandre, observando-o propositadamente, sentia algo
que não sabia explicar e o achava estranho, sem saber o que era, pois o rapaz agia normalmente.
Bem no final da tarde, Alexandre estava sentado no chão brincando com seu sobrinho. Raquel nem
prestava atenção na conversa que seguia entre Vilma e dona Virgínia, das quais estava bem próxima. A
distância, Raquel percebia que Alexandre empalidecera e, ao vê-lo procurá-la com o olhar, ela se levantou
às pressas, assustando a todos quando correu para perto dele e o segurou antes que batesse com a
cabeça no chão.
Alexandre! gritou a moça em desespero, amparando-o nos braços.
Ele a olhou e cerrou os olhos vagarosamente.
O senhor Claudionor e Valter imediatamente prestaram os primeiros socorros a Alexandre, que necessitou
ser ressuscitado através de respiração e massagem cardíaca antes de ser levado para o hospital.
Horas depois, os pais de Alexandre, Rosana e Raquel estavam na sala de espera de um hospital.
Decorrido longo tempo, o médico que cuidava de Alexandre que fora acionado, trazia algumas notícias:
Agora o estado dele é estável. Alexandre está no CTI e vai permanecer lá por alguns dias.
Dias?! exclamou Raquel.
Sim. É por segurança e para avaliação.
Podemos vê-lo, doutor? pediu a mãe.
Só amanhã avisou educado.
Doutor, o senhor pode nos dar um parecer melhor? interessou-se o pai.
Desculpe-me, senhor Claudionor. No momento não tenho muito que dizer. Vocês conhecem o
problema do Alexandre. Somente após alguns exames, que realizaremos o quanto antes, poderei ser mais
preciso.
360
No momento, o que posso dizer é que ele chegou a ter uma parada cardíaca, como suspeitavam, mas
agora, de um modo geral e dentro do quadro apresentado, seu estado é estável, o Alexandre tem que ficar
em observação e monitorado por aparelhos. Amanhã, após examiná-lo novamente, poderão falar com ele.
Os pais de Alexandre voltaram para casa e Rosana levou Raquel para o apartamento, dormindo lá para lhe
fazer companhia. Raquel estava aflita, mas conseguia conter o choro. Ela e Rosana conversaram até bem
tarde e mesmo depois elas não conseguiram dormir.
Na manhã seguinte, Rosana decidiu que não ia à faculdade e, mais tarde, todos foram ao hospital ter
notícias de Alexandre.
Somente duas pessoas para visitar o paciente informou aatendente da recepção do CTI.
Que absurdo! protestou Rosana.
São normas do hospital, meu bem orientou a moça, com gentileza.
Os pais de Alexandre se entreolharam e o senhor Claudionor pediu:
Virgínia, vai você e a Raquel.
Não! exclamou Raquel imediatamente. Não podem fazer
isso!
Filha orientou ponderado , tenho certeza de que o Alex vaipreferir você e não a mim. Faça o
que estou pedindo, é para a recuperação dele. Não tem problema, amanhã eu vou vê-lo.
Assim foi feito.
Ao ver Raquel, Alexandre se emocionou. Ele estava deitado e não podia se mover muito. Mesmo com a
recomendação de não tocar no paciente, Raquel não se conteve, beijou-lhe a testa e lhe fez um carinho no
rosto. O rapaz se apresentava fraco e, com dificuldade, perguntou:
Você está no apartamento sozinha?
Não. A Rô dormiu lá comigo. Lágrimas rolaram pelo canto deseus olhos e Raquel as aparava
com carinho e generosidade.
Não queria estar aqui... disse quase sussurrando.
361
Eu sei. Mas é preciso. Há tempos eu percebo que não vem se sentindo bem e não tomou nenhuma
providência. Agora tem que se cuidar.
Os poucos minutos de visita se escoaram rapidamente. Quando Raquel precisou ir, Alexandre segurou sua
delicada mão com cuidado e pediu baixinho:
Dê-me um beijo.
Ela ficou temerosa, permanecendo parada. Mas, criando uma força que desconhecia, olhou-o nos olhos,
aproximou-se dele e carinhosamente beijou-lhe os lábios por um tempo e falou-lhe ao ouvido:
Fique bom logo. Eu te amo, Alexandre. Preciso de você.
Também te amo, Raquel afirmou ele em voz baixa. Amo muito!
Ela se foi e dona Virgínia entrou. Emocionada, a. mãe não respeitou as normas e abraçou o filho, beijando-
o também. Eles conversaram e, antes de sua mãe ir, Alexandre pediu chorando:
Mãe, cuide bem da Raquel, pra mim, por favor...
Claro, filho. Cuidarei dela como minha filha. Eu prometo.
Ao sair do CTI dona Virgínia abraçou-se a Raquel que ainda chorava. A senhora estava emocionada ao
reconhecer o quanto a moça era importante para seu filho. Rosana as abraçou e Raquel teve uma forte
crise de choro, pois enquanto esteve com Alexandre conteve-se muito para não chorar.
Vamos lá para casa, Raquel pediu a mãe de Alexandre ao vê-larecomposta. Fique conosco.
A Vilma precisa ir embora amanhã. Ficaremos tão sós.
Isso mesmo, Raquel. Vai lá para casa incentivou Rosana. Passaremos no apartamento,
pegaremos algumas coisas e você vemconosco.
Raquel, indecisa, sentia-se só e desprotegida com a ausência de Alexandre.
Acreditando que com eles estaria melhor, ela aceitou o convite.
362
Com o passar dos dias, Alexandre recebeu alta do CTI e foi transferido para um quarto particular, o que
facilitou receber a visita de todos juntos e por um período de tempo bem maior.
Na casa do pai de Alexandre, apesar de haver outros quartos vazios, Raquel ficou junto com Rosana, elas
eram amigas e se entendiam muito bem. Todos se acostumaram com a presença da jovem rapidamente.
Ela parecia já fazer parte da família há tempo. Seu jeito recatado e discreto agradava à mãe de Alexandre
que, a cada dia, se afeiçoava mais à moça. Em pequenos detalhes, a mulher entendia que fora a doçura, a
delicadeza e a generosidade de Raquel que cativara seu filho, que se dispôs a tudo por ela. Mas Raquel
ainda não se sentia tão à vontade.
Sem conseguir um emprego, junto com a impressão de ser dependente por estar vivendo ali de favor,
sentia-se constrangida, mesmo sendo muito bem tratada.
Não fique assim, Raquel consolava Rosana. Gostamos tanto de você! Não quero vê-la
deprimida.
Rosana, veja a situação! Como se não bastasse eu invadir a vida doAlex, de repente me tornei
uma obrigação para vocês!
Eu não vejo desse jeito.
Estou me sentindo tão mal com essa situação.
Pare com isso, Raquel! Meus pais adoram você! Eu então...
Preciso arrumar um emprego.
Você vai arrumar, mas se ficar assim será ainda mais difícil. Omau humor, a falta de fé, a
insegurança e o pessimismo criam vibrações pesadas, ruins, que nos deixam como cegos para as coisas
boas da vida.
Após pensar um pouco, Raquel admitiu:
Eu sei que nos últimos tempos ando deprimida, choro à toa etenho até me irritado, coisa que
nunca aconteceu. Nem sei como o Alexvem me suportando.
Você precisa pensar em Deus, Raquel. Tirar alguns minutos, todo dia para Ele e se deixar
envolver por uma prece sentida, do fundo docoração. Acredito que não conhece o poder da oração nem do
contatoabençoado que fazemos com Deus nesse momento.
363
Eu sei que você tem razão, mas ando sem ânimo. Acabo até esquecendo.
Amanhã vem comigo ao Centro Espírita? sugeriu Rosanaempolgada.
Raquel ficou pensativa e por fim disse:
Vou. Vou sim.
Ah! Que legal! exclamou Rosana eufórica abraçando-a com alegria.
Naquela noite, quase início da madrugada, Raquel, num sono turbulento, revirava-se de um lado para o
outro. Rosana acordou e a ouviu resmungar sem entender o que a amiga dizia. Ela se levantou, sentou na
cama de Raquel e tentou despertá-la.
Raquel, acorda. Por não obter sucesso, Rosana insistiu maisfirme, balançando-a com cuidado:
Raquel, acorda. Você está sonhando.
Não!!! gritou a moça ao se sentar violentamente na cama.Ofegante, com os olhos assustados,
ela fitava Rosana, que procurou
abraçá-la. Raquel recostou-se chorando no ombro da amiga, momento em que dona Virgínia entrou no
quarto para saber o que estava acontecendo, pois ouvira o grito.
O que aconteceu? perguntou a mãe de Alexandre.
A Raquel teve um sonho, mãe explicou Rosana com voz piedosa.
Dona Virgínia se sentou na cama e puxou Raquel para envolvê-la num abraço, qual mãe que aconchega
um filho querido quando assustado.
Vem cá, Raquel. Constrangida, a moça se deixou conduzir entregando-se ao carinho que nunca
tivera e a senhora comovida pediu: Rô, vai arrumar um pouco d'água com açúcar pra Raquel, vai,filha.
Passando a mão no rosto da bela jovem, ela dizia, para confortá-la: Está tudo bem. Já passou. Foi só
um sonho.
Com a voz fraca e trêmula, pausadamente Raquel respondeu entre os soluços:
364
Não, dona Virgínia... isso... nunca passa. Chorosa, ainda revelou: Tenho esses pesadelos até
quando estou acordada... e as lembranças. É horrível.
Apiedada, a mulher argumentou com brandura:
Raquel, se eu puder ajudar, por favor, me diga como, filha.Quando a moça foi se afastando do
abraço, a mãe de Alexandre insistiu:
Não. Fique aqui pediu a senhora, ajeitando-a e fazendo comque Raquel apoiasse a cabeça
em sua perna ao mesmo tempo que, comcarinho, afagava seus cabelos. Raquel, encolhida e amedrontada,
trazia o olhar perdido, com lágrimas que lhe escapavam vez e outra. Comovida, dona Virgínia perguntou:
Desde quando você tem esses tormentos, filha?
A senhora sabe de tudo, não sabe? indagou a jovem envergonhada.
Sim, eu sei.
Então, tenho esses pesadelos desde os quinze anos.
A mãe de Alexandre se curvou e beijou-lhe a cabeça, aparando com as mãos algumas lágrimas de Raquel,
enquanto esta permanecia acuada, apavorada ainda. Depois ela perguntou:
E sua mãe, ela sabe? Contou para ela?
Quando aconteceu... Na primeira vez... Meu pai estava muitodoente e ela pensou que fosse por
causa do acidente que ele sofreu revelou Raquel hesitante. Algumas vezes depois, quando
acordeichorando durante a noite...
Raquel silenciou e, diante da pausa, dona Virgínia perguntou com generosidade, ainda afagando-lhe o
rosto.
O que aconteceu?
Minha mãe não entendia. Ela não tinha muita instrução e... Chegou a me dar tapas fortes no
rosto para eu acordar e... Os soluços ainterrompiam, mas ela prosseguiu: Meus irmãos se irritavam
comigo.
Escondendo o rosto, Raquel chorou ainda mais sentida. Dona Virgínia ficou incrédula. Parada perto já há
algum tempo com o copo
365
com água que fora buscar, Rosana trocou olhares com sua mãe, que trazia os olhos banhados de
lágrimas. Inconformada, mas mantendo uma postura discreta sobre seus pensamentos, a mulher curvou-se
e puxou Raquel sustentando-a num abraço carinhoso, dizendo-lhe baixinho ao ouvido:
Isso não vai acontecer mais, filha. Eu vou cuidar de você. Se aquela pobre mulher não soube ser sua
mãe, eu serei.
Raquel a agarrou num abraço forte e um choro compulsivo se fez de imediato. Rosana, afetuosa, sentou-se
ao lado certificando, em seu íntimo, que sua mãe entendera definitivamente a situação e iria ajudar sua
amiga. Dona Virgínia, a partir de então, se colocaria como mãe de Raquel, pois estava nítido que a jovem
era carente de afeto e jamais tivera a ternura, o contato e o toque de um carinho de mãe, e, se acaso o
teve, fora tão pouco que não lhe significara muito.
A senhora percebeu que Raquel era meiga, atenciosa e educada por índole, por seu coração puro e leal,
não pelo exemplo de vida que tivera.
No dia seguinte, conforme o combinado, elas foram ao Centro Espírita e Raquel, de imediato, verificou a
diferença do que vira e lhe fora proposto em outro lugar. Após passar pelo plantão de orientação, a moça
aceitou a assistência espiritual oferecida, onde haveria de se dispor a uma série de passes magnéticos e a
ouvir palestras especiais em dias específicos.
Raquel sentiu-se muito bem naquela Casa de Oração onde, por todos, foi recebida com carinho e atenção.
Rosana, animada e alegre, fez questão de apresentá-la aos conhecidos como sendo namorada de seu
irmão. Raquel agora parecia não se importar com esse anúncio. Ela conheceu as várias repartições da
casa e Rosana percebeu seu interesse para com o departamento que assistia as gestantes carentes e sem
provisões. A irmã de Alexandre pareceu brilhar com a ideia de ver Raquel como futura tarefeira dessa área.
Contudo, não disse nada, mas ficou
366
pensando: "Como uma tarefa naquela área faria bem a Raquel, que poderia refazer e harmonizar muito de
sua vida ali!".
Mais de quinze dias depois da internação do filho, o pai de Alexandre, que havia sido chamado para ir
conversar com o médico, trouxe a seguinte notícia para casa:
O Alex vai precisar implantar um marca-passo.
Meu Deus! preocupou-se a mãe assustada.
Eu sei que para nós é preocupante, Virgínia, não há como ignorar e não ficarmos aflitos, mas hoje
em dia isso é coisa simples. O cardiologista me disse o seguinte: quando todas as precauções e
manutenções commedicamentos e hábitos de vida se revelam insuficientes para a cardiopatia, que aponta a
insuficiência cardíaca, é necessário que se estimule o coração eletricamente. Para isso eles vão implantar
esse dispositivo, o marca-passo, ou sob a pele do tórax ou na axila. Esse aparelhinho,vamos chamar
assim, tem uma bateria que é conectada a eletrodos que sedirigem ao coração. Creio que o Alex fará essa
pequena cirurgia, para oimplante, em pouco tempo, por isso ainda ficará no hospital por mais alguns dias.
Segundo os médicos, depois disso, vida normal!
Sem aguardar muito tempo, o senhor Claudionor, após ouvir os pequenos comentários que se fizeram e
depois de responder a algumas perguntas, verificando que elas estavam conformadas, pediu:
Raquel, vem comigo até o escritório. Preciso falar com você.Temerosa, a moça o seguiu. Após
entrarem na sala espaçosa, ele fechou a porta e pediu gentilmente:
Sente-se aqui, Raquel, por favor. Ela assim o fez e o senhorClaudionor, após recostar-se na
mesa, quase se sentando sobre ela, prosseguiu: Raquel, eu a chamei aqui porque tomei a liberdade de
expor a sua situação e a da sua filha a um advogado muito amigo e que trabalha em minha empresa há
anos. Hoje mesmo eu conversei com o Alexno hospital e ele me reforçou o pedido de atenção e algumas
providências
367
para o seu caso. Ao advogado, expliquei o que pude sobre sua filhinha, mas ele precisa de maiores
detalhes para as primeiras investigações e levantamentos, a fim de dar início a um processo judicial, de
acordo com a sua vontade, é claro! O que você acha, Raquel? Pretende procurar por sua filha?
perguntou o pai de Alexandre, muito ligeiro. Raquel ficou paralisada, não esperava por aquilo.
Quero, sim, mas estou com tanto medo disse nervosa e ofegante.
O homem contornou a mesa, sentou-se e ficando diante dela, fitando-a nos olhos e esclareceu
imperturbável e racional:
O problema maior, ou seja, minha preocupação maior é se a Bruna Maria já tiver sido adotada por
alguém. Poderemos entrar com uma ação e é bem provável que você ganhe. Mas como arrancaremos essa
criança dos braços dos pais?
Apreensiva e com voz lamentosa, tentando arranjar argumentos em sua defesa, Raquel falou:
Eu sou a mãe dela. Tenho o direito.
Eu sei, filha respondeu o homem calmo e generoso. Mas,para ela, você ainda é uma
estranha.
Para fazer o que fiz tive graves motivos esclareceu Raquel, com a voz tensa e
trêmula, quase
chorando.
Eu não tiro a sua razão, Raquel. Mas Bruna nunca a viu e não sabe nada disso. Aliás, creio que
jamais deverá saber.
Raquel, insegura, pensou e pediu-lhe ajuda.
O que o senhor acha que devo fazer?
O pai de Alexandre refletiu e recomendou:
No seu lugar, eu solicitaria as investigações que vão levantar edescobrir onde está a menina e qual
a sua vida atual. Se Bruna já tiver uma boa família que lhe ofereça bons princípios, amor e estabilidade,por
amor a ela, eu acho que você não deveria aparecer em sua vida.
Raquel engoliu a seco e encheu os olhos de lágrimas, ao deparar com a opinião que pediu. Mas esta era
uma dura realidade. E o senhor Claudionor ainda falou:
368
Um dos meus três filhos não tem meu sangue, mas eu não sei lhe dizer qual
deles tanto que eu os
amo. Se me ocorresse de alguém, um dia,pleiteá-lo, eu morreria, Raquel. Posso lhe garantir. Após
alguns minutos de silêncio, ele perguntou meigamente compreendendo a sensibilidade da moça naquela
situação tão difícil: O que você decide,filha? Quer saber onde ela está, a princípio? Depois você pensa
no quevai fazer?
Amedrontada, ela decidiu visivelmente aflita:
Sim. Eu quero saber onde e como ela está, a princípio.
Ótimo! alegrou-se o senhor Claudionor. Amanhã marcarei um horário com o Xavier e ele virá
aqui.
Raquel estava emocionada. Levantando-se, ela perguntou:
Como posso pagá-lo por tudo?
Com duas coisas, filha ele riu alegremente. Ela ficou na expectativa e o senhor desfechou:
Primeiro, cuide bem do meu Alex, nunca terei como pagá-la por isso, pois ele vai precisar muito de você,
Raquel. Segundo sorriu e pediu: Quero um abraço seu!
Raquel esboçou um sorriso tímido e lágrimas de emoção. Aproximou-se dele o abraçou com força e,
mesmo trêmula, beijou-lhe o rosto, dizendo:
Obrigada, senhor Claudionor, o senhor é um pai para mim. Eu...eu devo confeçar que adoro o
Alex. Nem me precisa pedir isso. Fareitudo por ele. Obrigada mesmo!
Não por isso, filha. Não por isso respondeu ele com lágrimasnos olhos ao vê-la vencer-se com
esforço.
O pai de Alexandre estava emocionado. Dono de um grande coração amoroso, ele fazia por Raquel o que
faria por um dos seus filhos. Aliás, senhor Claudionor e dona Virgínia adotaram, em seus sentimentos,
Raquel como filha.
Ao observarmos certas famílias que transparecem harmonia, união, respeito e amor, que se entrelaçam
pela comunhão de pensamentos, pela identidade de gostos ou aceitações, pela igualdade de ideias,
passamos a entender claramente que os verdadeiros laços de família são os do
369
espírito, porque são duradouros e fortalecidos pela multiplicidade das reencarnações, onde, renascidas,
essas almas queridas se buscam e se afinam para darem cumprimento à evolução individual e em grupo.
É comum constatarmos, no meio deles, criaturas que se irmanam pela amizade sincera e fraternal.
Ainda outras, que mesmo não nascendo da mesma consanguinidade, são tão amadas e tão bem acolhidas
pelos corações amorosos que compõem esses grupos familiares que chegaríamos a perguntar: "Existe
mesmo filho adotivo?".
Sabemos que somos espíritos reencarnantes e que as verdadeiras famílias são formadas pelos laços do
espírito; quem pode então garantir que naquele corpinho do filho adotado não se encerra uma alma querida
e que nos pertença pela afeição espiritual, única e verdadeira?
Que som seria mais agradável aos nossos ouvidos do que o suave chamar: Mamãe! Papai!, não
importando se saiu da boquinha que nosso corpo ajudou a formar ou daquela que o coração elegeu como
filho e que a alma reconhece como seu!
Que alegria seria maior do que reconhecê-los "filhos de alma", que não vieram pelos frágeis laços do físico,
mas pelos inquebrantáveis elos espirituais, para mutuamente se ajudarem a progredir na caminhada
evolutiva.
Nós nos consideramos filhos legítimos de Deus, mesmo Ele nunca tendo reencarnado.
Recusar o pai adotivo é o mesmo que recusar o Pai que está nos Céus, como nos disse Jesus, e que deu-
nos a vida e as oportunidades mais propícias às nossas condições evolutivas.
370
Capítulo 17
O retorno de Alexandre
O Senhor Valmor, concordando com as exigências de Alice, comprou um pequeno apartamento e, após
mobiliá-lo, levou a amante para lá. Marcos ficara desesperado. Sem entender o motivo do abandono e
ignorando, até então, que Alice o traíra, Marcos se desequilibrara tanto que o próprio chefe aconselhou-o a
tirar férias.
Como sempre, toda traição conjugal traz suas dores cruéis, instalando naquele que foi traído a
desconfiança, o medo do futuro, o sentimento amargo da rejeição e do abandono. A separação e o divórcio
súbitos trazem a inevitável pergunta: E agora, o que faço da minha vida? Havendo os filhos queridos,
outra: E aos filhos, o que digo?
Nenhuma explicação consola os corações aflitos.
Que exemplo Alice, que traiu o esposo desde o instante em que pensou em outro homem, poderia passar
aos filhos por se envolver com paixões efêmeras? Que respeito e amor essa mulher poderia ter dos filhos?
Um dia, com toda certeza, a consciência de Alice iria cobrá-la por ter deixado os filhos sem orientá-los, bem
de perto, para saber que caminhos estarão trilhando, se sentiram dores, se estiveram alimentados, se
sentiram sua falta, se choraram no silêncio da noite, se tiveram apoio para prosseguirem nos estudos e
futuros trabalhos. Ela não se preocupou se sua ausência física traria algum abalo emocional capaz de levá-
los a buscarem na rua, nas drogas ou em companhias duvidosas a compensação para essa falta de amor
de que se vêem privados. Mas o egoísmo dessa criatura não a faria renunciar aos
efêmeros prazeres e
ambições vis. Atraindo indescritíveis companheiros espirituais, que se compraziam em satisfações
mundanas do mais baixo nível, o que, consequentemente, a fariam enveredar por amargos caminhos.
Marcos, por sua vez, encontrava-se em total desarmonia e desilusão, mas amparado por amigos espirituais
que procuravam sustentá-lo no bom ânimo e para o bem. A custo ele encontrava nos filhos o motivo e a
razão para não cometer nenhum desatino. Marcos não conseguia entrar em contato com sua irmã quando
telefonava para o apartamento, uma vez que Raquel fora morar na casa dos pais de Alexandre. Raquel,
também tentando contatá-lo no serviço, recebia a informação de que ele estava de férias.
Marcos passou a enfrentar sérios problemas com o filho Nilson, que perdera o emprego no mercado e se
enturmara com péssimos companheiros. Nilson, agora maior de idade, fora preso por tentativa de furto.
Elói, mais tranquilo e sempre amigo, procurava animar o pai. Alice parecia pouco se importar. Ela só se
preocupava com a sua vida.
Um dia, após voltarem da visita que fizera ao hospital para Alexandre, Raquel pediu para Rosana que a
levasse à casa de seu irmão, pois tinha o novo endereço. Ela ignorava a separação do casal. Ao chegarem
à casa de Marcos, ele as recebeu com satisfação, mas Raquel percebeu sua aflição.
Após conversarem um pouco, Raquel contou-lhe sobre Alexandre e o irmão revelou tudo sobre Alice e
Nilson.
O que você vai fazer, Marcos?
Não sei, Raquel. O advogado disse que o Nilson pode sair aqualquer momento e... Não sei. Já
pensei em pegá-los e voltar para afazenda, mas nem sei se posso, porque o Nilson ficará respondendo
oprocesso e parece que não pode mudar de estado, eu acho.
Voltar para a fazenda? estranhou a irmã. Há quanto tempovocê não tem notícias deles?
A última vez que recebi uma carta da mãe foi há uns três anos. Na semana passada escrevi
novamente e pedi, pelo amor de Deus, que ela me mandasse notícias. Vamos ver se assim ela me escreve.
Avisei também do endereço novo.
Gostaria tanto de vê-la comentou Raquel sentida, perdendo oolhar, pensativa.
372
Por que não vai até lá, Raquel? perguntou Rosana.Raquel, tomando uma postura firme, falou:
Não. Daquele lugar só tenho as piores recordações. Seria o último lugar do mundo que eu iria
visitar novamente.
Marcos olhou para sua irmã fitando-a por longo tempo, pensando em toda aquela injustiça que cometera
com ela. Depois ele falou:
Desculpe-me, Raquel, por tudo o que eu te fiz. Por favor, me perdoe.
Marcos, eu...
Não tente dizer nada a meu favor. Fui cruel com você. Minhaprópria irmã... Tenho tanto para
agradecer ao Alexandre. Lamento imensamente saber o que aconteceu com ele, o seu estado...
Sinceramente disse Marcos, comovido ao encarar Rosana , se eu pudesse, doaria meu próprio coração
ao seu irmão, por tudo o que ele tem feito pela Raquel. Respirando profundamente após pequena pausa,
ainda falou: Estou tão desgostoso da vida que morrer agora seria conveniente.
Não fale assim, Marcos argumentou Rosana. Ainda temmuito a fazer. Seus filhos
dependem de você, já que a mãe está incapacitada de cuidar deles.
Incapacitada, não. Ela é uma sem-vergonha, imunda!
Alice é incapacitada moralmente, espiritualmente, prosseguiu Rosana. Quando uma alma
não tem elevação ou grandeza, ela pode ainda agir de modo imoral, leviano, sensual e materialista, sem
respeitar e sem dar importância aos queridos filhos que Deus lhe confiou aos cuidados.
Marcos riu ironicamente e avisou:
Ela alega que o ama. Que o escolheu por compatibilidade.
Na minha opinião, quem não tem respeito aos sentimentos dos outros, quem não tem resignação
e não renuncia a si mesmo não pode amar alguém. Pode ter uma ilusão passageira em uma aventura,
mas amor, não. E sofrerá muito por estar se enganando. Se ela foi capaz de deixá-lo com os filhos, quando
esse encanto, quando essa ilusão acabar, Alice se terá envolvido em tanta dor e desespero que você nem
373
imagina. Ninguém é feliz quando, para isso, alguém chora. Um dia ela vai acordar.
Se não fosse por meus filhos, eu faria uma besteira.
Você é um homem capacitado, Marcos. Não se desrespeite, não se agrida por isso. É o momento
de usar as suas ideias e as suas mãos para construir. Eleve seus pensamentos e tenha fé em Deus. Não
pense em vingança e ore para que Alice seja amparada e desperte para o bem o quanto antes, para a
moralidade que todo espírito deve ter. Pense emcoisas construtivas.
Marcos deu um sorriso forçado e Raquel lembrou:
Precisamos ir. Dona Virgínia pode ficar preocupada. Não avisamos que passaríamos aqui.
Rosana se despediu de Marcos e, na vez da irmã, ele perguntou:
Raquel, você e o Alexandre, como estão? Diante a ausência depalavras, Marcos indagou
ainda: Vocês moram juntos? Têm umavida incomum?
Não, Marcos respondeu Raquel, com modos simples e encarando-o. Nunca tivemos nada.
Não levamos uma vida incomum.Namoramos...
Eu preciso saber, pois queria lhe fazer um pedido. Você quer virmorar aqui comigo?
A moça ficou parada e pensativa. Rosana sentiu-se gelar. Aquilo não poderia acontecer.
"Alexandre morreria!", pensava ela.
Dê-me um tempo para pensar? pediu Raquel. Tem muita coisa acontecendo no momento.
O quê, por exemplo? insistiu o irmão.
Estou tentando reaver minha filha. O senhor Claudionor, pai doAlexandre, está me ajudando.
Você sabia onde ela estava, Raquel?Ela abaixou o olhar e admitiu:
Sabia. Ela foi transferida, de onde eu a deixei, para um orfanato.Eles estão fazendo alguns
levantamentos e ainda não me deram os resulados.
374
Também está sendo aberto um processo. Nem sei se tenho o chamado "pátrio poder" sobre minha
filha e minha situação para pleiteá-la não é muito favorável. Moro de favor, não tenho emprego, fui
difamada, morei nas ruas... Creio que talvez isso complique um pouco as coisas. Estou com muito medo.
Você vai conseguir, Raquel. Tenho certeza! afirmou o irmão,animado. Porém, pense na minha
proposta. Quero que more comigo e traga sua filha para cá. Seremos uma família.
Rosana não podia dizer nada. Insatisfeita, nem conseguia sorrir.
Bem, precisamos ir pediu a irmã de Alexandre, apressando aamiga.
Ao chegarem em casa, o senhor Claudionor avisou, quando elas entravam na sala:
O Xavier acabou de sair.
Ele tem novidades? perguntou Raquel interessada.
Praticamente, não. Ele disse que telefona amanhã.Depois, ao se ver a sós com seu pai, Rosana
perguntou:
Que levantamento demorado. É assim mesmo?
Vem cá pediu o homem, indo até o escritório, enquanto mantinha um certo ar de mistério
mesclado com animação em esclarecer afilha sobre algo surpreendente. É o seguinte: a menina foi
encontrada. Bruna tem saúde perfeita e é a típica criança de maior solicitação para a adoção por causa de
suas características físicas. Admiro-me atéque não tenha sido adotada novamente.
Como assim? Ela foi adotada? perguntou Rosana afoita.
Um casal entrou com o pedido de adoção. Após os procedimentos legais na Vara da Infância e
da Juventude, o promotor de Justiça foi ouvido e o casal, dentro das normas legais, obteve o período
chamado de "Estágio de convivência", porque a Bruna tem três anos de idade.
E aí?! indagou Rosana, quase em desespero.
375
Aí que a menina foi entregue ao casal mediante um termo deguarda e responsabilidade,
enquanto se processava a adoção. Nesse período de estágio e convivência, houve graves conflitos.
Como assim? insistiu Rosana, aflita e curiosa.
Toda criança que passa algum tempo num orfanato traz consigo uma bagagem de vida ignorada
e inacessível, até então, ao casal adotante.Parece que a Bruna revelou uma não-aceitação a eles. Esse
contato inicial que tiveram foi tão desajustado que requereu a intervenção dos técnicos que avaliam esse
período, e estes sugeriram a interrupção temporária dessa convivência.
E agora?
A Bruna foi retirada, provisoriamente, do convívio com a família adotante.
O que eles alegaram para que houvesse essa intervenção, vocêsabe? interessou-se Rosana.
Sente-se porque você não vai acreditar pediu o pai, que, ficando à sua frente, revelou:
Bruna falava, aos choros, por dias seguidos,que a mãe iria buscá-la. Ela contava que tinha sonhos e dizia
que conversava com o pai, descrevendo-o como sendo muito risonho, alto, forte, de olhos azuis, cabelos
pretos e lisos. Falava ainda que a mãe se parecia com ela.
Rosana ficou imóvel e boquiaberta. Sem trégua, o pai prosseguiu:
Fiquei exatamente como você quando ouvi isso do Xavier. Noentanto, tem mais. Com os dias,
Bruna Maria parou de chorar, masfalava que os pais verdadeiros apareceriam e a levariam embora. Isso
era dia e noite, e a mãe adotiva não suportou a pressão.
Surpresa, Rosana sorriu quase espantada com o relato e o pai continuou:
Precisaremos ser rápidos para não ter maiores dificuldades. Porenquanto, não quero revelar tudo
isso à Raquel para não preocupá-la.Combinei com o Xavier que quero pô-la em contato com a filha
sóquando for necessário e tudo estiver certo, sem riscos. Pretendo poupar a Raquel de expectativas
angustiosas até quando puder. Imagino quantas
376
dúvidas ela já tem. Bem, é assim, o juiz vai pedir comprovação laboratorial de filiação, serão analisados as
condições e o motivo do abandono, pois Raquel desapareceu após o nascimento. Fora isso, atestado de
saúde física e mental de Raquel.
Ela não tem emprego nem casa própria lembrou Rosana.
Carência e falta de recursos materiais não a farão perder a menina. Problemas morais ou
envolvimento com crimes, sim.
Papai, eu estou preocupada. Passamos hoje na casa do irmão da Raquel e ele quer que ela volte
a morar com ele.
O senhor Claudionor ficou surpreso, depois perguntou:
Você acredita que ela irá?
Não sei. Raquel falou que ia pensar.
Isso me faz ficar preocupado com o Alex afirmou o pai.
O Alex morre se acontecer uma coisa dessa!
Mas, por outro lado, Rô, vejo a Raquel tão preocupada com seu irmão que não acredito que
possa deixá-lo agora.
Sabe o que acontece, por causa dos costumes em que foi criada,Raquel não consegue aceitar
viver daquele jeito com o Alex.
Se a situação se agravar, pediremos que fique morando aquiconosco. Quando for o momento,
vou conversar com ela. Na próxima semana, o Alex deve voltar para casa e, talvez, por ter que lhe dar
atenção, Raquel ainda não pense em ir morar com o irmão.
Pelo que percebi, o interesse em ficar com a filha a prende aqui,pai.
O homem sorriu, parecendo ter alguma ideia, depois falou:
Vamos aguardar, Rosana.
Na semana seguinte, conforme previsto, Alexandre recebera alta.
Acomodado confortavelmente em um quarto na casa de seus pais, ele recebia atenção de todos, além de
muito mimo. Raquel, preocupada, sempre estava a seu lado.
377
Passados alguns dias, Marcos também fora visitá-lo e, antes de ir embora, ao se despedir de sua irmã no
portão, lembrou:
Estou aguardando sua resposta sobre ir morar comigo.
Ainda estou pensando, Marcos avisou Raquel timidamente.Ela estava dividida e confusa.
Encontrara em Alexandre e naquela
família apoio e consideração que nunca tivera antes. Agora, principalmente pelas condições de saúde de
Alexandre, seria difícil deixá-los. Todos a queriam muito bem e demonstravam isso com ternura.
O senhor Claudionor, que assistiu à cena, ficou preocupado. Sem demora, na primeira oportunidade,
quando se encontrou sozinho com Alexandre, falou:
Precisamos conversar sobre a filha da Raquel. E colocando ofilho a par da situação, disse no
final: Eu não gostaria que a Raquel nos deixasse depois que tivesse a filha definitivamente.
Alexandre sorriu e falou com modos marotos:
Também gostou dela, né, pai?!
É fácil conviver com a Raquel. Nós já a temos como alguém dafamília admitiu exibindo largo
sorriso. Em seguida surpreendeu ofilho ao perguntar: E então, quando você vai providenciar isso?!
Providenciar o quê? perguntou Alexandre.
Que ela se torne oficialmente um membro da família, oras!Alexandre, concatenando as ideias com
rapidez, ficou embaraçado,
algo raro de se ver, e respondeu, quase gaguejando:
Não... Não é por não querer, pai. Sem graça, ele sorriu encabulado e confessou: Às vezes,
acho que não terei chances. Você viu, tudo é tão difícil com ela. Mas tem horas que sinto uma esperança
tão grande!
Eu só acho que não pode deixá-la se afastar de você. Daí, sim, a situação fica pior.
Ela não vai se afastar! acreditou Alexandre, seguro de si. Após me recuperar, voltaremos
para o meu apartamento...
Interrompendo, o pai alertou:
O irmão dela, o Marcos, se separou da mulher. Você pode garantir que a Raquel não voltará a
morar com ele? Alexandre silenciou,
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arregalou os olhos e o pai, sem demora, sugeriu: Eu acho que agora você terá sua chance. Ou tudo, ou
nada!
Como assim?
O senhor Claudionor levantou, fechou a porta do quarto para garantir a privacidade e, ao voltar e sentar ao
lado do filho, pediu:
Não tenha outra parada cardíaca. Primeiro me escuta, depoisvocê reage. A Raquel quer reaver a
filha e... Após pequena pausa esuspirando profundamente, ele falou às claras com o filho: Olha,Alex,
a Raquel não conhece nada sobre as leis. Ela quer ter a meninaconsigo. Veja, se conseguir fazê-la
entender que, estando casada comvocê, será mais fácil reaver a filha, vá em frente, filho! Faça-a
entender isso. Ela gosta de você e, pelo que o conheço, sendo cabeça-dura comovocê é, sei que não
desistirá dela. Essa é a sua chance de não ter que ficarcorrendo atrás dela.
Pai, você está me propondo... perguntou surpreso, incrédulo.
Alex, preste atenção! Você a ama, e está disposto a tudo para ajudá-la. Quando Raquel tiver a
filha definitivamente ela vai deixá-lo,fique certo disso, pois acreditará que o estará incomodando em
dobro.Além disso, ela pensará que será imoral viver junto com você sem teremnada, sem serem casados.
Como criará a filha em meio a uma situação dessas? Como vai explicar esse tipo de relacionamento para a
menina?Aproveite que ela ainda não pensou nisso!
Alexandre ficou pensativo e surpreso. Jamais esperava ouvir aquilo de seu pai. Atordoado ele perguntou:
Será que ela aceita, pai?
Ela tem que aceitar! Alex, deixe de ser... Use até sua doença para convencê-la, se for preciso!
Mas tem que fazer isso agora! Enquanto hátempo! Mas, olha, se falar que estando casados será melhor
para que ela tenha a filha... Creio que isso será infalível. Após pequena pausa, o pai completou, com
modos engraçados: Só não conte nada para sua mãe.
Para ninguém! pediu Alexandre agora decidido.
Ótimo! anunciou o pai satisfeito, e sorridente avisou: Vou chamá-la, agora, e você conversa
com ela.
379
Alexandre estava nervoso e inquieto. Depois que seu pai saiu, pensou temeroso: "Como vou fazer isso?".
Em seguida, sorriu refletindo: "Puxa! Quem diria? Meu pai me incentivando a isso! Será que consigo? Será
que Raquel aceita?". Em meio às suas dúvidas, ele rogou: "Deus, me ajude! Não quero mentir para a
Raquel. Eu não gostaria que mentissem para mim. Deus, ajude-me a não mentir. Dê-me palavras e
argumentos verdadeiros para que ela entenda e aceite".
Após alguns minutos, Raquel entrou no quarto e ele pediu, generoso:
Sente-se aqui, por favor.
Você quer falar comigo? indagou com voz peculiarmente meiga.
Quero, sim afirmou ele. Tomando fôlego, encorajou-se e falou: Raquel, é o seguinte: o
doutor Xavier está com o processo pleiteando ao juiz...
Alexandre parou de falar e ela percebeu que ele estava alterado, aflito.
O que foi, Alex? preocupou-se tocando-lhe o rosto com carinho e se aproximando, esperando
que respondesse.
A respiração de Alexandre exibia seu nervosismo, mas, após pequena pausa, prosseguiu controlando seus
sentimentos:
O que eu tenho para lhe dizer é sério. Lembra-se que outro dia,quando nós conversamos, eu
disse que a ajudaria em tudo?
Lembro. Claro! confirmou com sua voz delicada.
Raquel, eu amo você disse, olhando-a nos olhos, e completou: Não quero que se afaste de
mim. Eu morreria! Você entende?
Eu não vou me afastar de você. Quem disse isso? Alexandre, vocêfoi a única pessoa que me
amparou, me sustentou em todos os sentidos. Farei tudo por você! Eu juro! tornou parecendo implorar
paraque ele acreditasse nela. Farei o que for preciso por você. Não vouabandoná-lo.
Nesse instante ele segurou sua pequena mão, olhou firme em seus olhos e desfechou rápido e
determinado:
Então case comigo, Raquel.
380
Ela ficou paralisada, em choque. Acreditando que o silêncio estava longo demais, com voz meiga e ainda
segurando-lhe a mão, que ficou gelada, ele pediu aflito:
Diga alguma coisa, Raquel. Pelo amor de Deus!
Ela empalideceu visivelmente. Seu queixo tremia e sua voz se embargou, quando disse:
Alexandre... peça-me tudo. Menos isso. Se for preciso eu morropor sua causa, mas...
Casamento é menos que a morte. Eu te amo e você também.Ela começou a chorar,
respondendo:
Eu o amo, sim, mas não o farei feliz. Não daria certo.
Preste atenção pediu o rapaz, falando mansamente, enquanto lhe afagava o rosto. Case-se
comigo só no papel, e não nas vias defato. Estou disposto a isso. Você sabe que a respeito muito para
agredi-la ou cobrá-la de alguma coisa. Eu só tê-la quero perto de mim. Quero me sentir seguro disso e o
casamento me proporcionará isso.
As lágrimas rolavam no rosto de Raquel e ela não dizia nada, olhando-o firme e até incrédula, pensando a
que ponto chegava aquele amor que ele sentia.
Raquel, se você me ama, se me considera e respeita, não preciso de mais nada. Após
pequena pausa, ele argumentou: Sabe, odoutor Xavier, como eu comecei a dizer, pode avisar que a
Bruna viráconhecê-la, de uma hora para outra. Aí eu pensei: como ela vai nos ver?Serei só seu namorado?
O que representarei para ela? Eu quero que se case comigo e quero assumi-la como minha filha.
Não... sussurrou.
Por quê?!
Você não é o pai verdadeiro, por que faria isso?
Raquel, não fale para mim sobre pai verdadeiro. Pai não é aquele que dispensa uma carga
genética e nem sabe se existimos, quem somos ou se vivemos. Esse é um irresponsável. Pai mesmo é
aquele que ama,que oferece carinho, atenção, condições de vida, boa moral. Pai é aquele que pensa no
agasalho, no estudo, no lazer, nas noites de medo e solidão.
381
É aquele que sempre está ao lado em qualquer condição de vida e oferece sempre a sua presença e
a sua atenção. O pai não é somente um provedor. Eu não tenho a carga genética do senhor Claudionor,
nem da dona Virgínia, mas eles são meus pais verdadeiros. Mesmo não morando junto com eles, quem se
preocupa comigo? Quem foi lá no meu apartamento quando eu fiquei nervoso e preocupado com um mal-
en-tendido? Quem esteve no hospital, todos os dias, todas as vezes que fiquei internado? Foram os meus
pais, e não o senhor e a senhora que me emprestaram as suas cargas genéticas. Mais tranquilo e
generoso, ele tornou a dizer: Deixe-me cuidar de você, Raquel? Deixe-me ser o pai da Bruna? Em
seguida, ele sorriu e afirmou: Terei dois motivos para viver.
Raquel debruçou em seu ombro e chorou muito. Estava em conflito sem saber o que dizer.
Em outro cômodo da casa, o senhor Claudionor impediu a iniciativa da esposa e da filha, que queriam ir ao
quarto, e para isso teve que dar uma explicação.
Por que, Claudionor? Só vou ver se o Alex quer um suco!
Não vá lá. Eles precisam conversar.
Conversar o quê? Não podem se falar perto de mim, só por um segundo, enquanto pergunto se
querem um suco? reclamou a mãe.
É que o Alex vai pedir a Raquel em casamento. Por isso não devem ser incomodados
anunciou o senhor Claudionor com jeito picante.
Casamento?!!! exclamaram mãe e filha num coro.
Após isso, Rosana, boquiaberta, ficou muda, e dona Virgínia se sentou falando:
Espere aí! exclamou enquanto concatenava as ideias.
Não. Não vou esperar, não. Foi isso mesmo o que você ouviu. O nosso filho, Alexandre, vai pedir
a Raquel em casamento.
Mas a Raquel... tentou dizer a mulher que foi interrompida.
E o único jeito para o Alex não perdê-la. Sejamos frios e racionais.Estamos todos conscientes
dos problemas que ela tem explicou o pai
382
em voz baixa, completando: Eu gosto muito dela, já a considero como uma filha. Sei que o Alex é
cabeça-dura e está disposto a tudo. Inclusive a viver com um casamento não consumado até, sei lá... Um
tratamento, quem sabe. Casados ficará mais fácil.
Deus! clamou dona Virgínia, incrédula. Eu gosto da Raquel. Sei que meu filho gosta dela, mas
nunca pensei que ele chegasse aesse ponto!
Pronunciando-se a respeito do assunto, Rosana falou animada:
Vai dar certo! Deus há de abençoá-los e Raquel vai superar tudo isso. Eles ainda serão muito
felizes, eu tenho certeza!
Deus a ouça, filha. E procurando o marido com o olhar, donaVirgínia ainda falou: Já que
tem de ser assim, assim seja! Vamos ajudá-los. Após pequeno espaço de tempo, concluiu: Eu
querotão bem a Raquel, a adoro. Deus! Como essa menina sofre!
O silêncio reinou por alguns minutos e o senhor Claudionor, estampando um sorriso no rosto, não revelou
que a ideia fora sua. Alexandre chegou vagarosamente à copa e surpreendeu todos reunidos, parados e
olhando-o com uma expectativa impressionante. Desconfiado, ele sorriu e perguntou:
O que foi?
Já contei para elas e estamos aguardando o que você tem para nosdizer falou o pai
empolgado e ligeiro.
Você já contou? perguntou Alexandre com ar de riso.
Sobre o pedido de casamento, sim. Mas até eu vou ter um colapso se não souber logo qual foi a
resposta da Raquel.
Alexandre fez expectativa, depois riu gostosamente e anunciou:
Eu e a Raquel vamos nos casar. Sem demora avisou: Estouassumindo a Bruna como minha
filha desde já.
Rosana correu para o abraço e a mãe também o envolveu. O senhor Claudionor perguntou:
Cadê a Raquel?
Com lágrimas nos olhos e rindo, Alexandre avisou:
Para variar, ela está lá no meu quarto chorando.
383
O pai de Alexandre foi até o quarto encontrando Raquel com os olhos rubros, porém mais recomposta.
Sentando-se a seu lado, ele falou:
Estou feliz por vocês. Tenha certeza de que tomou a melhor decisão, Raquel. Sem demora
avisou: Gostamos muito de você,filha.
Raquel ergueu o olhar encarando-o e tentou esboçar um sorriso que se transformou em choro. O pai de
Alexandre foi abraçá-la, mas, sentindo-a temerosa, como a se encolher, ele compreendeu e beijou-lhe
rapidamente a cabeça, dizendo:
Vai dar tudo certo, Raquel. Tenha fé.
Após saber que se casaria com Raquel, Alexandre pareceu ter ganhado nova vida. Sua recuperação fora
surpreendente! Pouco tempo depois, animado, em uma conversa com Raquel, avisava:
Casaremos daqui a quarenta e cinco dias!
Já! estranhou a moça que sentia seu coração apertar.
Ainda! retrucou Alexandre sorridente e alegre.
Filho, temos que preparar...
Não vai haver festa, mãe. Pelo amor de Deus! Casaremos só nocivil e pronto! Eu não gostaria de
ficar dando satisfações a todo mundo.Só nós aqui de casa está bom. Virando-se para sua irmã, ele
pediu: Rosana, quer ser minha madrinha junto com o Ricardo?
Rosana ficou séria e tomando uma postura de quem estava sem jeito, quase envergonhada, falou
cinicamente:
Não posso, Alex. Sinto muito.
Por quê? surpreendeu-se o irmão.
Ah, é que surgiu um imprevisto.
Imprevisto?!
No mesmo dia vou ser madrinha da Raquel avisou, ao abraçar
a amiga.
Então vou chamar a Vilma! Sua traidora!
brincou Alexandre.
384
Dona Virgínia, preocupada, foi procurar pelo marido para reclamar sobre o fato de o filho não querer uma
festa. O telefone tocou, era o noivo de Rosana e ela saiu para atendê-lo.
Vendo-se as sós com Raquel, Alexandre perguntou:
Quero voltar para o apartamento na próxima semana. Vamos?
Não sei. Estou tão confusa, Alex.
Vamos, vai! Já estou bem melhor e eu quero saber por quantas anda o meu emprego. Isso é, se
eu não fui substituído.
Claro que não! Desempregada já basta eu.
A propósito, Raquel. Você quer convidar sua mãe para o nosso casamento?
A moça ficou temerosa e confusa, depois de refletir um pouco, confessou:
Alex, até agora eu não sei se tomei a decisão certa. Ela securvou sobre a mesa que os
separavam, segurou nas mãos do noivo, e falou: Estou apavorada só de falar nesse casamento. Agora,
chamarminha mãe será outro drama. Por favor...
O semblante de Raquel exibia aflição. Compreendendo-a, Alexandre tentou confortar:
Está certo. Não quero pressioná-la, só lembrei e quis que soubesse que, por mim, tudo bem. Se
quiser chamá-la, eu vou lá com você.
Eu só quero chamar o Marcos.
Lógico! Faço questão!
Nesse momento, o rapaz sorriu e se lembrou do que havia dito ao Marcos, no dia em que foi buscar as
coisas de Raquel, sobre ele fazer questão de ir até a casa dele para lhe fazer aquele convite. Agora ele o
faria, não por vingança, mas por consideração, felicidade e prazer.
Com os dias, Alexandre e Raquel voltaram para o apartamento. Rosana, após convencer Raquel, saiu com
a amiga para comprar objetos, tapeçaria e cortinas a fim de redecorar o apartamento do irmão.
385
Quem diria, hein, Raquel? Você vai casar antes de mim! Não me conformo brincou rindo
gostosamente.
Só de pensar nesse casamento eu passo mal. Quando lembro doacordo que fiz com o Alex,
sobre casarmos só no papel, falto morrer! revelava Raquel aflita, quase em desespero. Prometi a ele
que fariatudo por ele, mas nunca imaginei que me pedisse isso. Onde eu estavacom a cabeça, meu Deus?!
Não pense mais nisso, Raquel. Se é isso o que ele quer e aceita, se você o ama, dane-se o resto.
Não diga mais nada, ou pode deixá-lotriste, deprimido.
Não posso enganá-lo.
Mas você já falou. Agora chega. O Alex sabe o que está fazendo. Apropósito, vocês vão viajar?
Por quê?
Ora, e a lua-de-mel?
Não diga isso, Rô, pelo amor de Deus! Que lua-de-mel?!
À noite, ao conversar com Alexandre, que já havia sido orientado por sua irmã sem que Raquel soubesse,
ela ouviu do noivo:
Raquel, eu gostaria de aproveitar o presente que a empresa oferece aos funcionários que se
casam.
Que presente?
Uma viagem. Após o casamento, como todos fazem, vamos viajar?Ela empalideceu. Com voz
fraca e trêmula, respondeu timidamente:
Eu não sei... falou atordoada.
Decidido, rápido e animado, ele não a deixou reagir nem pensar, dizendo:
Então vamos. Já que eu tenho que ir lá na empresa amanhã, voucuidar disso!
Sem palavras, Raquel sentia-se mal com tudo o que estava acontecendo, mas não disse nada, sofrendo
calada.
386
Rosana havia levado Raquel para a casa dos pais um dia antes do casamento. Pela manhã, com carinho e
alegria, ela ajudou a futura cunhada a se arrumar. Raquel, mais do que nunca, ficou linda!
Ao sair do quarto, dona Virgínia entregou-lhe um buque de orquídeas brancas, que ficou belíssimo em suas
pequenas e delicadas mãos trêmulas.
O juiz de paz aguardava na sala da casa dos pais de Alexandre, que fora especialmente decorada para a
ocasião. Marcos estava presente. Vilma e o Marido estavam como padrinhos e as crianças, graciosamente
bem trajadas, faziam o casal de honras que levavam as flores e as alianças.
No espaço a percorrer até chegar próximo do juiz, do noivo e dos padrinhos, Raquel foi conduzida pelo pai
de Alexandre que, ao lado da bela noiva, parecia desfilar sorridente e orgulhoso como se ela fosse
realmente sua filha. O noivo não tirava o sorriso do rosto e Rosana, perto dele, brincava, falando baixinho:
Não se emocione! Olhe o coração!
Somente alguns tios e primos do rapaz foram convidados para a simples
cerimônia, e um almoço no jardim,
próximo da piscina, comemorou a ocasião. Quando tudo estava quase terminado, Vilma, próxima de sua
mãe, falou quase sussurrando:
Mãe, que coragem o Alex tem!
Dona Virgínia, que começou a entender seu filho, comentou:
Coragem nada. Que amor!
À tardinha os noivos se despediram e voltaram para o apartamento onde, de lá, Rosana e Ricardo os
levariam para o aeroporto. A caminho de casa, Alexandre e Raquel, sozinhos no carro, não diziam nada.
Ela estava muito séria e não parava de tremer.
Ao entrarem no apartamento, Raquel parou e falou baixinho:
Meu Deus! O que eu fiz?!
Alexandre sorriu e respondeu em tom generoso:
387
Casou-se comigo. Agora vamos, daqui a pouco a Rô estará aquipara nos levar até o aeroporto.
Raquel, após se trocar, foi para a sala, onde não encontrou o marido. Ela se sentou no sofá e abaixou a
cabeça. Sentia-se gelada pelo nervoso e trêmula pelos sentimentos fortes que experimentava aflita. Ao se
aproximar, Alexandre ajoelhou-se perto da mulher e, segurando-lhe o queixo ao erguer seu lindo rosto,
perguntou generoso:
Você está bem?
Estou disse encarando-o e falando baixinho.
Não quer comer alguma coisa? Você nem tocou no seu almoço!
Não quero, não. Obrigada.
Está tudo bem, Raquel. Nada mudou. Fique tranquila afirmou Alexandre preocupado com ela.
Nós nos casamos e você diz que nada mudou? perguntou comvoz fraca.
Ele a olhou bem nos olhos e respondeu firme:
Não. Nada mudou. Eu continuo amando você e a respeitandotambém. Sou seu amigo, não se
esqueça disso. Eu só quero o que forbom para você e para mim também. A única coisa que mudou é que,
apartir de agora, você vai passar a assinar meu nome.
Alexandre...
Meu bem, não diga nada pediu ele, carinhoso. Levantando-see estendendo-lhe a mão,
completou: Agora vamos ver se não estamos esquecendo nada. Temos um lindo passeio pela frente.
Vamos aproveitá-lo com alegria.
A campainha tocou e ele disse:
É a Rô!
Já no aeroporto, Rosana reclamava para distrair Raquel, que estava calada o tempo todo.
Mas, Alex, vocês só vão ficar cinco dias?!
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Você viu quanto tempo eu estou afastado do serviço? Tenho sóesta semana, na outra eu já volto
a trabalhar! O que você está pensando?Não estou de férias, não.
Por que não tirou férias? insistiu Rosana.
Quero deixar mais pra frente. Tenho outros planos avisou oirmão.
Raquel não oferecia um único sorriso, nenhuma palavra e parecia nem ouvi-los. Após se despedirem, os
noivos entraram no avião e partiram.
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** página em branco **
Capítulo 18
Vida nova
Marcos recebera, depois de tanto tempo, uma carta de sua mãe. Dona Tereza dizia que lhe escrevera
sempre esses anos todos, mas dele nada havia recebido. O filho logo entendeu que Alice deveria ter
interceptado as correspondências. Lógico! Sempre que escrevia para sua mãe, por falta de tempo, ele
pedia para a esposa colocar as cartas no correio e é claro que Alice não colocava. Marcos estava furioso
com isso. A mãe pedia notícias de Raquel, dizendo que sempre sonhava com a filha e ficava aflita por não
ter bons presságios. Marcos ficou chocado ao saber que seu pai e sua avó haviam falecido. Alice nem a
isso respeitara. Como ela fora cruel!
Elói, sempre companheiro, confortava o pai de maneira simples.
Não liga não, pai. Daqui uns dias você traz a avó para morar com a gente e acaba de vez com
isso.
Tenho vontade de matar sua mãe.
Para que, pai? Você é moço e vai arrumar outra mulher melhor.
Elói, você não sabe o que está falando. Depois de rir, o paiperguntou: O que você acha,
filho? Escrevo para sua avó dizendo quea tia Raquel se casou? Ou deixo que ela mesma diga quando
voltar deviagem?
Elói pensou e, animado, foi até o quarto buscar papel e caneta.
Dias depois, no interior do Rio Grande do Sul, dona Tereza emocionada lê a carta do filho que, em dado
momento, dizia:
"Mãe, a Raquel está muito bem. Como sempre, linda! Agora parece mais linda ainda. Não se preocupe com
ela, é que não vou adiantar as notícias porque quero que ela mesma lhe conte. Mas, asseguro, ela
estábem. E que no momento viajou a passeio e não sabe que estou mantendo contato com a senhora."
Dona Tereza não cabia em si. Ela se emocionara com o que lia. Seu sogro, homem sempre forte, ativo e
severo, encontrava-se agora em uma cadeira de rodas e dependente de muitos para tudo. Com ar
arrogante e olhar vingativo, Tereza aproximou-se do velho e disse:
Boleslau, meu filho Marcos me escreveu. Lembra-te da Raquel?Aquela guria pequena e franzina
que tu espancastes de coro e colocastespara fora daqui? Marcos escreveu dizendo que minha Raquel está
muito bem. Disse que ela é linda! Uma barbaridade, chê! Veja, Boleslau, tudo o que tu fizestes de mal para
minha filha voltastes para ti, que agora estáaí nessa cadeira e nem falar pode, mas ouvir, vai. Eu sei que tu
me entendes, velho. Após andar de um lado para o outro, ela continuou: Um dia, Boleslau, tu ainda
verás entrando aqui, linda e maravilhosa,a minha Raquel.
E aquele teu filho nojento ainda vai se necrosar todo, chê!
Bah! Mas tu e aquele verme miserável do Ladislau, que também acabou com a minha vida, com o meu
sossego, ainda vão ver a minha Raquel vitoriosa, essa é a minha vingança para tudo o que sofri aqui.
O homem arregalava os olhos e ficava furioso, sem poder responder, pois a doença lhe impedia. Tereza
continuou andando vagarosamente de um lado para o outro enquanto, com olhar exibindo orgulho e
satisfação em poder maltratar o sogro, dizia:
Boleslau, observe como esse mundo dá voltas! Tu já pensaste que a Raquel é a herdeira dessa
fazenda junto com os irmãos? A mulher doLadislau ficou louca e é insana desde que as filhas morreram no
acidente.O infeliz do Ladislau já perdeu uma perna e metade da outra e ainda vai sofrer muito antes de
morrer. Então, a Raquel e os irmãos são os futuros donos de tudo isso aqui! Chê! Quero ainda ver aquele
infeliz numa cama e mexendo só com os olhos, igual a ti, que precisa fazer que nem um verme para te virar.
392
Sem piedade, após torturar o sogro com as palavras mais cruéis que conseguiu pronunciar, Tereza virou as
costas, deixando o sogro a resmungar tentando se comunicar.
Longe dali, Alice e Valmor enfrentavam alguns problemas. A esposa dele havia descoberto a traição e
pedia o divórcio. Valmor teve de ir morar com Alice no pequeno apartamento que lhe havia montado,
enquanto aguardava o processo do divórcio se desenrolar. Os dois às vezes se desentendiam. Alice queria
um apartamento maior e ele não estava acostumado àquelas exigências.
Na empresa em que trabalhavam, o romance entre eles tornou-se conhecido e os demais diretores e até o
vice-presidente, que tomaram ciência do fato, não viam com bons olhos aquela situação.
Alice, tentando prejudicar o quanto podia a Raquel, ainda insistia:
Você tem que mandar o Alexandre embora! Onde já se viu!
Ficou louca, Alice? O Alexandre nem trabalha abaixo da minhadiretoria! Além do mais, ele é
muito bem conceituado com os gerentes e os outros diretores. Não há motivo para eu pedir algo assim.
Sabe esse tempo todo que ele ficou fora com problemas de saúde? Por incrível quepareça, ninguém
conseguiu preencher os requisitos na sua função! Aquele cargo, naquele setor, é uma encrenca!
Ninguém é insubstituível! retrucou a mulher insatisfeita que,pelas maldades em seu coração
odioso, queria prejudicar o marido de Raquel a qualquer custo.
Mas o cara é competente! O pessoal está desesperado, aguardando ele voltar. Soubemos que
ele quase morreu!
Com voz de deboche e irônica, Alice falou:
Se fosse tão grave ele não estaria viajando em lua-de-mel!
Esse é um direito que o assiste. Sorte dele!
Aquela desgraçada não merece isso! Eu, que dei um duro danado a minha vida toda, nunca viajei
de avião. Não me conformo! Raquel casada e viajando! gritou Alice.
393
Esquece a Raquel, Alice! Preocupe-se com você! Não adiantava, tudo o que Valmor dizia era em vão.
Alice se incomodava com a prosperidade da moça, mesmo tendo-a a distância.
Outra pessoa que não se esquecia de Raquel era Rosana. Mostrando ao noivo as peças que havia
comprado para a decoração do apartamento que estavam montando, ela dizia:
Como será que eles estão, hein? O Alex nem para telefonar.
Oh, Rô! O Alex já ligou três vezes. O que mais você quer?
Amanhã à tarde eles chegam ao aeroporto. Você vai comigo buscá-los?
Vou, lógico. Decorridos poucos minutos de silêncio, Ricardoperguntou sem perceber: Como
será que eles estão?
Olha só?! Depois fala que eu sou curiosa!Ricardo riu e comentou:
Não dá para deixar de pensar neles.
Nossa! Eu fico imaginando como ele gosta da Raquel!
Realmente concordou Ricardo. Alexandre gosta muito dela,para se submeter a isso.
Mas veja, só assim mesmo para ele ajudá-la.
É verdade. Após refletir o noivo confessou: Eu faria o mesmo.
Rosana, ouvindo aquilo, abraçou-o com carinho, beijando-o com amor.
Na tarde do dia seguinte, Raquel e Alexandre retornaram e, antes de irem para o apartamento, passaram
na casa dos pais dele. Ela estava um tanto tensa e até constrangida.
Alexandre, mais animado, colocou a fita das filmagens que fizeram para que assistissem.
394
A Raquel, com filtro solar e tudo, no primeiro dia, virou um"camarão". Agora vocês vão vê-la só de
camiseta com manga.
Dona Virgínia, para puxar conversa com a nora, que permanecia calada, perguntou:
Lá é bonito, Raquel?
É sim. É um lugar maravilhoso respondeu ela com timidez.
As piscinas naturais são de água quente. Eu sempre ouvi falar desse lugar em Goiás e sempre
tive vontade de ir lá revelou Alexandre.
É! O Brasil tem lugares maravilhosos! informou o senhor Claudionor.
Vamos, Raquel, coma alguma coisa, filha! insistia dona Virgínia.Rosana, que havia se afastado,
sinalizou de longe para o irmão ir
atrás dela. Alexandre levantou e decidiu ir ver o que era.
Vão assistindo aí que já volto avisou ao sair da sala.Rosana, já em seu quarto, estava curiosa.
O que foi? perguntou Alexandre sorrindo, ao entrar.
Feche a porta pediu ansiosa, mas meio sem jeito. Preciso saber! E a Raquel?
Alexandre se sentou na cama ao lado dela e desabafou:
Que encrenca, Rô.
Está arrependido? surpreendeu-se a irmã fechando o sorriso.
Claro que não!!! Estou preocupado. Jamais arrependido!
Preocupa-se com o quê? Como foi lá no hotel? O irmão fez silêncio e ela insistiu: O que
houve, Alex?
Mais sério, ele relatou sem grandes emoções:
Chegamos, pegamos as chaves e, conforme planejei, já era tarde,não teríamos aonde ir e ela
estava cansada. Deixei que tomasse um banho antes de mim e...
E aí?!
Quando voltei, ela estava sentada na cama. Nitidamente apavorada e chorando.
Já sei! Você foi dormir no sofá.
Não! Eu já tinha planejado tudo. Sou calculista, esqueceu?
395
O que você fez? perguntou Rosana impaciente.
Fui para perto dela e conversei um pouco, dizendo que estavatudo bem e aquelas coisas todas.
Eu a fiz deitar e a cobri. Foi quando ela perguntou, apreensiva: "Aonde você vai dormir?"
O que você disse?!
Dei a volta na cama, me sentei do outro lado e falei: "Só voupedir um direito como seu marido, o
de dormir ao seu lado. Só". Deitei-me, virei de costas para ela e tentei dormir.
E ela?!!!
Sentou, se encolheu, agarrou os joelhos e ficou chorando. Nesse instante da conversa,
Alexandre riu e continuou: Mais tarde,eu acho que dei uma cochilada e, de repente, senti um peso nas
minhascosta. Daí, nem me mexi. Era a Raquel que, de tanto chorar, acaboupegando no sono sentada
mesmo e tombou sobre mim.
E ficou assim?
Não, claro. Ela se ajeitou e foi para a ponta da cama.
E nas outras noites?
Passou a confiar. Deitei do lado e ela não disse mais nada nemchorou.
Ah! Eu fui lá no seu apartamento.
Desmontou a cama de solteiro?
Sem dó! E ainda levei suas roupas daquele quarto para a suíte.Arrumei do meu jeito, depois você
vê lá. Ainda comprei umas frutas,alguns alimentos sorrindo, Rosana completou , coloquei florespor
toda a casa. Ficou tudo tão bonitinho!
Alexandre a abraçou com carinho, dizendo:
Valeu, Rô! Obrigado.
O irmão se levantou e ela ainda falou:
Alex, vai dar tudo certo. Acredite.
Eu creio, Rô.
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Mais tarde, chegando ao apartamento, Alexandre agia normalmente, mas Raquel parecia um tanto confusa,
mais do que quando fora para lá pela primeira vez.
Ele se aprontou para dormir e, ao vê-lo ir para a suíte, ela perguntou:
Aonde vai?
Vou dormir. Tomei um remédio, estou com um pouco de dor decabeça e muito cansado.
Você está bem? preocupou-se a esposa.
Estou. Isso não é nada. Já vai passar. Raquel assistia à televisão e ele perguntou: Você não
vai dormir agora?
Agora, não respondeu sussurrando e abaixando o olhar.
O marido não gostou do que ouviu, porém não disse nada e foi se deitar. Horas depois, Alexandre acordou
e não encontrou Raquel do seu lado. Ele se levantou, foi até a sala e, ao vê-la encolhida no sofá, com uma
manta sobre as pernas, a televisão desligada, ficou contrariado e sem demora acendeu as luzes
despertando-a, ao dizer tranquilo, mas muito firme:
Raquel, acorda. Ela abriu os olhos assonorentada e o marido falou em grave tom de voz: Vai
dormir lá dentro, agora.
Raquel sentou-se rápido e ficou atordoada. Quando tentou falar, Alexandre a interrompeu, interrogando:
O que você pensa que eu sou? Preciso provar mais alguma coisapara você?
Eu... tentou dizer ela sem saber como se justificar.Muito firme, o esposo a interrompeu
novamente, dizendo:
Você vai dormir lá dentro. Se não for hoje, não será nunca mais!Daí que, quando a Bruna vier para
cá, você tenta explicar a ela por queseus pais dormem separados! Você tentará explicar para os
psicólogos,que eu acho que deverão avaliar o período de adaptação, por que dormimos separados e que
ideia estamos passando para nossa filha. Então,eles haverão de avaliar o seu estado psicológico e as
condições emocionais que você tem, ou não, para cuidar da Bruna.
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Raquel sentiu-se gelar. Dizendo isso, Alexandre ficou parado, sério, encarando-a.
A esposa se levantou com lágrimas nos olhos, cabeça baixa e foi para o quarto. Após entrar alguns passos,
parou temerosa e ficou olhando o ambiente. Alexandre entrou, fechou a porta e, parecendo bravo,
perguntou:
De que lado você quer dormir? Ela gesticulou com os ombrosdizendo que "tanto fazia". Ele,
ainda firme, sem tentar agradar à esposa,escolheu: Então dê a volta e deite-se lá. Prefiro ficar perto da
porta.
Determinado, deitou-se e apagou o abajur que iluminava o seu lado da cama. Raquel ficou em pé por
algum tempo, parecendo assustada. Sabendo que ela teria que se deitar, a princípio não se incomodou,
porém, devido à demora, pediu mais gentil:
Por favor, Raquel, você poderia apagar a luz. Essa claridade forte me incomoda. Se quiser que a luz
fique acesa, amanhã providencio umalâmpada mais fraca. Agora deita, quero acordar cedo.
Raquel, tal qual uma criança amedrontada, obedeceu. O marido percebeu que ela abafava o choro para
que ele não ouvisse. Alexandre não se sentia bem com o que fazia, aquilo partia seu coração, mas era
preciso. Ele acreditou que não deveria tentar confortá-la, talvez aquele fosse o único meio de ela
compreender e confiar nele.
Na manhã seguinte, Raquel despertou e não viu o marido do seu lado. Ela não ouviu nenhum barulho, mas,
de repente, ele entrou trazendo uma bandeja farta com suco, frutas e o café da manhã. Raquel sorriu sem
jeito e se sentou:
Bom dia, meu bem! cumprimentou ele iluminando o rostocom um sorriso e entregando-lhe a
bandeja; ajudou-a a se acomodarmelhor. Ele agia como se nada tivesse acontecido na noite
anterior.Constrangida, ela perguntou:
Nossa! Para que tudo isso?
Alexandre se deitou de bruços sobre as cobertas ficando ao seu lado e, apoiando-se sobre os cotovelos,
admirando-a, falou:
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É o seu primeiro café da manhã em nossa casa depois de casados.Acreditei que fosse gostar.
Você é maravilhoso, Alexandre. Obrigada agradeceu terna.
Sabe o que eu estava pensando? sem aguardar pela resposta,anunciou: Vamos dar uma
passada na casa do seu irmão, avisar quechegamos e depois... Sei lá! Almoçamos fora e à tardinha
pegamos umcinema. O que você acha?
Seria bom, eu gostaria de ir ver o Marcos. Quem sabe ele já teve notícias da minha mãe.
Mais tarde, o casal chegou à casa de Marcos, que se sentia constrangido, vez ou outra, pois se recordava
do passado, quando o ofendera. O marido de Raquel mostrava-se à vontade sem se importar com o que
tinha acontecido entre eles. Raquel parecia iluminar-se ao saber notícias de sua mãe, porém ficou triste ao
tomar conhecimento da morte do pai e da avó.
A mãe também disse que o avô está numa cadeira de rodas. Ele não anda nem fala. Você leu aí,
né? perguntou o irmão.
E quem está tomando conta dos negócios? perguntou Alexandre.
Deve ser meus irmãos, Pedro e Tadeu, junto com nosso tio, euacho. Minha mãe não entrou em
detalhes respondeu Marcos.
Raquel ficou contente em ter notícias de sua mãe. Ela jamais a condenara julgando-a culpada por tudo o
que lhe ocorrera.
Raquel chamou o irmão informando , eu escrevi respondendo a ela que você estava muito
bem. Disse que as melhores novidades você mesma contaria.
Você não contou que nos casamos?! admirou-se Alexandre.
E tirar esse prazer de vocês? Lógico que não! Virando-se para airmã, perguntou: Você vai
escrever pra ela, não vai? Quem sabe até mandar uma foto!
399
Claro! concordou Raquel. Sempre quis fazer isso, mas, pornão termos notícias dela, pensei,
assim como você, que a mãe não queriamais saber de mim.
Não é verdade, Raquel disse o esposo. O Marcos já explicou que as correspondências
foram desviadas.
É, agora eu sei. Eu vou escrever, sim, e mandarei uma foto animou-se Raquel.
Raquel disse Marcos , a mãe pergunta sobre a... começou a dizer, mas deteve as
palavras rapidamente porque a presença docunhado o inibiu.
Alexandre entendeu o que seria perguntado e, para demonstrar que o assunto não o incomodava, fez
questão de assumir ao dizer:
Então dona Tereza se interessou em ter notícias da Bruna! Quebom saber disso! Assim que
tivermos uma foto com a nossa filha, eumesmo faço questão de escrever e enviar a ela.
Surpreso, Marcos olhou para a irmã, e Alexandre revelou:
Não sei se a Raquel lhe contou, mas já assumi a paternidade daBruna.
O cunhado ficou perplexo, ele não sabia que Alexandre fosse capaz de tanto. A chegada de Elói, muito
animado, chamou a atenção de todos, que os cumprimentou com satisfação. Empolgado, o rapazinho se
interessou:
Aquele carro lá fora é seu?!
É confirmou o marido de Raquel com simplicidade.
Puxa! Que legal! É um carrão, né?
Compreendendo a carência do adolescente, misto à curiosidade natural, e percebendo que deveria deixar
os irmãos conversarem mais àvontade, Alexandre convidou:
Quer dar uma volta?!
Sério?!!!
Vamos lá! convidou Alexandre levantando-se.Ao se ver a sós com a irmã, Marcos admitiu:
Você não imagina, Raquel, como eu estou feliz em vê-la com alguém tão íntegro como o Alexandre.
Eu não poderia acreditar que
400
existisse alguém assim. Até a menina ele assumiu como se... Raquel abaixou a cabeça e Marcos
argumentou ainda: Inclusive a família dele, que gente boa! Deu para perceber que eles gostam muito de
você. Fez um ótimo casamento, Raquel! Ao reparar em sua irmã, Marcos a viu chorar. O que foi,
Raquel? Eu disse algo errado?
Não. Você não disse nada errado avisou secando as lágrimas.
Então por que você está assim? preocupou-se o irmão. Vocênão o ama? Casou-se
forçada?!
Amo sim. Eu adoro o Alex, mas ele merecia alguém melhor. Após pequena pausa, ela revelou
em desespero: É que nós nos casamos só no papel, Marcos. Não sou mulher do Alexandre. Nunca
fui!Não posso...
O irmão ficou confuso e em choque. Ele se levantou e vagarosamente andou de um lado para o outro da
cozinha, depois se sentou ao lado dela e perguntou:
É por causa da violência que você sofreu? Aquilo tudo aconteceu,então! Por isso reage assim?
Ela afirmou com um aceno de cabeça eMarcos, incrédulo, falou: Raquel, isso não é verdade. Não pode
ser.Diga que é mentira!
Ela abaixou a cabeça e procurou secar as lágrimas teimosas que rolavam.
Raquel, esse homem a ama! Ele tem feito tudo por você! Apesar de no passado... Você não pode
fazer essa barbaridade com ele!
Eu sei! afirmou a irmã quase num grito de lamento. Com avoz embargada, continuou: Não
me torture mais, pelo amor de Deus.Eu sei disso. Quando me acolheu o Alexandre me tirou da rua, era
de madrugada e eu estava em uma praça cheia de travestis. Ele me levou para o seu apartamento, cuidou
de mim, me deu sua cama para dormir!Sempre me respeitou, me entendeu... Ele me ama tanto que até
agora respeita meus limites, meus medos e traumas...
Marcos se aproximou e abraçou sua irmã, foi quando ela chorou mais ainda. Ele estava incrédulo, aquilo
não poderia ser. Suspirando fundo e ainda sem aceitar, ele perguntou:
401
Como vocês se casaram? Como foi surgir essa ideia?
Raquel se afastou do abraço e, com o rosto rubro, lágrimas correndo, ela o encarou respondendo:
Alexandre ainda estava acamado, depois de sair do hospital.Ele disse que me ama a ponto de
ser feliz somente por minha presença ao seu lado. Analisei tudo o que tem feito... Havia prometido que faria
tudo por ele, tudo o que me pedisse, mas jamais imaginei que fosse me pedir em casamento. Eu não sei
como aceitei! Fiquei atordoada na hora, vi o quanto ele gostava de mim e me respeitava,então concordei.
Marcos! exclamou ela em desespero. Eu não sei como fui aceitar! Quando vi já estava casada! Eu
amo o Alexandre, sei que ele me quer... me deseja, mas como é que posso fazê-lofeliz?!
Calma, não fique assim. Vocês só têm uma semana de casados e... Ele deteve as palavras,
mas depois prosseguiu: O Alexandre é umbom homem e muito inteligente, eu acredito que tenha até se
casado com você de caso pensado.
Como assim?
Casados, ele poderá se aproximar de você, entende...? Conquistá-la... Poderão fazer uma
terapia, sei lá.
Mais calma, ela revelou:
Às vezes parece que me esqueço, quero abraçá-lo... corresponder aos seus carinhos. Porém, há
momentos em que não consigo me controlar, choro, entro em pânico.
Vocês estão dormindo em quartos separados?
Não. Na noite passada, eu até...
Raquel contou o que se passara na noite anterior, quando o marido praticamente a intimara a ir dormir no
quarto.
Ele me disse que só teria essa exigência como meu marido. Nadamais.
Marcos não disse nada. Ele entendeu os planos do cunhado. O marido a estava conquistando, com
certeza; fazendo com que se acostumasse com ele.
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Um barulho no portão os fizeram notar que Alexandre e Elói jáhaviam chegado. Ao entrar, Alexandre se
aproximou da esposa e afagando-lhe o ombro perguntou, quase sussurrando:
Tudo bem?
Sim. Está respondeu ela constrangida.
Marcos olhava para o cunhado e o admirou como nunca fez com ninguém. Sem perceber que era
observado, Alexandre se curvou, beijou os cabelos da esposa e perguntou baixinho:
Vamos?
Vamos, sim aceitou levantando-se.
Não! Fiquem para almoçar aqui.
Oh, Marcos, agradeço muito respondeu Alexandre , mas éque já fiz alguns planos para hoje
à tarde. Sabe, fiquei muitos dias sem sair de casa por causa do problema cardíaco, depois fomos viajar.
Euqueria dar uma volta pela cidade, pegar um cinema. Fica para outro dia.
Raquel lembrou e interrompeu-os, dizendo:
Na próxima semana irei ver a Bruna.
Iremos corrigiu Alexandre, sorrindo.
Estou com tanto medo ela revelou com certa timidez.
Eu não! avisou Alexandre. Estou ansioso. Não vejo a hora.
Estou torcendo por vocês! afirmou Marcos, satisfeito. Vaidar tudo certo.
Raquel se despediu do irmão e foi à procura do sobrinho para dizer adeus. Nos poucos minutos que ficou a
sós com o cunhado, Marcos aproximou-se e deu-lhe um forte abraço, que durou algum tempo, e disse:
Obrigado. Parabéns por você ser assim. É difícil encontrar alguém tão digno, Alexandre.
Eu?! respondeu o rapaz sem entender do que se tratava.
Sim. Obrigado por tudo o que fez e está fazendo por minha irmã.Alexandre sorriu e sem se
constranger afirmou:
Eu adoro a sua irmã, Marcos. Eu disse a você que cuidaria dela.Faço tudo pela Raquel.
403
Estou vendo.
Alexandre desconfiou que a Raquel tivesse contado algo ao irmão. Ele chegou a essa conclusão não só
pelo comportamento do cunhado naquele instante, mas também por ter visto sua mulher com o rosto
vermelho, por chorar. Raquel retornou e disse:
Vamos?
Enquanto o casal procurava um lugar para almoçar, Raquel conversava com o marido, dizendo:
Tenho ido com a Rô a um Centro Espírita e gostado muito.Qualquer dia você vem com a gente?
Vou sim. Outro dia ela me deu dois livros. Fiquei admirado com o conteúdo. Nunca havia
encontrado informações tão lógicas e racionais sobre a existência do ser humano, sobre as experiências
que passamos, ascausas das aflições e os efeitos que sofremos pelo que provocamos.
Que livros?
O Livro dos Espíritos e O Evangelho Segundo o Espiritismo.
Ah! Também os estou lendo. Você já foi, alguma vez, lá no Centro?
Só para ir buscar a Rô.
E seus pais?
Minha mãe é católica, mas lê e se interessa por Espiritismo. A Rosana brinca e diz que ela é uma
"católica-espírita". Raquel riu e omarido continuou: Meu pai simpatiza com essa doutrina. Ele gosta de
assistir às palestras.
E você?
Sempre aleguei não ter tempo. Mas agora estou disposto e interessado em aprender mais.
Estou me sentindo tão bem indo lá.
Fico feliz com isso afirmou sorrindo. Tenho certeza de quefará bem a você. Vou começar a
ir para lhe fazer companhia.
404
Na manhã seguinte, Raquel acordou novamente ao som de um belo solado acompanhado pelo murmurinho
na voz de Alexandre.
Depois de um banho ela chegou na cozinha e, percebendo que ele não havia se alimentado, preparou um
suco levando-o para o marido.
Obrigado! agradeceu alegre aceitando o copo. Depois falou: Espero não te incomodar com
a música.
É lógico que não respondeu docemente acomodando-se ao lado.
Sua voz é bonita, Raquel. Canta comigo? pediu o Alexandre com jeito meigo.
Acordei quase agora, ainda estou meio rouca. Canta você.
Ah! É só no começo que sai ruim, depois que as cordas vocaisaquecem, melhora.
Não disse com jeitinho manhoso recostando-se nele.Alexandre tocou mais uma canção. Ao
terminar ficou olhando para a
bela Raquel por algum tempo. Ela, inebriada pela canção, tinha o semblante sereno ao esboçar um sorriso
delicado. Não resistindo, ele aproximou-se vagarosamente e a beijou com carinho quando a tomou nos
braços. Raquel não disse nada e pareceu aceitá-lo sem receio naquele momento, afagando-lhe com
carinho.
Propositadamente, contrariando a própria vontade, mas seguindo sua estratégia, Alexandre a acomodou
corretamente e alinhou-se, afastando-se do abraço. Raquel estranhou, mas não argumentou fugindo-lhe o
olhar. Como se nada tivesse acontecido, Alexandre comentou:
Estou pensando em chamar um projetista para fazermos o quartoda Bruna. O que você acha?
Já?!
Temos que lembrar que isso não é tão rápido. Na próxima semanajá vamos vê-la.
Meu coração está tão apertado confessou Raquel temerosa.
Eu sei. Após alguns minutos, ele completou: Ela deve ser a sua cara.
405
Por que você sempre diz isso, Alex?
Ele respondeu com sorriso e olhar meigos, mas sem palavras.
Enternecido, carinhosamente afastou-lhe o cabelo do rosto fazendo um afago. Aquele instante parecia
mágico para ele. Com o olhar perdido em Raquel, Alexandre se lembrou do quanto a queria perto de si,
sem o medo de perdê-la. Agora, casados, sentia-se mais seguro.
Suas almas se deixavam invadir por vibrações divinas, algo único e puro, chamado Amor!
Que doce harmonia reinou naqueles breves minutos que pareciam eternos! Órfãos do egoísmo, nada
exigiam um do outro, cultivando e reforçando somente os preciosos talentos da compreensão, da paciência
e do amor incondicional, verdadeiro...
Com o sorriso nos lábios e nos olhos um brilho que expressava intraduzíveis emoções sublimes, Alexandre
acariciou-lhe o rosto, dizendo baixinho:
Eu te amo, muito.... e ouviu:
Eu também amo você.
Raquel se aproximou e ele se surpreendeu ao sentir seu abraço apertado em que procurava aquecer-se
nele. Alexandre a envolveu com carinho e aninhou-a nos braços como quis. O coração de Raquel batia
forte, mas ela não dizia nada. Ficaram assim por algum tempo, em silêncio, até que o telefone tocou.
Alexandre ajudou-a a se sentar melhor e se levantou para atender. Raquel sentiu-se diferente, como que
frustrada, desejando que ele ficasse ali.
Pouco tempo depois, animado, ele a procurou, dizendo:
Vamos lá na casa da minha mãe? A Vilma está lá!
Na semana que se iniciou, Alexandre voltou ao trabalho assumindo sua mesma função. No serviço todos o
cumprimentaram pelo casamento
406
e ficaram curiosos em saber sobre o seu problema cardíaco. Por muitas vezes, precisou contar todo o
ocorrido.
O senhor Samuel, diretor imediato de Alexandre, chamou-o em particular e já na sala dele contou
novamente o que lhe ocorrera.
E no meio de tudo isso você ainda teve que se casar? Você ésuicida mesmo, hein! brincou o
diretor rindo com gosto.
Alexandre sorriu e explicou à sua maneira:
Minha situação com a Raquel era irregular perante as leis. Vivíamos juntos e não havia motivos
para não nos casarmos legalmente. Esse susto me fez pensar muito a respeito disso.
A Raquel não é aquela moça que trabalhava aqui?
Sim. É ela mesma.
Sempre gostei muito dela. É uma moça bem-comportada. Não tínhamos comentários sobre sua
vida. Estranhei quando soube que oValmor a demitiu, não vi motivo. Ela cumpria seu dever, era
elegante,educada e muito quieta. Aliás, eu nem sabia que vocês viviam juntos.
Procurávamos ser discretos disse Alexandre com um sorrisocínico.
E para quando é o herdeiro? perguntou o homem em tom debrincadeira.
Alexandre não conseguiu se conter e orgulhosamente anunciou:
O próximo eu não sei, mas já temos uma filha de três anos.
Já?! Então, realmente estava mais que na hora de vocês regularizarem a situação. E ela, está
trabalhando?
Não.
Em breve ela arrumará coisa melhor. Após pequena pausa, odiretor disse: Vamos ao que
interessa. O caso é o seguinte: o seugerente, o Luiz, volta de férias na próxima semana. Estamos com
umgrande projeto e um remanejamento no quadro. Queremos que você seja líder desse projeto e...
Puxa! Que susto! disse Alexandre rindo.
Por quê?
Pensei que fosse ser despedido. Depois de tanto tempo em "férias"!
407
O homem sorriu e falou:
Filho, o seu setor é um inferno! Principalmente sem você, temos que admitir isso. Ninguém quer
aquela encrenca e até entendemos porque você teve problemas cardíacos!
Ambos riram e o diretor continuou a explicar os planos.
Por causa do excesso de trabalho, Alexandre começou a sair um pouco além do horário, pois tinha muito
que organizar. Na sexta-feira, lembrou-se que havia prometido à esposa que iria acompanhá-la ao Centro
Espírita e não queria decepcioná-la.
Débora pediu Alexandre a uma funcionária que trabalhava sob sua supervisão , hoje eu vou
sair no horário. Mas mantenha-me informado de tudo, tá?
O "pessoal do suporte" terminará a inclusão daqui a uma hora.
Ótimo! Nesse tempo já estarei em casa. Ligue-me para contar asnovidades. Quero ir planejando
essa implantação para, quando chegar na segunda, instalarmos tudo de uma vez informava
Alexandre preocupado com o serviço.
Passada mais de uma hora desse episódio, Alexandre chegou em casa e Raquel já estava pronta e
esperando-o.
Oi! cumprimentou o marido dando-lhe um beijo rápido ecompletando: Já sei, estou
atrasado! Quieta, ela estava diferente,bem séria, mas o encarava. Então ele perguntou: Acho que
nem dátempo de tomar um banho, né?
Temos que pegar a Rosana, ainda informou Raquel, com modos frios. Eu não gosto de
chegar atrasada.
Estranhando aquele comportamento, ele perguntou com modos brandos:
O que houve, Raquel? Aconteceu alguma coisa?
Não. Nada respondeu friamente se voltando para algo, tentando disfarçar.
Como, nada?
Telefonaram para você do serviço avisou interrompendo-o.
Ah!... Então espere mais um pouquinho. Tenho que telefonar. Jásei o que é. Ligando para
Débora, Alexandre ouviu o que lhe interessava,
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depois respondeu à colega de serviço: Lembra do que falei durante o almoço? Eu já sabia que isso
ia acontecer. Agora é o seguinte, eles terão que dar um jeito. Não depende de nós. Débora disse mais
alguma coisa e ele respondeu: Eu já sei. Não estressa! É assim mesmo. Após pequena pausa
concluiu: Débora, segunda-feira conversamos. Creio que isso é só. Mais alguns segundos ficou
ouvindo em silêncio e, por fim, retribuiu: Tchau! Obrigado. Outro!
Raquel, que parada à porta ouvia a conversa, sentia-se esquentar. Enrubescida de raiva, não disse nada,
mas Alexandre percebeu que seus modos, antes delicados e generosos, estavam automáticos e frios. O
ciúme a envolvia sem que admitisse. Emburrada, Raquel pegou no braço do marido como se fosse sua
propriedade. Não admitiria que ele tivesse outra mulher pensava. Poderiam estar casados só no papel,
mas ela era sua esposa e, quando ele a pedira em casamento, a proposta de que vivessem daquela forma
partira dele.
Após pegarem Rosana, a cunhada percebeu que a esposa de seu irmão estava diferente. Perguntando o
que estava acontecendo, Raquel informou que não havia nada.
Já no Centro, novamente Raquel agarrou novamente no braço de Alexandre que não entendia nada e
deixava acontecer. A palestra evangélica daquela noite fora: "A indissolubilidade do casamento, traição e
divórcio". Ao saírem do Centro, Raquel somente falou sentida e em voz baixa para o marido:
Foi ótimo você ter vindo hoje. Essa palestra foi pra você!Alexandre olhou para sua irmã e, sem
entender nada, gesticulou
com os ombros de forma singular e seguiu de braços dados com a esposa. Eles levaram Rosana para casa
e, chegando no apartamento, Raquel agia do mesmo modo, sem sorriso e sem palavras.
Após um banho e o jantar, Alexandre foi brincar com jogos em seu computador; decidira não perguntar nem
dizer mais nada ou tentar saber o que se passava, pois ela, sem conversar com ele, foi assistir àtelevisão
mesmo não prestando atenção no que via. Vencido pelo sono, o marido foi até a sala e avisou:
Amanhã temos que levantar cedo. Você não vai dormir agora?
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Não respondeu ela. Pode ir.
O que houve, Raquel? Você não é assim perguntou calmo.
Nada. Não houve nada murmurou ela sem expressão.Contrariado com aquela atitude da
esposa, ele pediu:
Vê se não demora pra ir dormir. Amanhã temos que sair cedo daqui.
Ela não disse mais nada e o marido foi se deitar. Bem mais tarde, Alexandre acordou e Raquel não estava
no quarto.
O que foi dessa vez?! perguntou quase irritado.
Levantando-se, foi até a sala à procura da esposa e encontrou o televisor desligado e Raquel encolhida
dormindo no sofá. Alexandre acendeu a luz e a chamou com jeito brando:
Raquel, acorda. Ela se mexeu e ele completou ao vê-la despertar: O que está acontecendo?
Vamos conversar, Raquel. O que foi?
A esposa se sentou e disse após alguns segundos:
Quem é Débora?
Por ser uma pessoa lógica e racional, Alexandre rapidamente entendeu que tudo aquilo era por causa do
telefonema. Raquel estava com ciúme. Paciente, perguntou com jeitinho:
Você não vai me dizer que toda essa cena, que vejo desde a horaque cheguei, é por causa daquele
telefonema, vai?
Ela o encarou firme e tornou a perguntar, agora veemente:
Você ainda não respondeu. Quem é Débora?
Ela trabalha comigo. Por quê? explicou com muita calma.
Ela ligou pra cá umas três vezes antes de você chegar e não quisdizer o que era.
Raquel, você está com ciúme disse segurando o sorriso e sentindo-se até satisfeito.
Não estou com ciúme! Só acho que você deveria me respeitar.
O que eu fiz de errado, Raquel? perguntou com humildade.
Você almoçou com ela, não foi?!
Sim. Por quê? tornou novamente demonstrando submissão.Raquel se irritou e levantou dizendo:
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Se antes você almoçava com uma e com outra, tudo bem. Mas agora é um homem casado. Isso
não fica bem!
Raquel, não há nada de mais. Pare com isso.
Foi você quem começou! retrucou aumentando o volume davoz.
Ah! Como eu que comecei? indagou ainda tranquilo, quase irônico.
Você saiu com essa tal de Débora, deu o telefone da sua casa,ainda liga daqui e diz, na minha
frente, que na segunda-feira conversacom ela!
Mais sério agora, percebendo que Raquel já passava dos limites e perdia o bom senso, ele pediu gentil:
Raquel fale mais baixo. Não estamos brigando. Em seguidacontinuou explicando com baixo
volume na voz: A Débora me ligoupor causa de assuntos do serviço.
Por que antes de desligar você agradeceu e disse "Outro"? "Outro" o quê?
Contrariado, mas mantendo a paciência, Alexandre explicou:
Ela me desejou bom fim de semana e me disse: "Um abraço!". Eudevo ter dito: "Obrigado",
"Outro". Creio que foi isso. Após esse esclarecimento, Alexandre mais sério, pediu: Vamos parar com
essa história. Agora é tarde. Vamos dormir, tá?
Vou ficar aqui! afirmou resistente.
Ponderado, mas impondo na voz certa insatisfação, ele pediu novamente:
Raquel, vá dormir lá dentro, por favor.
Já disse, vou ficar aqui! Não vou dormir naquele quarto com você!Ele se sentiu esquentar. A
esposa agora, realmente, esgotara-lhe toda
a paciência. Alterado, perdeu o controle e irritou-se dizendo:
Ah! Você vai dormir lá, sim!
Agora nervoso, dominado por uma atitude inesperada, até para ele mesmo, Alexandre segurou firme no
pulso de Raquel e a levou para o quarto. Forçando-a se sentar na cama, fechou a porta e,
voltando-se
411
d para ela, falou bem baixo, porém tom firme e demonstrando-se magoado:
Como pode me acusar de traição assim?! Pensa que eu sou o quê?!Vamos parar com essa história
porque eu não sou moleque. Se tiveralguém aqui agindo como tal, é você!
Nesse instante a esposa deixou-se dominar por um sentimento que jamais tivera. Furiosa e insana, Raquel
se levantou e deu-lhe um tapa, que foi detido rapidamente antes de acertá-lo, pois Alexandre segurou seu
pulso por algum tempo no alto, usando certa força ao apertá-lo sem perceber. Incrédulo, olhou-a firme nos
olhos e a empurrou com força sobre a cama.
Raquel ficou assustada, ela mesma não se reconhecia. Com a respiração ofegante, olhos brilhando e
queixo trêmulo, ela o encarava sem entender a si própria; estava atordoada.
Alexandre, sério e decepcionado, impostou a voz com veemência e falou vagarosamente, em baixo volume,
olhando-a firme nos olhos:
Nunca mais faça isso. Entendeu? Nunca mais. Eu posso tolerartudo de você, Raquel, menos uma
agressão, uma mentira e uma traição.Casei-me disposto a tudo, mas a tudo que fosse bom para mim e
paravocê, também. Além do mais, Raquel, sua atitude diante desse simples telefonema foi a de uma
criança, e eu pensava ter me casado com umamulher. O único pedido que te fiz, como marido, foi que
dormíssemos na mesma cama, nada mais. Ele fez breve pausa e depois, ainda olhando-a com firmeza,
continuou: Não traí você, nem em pensamento. Não quero e não vou traí-la, apesar de ter uma grande
razão para isso, você sabe.
Nesse momento, Raquel murmurou:
Podemos pedir anulação do casamento se...Interrompendo-a, o marido quase gritou, dizendo:
Pró inferno a anulação! Você não sabe o que está dizendo!Ela começou a chorar e, com a voz
abafada, justificou:
Eu não sei por que agi assim. Perdoe-me, por favor.Firme e ponderado, ele prosseguiu:
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Como eu ia dizendo. O único pedido que te fiz foi para que dormisse aqui, mas antes disso eu falei
que jamais iria forçá-la a nada que não quisesse. Por isso, Raquel, se eu sou tão repugnante assim
paravocê, pode ir dormir na sala ou onde você quiser, pois por nada desse mundo vou deixar de dormir na
nossa cama.
Ela entrou em crise de choro. Encolhendo-se, Raquel escondia o rosto, abafando os soluços involuntários e
compulsivos. Alexandre, incrédulo e magoado com o acontecido, sentou-se na cama, apoiou a fronte nas
mãos e os cotovelos nos joelhos aguardando que ela decidisse algo. Passados longos minutos, Raquel o
segurou pela blusa do pijama e o fez olhar para ela. Encarando-o com humildade, ainda com os olhos
úmidos,
a face rubra e a voz rouca, entrecortada por soluços, ela pediu:
Pelo amor de Deus, me desculpe, Alexandre. Eu não sei por quefiz aquilo. Você é a última pessoa
no mundo a quem eu queria magoar.
Alexandre ficou olhando para ela e permaneceu em silêncio. Tudo o que precisava, já havia dito.
Puxando o esposo em sua direção, tentando mover seu braço forte sobre si, Raquel parecia implorar por
um abraço. A princípio ele permaneceu sério, firme, inamovível, mas não resistindo ao desejo que o
dominava, Alexandre se curvou, ajeitou-se ao seu lado, tomou-a em seus braços envolvendo-a, acariciou-a
com extremo carinho e a beijou apaixonado, por longo tempo, como sempre quis.
Percebendo seu medo, pois em dado momento Raquel o segurou espalmando a mão em seu peito, ele se
deteve, olhou-a por alguns segundos e abraçando-a ainda ficou imóvel. Depois, escondeu o rosto em seu
ombro, apertando-a contra si. Alexandre experimentava uma amargura que nunca sentira. Afastando-se
pediu brandamente:
Vamos dormir. Precisamos acordar cedo.
Você me perdoa? perguntou a esposa com voz chorosa.Alexandre se aproximou, segurou seu
rosto, beijou-lhe e disse:
Eu te amo, Raquel. Não posso viver sem você. Quero que, antes de qualquer coisa, sejamos
amigos. Após pequena pausa, continuou: Confie em mim. Quando tiver dúvidas, venha me questionar,
eu
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sempre estarei disposto a ouvi-la, mas sem agressões com palavras ou gestos.
Eu não sei o que me deu. Como eu pude... Encarando-o,pediu novamente parecendo implorar:
Desculpe-me?
Claro! respondeu com voz terna e um sorriso piedoso.Raquel ficou olhando-o e acariciou-lhe o
rosto sem dizer mais nada.
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Capitulo 19
Três corações entrelaçados
O dia seguinte anunciou-se com lindos raios solares, cuja claridade parecia diferente, envolvendo a todos
de maneira muito especial. Após duas horas de viagem, Raquel e Alexandre chegaram ao educandário
onde Bruna Maria estava. Eles conheceram o lugar, que fora apresentado por uma freira bem gentil e, em
seguida, foram conduzidos até um pátio bem arborizado nas laterais e revestido no centro por lindíssimo
gramado salpicado de florzinhas miúdas. A freira e uma assistente social faziam companhia ao casal que,
de longe, passaram a ver outra irmãtrazendo pela mão uma pequena garotinha.
É ela?! perguntou Raquel ansiosa.
É sim confirmou a freira sorridente.
A esposa, sem perceber, apertava o braço do marido e ele, sorridente, afagava-lhe a mão.
Em dado momento, Raquel, soltando-se do braço forte de Alexandre, apressou-se em direção da filha para
encurtar a distância que parecia longa.
A pequena garotinha de lindos cabelos dourados, compridos e com belos cachinhos, que balançavam ao
andar, trazia uma doce alegria no rostinho tranquilo. A freira que a conduzia soltou-lhe a mão e Bruna
correu na direção da mãe. Raquel, com lágrimas a correr pela face, ajoelhou-se à espera de um abraço.
Próxima, a menina parou sorrindo, afagou-lhe o rosto com sua pequena mãozinha e disse com voz doce e
delicada:
Você é minha mãe? Eu sabia que ia vir me buscar, mamãe. A tia me disse.
Raquel a abraçou forte, apertando a filha contra si, enquanto chorava muito. A menina começou a chorar
também e a mãe teve que procurar se conter para não assustá-la.
Tudo bem, filhinha. Não chore, não. Chorei porque estou feliz dizia com sua doçura peculiar.
Raquel a olhava sem se cansar, passando-lhe a mão no rosto e nos bracinhos como quem não
acreditassenaquele momento. Você está bem, filhinha?
To! Eu sabia que você vinha.
E! Quem disse? perguntou Raquel.
A tia. Em seguida a menina questionou: Por que você não veio antes?
Porque a mamãe não pôde. Tive problemas. Um dia conversaremos sobre isso, tá bom, filhinha?
respondeu a mãe que já esperavapor essa cobrança. Agora, meu bem, vamos aproveitar esse
momento, tá certo?
Bruna, com seu sorriso ingénuo e delicado, perguntou olhando na direção de Alexandre, sem que Raquel
esperasse:
Mamãe, e o papai, não vai me abraçar?
Ao ouvir isso, Alexandre apressou-se na direção de ambas, ajoelhando, como Raquel, ao lado da
pequenina. Ele também não conseguia conter as lágrimas. Estendendo-lhe os braços, a menina falou
meigamente:
Você é igualzinho no sonho.
A emoção não os deixou prestar atenção no que Bruna falara. Em pranto, Alexandre abraçou a filhinha,
enchendo-a de beijos e carinho.
Liberto das amarras da própria consciência, ele, emocionado, recebia agora a filha verdadeira que, num
passado distante, não reconhecera. O sentimento intraduzível do encontro oportuno agora era registrado
com ideais sublimes. Eles jamais esqueceriam tanto júbilo.
Poucas palavras foram trocadas, porém não se pode dizer o mesmo quanto às emoções. Seus corações se
entrelaçaram na mesma harmonia, felicidade e esperança.
O horário se escoara rápido. Bruna Maria chorou ao ter que deixá-los, mas recebeu promessas de visitas.
Raquel ficou aborrecida pela separação. Abraçada ao marido, ela não se importava com os demais e
chorava.
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Irmã Eunice, que conhecia toda a vida de Bruna Maria, em dado momento comentou, na frente do casal,
com a assistente social que acompanhava o caso:
Como Deus coloca Suas mãos na hora certa. Sempre rezamospara que Bruna Maria encontrasse
uma família e, quando ela foi levadapelo casal Ribeiro, não queria ir. Dizia que gostava deles, mas
sempre nos falava que seus pais viriam buscá-la em breve.
Alexandre ficou atento à conversa, interessando-se, e a assistente social completou:
É verdade! Quando perguntamos quem disse que os pais viriam buscá-la, ela respondia que tinha
sido um anjinho.
A freira riu e comentou:
A Bruna, por muitas vezes, nos descreveu o senhor. Ela dizia que se parecia com a mãe, mas
tinha os olhos da cor dos seus.
De onde ela tirava essas ideias? perguntou Alexandre.
Ela dizia que sonhava. A cada manhã, quando sonhava com o senhor, Bruna acordava contente e
animada, pois comentava que haviaconversado com o pai e ele dissera que viria até aqui, para que
esperasse só mais um pouco e fosse uma menina boazinha. Sabe, sempre acreditamos que era coisa da
cabecinha dela. Conhecemos as crianças muito bem. Mas confesso que estou impressionada, ela o
descreveu direitinho.
A assistente social ainda completou:
Há pouco tempo, depois que foi retirada do casal Ribeiro, poistivemos de interferir, Bruna estava
triste, muito quietinha, então eu fuiconversar com ela. Pensei que estava assim por causa da adoção.
Daí,perguntei o que era, foi quando ela me respondeu que estava triste porque não estava mais sonhando
com o pai. Disse que ele estava doente.
Alexandre ficou surpreso, mas sorriu e revelou:
Mas eu fiquei doente mesmo.
Ficou?! indagou a freira, surpresa.
Ficou, sim respondeu a assistente na vez de Alexandre.
O que o senhor teve? tornou a irmã.
Tive um problema cardíaco e precisei ficar internado.
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Eu soube disso quando peguei o caso, dias após conversar com a Bruna disse a assistente.
Fiquei impressionada! Agora mais aindapor vê-la recebê-los tão bem e se identificando tão rapidamente
comvocês. Isso é difícil. É como se os conhecesse há tempos.
Raquel ficou calada, não sabia o que dizer.
Depois de conversarem mais, agendando novas visitas, o casal se retirou contrariado por ter que respeitar
as normas e deixar Bruna ali.
Na viagem de volta, Raquel não dizia nada. As vezes sorria de leve e com o olhar perdido, parecendo estar
recordando os poucos momentos que tivera com a filha. O marido só a observava, permanecendo em
silêncio também. Pouco eles conversaram.
Chegando ao apartamento, Alexandre sentou-se no sofá ao lado de Raquel e disse:
Não falei que a Bruna se parecia com você?! Após rir, comentou orgulhoso: Mas tem os meus
olhos! Viu?!
Repleta de fortes emoções, Raquel não conseguiu se conter e o abraçou forte, não tendo palavras que
expressassem seus sentimentos. Mais tarde, quando estavam deitados, a esposa o fitou e disse:
Obrigada por tudo, Alex. Eu amo você.
Alexandre sorriu e estendeu-lhe o braço, puxando-a para junto de si. Raquel o beijou, acomodou-se em seu
ombro, abraçando-o pela cintura, e após minutos adormeceu.
Alexandre não conseguiu pegar no sono. Ele estava emocionado e se sentia feliz só por ter aquele simples
gesto de carinho da esposa. Por ter reconhecido a filha.
No dia seguinte, na casa de seus pais, Alexandre contava para todos:
Bruna é a cópia da Raquel, mas tem os meus olhos!
Vocês tiraram fotos, não foi? perguntou dona Virgínia.
Sabe, mãe, levamos a máquina, só que... Puxa! Foi tanta emoção que esquecemos explicou o
filho embaraçado e arrependido.
418
Exagerada em suas expressões para brincar com o irmão, Rosana exclamou:
Egoísta! Cachorro! Traidor!!! Como você faz isso com a gente?!
Estou ansioso! Quero conhecê-la! disse o senhor Claudionor.A conversa seguiu e Raquel teve
que satisfazer algumas curiosidades
da sogra, ambas ficaram conversando e tecendo planos, enquanto Rosana, alegando não se sentir bem, foi
para seu quarto, e Alexandre a seguiu. Ao entrar no quarto da irmã, ele perguntou:
O que foi, Rô? Dor de cabeça outra vez?
É... Estou tão enjoada ultimamente. Sabe, não venho me sentindo muito bem.
Precisa ir ao médico, Rô. Isso não é normal. O irmão riu eperguntou, com jeito maroto:
Huuum! Enjoo, é?!... Não seria, por acaso, o meu sobrinho o causador desse mal-estar?
Rosana riu gostosamente e respondeu:
Que pena! Não é, não! Já pensou se fosse?
Nem brinca, Rô. A mãe morre!
Morre nada. O chilique seria só no momento da notícia. Depois...
É melhor você procurar um médico.
Isso passa, Alex. É por causa da temporada de provas. Foi muita pressão. Tem dia que dá
vontade de matar um professor que tenho lá,sabe! Mas nem vale a pena relembrar. Após a explicação
ela mudou de assunto perguntando: E você, como está?
Ah! Nem te contei! A Raquel teve uma crise de ciúme. Ele revelou à irmã, sua confidente.
Jura?! perguntou a moça interessada.
Ela atendeu uma ligação que era pra mim, era do serviço, só que amulher não falou direito quem
era e a Raquel ficou "louca da vida" comigo.
Ah! Que legal! vibrou Rosana animada.Alexandre fechou o sorriso e revelou:
Na hora não foi tão legal assim. A Raquel foi dormir na sala. Eu fuifalar com ela e... Sabe, no
começo eu até estava achando graça, mas depoisela começou a perder o bom senso. Acabei brigando e
até tive que falar alto.
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Ele deteve as palavras e a irmã perguntou:
O que foi, Alex? Você não a maltratou, né?
Puxa, Rô. Fiquei tão nervoso! Ela me acusava ostensivamente.Tive que dizer algumas coisas e
acabei chamando-a de criança. Pensativo, ele completou: Eu não esperava aquela reação da
Raquel.Confesso que me surpreendi e até agora estou incrédulo.
O que ela fez?
Alexandre encarou Rosana e revelou:
Você acredita que a Raquel tentou me dar um tapa no rosto?
Um tapa?! A Raquel?! exclamou perplexa e boquiaberta.
A Raquel, sim. Sabe, Rô, parecia que não era ela.
Meu Deus! Eu nem acredito nisso espantava-se a irmã incrédula, parecendo assombrada.
A Raquel só poderia estar envolvida.
Sei lá continuou Alexandre. Isso não pode ser desculpa.Creio que todo mundo precisa ter
bom senso e ser responsável pelo queestá fazendo. Ela se transformou.
Acertou você?
Não. Quando ela ergueu a mão fui rápido e segurei seu braço...Depois fiquei até com medo,
porque me deu uma coisa na hora... Hoje eu fui olhar e vi que apertei tanto seu pulso que ficou até marcado.
Nomomento em que segurei seu braço eu a encarei firme e me senti irracional. Depois a joguei, com um
empurrão, sobre a cama e falei ummonte de coisa. Puxa, Rô, me senti tão mal... confessou o irmão
emtom de lamento.
E ela?
Primeiro falou em anular o casamento. Daí eu dei um grito...Nem sei o que falei direito. Por fim,
acabamos nos entendendo.
Preocupada, Rosana lembrou:
Agora fica mais fácil, Alex. Vão a um psicólogo. Vocês precisam de ajuda profissional.
Eu sei. Mas sabe por que estou adiando? Sem esperar pela resposta ele completou: Para
não restar nenhuma complicação quepossa prejudicar a guarda da Bruna. Podem querer dizer que ela não
420
tem equilíbrio emocional por estar fazendo terapia. Sei lá... Tenho medo de que qualquer coisa a
prejudique.
Só não gostei de ela erguer a mão para agredi-lo. Raquel não é
disso, argumentou Rosana
pensativa.
Também eu fui muito duro com ela.
Mesmo assim, Alex. Qualquer tipo de agressão inclina para a falta de respeito.
Eu sei. Pensei nisso também. Eu disse a ela que não vou tolerar isso novamente, que posso
aceitar tudo, menos agressão, mentira etraição.
E ela?
Chorou pra caramba! Alexandre, agora descontraído, expressou um sorriso de satisfação e
contou: Sabe que, depois, ela estavaencolhida sobre a cama, eu sentado e bem quieto, estava
magoado, decepcionado. Aí, sem que eu esperasse, a Raquel me pediu desculpas eme puxou para beijá-
la.
Sério?!
Sério! confirmou o irmão com ar de felicidade.
E você?!!!
Ah! Eu a abracei e a beijei como nunca tinha feito antes. Só pareiquando a percebi nervosa,
tensa. Tive que respeitar seus limites. Mas foitão... E nessa noite, devido a toda a emoção que viveu por
ver nossa filha, já estávamos deitados e ela veio me agradecer. Eu estendi-lhe
o braço e, sem que eu
esperasse, ela me beijou, acomodou-se em meu ombro e dormimos abraçados.
Rosana abraçou o irmão com carinho procurando lhe passar incentivo, ao dizer:
Vai dar tudo certo, Alex! É questão de tempo. Aconteça o queacontecer, nunca traia sua mulher.
Jamais faça isso.
Não, Rô, nunca pensei em traição. Mesmo tendo fortes motivos pra isso, não é nada fácil
suportar, mas não vou traí-la. Eu nunca acreditei que fosse me casar, mas sempre pensei que, se um dia o
fizesse,jamais trairia minha esposa.
421
Isso mesmo. Não há coisa pior do que ter a consciência pesando quando se dorme ao lado de
alguém. O marido ou a esposa que faz isso se exibe como criatura pobre de espírito e de baixa moral. Para
mim,traição é uma coisa repugnante.
Alexandre sorriu e falou:
Fique tranquila, além de amar a Raquel, eu me amo, também. Aspessoas que traem é porque não
encontram ou não têm, por si mesmas,respeito, amor e dignidade.
A irmã o abraçou com carinho. Realmente Alexandre e Rosana eram grandes confidentes. Era bela a
amizade que reinava entre eles. Rosana, com seu coração bondoso, procurava orientá-lo sempre para o
bem e apoiá-lo em todas as ocasiões.
Com o tempo o quarto de Bruna estava sendo preparado no apartamento de seus pais e a menina já fizera
algumas visitas com a permissão do juiz. Raquel estava maravilhada e experimentara uma alegria que
jamais pensara em ter. Ao dividir com Alexandre as alegrias e as esperanças que tivera com Bruna Maria,
Raquel se aproximava do marido sem perceber. Deixando-se ficar em seus braços, recebia seus carinhos
sem aquela tensão que antes apresentava. Eles escreveram para a mãe de Raquel, e ela avisou que
estava bem e havia se casado com um homem muito bom. Contou à mãe que havia superado muitas
dificuldades, mas agora sua vida era maravilhosa.
Raquel falou sobre Bruna Maria e que graças à ajuda de Alexandre passara a olhar a menina como sua
filha, como parte dela mesma, sendo a filhinha alguém que necessitava do seu amor, do seu afeto e da sua
atenção. Ela reconheceu que a pequena querida era uma dádiva sagrada que Deus lhe confiara aos
cuidados.
Arrependida pelo ato do abandono no passado, aceitara a ajuda de Alexandre e de seu pai, senhor
Claudionor, que cuidavam de tudo para que recuperasse a filha. Alexandre intitulava-se pai de Bruna Maria
e
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que ninguém dissesse o contrário, pois ele assumira sua paternidade. Raquel ainda disse à mãe que Deus
olhara por ela e que todas aquelas experiências de dor e sofrimento que vivenciara no passado estavam
sendo substituídas por alegria e amor verdadeiro. Ela lamentava a ausência da mãe, reclamando da
distância e da saudade.
Dona Tereza, ao ler a longa carta, interrompia seu feito pelas fortes emoções e para olhar, inúmeras vezes,
a foto de Raquel, Bruna e Alexandre. A mulher agradecia a Deus por sua filha estar tão bem, ao mesmo
tempo que deixava o orgulho dominá-la, pois, tinha em sua mente o êxito da filha como uma forma de
vingança àqueles a quem não queria bem. Dona Tereza possuía um coração repleto de mágoa e ódio,
transformando-se agora em uma criatura cruel, tal qual aqueles que, de alguma forma, lhe ofenderam no
passado.
Mais uma vez a mulher procurou pelo sogro que, na cadeira de rodas, fora deixado na larga varanda da
Casa-Grande, praticamente abandonado à visão da linha do horizonte e aos próprios pensamentos, que
começavam a lhe cobrar algumas atitudes que praticara no passado.
Boleslau! chamou a nora com voz irônica. Veja, meu sogro, olhe a foto da minha Raquel! Esse ao
lado é o marido. Um homem de verdade! Após pequena pausa, em que segurava ainda a fotografia na
frente do homem, ela continuou: E sabe quem é essa guria aqui? Bonitinha, loirinha e de olhos azuis?
É
a Bruna Maria. Essa menininha linda é tua bisneta e também tua neta! Ela nasceu aos nove meses após tu
expulsar a Raquel desta casa maldita, depois que teu filho imundo a brutalizou! Ela silenciou, depois
prosseguiu: Eu me lembro muito bem do tal namoradinho, com quem vocês disseram que a Raquel tinha
fugido e se deixado bolinar. Ele era um negro! Bah!!!
Ele era um piá, era só coleguinha de escola da Raquel, ajudava-a com compras quando ela ia buscar algo
para mim, carregava as coisas e isso até gerou um ciúme nos irmãos. Mas, sabe, meu sogro continuava
Tereza com voz irônica , não sou entendida, não, mas se essa guriazinha fosse filha daquele negrinho,
ela não seria assim, não. Tu não achas?! Chê!!!
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Andando vagarosamente em torno da cadeira de rodas, propositadamente, Tereza batia o salto nas tábuas
do assoalho de madeira provocando um som irritante que marcava o compasso de seu caminhar, às vezes
sobre tábuas que rangiam estridentes como um gemido. Tereza, agora, falou sem expressões graves na
voz:
Sabe, Boleslau, o teu filho, Ladislau, é um verme. Raquel é filha dele, tu sabias? O homem
arregalou os olhos claros e tentou murmurar algo, mas Tereza não se importou. Continuando: Após ter
traído omeu marido Cazimiro, eu quis morrer! Quando eu soube que tinhaengravidado do irmão dele, não
tirei a criança porque, em confissão, ovigário da paróquia me disse que esse era um pecado maior do que o
datraição. Da forma como ele falou, eu tive medo e deixei a Raquel nascer.Só que, pela segunda vez,
enganei o Cazimiro, dizendo que aquela criança era dele, que nasceu de sete
meses. Meu esposo, em vida,
nunca soube.
Em sua cadeira de rodas, o sogro ficou perplexo, assombrado com o que ouvia, mas não conseguia se
manifestar. Boleslau estava preso, àmercê do que a nora lhe propunha com ofensa e maus-tratos. Tereza
parou. Com o olhar perdido no horizonte, trazia a visão embaçada pelas lágrimas que se formavam, pois
narrava ao sogro revelando, pela primeira vez, toda a sua verdade.
Certa vez continuou Tereza , Raquel era guria ainda e me reclamou dos carinhos estranhos do
tio, que era seu pai. Fui falar com ele e deixei, naquela conversa, uma suposta indicação de que Raquel
poderia ser sua filha. Ele nunca me perguntou a verdade, era um covarde!!! Mas eu sei que Ladislau
entendeu. Porém, Boleslau, o crápula e asqueroso do teu filho não teve moral, não foi homem, pois só um
animal faria o que ele fez! Barbaridade!!! Quando Raquel, naquele dia, chegou aqui, bem aqui ó! disse ela
apontando para os degraus que desciam da varandaao terreiro , toda machucada e chorando, dizendo o
que aquele verme tinha feito com ela, tu não acreditaste! Miserável! Velho desgraçado! Tu bateste "de couro"
na minha filha e a tocou daqui como um cão, chê!!!Fiquei tão desesperada e em choque que não sabia o
que fazer. Nem tive a iniciativa de ir junto com ela, o que deveria ter feito.
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Tereza não percebeu, mas o sogro trazia lágrimas correndo em seu rosto enrugado e torcido. Como um
desabafo, ela continuou:
Tempos depois, tu nem sabes, Raquel me procurou e contou queestava morando nas ruas e que
achava que estava grávida. Pensei que eufosse morrer. Passei mal e me afastei de Raquel. Bah! Miserável
que fui! recriminou-se. Mais uma vez eu não tive coragem de ajudar minha filha. Eu a entreguei à
crueldade do mundo. Sabe-se lá o que aconteceu depois.
O silêncio se fez por longos minutos, mas logo Tereza continuou:
Sabe por que tudo isso aconteceu, velho miserável? Foi porque tucriaste o teu filho ensinando-o a
valorizar a masculinidade, ensinou-o que para ser homem deveria bolinar e dominar uma mulher. Foi
tu,velho desgraçado, que ensinaste aquele verme a ser sujo, imundo, nojento! gritou Tereza impiedosa.
A nora silenciou um pouco e, observando as lágrimas que corriam no rosto de seu sogro, falou impiedosa:
Chora, desgraçado! Arrependa-te de tudo o que fez pra mim e praminha filha. Foi esse o resultado
de tudo o que tu ensinaste pro teufilho! Além de conquistar a mulher do irmão, ainda violentou a
própriafilha. Tereza estava furiosa e cuspiu no chão com semblante enojado.Com mágoa no olhar, ela
ainda lembrou: Um dia, o Tadeu, meufilho, estava com o piá dele no colo, o guri menor, e perguntando
onde ficava "isso" e "aquilo", depois disse ao guri que tinha que ser macho!Chê!!! E tinha que mostrar que
era homem! Num minuto de loucura,eu levantei e dei um tapa na boca do Tadeu na frente de todo
mundo!Por ser criado pra me respeitar, Tadeu não falou nada. E eu disse que ohomem que "fez o que fez"
com a irmã dele tinha sido criado daquele jeito para mostrar que era macho! Aquilo que estava fazendo não
iriafirmar o caráter do guri. Ele estava era pondo em dúvida se o piá erahomem ou não. Barbaridade!
Sabe, Boleslau, eu não posso só culpar aquele verme por tudo o que ele fez para minha filha, eu culpo
também a ti, que o educou. Deus foi tão justo que deu à minha Raquel uma filha perfeita e, como castigo, o
imundo
425
do Ladislau perdeu as três gurias dele naquele acidente em que perdeu uma perna e metade da outra,
mas viveu para saber que matou as gurias. Agora, como uma louca, a mulher dele o inferniza o tempo todo
dizendo que é ele o assassino das filhas. Tereza riu e anunciou: A minha neta tem um pai de
verdade, agora. Minha filha tem um marido digno! Homem mesmo! Tanto que assumiu a filha do outro. A
família dele a trata bem! Eu sei disso porque o Marcos me contou. Ele disse que a família do marido a trata
tão bem que nunca viu igual. Encarando o sogro, ela ainda disse com olhar vingativo: Deus é tão bom
que te prendeu nessa cadeira só para me ouvir pelo resto da tua vida, porque tudo o que tu
me fizeste
padecer, tu não vai lembrar só quando morrer e for pro inferno, não. Vai começar a lembrar desde já e
começar a pagar agora enquanto vive aí. E lembre-se, velho, que aquela guria que tu espancaste tantas
vezes e deixaste sem teto, a Raquel, é a única filha de Ladislau e tem o direito de metade desta fazenda, e
ainda a outra parte que eu tenho o direito de herdar para os meus filhos. Ela herdará mais da metade, mais
do que os irmãos, chê!
Tereza, quando mais nova, chegou a apanhar de seu sogro por não cumprir suas exigências com algumas
tarefas ou até costumes da família. Era comum o forte e autoritário Boleslau agredir os filhos, a mulher, as
noras e os empregados com brutalidade. Seria difícil Tereza perdoá-lo, pois se sentia muito magoada.
Apesar de tudo, nada justificava aquela tortura emocional que ela, erroneamente, praticava contra o ancião,
agora indefeso. Um erro não justifica o outro e Deus não nos faz porta-vozes da Sua Justiça.
Tudo acontecia muito rápido; Alice e Valmor já enfrentavam sérios problemas. Ele havia sido demitido e
Alice, não satisfeita em ter que praticamente sustentar a casa sozinha, reclamava
constantemente da
situação. A idade do companheiro estava sendo um empecilho para ele arrumar novo emprego, e eles
ainda tinham que se dispor para as audiências do processo de divórcio que Marcos e a esposa de Valmor
reivindicaram.
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Nilson ainda estava preso. Somente o pai ia visitá-lo, Alice nunca se dera a esse trabalho. Marcos sentia
que o filho estava arrependido do feito, uma vez que na prisão enfrentava todo tipo de humilhação e maus-
tratos. Agora Nilson reconhecia a importância de se ter uma boa conduta e moral. O pai aproveitava os
períodos de visita para lhe falar sobre a honestidade e o valor de uma vida digna. Nilson prometera-lhe que
agiria melhor quando saísse dali. Marcos, por sua vez, dava-lhe todo o apoio a seu alcance.
Chegara o mês de dezembro e todos, muito alegres, se preparavam não só para as festas de fim de ano,
mas também para o primeiro aniversário que Bruna passaria com a família. Pelo fato de a menina fazer
aniversário na véspera do Natal, foi decidido que sua festa seria feita um dia antes, na casa dos pais de
Alexandre, onde tudo estava sendo preparado com primor, pois se comemorassem no dia correto
provavelmente poucos amiguinhos compareceriam devido à reunião de família nesse dia comemorativo.
Dona Virgínia, sempre propensa a emotividade para agradar os netos, não agia diferente com Bruna, e se
encarregara de convidar as crianças vizinhas, filhos e netos dos amigos.
No dia tão esperado, tudo estava muito animado. Alexandre tinha que ir, vez ou outra, até o portão receber
os convidados que chegavam. Para sua surpresa, em uma das vezes em que isso se dera, Sandra, sua ex-
noiva, surgiu repentinamente logo atrás de um convidado e, após entrar, disse:
Há muito eu quero falar com você. É importante.
Raquel precisava de Alexandre para algum detalhe e, percebendo sua demora ao ir receber algum
convidado, decidiu ir atrás dele. De longe viu o marido com uma moça, mas só ao se aproximar reconheceu
que era Sandra, a ex-noiva, e só ela falava, ficando ao lado de Alexandre, Raquel ouviu:
Essa é sua mulher?
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O que está acontecendo aqui? perguntou Raquel séria, mascom modos simples e educados.
Alexandre mantinha-se sisudo e em total silêncio. Mas, voltando-se para Raquel, Sandra se apresentou
estendendo-lhe a mão e dizendo:
Olá, Raquel. Meu nome é Sandra. Desculpe-me, mas há algumtempo eu venho tentando falar com
o Alex. Para mim, isso é muitoimportante, tenho muito para esclarecer.
Pronunciando-se pela primeira vez, Alexandre determinou com voz grave:
Quero que vá embora daqui. Não temos nada para conversar. Após alguns segundos, ele
disse em voz baixa e pausada. Só não acoloco para fora porque não quero estragar o aniversário da
minha filha.Por isso, exijo, gentilmente, que vá embora!
Não posso tirar a sua razão. Depois de tudo o que fiz, você temtodo o direito de me desprezar.
Fora daqui...! sussurrou Alexandre intimando.
Raquel, ponderada, interferiu firme falando baixinho para não atrair a atenção dos outros:
Alexandre, calma! Virando-se para a ex-noiva do marido, Raquel pediu com delicadeza:
Sandra, por favor, não sou contra que conversem, mas será melhor que esse esclarecimento ou ajuste de
contas aconteçaem outro momento, não agora. Veja, temos muitos convidados, não ficariabem. Eu acredito
que você é educada, tem bom senso e pode me entender.Prometo que terá essa oportunidade, mas num
outro dia, por favor.
Sandra, sem mais nenhuma palavra, sorriu com simpatia para Raquel, ao dizer:
Eu a entendo, sim. Obrigada, Raquel. Desculpe-me, não haviapensado nisso devido a minha
ansiedade em conversar com ele.
Sandra se foi após se despedir. Alexandre fechou o portão, que ficava nos altos muros daquela residência,
encostou-se nele, virou-se para a esposa e perguntou:
O que será que fiz para essa criatura?! Já não basta!
Você está bem?
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Estou ótimo. Isso não vai estragar este dia.
Alexandre a abraçou e eles voltaram para a festa, que estava muito divertida com os enfeites, brinquedos e
os animadores contratados.
À noite, Bruna Maria estava exausta e os pais mais ainda.
Raquel escondia seus pensamentos do marido, mas estava ansiosa para saber o motivo que levava Sandra
a procurá-lo com tanta insistência. Pensou em entrar em contato com a moça, mas o que diria? Raquel
resolveu não procurar detalhes desnecessários naquela hora, afinal, ela e Alexandre estavam bem e não
precisavam de problemas. Ficaria tranquila e, quando tivesse oportunidade, tentaria conversar com Rosana
a respeito daquilo. Logicamente a cunhada saberia orientá-la. Após cuidar da filha, e vê-la dormir
tranquilamente, ela procurou pelo marido, que saíra do banho hátempos e se largara sobre a cama de
qualquer jeito. O quarto na penumbra e o cansaço definitivamente facilitaram seu sono rápido e pesado.
Com sua voz suave Raquel o chamou:
Alexandre, deita direito, meu amor.
Ele resmungou, sem se mexer, e continuou como estava.
Deita direito, bem. Você está torto.
Entorpecido pelo sono, mediante o pedido da esposa, ele tentou se ajeitar, mas parou. Raquel não poderia
se deitar, o marido estava atravessado na cama. Ela se lembrou que não dormiria em outro lugar, uma vez
que já tinham discutido por isso, e Alexandre podia acordar de madrugada sem entender o que havia
acontecido. Mesmo sem ter muita força, Raquel tentou arrastá-lo.
Alexandre, deita direito, meu amor pediu com carinho, tentando virá-lo. Sem muito êxito, ela
sorriu, o afagou com ternura e obeijou. Cobrindo-o com uma manta leve, fechou a porta do quarto,apagou o
abajur e deitou-se na beirada bem estreita que lhe restou nacama ao lado dele, e, vez ou outra, tentava
empurrá-lo com o própriocorpo para acomodar-se melhor.
Com um dos suaves empurrões da esposa, dormindo mesmo, o marido se virou, a abraçou firme e
começou a beijá-la, acariciando-a e puxando-a para si. Raquel aflita não tinha forças para empurrá-lo;
tentava
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chamar seu nome, mas era sufocada por seus beijos e carinhos fortes com que tentava tirar-lhe a
camisola. Depois de longos minutos:
Não!!! gritou horrorizada na primeira oportunidade.Alexandre despertou num susto! Quando se
deu conta do que estava
fazendo, não acreditou. Não sabia se explicar. Acendendo o abajur, olhou-a melhor e viu seu estado. Sem
dizer nada, delicado e gentil, tentou ajeitar-lhe a roupa, mas ela não deixou esquivando-se ao sentar e
abraçar os joelhos depois de puxar a manta para se esconder, enquanto chorava. O marido percebeu que
ela estava apavorada e tremia amedrontada, chegando ao limite máximo de sua aflição. Ouvindo seu choro
abalado, devido ao rosto escondido sobre os braços que seguravam os joelhos, magoado consigo mesmo,
ele acariciou-lhe os cabelos e tentou explicar constrangido e generoso:
Perdoe-me, Raquel. Por favor. Eu estava sonhando. Perdoe-me pediu sensível parecendo
implorar.
Levantando-se, foi até ao toalete, lavou o rosto para despertar e retornou. Vendo-a menos nervosa e
recomposta, sentou ao seu lado, acariciou-lhe o rosto, momento em que Raquel o encarou e pediu:
Desculpe-me. Imagino o quanto é difícil para você...
Não, Raquel, sou eu quem deve desculpas. Eu estava cansado e sonhava enquanto dormia um
sono profundo. Eu não te forçaria, pornada desse mundo! Perdoe-me. Eu dormia pesado, talvez...
Raquel recostou-se em seu ombro. Surpreso e carinhoso ele a abraçou com ternura e ainda podia sentir o
seu tremor. Generoso a fez se deitar direito, cobriu-a e beijou-lhe a face, deitando novamente ao seu lado,
mas remoendo os pensamentos, contrariado consigo mesmo.
Na manhã seguinte, eles se assustaram com a chegada de Bruna, que acordou, alegre e sorridente,
pulando entre eles por cima das cobertas. Alexandre e Raquel acordaram como nunca, felizes! Nem se
lembraram do que aconteceu antes de dormir.
Vamos, papai! Vamos! Você me prometeu que hoje iríamos nadarna piscina da casa do vovô.
Ontem não podia porque eu estava arrumadinha.
Hoje não vou negar nada a você. É seu aniversário. Mas ainda é tão cedo! dizia ele com voz
carinhosa. Ainda está frio...
Ah! Vamos, papai! Vamos pular pra esquentar!
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Não, para esquentar vamos fazer um sanduíche!
Quando Raquel pensou: "Que sanduíche?". Ela só viu Alexandre enrolando Bruna nas cobertas
e
mordendo-lhe de brincadeira, fazendo um barulho como se- estivesse rosnando. A menina se divertia e, de
tanto rir, não se conteve e os três ficaram molhados.
Bruna! Olha só! reclamou Raquel ao ver seu colchão.
Eles se levantaram e, após arrumar o que precisava, Raquel lembrou-se que deveria ir, o quanto antes,
ajudar a sogra com a preparação da ceia de Natal. Conforme combinado, todos estariam reunidos na casa
dos pais de Alexandre.
Vamos, gente! Precisamos ir ajudar o pessoal pediu Raquel.
Que bom! Mais festa! alegrava-se a pequena Bruna, que não largava de Alexandre.
O sol radioso convidava a todos para um banho de piscina, mas as mulheres se reuniam ocupadas com
alguns preparativos e não podiam se dar a esse prazer. Marcos e Elói foram convidados e estavam lá.
Dona Virgínia, próxima da nora, perguntava ansiosa:
Raquel, o Alex disse que sua mãe escreveu?
É verdade! Fiquei tão feliz!
Por que vocês não a chamaram para vir passar o Natal aqui?
Nós convidamos, sim. Mas ela não aceitou. Deu algumas desculpas e não quis vir. Não sei o que
prende minha mãe àquele lugar.
Você vai visitá-la?
A nora parou, pensativa, e respondeu sem animação:
Sinceramente não gostaria de voltar lá.
Mas é sua mãe, Raquel. Ela precisa ver você, a netinha, conhecer o Alex.
Eu sei. Mas primeiro eu quero esgotar todas as tentativas de trazê-la para cá.
Nesse instante, Alexandre chegou na cozinha e abraçou a esposa pelas costas,
beijando-lhe o rosto com
carinho.
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Você está molhado, gelado! Alex! reclamou Raquel sorrindo ebrincando, encolhendo-se
levemente com agrado.
O senhor Claudionor, que chegou junto com o filho, trocou olhares com a esposa e desviou sua atenção,
estampando um leve sorriso maroto.
Pouco depois, quando encontrou o filho estendido sob o sol, o pai ofereceu-lhe um copo com suco e puxou
conversa:
Como está lá na empresa?
Tudo bem respondeu Alexandre, que não conseguia encará-lopor causa do sol.
Vem, sente-se aqui pediu o pai estapeando uma cadeira aolado de onde havia se sentado. O
rapaz aceitou o convite e ele perguntou: Não quer deixar aquele trabalho e vir comigo para novos
empreendimentos?
Você vai expandir a agência de turismo, pai?
Pretendo. Mas só se tiver você ao lado.
Bem, depende respondeu Alexandre.
Do quê?
Não queria mudar de estado. Veja, você já mandou o Valter parao Rio de Janeiro.
Oras! retrucou o homem sorrindo. Não fui eu, não! Lembre-se que tudo aquilo foi ideia dele
e que, cá pra nós, foi ótimo!
E você fica daqui só coordenando tudo e recebendo, né?! argumentou o filho sorrindo e
brincando ao falar.
Já dei muito duro, Alex. Agora é a vez de vocês.
Já pensei em largar aquela empresa aérea. Tem dia que quase fico louco. Agora estamos sem
gerente e isso se deu no meio de um novo projeto. Um cara lá foi demitido e... Alexandre
deteve o que
ia dizer e procurou, com o olhar, ver onde Marcos estava para poder prosseguir o assunto.Certificando-se
de sua distância, quando ouviu o barulho que vinha dosalão de jogos, continuou: Sabe o cara amante da
mulher do Marcos?
Sei.
Foi demitido e o gerente do meu setor, requisitado para substituí-lo. Agora tudo ficou nas "minhas
costas". Não estou gostando. Tenho que ficar além do horário, telefonam-me, em casa, com frequência.
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Quase não tenho sossego. Eu quero um pouco de tranquilidade para poder ficar com a Bruna e a Raquel.
Alexandre parou, suspirou fundo e completou: Agora que a Bruna já está com a gente e estamos mais
tranquilos com tudo isso, estou pensando em deixar esse emprego. Mas não sei ainda. Vou ver se tiro
férias, primeiro, quero pensar bem.
Hoje não é um dia ideal para falarmos sobre isso disse o pai. Deixe passar as festas e
vamos nos sentar para conversar. Chamaremos o Valter e, juntos, estudaremos essas mudanças.
Tudo bem.
Sem demora o senhor Claudionor admirou:
Alex, eu fiquei impressionado com a rapidez com que a Bruna seadaptou a vocês e a nós. Tenho
que confessar que fiquei temeroso por ela não ter aceitado muito bem o casal que tentou adotá-la, pensei
que teríamos muito trabalho com essa adaptação.
O filho sorriu, afirmando:
Cada vez mais eu acredito nos laços espirituais que possuímos uns com os outros, pai. Somente
isso explica essa aceitação, essa adaptação tão perfeita entre nós. Tudo foi muito simples. Eu a sinto
comominha filha. Bruna é minha filha! Não sei se você é capaz de entender.
O homem sorriu verificando que o filho se esquecera que, aos olhos do mundo, ele era um "pai adotivo"
também.
Em nenhum momento eu posso dizer que estou arrependido afirmou Alexandre. Em
nenhum instante eu senti a Bruna insatisfeita ou infeliz. Quanto ao gênio,
a personalidade, ela é semelhante
à Raquel, muito doce, delicada. Só que bem peralta, alegre! Parece a Rôquando era pequena sorriu.
Ela não pergunta por que ficou esse tempo no orfanato?
Perguntou, sim. A Raquel disse que, no começo, assim que ela nasceu, teve dificuldades, que era
muito pobre e nem tinha onde morar e precisou deixá-la com aquelas tias até melhorar de vida.
Ela não perguntou sobre você? Onde você estava?
Nós explicamos que tivemos alguns problemas e que, quando ela crescesse mais nós lhe
contaríamos, pois poderia entender melhor. Depois disso, até agora, Bruna não nos fez mais nenhuma
pergunta.
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Você vai contar que não é pai dela?
A Raquel quer contar. Eu não. Prefiro que acredite que sou seu pai.
Não tem medo de que alguém revele isso a ela e você venha a terproblemas mais tarde?
Dependendo do tipo de pai que eu seja, creio que não terei problemas, principalmente pelo
fato
de observar que a Bruna tem umapersonalidade dócil, generosa, compreensiva. Alexandre
lembrou,sorriu e comentou: Quando eu soube que era adotivo, fiquei triste por ter sido rejeitado, mas
feliz
por ter você como meu pai. A forma como me criou, os exemplos que me ensinou tiveram um valor imenso e
não fez diferença. Acabei ficando com raiva da tia Jacira que me contou, de repente, como se quisesse me
ver sofrer. Tem gente que parece fazer certas coisas por sentir prazer na maldade, por inveja.
Eu lembro. Você tinha oito anos. Fiquei tão furioso que não conversei com ela por uns cinco
anos. Sua mãe chorou como uma condenada. Pense bem, filho. Eu sei que você pode dizer que conheceu
a Raquel há alguns anos, que a engravidou, que ela se afastou de você porque soube que tinha uma noiva,
teve a menina sozinha e só agora você resolveu assumir. A maioria da nossa família pode acreditar, mas...
Alexandre sorriu, abaixou a cabeça, e perguntou:
Você está sabendo dessa história, né?O pai sorriu também e perguntou:
Quem foi que inventou essa história, você ou a Rosana?
Nenhum de nós!
Como não? Seus tios vieram me falar que você e a Raquel namoraram algum tempo atrás e que
ela engravidou. Raquel sumiu porquesoube que você estava noivo e quando sua noiva descobriu a
traição,ficou revoltada. Para se vingar, Sandra o difamou para todo mundo.Agora, depois de conhecer
melhor a Raquel, passou a amá-la, decidiu secasar e resolveu assumir a filha. Por isso, ontem a Sandra
veio aqui tirarsatisfações. O pai riu e completou: Ainda disseram que a Brunatem alguns traços seus e
a cor dos olhos não pode negar. Fiquei semsaber o que falar, pois não fui avisado de nada.
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Já estou sabendo disso, mas não fui eu nem a Rô os autores disso.
Quem foi, então, o autor desse enredo?
A mãe e a Vilma. Elas disseram que todos estavam fazendo muitas perguntas e, para acabar de
vez com os boatos, tiveram essa "grande ideia". O que pude fazer foi ficar quieto. Até porque isso será bom
paraa Bruna. Os amiguinhos ou os primos, principalmente os de segundograu, não vão ficar implicando
com isso. Depois de alguns segundos,Alexandre reconheceu: Sabe que eu gostei da história.
Tomem cuidado. Sejam precavidos. Existem pessoas maldosas que não gostam de ver o bem-
estar das outras.
Eu sei, pai. Mas teremos tempo para pensar. É um assunto muito delicado.
Após alguns minutos, o senhor Claudionor perguntou:
Eu vi você brincando com a Raquel e abraçando-a. Desculpe minha curiosidade, mas como vocês
estão?
Alexandre deu um leve sorriso e comentou:
Ela está melhor, mas... detendo as palavras, ficou sério.
Está arrependido, Alex? perguntou o pai ao observá-lo.
Não confessou o filho tranquilamente. Não estou arrependido de nada. Não tenho amante,
não procurei outra mulher nem vouprocurar, pai. Adoro a Raquel e me amo, também. Aquele que trai nunca
dorme tranquilo. Quando começo algo vou até o fim, sou "cabeça-dura", você sabe. Vou ajudar a Raquel,
principalmente por amá-la e ter certeza de que nunca serei traído. Tenho trauma e asco à traição.
Eu sei sorriu o pai reconhecendo. Mas é que a situação éum tanto delicada e complexa...
você é homem e... vai precisar ter determinação, paciência. Tenho medo que...
e o senhor Claudionor deteve as palavras e Alexandre, ponderado, perguntou:
Pai, se isso ocorresse com a mãe, você iria ajudá-la? Ficaria do seulado? Ou iria se
afastar dela
e até procurar outra companheira?
Claro que ficaria com ela! respondeu ele sem titubear. Não sou só marido da Virgínia, sou
seu amigo, parceiro.
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Alexandre só sorriu e o pai compreendeu o que ele quis dizer. Sem demora o filho avisou, deixando-o mais
a par da situação:
Na próxima semana vamos a um psicólogo.
Já marcaram?
Sim, já. A Rosana nos falou de um colega do primo do Ricardo,mas eu não gostei e depois ela
me indicou uma associação de psicólogosespíritas. Liguei pra lá e consegui o telefone do psicólogo,
marquei e atéjá fui conversar com ele.
Já?! admirou-se o pai.
Sim, eu já. A Raquel ficou com vergonha e não quis ir. Depois,quando voltei e lhe contei como foi,
ela se arrependeu e aceitou, disse que iremos juntos da próxima vez.
Que bom! Fico feliz por vocês.
Estou confiante, pai. Vai dar certo. Às vezes, vejo que, mesmo sem ter orientação ou coisa assim,
já obtive certo progresso. Mas diante de certas circunstâncias... ela fica inflexível, temerosa. Respeito seus
limites, mas com jeitinho, cauteloso, vou me aproximando. Às vezes tenho sucesso, outras vezes me
decepciono... Mas não desisto.
É!... Realmente eu eduquei um homem digno. Tenho orgulho devocê, filho reconheceu o pai
admirado.
Tenha orgulho de você, também, pai. Sou o que sou graças ao queaprendi com você. Segui seus
exemplos.
A mando dos priminhos, Bruna chegou de repente e, com um brinquedo, começou a espirrar água em
ambos. As outras crianças correram e saíram para se esconder.
A distância, Raquel viu, se aproximou e com modos simples repreendeu a filha:
Bruna! Não faça isso com o vovô.
O marido se levantou e disse sorridente:
Ah! Quer dizer que com o papai pode?! exclamou Alexandre que se levantou e, ao falar
brincando, agarrou a esposa, que estava comroupas comuns para jogá-la na piscina.
Com o gesto rápido do marido, junto com um ruído alto que ele fez com a garganta, como se rosnasse,
Raquel se surpreendeu e gritou como
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quem aterrorizada. Em pânico, segurando-o com tamanha força a ponto de arranhá-lo com as unhas:
Não!!! Não!!! pediu ela apavorada, após o grito de medo.Alexandre se surpreendeu, colocou-a
no chão e disse, com voz piedosa:
Raquel, calma. Está tudo bem. Sou eu. Com o olhar demonstrando espanto, ela o fitava ainda
trêmula pelo susto e começou a chorar. Abraçando-a, ele tornou sensível: Calma, bem. Estou aqui.
Estátudo bem.
Raquel estava pálida, seus joelhos começaram a se dobrar lentamente. Ela não tinha forças para se manter
em pé.
O senhor Claudionor, já ao lado do casal, entendeu o que acontecera e não sabia o que fazer para ajudar.
Apenas aproximou Bruna de si.
Abraçada ao marido, agora, Raquel disse com voz fraca:
Não estou me sentindo bem.
Alexandre a envolveu, pegou-a no colo e a levou para dentro da casa. Bruna, sem compreender o que
estava acontecendo, passou a chorar também por ver a mãe reagir daquela forma. Abaixando-se
rapidamente, o pai de Alexandre pegou a pequena Bruna no colo, procurando confortá-la.
Não foi nada, filhinha dizia o avô carinhoso afagando-a. Opapai só brincou e a mamãe se
assustou, viu? Não chora, não.
Raquel, em pranto, abraçada ao marido, era levada para dentro de casa. Quando dona Virgínia e Vilma,
que saíam às pressas para ver o que tinha acontecido, encontraram com Alexandre, este já entrava em
casa com Raquel no colo.
O que aconteceu, Alex?! perguntou sua mãe.
Nada, mãe ele respondeu rápido.
Quando elas iam atrás do casal, o avô, com a neta no colo, as chamou:
Vilma, Virgínia, deixem os dois, cuidem da Bruna, que está assustada.
Alexandre levou sua mulher para um dos quartos, a fez se sentar e ficou a seu lado abraçado a ela. Há
tempos Raquel não chorava assim e
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talvez o fizera, não tanto pelo susto, mas contrariada consigo mesma por não estar conseguindo deter a
exibição daquela reação.
Dona Virgínia chegou trazendo um copo com água açucarada que o filho pegou-lhe das mãos e
gentilmente ajudou Raquel a tomar. Ao vê-la mais tranquila, Alexandre, ainda a seu lado, falou:
Desculpe-me, Raquel. Foi sem pensar.
Ela se recostou em seu ombro, procurando amparo.
Não foi culpa sua. Sou eu... respondeu sussurrando.Dona Virgínia deixou os dois a sós ao se
retirar.
Foi minha culpa, Raquel. Como se não bastasse o que fiz ontem... Você já estava assustada por
ontem e... Perdoe-me, por favor. Alexandre, arrependido, a olhava com carinho e começou a refletir
percebendo que, a cada dia, Raquel não lhe fugia mais aos contatos comoantes. Mesmo se apavorando
por um instante e chorando, ela o abraçouforte, reconheceu seu apoio, aceitando-o naturalmente. Assim
como fizera na noite anterior.
O marido preocupou-se e avisou:
Vou lá buscar a Bruna. É melhor que ela a veja, pois se assustou muito.
Ao voltar com a filhinha no colo, a colocou nos braços da mãe. Raquel procurou sorrir e
desfazer a última
imagem que a menina tivera.
Não chora, mamãe.
Não estou mais chorando, filhinha.
O papai só brincou, mamãe.
Eu sei, meu amor afirmou sorrindo e beijando-a.Emocionado, Alexandre abraçou as duas como
se fossem seu maior
tesouro. Apesar dos desafios, sentia-se feliz e agradecia a Deus por tê-las em sua vida, completando-o.
Mais tarde tudo continuou normal. Raquel parecia melhor, mas pouco se alimentou no almoço e disfarçou a
inapetência por causa da sua atenção que se voltava para as crianças. Alexandre percebeu, mas não disse
nada.
À noite, pouco antes da ceia, outros parentes chegaram e todos estavam animados. Principalmente
Rosana, empolgada com a presença
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dos futuros sogros, quase não tinha tempo para dar atenção à própria família.
Vilma não se reunia aos demais, ficava sempre atrás das crianças, olhando-as para que não se
machucassem, pois agora elas estavam em número maior devido aos priminhos que chegaram bem
animados.
Os homens formavam pequenos grupos conversando e rindo muito.
Dona Virgínia, a certa distância, conversava com uma cunhada, mas observava que Raquel estava muito
quieta, com semblante abatido. Pedindo licença, ela se aproximou da nora e perguntou:
Raquel, você está bem?
Estou com uma dor de cabeça horrível sussurrou encabulada e sorrindo forçadamente.
Por que não falou? Vem cá que vou lhe dar um remédio.Seguindo a sogra, Raquel foi até a cozinha
para tomar o medicamento. Após refletir um pouco, a sogra decidiu perguntar:
É só isso mesmo, Raquel?
É sim, dona Virgínia tornou recatada.
Acho que não. Foi por causa daquilo, né? O Alex a assustou.Com seu jeito meigo, Raquel
defendeu o marido:
Não foi culpa dele. O Alex só estava brincando. É que...
Procure ajuda, filha. Você não precisa viver com esse fantasma.Os olhos da moça se encheram de
lágrimas, que quase transbordaram. A sogra a abraçou com carinho e ainda disse:
Raquel, Raquel! Como gosto de você, menina! Eu a quero comominha filha!
A nora a apertou contra si e não conteve as lágrimas teimosas que rolaram. Valter, que chegou na cozinha,
brincou alegre:
Hoje não é dia pra chorar! O que é isso? Vamos! Vamos!
Eles voltaram para onde todos estavam reunidos e esqueceram aquele momento.
As horas foram passando e Raquel não se sentia bem. Algo estava errado com ela. Alexandre demorou a
perceber que a esposa empalidecia. Aproximando-se dela, perguntou sutilmente, generoso e preocupado:
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O que você tem, Raquel?
Bem pediu sussurrando , me leva pro quarto.
Sem alarido, ele a levou para a suíte, onde Raquel entrou às pressas procurando o banheiro, sem
conseguir conter o vômito. Alexandre a segurou, prendeu-lhe os cabelos, depois a ajudou a lavar o rosto e
a levou para se deitar.
A esposa se largara sobre a cama, com a face pálida e com os olhos fechados sem se importar com nada.
O que foi, Raquel? perguntou preocupado.
Não sei balbuciou ela desanimada.
Discretamente Alexandre chamou sua mãe, contando-lhe o que estava acontecendo. Mas os demais,
sentindo a falta deles, começaram a tomar conhecimento de que a esposa de Alexandre não estava bem.
Vou levá-la ao médico decidiu ele.
Não pedia Raquel que mal conseguia falar.
Leve-a sim, filho aconselhava o senhor Claudionor. É o melhor a se fazer.
Eu vou com você! decidiu Vilma.
Não, Vilma respondeu o irmão , fica aqui e olha a Bruna pra
mim, por favor.
Eu vou disse dona Virgínia.
Não, mãe. Não é necessário resolveu Alexandre, que já começava ficar irritado. Calma,
gente! Também não é assim! Eu vou sozinho, não há nada em que vocês possam me ajudar. Além do que,
temos convidados aqui. Não deve ser nada muito sério.
Decidido, o marido pegou Raquel, colocou-a no carro e a levou para o hospital. Após ver o irmão sair,
Rosana comentou arrependida:
Eu deveria ter ido com eles.
Daqui a pouco eles voltam disse sua futura sogra que, rindo,completou: Você quer apostar
que ela está grávida?
Rosana riu e não disse nada.
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Mais tarde, de seu apartamento, Alexandre telefonou para sua mãe, confirmando:
A Raquel está bem. Não foi nada sério. Provavelmente o susto adeixou com dor de cabeça e o
remédio que tomou com o estômago vazio a fez passar mal. Fiquem com a Bruna pra nós. Amanhã cedo eu
passo aípara pegá-la.
Alexandre riu, ao ouvir dona Virgínia dizer:
A mãe do Ricardo está perguntando se a Raquel está grávida,porque esse é o típico sintoma.
Diga a ela que ainda não.
Após desligar, ele foi ver como Raquel estava. Alexandre entrou no quarto vagarosamente sem fazer ruído.
Cuidadoso deixou o quarto na penumbra, se deitou ao lado da mulher e procurou ficar quieto a fim de não
incomodá-la. Faltavam poucos minutos para o dia vinte e cinco de dezembro e eles ficariam ali, sem
comemorar.
De repente, os fogos de artifício que estouravam anunciando meia-noite fizeram Raquel se sentar na cama,
aos gritos.
Calma, Raquel! pedia o marido que se assustara com aquela reação. Está tudo bem. Calma,
querida dizia ele carinhoso, afagando-lhe a face e procurando envolvê-la.
Não!!! Minha filha, não! gritava aflita.
Acorda, Raquel pedia Alexandre com generosidade, pois aesposa parecia estar sonhando.
Estamos em casa. A Bruna está bem.Calma!
Raquel o empurrou. Ela estava apavorada e ele a soltou, insistindo ao repetir:
Calma. Está tudo bem. Estamos em nosso quarto, meu amor.
Bruna! Onde está minha filha?!!! gritou desesperada.
Ela está na casa dos meus pais. Ela está bem. Calma, Raquel argumentava com voz
ponderada, procurando lhe passar segurança.
A esposa estava ofegante e, agora, parecendo entrar em pânico, chorava como se não entendesse o que
estava acontecendo, misturando seu pesadelo com a realidade.
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Ele foi abraçá-la, mas Raquel o empurrou. Alexandre não suportava mais aquela situação. Ele decidiu não
envolvê-la mais, respeitando a sua vontade, no entanto, não sabia o que fazer. Lágrimas copiosas
deslizavam no rosto do marido que, para não entrar em desespero, sentou-se, silenciou, fechou os olhos e
se socorreu em uma prece pedindo a Deus que lhe desse forças e acabasse com aquela aflição de sua
esposa.
Segurando-o pela camisa, em desespero, Raquel pediu:
Alexandre, ajude-me pelo amor de Deus!
Vendo-a num choro compulsivo, o marido a envolveu cuidadosamente com carinho e a aninhou nos braços.
Ele estava aborrecido, desejoso de que aquilo tudo terminasse.
Como fora traumatizante para ela aquela experiência brutal. Como estava sendo-lhe difícil recompor o
ânimo, a sua fé na vida e nas pessoas. Como estava sendo complicada sua reestruturação emocional e
sentimental.
Alexandre, com sua moral elevada e sua nobre sensibilidade, buscava doar-se em compreensão, carinho,
paciência e notável amor verdadeiro, sem queixas, mas sempre esperançoso em harmonizar aquela difícil
condição, pois, acima de tudo, ele era o amigo verdadeiro que prometera apoio e amparo sincero para
todas as horas.
Poucas criaturas têm tão elevados valores morais a ponto de se renunciar em favor do amor incondicional,
pois é tão fácil desistir!
Os casos de violência sexual contra mulheres, crianças e adolescentes tomam vulto e se propagam no
momento acalorado da descoberta, mas poucos acompanham o desespero e as condições precárias dos
sentimentos feridos dessas vítimas, que custam a se recompor e, quando conseguem, é com indescritível
dificuldade.
O estupro, por ser um assunto delicado, tendo em vista o grau de intimidade, não é comentado.
Todas as vítimas de furto se mostram, elas têm coragem de dizer "eu fui furtada"; todas as vítimas de
agressão física se anunciam. As vítimas de estelionato não têm muita vergonha de se revelar. Entretanto,
se essas trazem em si um trauma, um ressentimento ou até pânico pelo que sofreram, imaginem a vítima
de uma violência sexual.
442
Inúmeros crimes existem cuja vítima se revela e comenta o ocorrido, mas a vítima do estupro se cala,
silencia, carregando dentro de si os mais dolorosos sentimentos, as mais tristes lembranças de um ato tão
cruel.
Pela sutileza do assunto, aqueles que com ela convivem o querem esquecer, não podem falar e, em alguns
extremos, chegam a abandonar aquela criatura que carece de amor, respeito, compreensão e paciência.
A pessoa molestada se constrange, se isola, se condena, se desgasta na lembrança do experimento
doloroso, no qual sofreu pela delinquência e desequilíbrio de outro. Flagelada na humilhação, que pela
delicadeza do fato se envergonha de comentar, essa criatura se aflige em conflitos íntimos e secretos.
Poucos são aqueles companheiros, amigos ou parentes que se dedicam e se dispõem a amar,
compreender, acalentar e procurar a ajuda que pode trazer o equilíbrio e a renovação. Em uma comunhão
mais profunda de sentimentos elevados, pode haver aquele que, como amigo fiel, entende e auxilia sempre
a recomposição estruturada no equilíbrio de uma alma querida. Sem egoísmo, apenas o sábio amor
desvelado compreende e se doa, sem exigir, recompondo a alegria e a paz, auxiliando a elevação,
orientando ao trabalho no bem, tarefa útil e caridosa, que transformará e equilibrará produtivamente aquele
que deseja e quer se desprender dos lastros que arrasta com tristeza e dor.
A respeito do sexo, podemos dizer que o ser humano ainda necessita de muita orientação, educação e
controle.
A pretexto do prazer compulsivo, existem criaturas desequilibradas que se manifestam na imposição sexual
a outro, violentando-lhe, não só o corpo, mas também a alma, os sentimentos e as emoções.
O ato de violência sexual rouba de sua vítima a tranquilidade, o alicerce no equilíbrio, na fé, na alegria,
tirando-lhe o encanto e o sonho criador. Dificilmente elas conseguem obter novamente a confiança nos
outros, a afetividade no contato e voltar a compartilhar emoções no campo do relacionamento íntimo.
Aquele que, através dessa violência, impõe essas dificuldades enormes a outro recolhe para si angustiosos
momentos de aflições em futuras
443
vivências dolorosas e infelizes. E aquele que, na educação de um filho, ou de uma criança que lhe foi
confiada aos cuidados, deixa-lhe faltar a orientação na área do campo sexual, que é o ensino do equilíbrio,
controle, respeito, dignidade e moral, também é responsável pela agressividade hedionda que ele cometer
através da prática do estupro e, com certeza, ver-se-á golpeado por chagas profundas em seus
sentimentos e enfrentará um "calvário de aflições".
O medo é algo difícil de ser superado. Somente o amor e o carinho podem trazer de volta a confiança
verdadeira.
Antes daquela experiência reencarnatória, Alexandre prometera-lhe ser fiel e dedicado, estando preparado
para sustentá-la diante dos previstos e imprevistos da existência. E agora o fazia por perseverança, fé,
amor e com resignação.
Abraçado à esposa, ele a acalentava com leve balanço, fazendo-a se acalmar.
Poucos imaginam ou podem compreender o drama que se passa na mente de alguém que sofrera tal
violência. Essa criatura necessita de amparo e carinho para trocar os conceitos violentos que sofreu por
confiança e afeto, e isso pode levar um longo tempo, conforme o caso, de acordo com a sensibilidade.
O auxílio e a paciência do marido eram fundamentais e de grande valor para Raquel. O afeto e a ternura
generosa que ela recebia dos sogros e das cunhadas geravam-lhe força e incentivo para prosseguir.
444
Capitulo 20
Desabafo inesperado de Raquel
O tempo foi passando...
Rosana e Ricardo tiveram que adiar o casamento porque o noivo teve uma oportunidade muito boa em seu
serviço, só que, para isso, teria de fazer uma viagem ao exterior por cerca de três meses. A noiva não ficou
satisfeita, ela não queria deixar o seu último ano de faculdade para se casar e acompanhá-lo. Foi então que
decidiram adiar o casamento para o meio do ano que se iniciava.
Nilson saíra da prisão e aguardava o julgamento em liberdade. O rapaz estava traumatizado por tudo o que
vivera nos últimos meses. Fechado dentro de casa, ele quase não saía.
Raquel se dispôs à terapia junto com o marido que a acompanhava, auxiliando e amparando, sempre.
Certo dia, Alexandre chegou em casa e encontrou Raquel ajudando a filha com pequena montagem de
colar que a menina levaria para a escola no dia seguinte. Ele as beijou e abraçou como sempre fazia.
Porém, atraiu a atenção de Raquel para acompanhá-lo até a cozinha a fim de conversarem longe da filha.
O que foi? perguntou curiosa quase sussurrando.
Fiquei sabendo de uma coisa hoje que me deixou em choque!
O que aconteceu?! Conta logo! insistiu ansiosa.
O Valmor se separou da esposa e estava morando com a Alice.
Tá, isso eu sei.
Ele foi demitido, não foi?
Sim. Isso eu também sei disse Raquel.
Fiquei sabendo que ele tinha um plano de previdência privada eque o encerrou para comprar
aquele apartamento onde mora com a Alice.
Após se separar, ele foi demitido e não arrumou outro emprego. Depois disso não tive mais notícias dele.
Hoje eu fiquei sabendo que o Valmor teve um acidente vascular cerebral, mais conhecido como derrame.
Nossa! admirou lamentando chateada.
A esposa e os filhos nem querem saber dele. Agora, quem terá decuidar do Valmor é a Alice.
Raquel incrédula se sentou e o marido prosseguiu:
E mais. A Alice foi demitida hoje.
Você está brincando?! exclamou a moça em choque.
Olha, meu bem, estou tão surpreso com toda essa tragédia quegostaria de estar brincando.
A aproximação da filha os fez cessar o assunto. Mais tarde, porém, o casal ainda conversou:
Estou com pena da Alice disse Raquel.
Sem emprego e sem ter onde morar, ela vai ter que depender de favor e da mísera aposentadoria
que o Valmor tiver por invalidez, e ainda terá quecuidar dele, se quiser continuar morando lá. Pelo que
calculo, metade do que ele ganhar será para pagar o condomínio do apartamento. Eu nem sei lhe dizer se,
nesse caso, a ex-esposa receberá pensão dele. Acho que não.
Como esse mundo dá voltas, Alex! Estou horrorizada e até arrependida.
Por quê?
Quando eu saí da casa do meu irmão, expulsa depois de tanta humilhação, a última coisa que eu
disse para a Alice é que ela, um dia, iria selembrar de mim porque passaria pelo mesmo que estava
fazendo comigo.
Não é sua culpa.
Eu sei, mas... Ah, não deveria ter dito aquilo.
Faça uma prece por ela. Estamos aprendendo muito com o Espiritismo. Peça a Deus que a
envolva com bênçãos de paciência, otimismo e no caminho do bem.
Eu já faço.
É, Raquel, devemos nos "conciliar com nossos adversários enquanto estamos no caminho com
eles", ensinou-nos Jesus. Sabe, quando
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do comecei a pensar assim, fiquei mais calmo, tranquilo, menos estressado e tudo para mim tem
melhorado muito. Vejo as coisas de outra forma. Isso parece que refletiu até em melhoras físicas. Aliás,
estou ótimo! Toda minha saúde está em harmonia. A esposa sorriu e observou:
Realmente, eu o vejo mais harmonioso nos últimos tempos. Rindo completou: Você não quer
mais "quebrar ninguém ao meio".
O marido gargalhou gostosamente e admitiu:
Estou me controlando e sempre penso no meu coração. Queroter vida longa, sou um cara novo e
tenho muito que fazer ainda. Repentinamente, mudando de assunto, Alexandre perguntou: Suamãe
escreveu?
Escreveu sim. Mais uma vez ela se recusa a vir para cá.
Você quer ver sua mãe, não é? perguntou abraçando-a.
Quero sim, mas não me agrada a ideia de ir até lá, sorriu tímida.
Por que, Raquel? Seu avô está numa cadeira de rodas... Apóspequena pausa, completou:
O resto você sabe. Poderíamos ir lá só para ver sua mãe, para ela conhecer a Bruna. Não é preciso visitar
maisninguém. Pelo que me contou, a casa do seu tio não é próxima de onde dona Tereza está. Raquel
abaixou a cabeça e ficou pensativa. O esposo, segurando-lhe o rosto com carinho, ergueu-o e perguntou:
Vocêquer ver sua mãe?
Sim, eu quero, mas...
Alexandre tornou a abraçá-la e argumentou:
Então vença este obstáculo de uma vez. Talvez isso fará com quevença os outros. Nós daremos
um jeito.
O tempo foi passando e a melhora psicológica de Raquel, após a terapia que ainda realizava, podia ser
notada, a princípio, pelos pesadelos que deixava de sofrer. Em conversa com Rosana, a cunhada dizia:
447
Há tempos eu não tenho aqueles sonhos horríveis.
Que bom Raquel! Fico feliz! alegrou-se Rosana.
Creio que não é só a terapia que fazemos, mas também a assistência espiritual que recebo está
me ajudando muito.
Pode acreditar que sim. Mas não deixe fazer nem uma nem outracoisa. Após poucos
segundos, perguntou: Sei que estou sendoindiscreta, mas... e vocês dois, como estão?
Raquel ofereceu um sorriso forçado e revelou:
Alexandre é uma criatura maravilhosa, Rô. Mas eu...
Nesse instante, seus olhos se embaçaram e ela abraçou-se a Rosana, que lhe afagando os cabelos, dizia:
Ainda é cedo, Raquel. Calma. Vocês já progrediram muito.Com a voz embargada, Raquel
desabafou:
Já temos quase um ano de casados! Não sei como o Alex suporta.
Ele a ama, Raquel.
Às vezes choro às escondidas... confessou Raquel, com voz lamentosa, afastando-se do
abraço.
Divida com ele os seus sentimentos. O Alex é seu amigo.
Eu sei que é. Nunca pensei que ele pudesse tolerar tanto. Sabe,Rô, de repente sinto uma força,
creio que consigo superar meus medos,eu o abraço, o beijo, o desejo, mas, em seguida... quando ele quer
continuar... não consigo... parece que eu mesma me derroto, entro em pânico e o afasto de mim.
É como
se eu tivesse altos e baixos. É um conflito imenso. Você não imagina.
O que o Alex diz? Ele fica insatisfeito, se irrita?
Não! Ele entende. Aceita e me acalma conversando e me acariciando até que eu melhore da
tensão. O Alex é muito compreensivo.Eu o amo tanto. Não consigo mais viver sem ele.
Rosana sorriu satisfeita pelos sentimentos que observava na cunhada e falou com jeitinho:
Confie nele, Raquel. É assim mesmo. É um processo que tem de ser devagarzinho. Vocês já
progrediram muito! Esta retribuiu o sorriso com modos tímidos. E Rosana quis mudar o assunto para não
deixá-la deprimida. Ah! Não falei, né?!
448
O quê?
Vamos adiar novamente o casamento.
Por que, agora? surpreendeu-se Raquel.
O Ricardo quer fazer um curso lá onde está, na Suíça. Será degrande valor para ele.
Nem sei o que dizer, Rô lamentou a cunhada.
Sabe, Raquel, para dizer a verdade, estou tão frustrada.
Não fique assim, não. Vai passar logo, você vai ver!
Serão mais quatro meses. Não estou gostando. As vezes sinto umacoisa.
O quê?
Sinto o Ricardo diferente.
Não, Rô, ele gosta muito de você! Não pense assim.Pela primeira vez Raquel viu Rosana triste e
chorosa.
Sabe, às vezes sinto que nunca vamos ficar juntos.
Não diga isso!
Já pensei em terminar com esse noivado, sabia?
Pense bem, Rosana. Depois de tanto tempo...
A cunhada abaixou a cabeça, suspirou profundamente e, em seguida, procurou outro assunto para fugir da
melancolia.
Fiquei sabendo que a dona Conceição, lá do Centro, foi falar comvocê!
Foi sim. Ela me convidou para ajudar na arrecadação de enxovais para os
bebês e nos ajustes e
consertos manuais de algumas roupinhas.Fiquei tão feliz! Estou indo lá duas vezes por semana, à tarde, e
levo aBruna comigo.
Que bom, Raquel!
Nossa, Rô, como melhorei. Estou me sentindo tão útil!
Isso é maravilhoso. Aqueles que vencem suas dificuldades paraajudar os outros são os primeiros
a ser socorridos. Ainda bem que o Alexnão se importa.
Claro que não! E ainda me incentiva. Ele não quer que eu volte atrabalhar, só que ficar em casa
trancada não me faz muito bem. Sinto-me depressiva. Lá no Centro ocupo os pensamentos, vejo outras
pessoas,
449
me envolvo com trabalhos úteis, agradáveis. Tudo está me fazendo muito bem.
Mas nada acontece como mágica. Você tem que se esforçar paramelhorar e, se está se sentindo
bem, é porque mudou os hábitos, ospensamentos, as atitudes e procurou uma tarefa produtiva. Buscou
conhecimento da Doutrina através das escolas, dos cursos.
O Alex está adorando.
Fiquei surpresa quando soube que ele estava fazendo os cursos.Isso foi algo que sempre tentei e
nunca consegui que ele fizesse. O Alexsempre dizia que não tinha tempo.
Enquanto elas conversavam, o senhor Claudionor e dona Virgínia ouviam os planos do filho:
Então, eu tiro férias em setembro ou outubro, pego a Raquel evamos para o Rio Grande do Sul.
Deixe a Bruna aqui!
Não, né, mãe! Será uma judiação com a outra avó se fizermos isso.
Então eu vou junto! anunciou a mulher.
Não, né, Virgínia! advertiu o marido. Eles têm que resolver isso sozinhos.
A mãe ficou inquieta e Alexandre continuou:
Depois, quando voltarmos, falaremos sobre aquilo novamente, pai.
Aquilo o quê?
Negócios, mulher! respondeu o marido sorrindo e abraçando-acompletou: Ô mulher curiosa!
O filho sorriu e explicou:
É que estou pensando em sair do serviço e acompanhar o pai com outros negócios.
Alex propôs a mãe , quando a Rô se casar, por que vocês não vêm morar aqui? Já fiz esse
convite para sua irmã, mas ela não quisporque disse que quer estudar, trabalhar... Mas, veja, vocês têm a
Bruna e ela adora esta casa! Aqui tem quintal, lugar para ela brincar, não écomo aquele apartamento
fechado. Esta casa é grande.
É mesmo, Alex! Devido aos negócios, seria até interessante vocês virem morar aqui.
450
O filho sorriu sem jeito, depois falou:
É pai, vamos ver. Sabe, estamos tão acostumados lá.
Até hoje eu não me conformo de você ter saído desta casa. Você sempre teve tudo aqui.
Mãe, é que, para mim, foi o melhor a fazer. Mas eu nunca abandonei vocês.
Ele precisou aprender com o mundo e com a vida, Virgínia disse o pai. O Alex quis usar lá
fora os valores que ensinamos.
Alexandre sorriu e não disse mais nada.
Mais tarde, em seu apartamento, Alexandre dizia para a esposa:
Vamos, Raquel. Sua mãe ficará feliz! Observando-a pensativa sem saber o que decidir, com
jeitinho o marido insistiu, dizendo: Podemos fazer uma surpresa e chegar lá sem avisar. O que você
acha?
Raquel, olhando-o com expressão sentida, acabou revelando:
Daquele lugar tenho péssimas recordações. Não sei se consigovoltar lá. Temo encontrar aqueles
que não quero ver. Fico pensando emcomo os meus irmãos vão me receber, afinal de contas, eles nem
para me escrever, não é?
Eu estarei ao seu lado todo o tempo, se aquele lugar te traz péssimas recordações, eu estarei lá
para as boas lembranças. Supere esse medo,Raquel! Lembre-se que você vai lá para ver a sua mãe.
Alexandre pensou depois decidiu comentar: Sabe, Raquel, como eu conversei outro dia com o doutor
Bernardo, o psicólogo, eu penso que, mesmodizendo que não, lá no fundo, você precisa
conversar com sua
mãe edizer a ela... Sei lá... Algo que não ficou esclarecido entre vocês duas. Nesse instante, o marido se
aproximou e falou com voz baixa: Seu problema, Raquel, não é o de não me aceitar. Você me aceita,
mas a sua dificuldade é o contato, é o carinho. Como já conversamos, ninguém podia chegar perto de você,
mesmo não oferecendo perigo. Lembra?Talvez, por não ter recebido um toque carinhoso, um afago
fraterno nem atenção de seus pais, e, depois, com tudo aquilo que aconteceu,
451
refiro-me à violência íntima que sofreu, e o choque por ter descoberto que ele era seu pai e... o desprezo
de seus irmãos e a brutalidade de seu avô... Percebendo-a atenta, mas em silêncio, Alexandre
prosseguiu generoso: Isso tudo a afastou das pessoas e foi o que gerou seu medo, seu trauma. E o pior
é que você não sabe receber um carinho porque nunca soube o que é isso. Você nunca reclamou porque
aprendeu errado e achou que deveria ser daquele jeito. Lembro-me que estranhou como eu e minhas irmãs
nos abraçamos, nos beijamos e brincamos, enquanto seus irmãos a desprezaram.
Você acha que sexo é dor, violência, é algo brutal. Em vez de acreditar que o ato sexual, que é a relação
íntima entre duas pessoas, é confiança, amor, troca de carinho com quem se ama, toque de ternura, troca
de energias espirituais entre almas afins. Por isso sempre te falei para não se envergonhar e me pedir que
pare, mas me guie, me conduza ao que quer que eu faça, se permita, meu amor.
Quanto a sua família, você deve pensar, Raquel, que seu pai verdadeiro foi o senhor Cazimiro, que
realmente a tratou como filha. E que sua mãe era uma pessoa amedrontada, mas a quem você deveria
exigir seus direitos e apoio. O medo impera em você por sua timidez. Enquanto não reagir com algo que a
magoe lá no fundo da alma, não vencerá seu medo. Há uma passagem no Evangelho que diz: "o mal
impera porque os bons são tímidos". Tudo o que aprendemos com a Doutrina Espírita resume-se no perdão
e na caridade e a primeira caridade, no seu caso, é a caridade para com você mesma. Perdoe-se, não se
culpe por ser bonita, por atrair a atenção dos outros.
Orgulhe-se da moral que tem, pois teria sido fácil você se desvalorizar, se corromper e "andar" com "um ou
com outro" por causa de tudo o que te aconteceu. Você tem muita elevação, meu amor. Perdoe-se
primeiro, permita-se ser feliz, vença um medo de cada vez, reivindique seus direitos e perdoe os que não
respeitaram sua vontade.
Raquel o encarou e admitiu:
Meus sentimentos se confundem quando penso nele.
Nele quem, Raquel? perguntou Alexandre para fazê-la vencer-se.
452
Demorando alguns segundos para responder, Raquel titubeou, mas por fim falou mesmo com voz
trêmula:
Fico confusa quando penso no meu tio Ladislau. Sabendo queperdeu as filhas e a mulher está
desequilibrada... Chego a ficar com dó dele, entende?
O silêncio reinou.
Raramente Raquel falava daquele assunto delicado e doloroso sem chorar, e nunca havia pronunciado de
forma serena o nome do seu agressor.
Raquel, vem cá chamou o marido puxando-a para um abraço e sentando-se mais próximo
falou: Perdoar a ponto de dizer que farátudo por aquele homem, talvez você não consiga. Seria
hipocrisia admitir isso agora. Mas eu penso que ter coragem para olhá-lo, se tiver oportunidade, encará-lo
sem fugir, sem medo, tentando não ter rancor, isso talvez a faça se sentir mais forte, mais firme. Talvez seja
essa a maneira de vencer o que a vem atormentando.
Sabe, Alex, pode parecer estranho, mas eu não posso dizer que,algum dia, eu quis que ele
morresse ou que sofresse o que me fez sofrer.Foi bom termos encontrado um psicólogo espírita, porque
penso que outro acharia esquisita essa revelação. Eu não o odeio, mas vivo o pânico do que sofri.
Se você não o odeia, é porque tem um coração maravilhoso, bom.Porque você é um espírito
elevado, ciente dos propósitos dessa existência, dos trabalhos que vem abraçando.
Mas acontece que ainda vivo aquela agressão, sinto... Após pequena pausa, comentou: Eu
não lembro do rosto dele. É estranho, não é?
Não. Não é afirmou o marido, olhando-a atento, mas com ocoração apertado por ouvi-la
relatar.
Eu amo você, Alex! Adoro quando me afaga, desejo seu toque,mas quando nossa troca de
carinho fica mais intensa, eu não suporto...vivo aquele momento violento.
É como se tudo aquilo estivesse
acontecendo. Aí fico magoada comigo por eu não corresponder a você tudo o que merece, e pelo que eu
desejo também. Queria poder esquecer, masnão consigo. Ainda me dói muito. Como eu disse, não tenho
ódio dele
453
nem me lembro de como ele era, isso se apagou. Talvez, pelo conhecimento cristão que tenho, hoje sinto
pena dele.
Mas também não quer encará-lo?
Tenho medo.
Generoso e paciente, ele perguntou:
Medo do que, meu amor? Quem sabe vencendo esse medo...
Não sei bem o que temo. Voltar àquele lugar, percorrer aquela estrada poeirenta... só vou
recordar o desprezo de minha mãe, meus parentes... Talvez recordar, ainda mais, a violência que sofri.
Naqueles sonhos horríveis eu via isso, eu via aquele lugar e ele me atacando. Depois,algumas vezes, os
poucos sonhos que ocorreram eram os mesmos, mas, de repente, era a Bruna quem estava sendo levada
para aqueles maus-tratos.
Estarei com vocês. Isso não vai acontecer. Eu não vou deixar.
Eu sei, mas também não sei como iria encará-lo, se for preciso.Não imagino o que posso sentir.
Não sei se tenho coragem. Quero ver minha mãe, mas, se para isso tiver que encontrá-lo...
Você tem mágoa dele, Raquel?
Mágoa, sim. Ódio, não.
E se você transferir essa mágoa para um sentimento de piedade,principalmente pelo fato de
saber como ele está hoje, isso seria bom. Eunão creio que ele esteja sofrendo a invalidez pelo que a fez
sofrer. Essa experiência é pela própria imprudência, nessa vida, com o que fazia.
Raquel, com semblante tristonho, lembrou:
De repente sofri o que fiz alguém sofrer.
Pensar nisso é viver a lei de Talião: "Olho por olho, dente pordente". Isso é ridículo. Você vai me
dizer que Jesus sofreu porque precisava.
Não. Jesus é diferente!
Raquel, pense bem, se os homens daquela época fizeram um espírito como Jesus sofrer
indevidamente, o que a criatura humana não fez e faz a um espírito comum que ainda tem coisas para
harmonizar! Se ficarmos acreditando que alguém passa por uma dificuldade porque precisa sofrer aquilo,
deixaremos de ter compaixão e de praticar a caridade.
454
Existe a "Lei de causa e efeito", sim. Mas existe também o livre-arbítrio de muitos interferindo na
tranquilidade dos outros. Você não pode ficar pensando que sofreu isso ou aquilo porque merecia, pense
que sofreu algo para ficar mais firme nos seus propósitos. Não somos espíritos inocentes, temos
conhecimento. A esposa silenciou e Alexandre completou: Talvez indo lá, encarando-o, se for preciso,
sem exibir sentimentos de ódio, de rancor, e sim de misericórdia e piedade, você o estará perdoando e
ensinando, fazendo-o refletir. Creio que mostrará a si mesma que conseguiu vencer.
Ele se calou.
A esposa o abraçou forte, beijou-lhe, e perguntou:
Ficará comigo?
Sempre! Sempre, meu amor!
Naquele instante o casal era envolvido por amigos espirituais que os vinham ajudando a vencer os
desafios, sentir paz e encontrar no diálogo amigo a harmonia necessária para o ganho do entendimento
para a evolução. Os conhecimentos da Doutrina Espírita lhes chegavam como bênçãos ao ensinar o
perdão e a caridade incondicional.
Tempos depois, dentro do carro, ao percorrer a mesma estrada poeirenta que não via há anos, Raquel
estava calada. Bruna dormia no banco de trás e, dirigindo, Alexandre, vez e outra, colocava a mão no
ombro da esposa, pois percebia sua tensão. Ao passarem entre gigantescas araucárias, eles viam, não
muito longe, a bela queda-d'água que espirrava gotejos coloridos com os raios de sol, que se fazia
destaque dentro da linda paisagem.
Que lugar lindo! admirou-se Alexandre.Mais adiante, a única manifestação de Raquel foi:
Veja, eu brincava ali quando pequena. Não dá pra ver direito daqui, mas ao redor da
cachoeirinha há uma lagoa e embaixo da queda-d'água, um poço tão cristalino que você chega a ver os
peixes lá no fundo.
Estamos perto? perguntou o marido.
455
Sim. Estamos.
Não demorou muito e eles pararam o carro diante de uma grande casa branca de barrado azul. Os
empregados olhavam curiosos. Um deles se aproximou quando Alexandre desceu do carro olhando a sua
volta ao perguntar:
Por favor, a dona Tereza está?
O senhor é...?
Alexandre. Genro dela. Marido de Raquel.
Dizendo isso, ele contornou o veículo e abriu a porta para a esposa, que parecia estar paralisada e não se
mexia. O marido se curvou, pegou sua delicada mão gelada e pediu:
Vem?
Sustentando-se nele, tentando controlar a respiração, a esposa desceu
trêmula. Imediatamente ela o
abraçou e, olhando à sua volta, notou que o lugar pouco havia mudado. Nesse instante eles ouviram o
grito:
Raquel!!!
Era dona Tereza, que descia ligeiro os poucos degraus da varanda e corria ao encontro da filha.
Mãe! disse Raquel, soltando-se de Alexandre.
O riso misturou-se ao choro e, em meio aos beijos, elas se tocavam como se quisessem ter a certeza de
que não era um sonho. A emoção contagiou Alexandre e os empregados que estavam presentes. Bruna
acordou e Alexandre a pegou no colo, esperando ver a esposa mais tranquila. Logo Raquel se recompôs e,
pegando na mãozinha de Bruna, que já estava no chão, ela a exibiu para sua mãe. Alexandre, com um
sorriso no rosto, falou orgulhoso:
Queremos que conheça nossa filha. Estávamos ansiosos por esse momento.
A mulher, que estava agachada já olhando a menina, ergueu o olhar e ele lhe estendeu a mão, dizendo ao
exibir um semblante alegre:
Eu sou Alexandre.
Segurando em sua mão, dona Tereza se levantou e o abraçou com jeito meio rude, mas não conseguiu
deter algumas lágrimas. Após as
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fortes emoções de início, quando todos iam entrando, os irmãos de Raquel chegaram. Parados, eles a
olharam surpresos. Como Raquel havia mudado! Enquanto eles traziam no rosto as marcas dos árduos
serviços, a irmã estava linda! Parecia ainda mais moça. Como que em choque, eles a olharam por algum
tempo, até que dona Tereza falou:
Não vão cumprimentar tua irmã?
Tadeu e Pedro se aproximaram de Raquel e, constrangidos, lhe estenderam a mão para um cumprimento
simples. Alexandre, extrovertido, cumprimentou-os e bem-humorado estapeou-lhes no abraço.
Ao ver a esposa temerosa, ele a abraçou para que entrassem. Em uma sala onde uma grande mesa de
madeira, contornada por cadeiras altas, centralizava o ambiente, eles se acomodaram para conversar. Os
irmãos de Raquel não diziam nada, somente dona Tereza e Alexandre conversavam muito.
Bruna, que não parava no lugar, merecia a atenção de Raquel que, vez ou outra, tinha que sair atrás da
filha. A garotinha, na volta que deu na varanda que rodeava a casa, não retornou. Preocupada, Raquel saiu
a sua procura. Ao andar pela referida varanda, quando ia contornando a casa, ela ouviu a voz delicada da
filha que vinha do outro extremo dizer:
Meu nome é Bruna, e o seu?
Aproximando-se, quando pôde observar, Raquel viu a lateral de uma cadeira de rodas e Bruna,
perguntando com sua voz doce e infantil:
Você não fala? Não obtendo resposta, ainda insistiu: Você tá dodói?
Chegando perto, Raquel a chamou bem baixinho:
Bruna, vem aqui, filha.
Com muito esforço o avô, senhor Boleslau, virou-se para vê-la. Seus olhos expressivos se arregalaram
quase incrédulos. Mas Bruna Maria, em sua inocência, perguntou à mãe:
Quem é ele, mamãe?
Raquel se aproximou um pouco mais, criando coragem, vencendo o temor. Em meio à respiração alterada,
pegou a mão da filha, ficando junto da menina e diante do avô, que nem piscava, então respondeu:
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Esse é seu bisavô, filhinha. O nome dele é Boleslau.
Com iniciativa própria, a pequena Bruna largou a mão da mãe, ajeitou o pezinho na roda da cadeira, que
estava travada, esticou-se e beijou o rosto do bisavô com doçura, até ouvir o estalo. Fez-lhe um carinho
com a pequena mãozinha e disse:
Oi, bisavô.
Lágrimas rolaram pela face enrugada de Boleslau, e a menininha ainda disse:
Não chora. Virando-se para a mãe ela perguntou: Mamãe,por que ele está chorando?
Raquel não conteve os sentimentos; deixando que as lágrimas também corressem em seu rosto, falou:
É a emoção, filha. Há tempos não nos vemos. Tenho certeza de que é a saudade.
Sem pensar, Bruna Maria falou inocentemente:
Então dá um beijo nele para matar essa saudade, mamãe!Raquel não resistiu e agora, chorando
mais ainda, aproximou-se do
velho avô e beijando-lhe ao oferecer seu melhor abraço carinhoso. O homem chegava a soluçar de
emoção, principalmente agora, se lembrando de tê-la maltratado tanto após a violência que sofrera. A neta,
de joelhos a seu lado, pegava a toalha que estava em seu colo e secava-lhe as lágrimas, dizendo:
Não chora, vô. Tudo já passou. São novos tempos e temos umanova vida, uma nova oportunidade.
Após uma pausa, ela disse: Essa é minha filha, Bruna Maria. Tentando esboçar um sorriso no rosto
que se contraía pelo choro emotivo, falou: Bruna não é linda? Porém avisou: Meu marido,
Alexandre, veio comigo.
Ao dizer isso, Raquel se surpreendeu ao ouvir:
Estou aqui disse o marido se aproximando.
Com um joelho dobrado e o outro no chão, Alexandre ficou ao lado de Boleslau, pegou-lhe a mão e
cumprimentou-o. O velho não podia falar, mas seus gestos, sua face e seus olhos exibiam fortes emoções.
Ele tentava sorrir em meio ao choro.
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Dona Tereza, a certa distância, os observava sem dizer nada, mas com um olhar de felicidade, vitória e
orgulho.
Na manhã seguinte, bem cedo, Alexandre já se interessava em conhecer parte da fazenda junto com os
cunhados, que se acostumaram rapidamente com ele, tendo em vista seu jeito descontraído e extrovertido.
Uma das empregadas que cuidava da cozinha informou a Raquel, que procurava pelo marido, pois ele se
levantara antes que ela acordasse:
Ah! Eles saíram bem cedinho. Tava até escuro.Dona Tereza, que chegou e ouviu a conversa, falou:
Deixe teu marido com teus irmãos. É bom que se acostume aqui.Mais da metade disto tudo será
teu e de teu marido também. Acho que tu não vai querer cuidar de terra, então vai deixar para o Alexandre.
A mulher falava sem muita delicadeza, quase impondo sua opinião. Delicada, a filha tornou cortês e
humilde:
Não podemos cuidar de nada nessa fazenda, mãe. Talvez venhamos aqui somente para visitas,
em passeio.
Não seja tola, Raquel! Isso aqui é teu! Bah!
Estamos bem, mãe. Não precisamos... esclareceu Raquel commodos simples.
E se teu marido quiser ficar aqui? Isso é teu!
Não. Alexandre tem um bom emprego. Ele não vai querer. Alémdo que, a Bruna estuda em uma
boa escola e... Não me interesso. Não me agrada a ideia de morar aqui.
Com semblante austero, dona Tereza impunha a voz com arrogância. Depois de exigir que a empregada se
ocupasse com os afazeres de outro lugar, exclamou:
Admiro muito esse teu marido! dizia ela andando pela copa,fazendo seus passos ecoarem
compassadamente, como de costume.
Raquel, sentada à mesa, acompanhava seu andar com o olhar demonstrando-se reprimida.
459
Como tu o conheceste? indagou a mãe.
No serviço. Trabalhávamos juntos respondeu a filha sem alongar o assunto.
Como começaram a namorar? perguntou a mãe quase inquirindo.
Bem, mãe, a Alice infernizou as ideias do Marcos, que acaboubrigando comigo e me colocou
para fora de casa. Antes disso, eu já haviadito ao Alexandre que estava com problemas com minha
cunhada, pois,para ajudá-los me desfiz de todas as minhas coisas e fui morar com eles.Quando o Marcos
me mandou embora da casa dele, eu não tinha paraaonde ir. Foi então que o Alexandre me ajudou.
Como? tornou a mãe com sentimentos frios e um jeito seco defalar.
Raquel abaixou a cabeça, pois sabia dos costumes e preconceitos que havia na opinião de sua família.
Tímida a filha respondeu:
Fui morar com ele. Se não o fizesse, ficaria na rua. Eu não tinhaaonde ir.
A mãe a olhou com o semblante sisudo, exibindo-se contrariada. Sem modos educados e até um tanto
brutos perguntou:
Tu não foste louca de ter "alguma coisa" com ele antes de se casar?Mesmo se sentindo magoada,
humilhada e ofendida, Raquel respondeu:
Não, mãe. Nunca tivemos nada. Ele sempre me respeitou.
E a Bruna, como ele soube e a aceitou?
Raquel começou a se sentir insatisfeita, não gostando da maneira como a mãe a abordava, pois a mulher o
fazia como se a filha lhe devesse satisfações e Raquel acreditou que ela não tinha esse direito pelo fato de
nunca tê-la orientado ou auxiliado em alguma coisa. Raquel respirou fundo, encarou a mãe, e falou firme:
Mãe, o Marcos me expulsou de casa e eu fiquei na rua em plenamadrugada fria de inverno. O
Alexandre me acolheu em sua casa depoisque eu liguei para ele. Com o tempo, conheci a família dele. Ele
percebeu que havia algo errado comigo, eu tinha medo, pois ele queria me
460
namorar e... Bem, diante de tudo o que eu demonstrava sentir, tinha de haver uma explicação. Por tudo o
que ele fazia para me ajudar, eu me vi obrigada a contar. O Alexandre sabe de tudo! Exatamente tudo!
Inclusive que o pai da Bruna é o meu pai!
A mulher empalideceu. Ela se sentou e mesmo sentindo-se mal perguntou:
Tu tiveste coragem, Raquel, de contar tudo a ele?
Precisei contar, mãe disse Raquel, com voz piedosa e acanhada. Desculpe-me, por favor.
É
que a senhora não imagina o quanto sofro, até hoje, por causa de tudo o que passei. Não é algo que dá
para seesquecer. Venci alguns traumas graças ao Alex. Mas ainda tenho muito que superar. Raquel fez
breve pausa, depois revelou: Para meumarido me dar um simples abraço, sem que eu não tivesse medo
dele, a senhora não imagina como foi difícil. Creio que jamais poderá entender o que senti, o que sinto e o
que vivo até hoje.
Dona Tereza ficou olhando para a filha sem saber o que falar. Ela não conseguia ser amiga de Raquel.
Agora se colocava novamente em uma posição austera. Ignorando maiores detalhes sobre a vida da filha,
pois não parecia se importar com os sentimentos de Raquel, dona Tereza perguntou:
Ele assumiu a Bruna como se fosse dele? Isso é verdade, mesmo?
Sim. Desde o instante em que decidimos nos casar, ele disse quea Bruna é filha dele. O Alex não
admite que digam o contrário. Ele seapresentou a ela como pai e não pretendo, por enquanto, revelar
outracoisa.
Levantando-se e falando de um jeito rude, Tereza recomendou:
Não fique adiando, guria! Tenha logo um filho desse homem.Todo homem quer um filho, ele
merece e isso vai prendê-lo mais. Ele deve gostar muito de ti para tê-la aceito com todos esses encargos
e sabendo de tudo o que te aconteceu.
Raquel abaixou a cabeça e não disse nada, se sentindo humilhada pela situação.
Tu tomas remédio? perguntou a mãe grosseiramente.
461
Não sussurrou cabisbaixa ao responder.
Isso é bom. Arrume um filho logo, viu! E que seja homem! Reze por isso.
Bruna, que acabara de acordar, procurou pela mãe que, ao vê-la, recebeu-a com abraços, beijos e carinho.
Mamãe, e o papai?
Sorrindo para disfarçar a mágoa daquele instante, Raquel avisou:
Saiu cedo, mas já volta. Ao ver a filha se entristecer, ela anunciou: Vamos tomar rapidinho
o seu café que eu quero levá-la a umlugar bonito e gostoso, aonde eu ia e brincava muito.
Onde? Onde, mamãe?
Surpresa! Risonha e animada ela propôs: Vamos! Vamos depressa!
Brincando com a filha e indo preparar seu desjejum, Raquel saiu da sala deixando a mãe com os próprios
pensamentos.
Pouco tempo depois, após uma caminhada, Raquel saía da estradinha e pegava um trilho que, como um
túnel, era ladeado de árvores frondosas que cruzavam seus galhos ao meio, mal deixando os raios de sol
filtrarem. Ouvia-se a água batendo nas pedras tal qual um murmurinho que vai aumentando de volume
conforme a aproximação. De mãos dadas, Raquel e Bruna chegaram a um lago transparente e belo cuja
bonita cachoeirinha derramava sua queda-d'água sobre as pedras e encantava o lugar.
Eba! gritou a menina de alegria.
Não vá muito além dessas pedras, Bruna. Ali adiante é fundo avisou a mãe sorridente ao vê-la
feliz.
Eu sei nadar! O papai me ensinou!
Eu sei, mesmo assim quero que fique aqui perto.
Após se atirar na água cristalina, a garotinha avisou, com um jeiti-nho todo especial, encolhendo-se com
graça:
Tá tão geladinha!
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Raquel sabia que Bruna brincava em segurança, pois ela conhecia muito bem o lugar e tinha ciência de que
a lagoa possuía uma larga extensão que não era funda e a profundidade aumentava vagarosamente,
podendo-se perceber muito bem.
Mais à vontade, Raquel tirou as sandálias e caminhou um pouco na beirada, molhando os pés. Chegando
até um galho de árvore que, como um braço, saía de um tronco que ficava na beira do barranco, parecendo
uma gangorra presa em um só lado, ela falou:
Venha, Bruna! Pule daqui!
A filha obedeceu e fez do galho de árvore um trampolim. Ao sentir os borrifos d'água, a mãe sorriu e se
afastou para perto do gramado, onde se sentou reclinando o corpo em outro tronco de árvore. Bruna
brincava alegre e sua risada soava muito gostosa.
Deixe-me ir embaixo da queda-d'água, mamãe?
Agora não. Mais tarde, junto com o papai, você poderá ir.
Olhando a filha, Raquel sorria lembrando-se de como gostava daquele lugar que era o seu refúgio de paz.
Ali, ninguém a incomodava. Quando menina, brincava e nadava naquela lagoa, que parecia ser encantada
em sua imaginação, que criava diversões. De sua infância e início de adolescência, aquela era a única
coisa que oferecia saudade para Raquel.
Recostada no tronco, ela cerrou os olhos e se entregou ao ruído alegre da filha querida e do canto dos
pássaros que podia ouvir. Sem saber dizer por quanto tempo ficou ali, talvez cochilando, de repente Raquel
se sobressaltou e, olhando assustada, não viu a filha. Levantando-se às pressas ela chamou em
desespero:
Bruna! Bruna!!! Raquel sentiu-se gelar, apavorada em pensarno que teria acontecido. Ela correu,
caiu sobre algumas pedras, levantou-se, chamando aflita: Brunaaaa!!! Bruna!!! Onde você está?!!!
Foi quando ouviu a voz de Alexandre que a procurava:
Raquel?!
Ao ver o marido, ela o agarrou sacudindo-o e gritou assustada:
Onde está a Bruna?!!! Onde ela está?!!!
463
O rosto pálido, lavado de lágrimas exibia desespero. Alexandre segurou-a firme e generoso, avisando
surpreso:
Eu não sei. Acabei de chegar. Onde vocês estavam?
Ali! respondeu apontando para o lugar e contou: Ela estavabrincando! Eu a tinha sob
minhas vistas! Eu sentei ali e fechei os olhos,acho que cochilei...
O pai, desesperado, correu na direção da lagoa e subiu em uma pedra alta para ter uma visão melhor.
Bruna! Chamou Alexandre em voz alta e grave, sem obterresposta. Bruna!
Raquel também gritava o nome da filha até que Alexandre a viu sair com meio corpo de trás de uma árvore,
com o dedinho indicador na frente dos lábios, sorrindo e pedindo-lhe silêncio. Alexandre desceu de onde
estava, aproximou-se de Raquel dizendo mais tranquilo e em baixo tom de voz:
Ela está ali. Calma. A Bruna estava brincando.
Onde?! gritou a esposa.
Calmo, ele olhou na direção chamando-a com firmeza:
Bruna, vem cá, filha. Não assuste a mamãe, não.
A menina chegou rindo e Raquel, muito nervosa pelo susto, abaixou-se, segurou seus braços, agitou-a e
chorando disse:
Nunca mais faça isso, entendeu?Rápido, Alexandre interferiu dizendo:
Calma. Já passou, Raquel. Não faça isso.
Ele pegou Bruna Maria no colo que, agora triste, dobrou-se em seu ombro. Abraçando Raquel, que ainda
chorava, ele as levou para o carro que havia estacionado na estradinha. Colocando a filha no banco de trás
do veículo, falou calmo ao orientá-la:
Bruna, isso não é coisa que se faça. Você gostaria que eu sumisse e a deixasse sozinha?
Não respondeu a garotinha querendo chorar.
A mamãe está chorando porque não quer ficar sem você. Ela está assustada e o papai também.
Nós a amamos, filha.
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Eu tava brincando...
Agora eu sei. Mas na hora em que você sumiu, eu não sabia efiquei preocupado. Eu não quero
ficar sem você. Não faça mais isso.
Com sua vozinha meiga ela ainda explicou:
Eu escutei seu carro e vi você de longe, a mamãe tava dormindo eaí eu me escondi pra brincar.
Tudo bem, mas agora não vamos brincar mais assim, tá bom?
Tá bom.
Voltando-se para a esposa, ele observou o machucado sangrando em seus joelhos. Passando-lhe
cuidadosamente uma toalha em torno dos ferimentos, perguntou calmo e generoso:
Como fez isso, Raquel?
Eu caí. Após pequena pausa, Raquel pediu e murmurando,ainda assustada e aflita,
querendo explicar: Eu quero ir embora daqui. Quero sair dessa fazenda o quanto antes.
Chegamos ontem, Raquel! A viagem foi cansativa e...
Ela começou a chorar e pediu implorando-lhe ao segurar firme em sua camisa:
Alex, pelo amor de Deus, leve-me embora deste lugar! Erramos em ter vindo. Entre os soluços,
quase sussurrando, suplicou: Eununca te pedi nada, mas agora vou, por favor, se você me ama,
vamos embora. Não tenho o que fazer aqui. Minha mãe não mudou, meus irmãos não mudaram, pensei que
eu encontraria uma família, mas só revi conhecidos que parecem não me considerar.
Alexandre a abraçou com carinho entendendo seu pânico.
Tudo bem, meu amor. Nós vamos embora, sim, e o quanto antes.Raquel se acomodou no banco e
Alexandre ligou o carro para irem
para a casa. Após seguirem alguns metros, ele perguntou:
O que vamos dizer para sua mãe?
Que eu vim vê-la, que já fiz isso, agora tenho que ir.
Ele ficou em silêncio. Após dirigir mais um pouco, ao virar rapidamente o carro em direção à outra
estradinha, ignorando o caminho, perguntou:
465
Aonde vai dar essa estrada?
Não! disse Raquel quase num grito ao perceber.
Por quê?
Daremos uma volta enorme para chegar em casa. Estávamos perto. Vamos voltar.
Precisamos dar uma volta. Olha seu estado, seu rosto está vermelho, chorando e machucada...
Vamos pensar no que diremos para suamãe.
Vamos voltar, Alex! pediu novamente quase implorando.
Só se você me disser por quê. Veja, nem tenho onde manobrar ocarro. A esposa ficou em
silêncio e ele pediu: Bruna, dá essagarrafinha de água que está aí no banco para a mamãe. Voltando-
separa a mulher, falou: Molhe a toalha e passe nos joelhos. Ainda estão sangrando.
Ela obedeceu e ficou em silêncio. Alexandre, puxando conversa, admirou:
Nossa, que lugar bonito! Daria um excelente hotel-fazenda. Apontando à frente, perguntou:
Aquelas casas são dos empregados?
São respondeu um pouco mais calma.
Ao olhar o painel do carro e ver acesa uma luz que indicava problemas na parte elétrica, Alexandre avisou:
Eh! Caramba! Estamos com algum problema. Não sei o que é isso, precisamos parar.
Não! gritou Raquel.
Calma. O que é isso, Raquel?
Ao avistar uma casa bem mais estruturada que as outras e observando que a mesma tinha um jipe parado
a poucos metros, ele decidiu e falou:
Vamos parar ali...
Momento em que o carro desligou por completo, sem que Alexandre conseguisse dar partida no motor.
Não! Não, por favor! implorou Raquel aflita, em pranto, segurando no braço do marido e
desesperada pedia: Leve-me embora!Não pare!
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Mamãe! chamou Bruna, pois se sentia assustada com o que via.
Raquel colocou o braço para trás e procurou se controlar, fazendo-lhe um carinho, confortando-a. Sem
saber o que fazer, Alexandre falou firme e mantendo a calma:
Raquel, eu não tenho alternativa. Não consigo ligar o motor.
Eu pedi para irmos embora disse ela chorando.
Eu sei. Desculpe-me, mas no momento...
Deixando que o carro aproveitasse o impulso da pequena descida, Alexandre controlou sua velocidade no
freio até para-lo na frente da casa. Após olhar para a filha, ele pediu baixinho para Raquel:
Controle-se, bem. Você vai assustá-la.
Ela tentava se conter, mas parecia empalidecer a cada minuto. Ao ver o carro parado, Bruna passou por
entre os bancos e foi para o colo da mãe. Raquel sentia-se muito mal. Estava gelada, sua respiração se
alterara e ela fechou os olhos procurando se controlar.
Ao ver Alexandre descer, um empregado se aproximou, perguntando:
Tá perdido, moço?
Não. Estou com problemas no carro.
De onde o moço vem?
Sou genro de dona Tereza, marido da Raquel, sua filha. Estávamos passeando e...
Ah! Eu soube que chegaram ontem!!!
Foi isso mesmo avisou Alexandre.
Aproximando-se do carro, só então o empregado reconheceu Raquel, pois antes, devido ao reflexo
espelhado do vidro, ele não podia vê-la.
Raquel?! surpreendeu-se ao chegar perto. Quando eu ouvifalar nem acreditei, guria!!! Bah!!!
Ela abriu a porta do carro, Alexandre deu a volta, pegou a filha pela mão e o homem, ainda admirado,
olhava-a surpreso. Raquel não queria descer do veículo, mas se viu obrigada.
Olá, seu Afonso cumprimentou ela acanhada, estendendo-lhe a delicada mão
trêmula e gelada.
467
O senhor tirou o chapéu, cumprimentou-a animado e com largo sorriso. O marido, em seguida, se
apresentou:
Meu nome é Alexandre. Sou marido de Raquel. Indicandopara a menina, completou: Essa é
Bruna Maria, nossa filha.
O senhor Afonso ficou perplexo. Fora ele quem abrigara Raquel na noite em que o avô a colocara para fora
de casa. Com olhar piedoso, Raquel parecia implorar, ao pedir educadamente e com voz delicada:
Seu Afonso, por favor, poderia nos ajudar? Só voltei aqui para verminha mãe, mais nada. Nosso
carro apresentou um defeito e... Eu quero sair daqui. Pelo amor de Deus!
Barbaridade! Vou ver o que te posso fazer, filha. Tu sabes, né...!
Esse jipe pode rebocar meu carro até a Casa-Grande disse Alexandre olhando para o veículo.
Esse está quebrado. Ninguém mais consertou desde o acidente que matou as gurias do seu
Ladislau. O senhor olhou para Raquel eavisou constrangido: Tem a pick-up lá atrás.
Raquel tremia e olhava para o marido, que disse:
Pode nos emprestar a pick-up?
Tu tens que pedir para o seu Ladislau. Ele é o dono e tá lá dentro tornou o homem meio sem
jeito.
Não! decidiu Raquel. Vamos embora a pé!
Ficou louca, Raquel? sussurrou. É longe! E a Bruna? Virando-se para o empregado,
Alexandre perguntou: Vocês não têmnenhum outro carro aqui?
Tem, mas já saiu para trabalhar com os empregados ou com oleite. Isso foi bem cedinho.
Nervoso com a situação, o rapaz decidiu resolver rápido:
Onde está o dono dessa caminhonete? Vou lá falar com ele.
Não!!! pediu Raquel.
Alexandre não se importou e se afastou do carro em direção da casa, subindo os poucos degraus da
varanda de dois em dois. Batendo palmas, ele se anunciava.
Uma mulher que parecia empregada surgiu à porta e o senhor Afonso, bem atrás do rapaz, perguntou para
a mulher:
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Onde está o seu Ladislau?
Ali, ó! disse indicando ao homem que, de costas, estava sentado numa cadeira parecendo
aguardá-los, pois, pela janela, assistia à cenaque ocorrera lá fora.
Alexandre entrou e ao olhá-lo sentiu-se mal, porém procurou manter as aparências e controlar seus
sentimentos. Aproximando-se se apresentou:
Sou Alexandre, genro de dona Tereza. O homem ficou em silêncio e ele continuou: Vim aqui a
passeio, só para minha esposavisitar a mãe. Estávamos dando uma volta e meu carro apresentou
umproblema quase aqui em frente.
Ladislau não dizia nada, só o olhava firme.
Alexandre parou de falar, suspirou fundo, andou mais alguns passos, engoliu a seco e completou:
Preciso de um carro emprestado e pensei no jipe, mas o senhor Afonso disse que está com defeito.
Não há mais nenhum outro e não podemos voltar a pé. Não por mim ou pela minha esposa, mas é
queestamos com a nossa filha e... Após interromper o que dizia, pelaemoção que o fez embargar a voz,
completou: Ficaria difícil, ela épequena. Poderia nos emprestar a sua caminhonete para guinchar
meucarro?
Com olhar firme, quase sem piscar, Ladislau não demonstrava expressão alguma. Ele moveu sua cadeira
de rodas na direção da porta, passando por Alexandre e seguindo até chegar na varanda, de onde podia
ver melhor Raquel e a filha.
Ela, em pé, aguardava aflita a volta do marido. Ao vê-lo, Raquel segurou Bruna na sua frente e também o
encarou firme sem expressão, sem sentimento algum. Ele se virou para Alexandre, olhou-o bem, abaixou a
cabeça e disse ao empregado:
Vá lá e pegue as chaves. Ajude o moço no que precisar, viu?Alexandre agradeceu e, quando ia
descendo a escada, ouviu:
É tua a... guria?! perguntou Ladislau.
O marido de Raquel se virou e respondeu sereno quase sorrindo:
É sim. É minha filha, sim. Não é linda?!
469
Após encará-lo sem resposta, o rapaz se virou, foi na direção da esposa e gentilmente a fez entrar no carro
junto com a filha.
O veículo foi guinchado até a casa grande, onde Raquel entrou às pressas sem dizer nada. Ao vê-los
chegar daquele jeito, dona Tereza perguntou:
Essa caminhonete não é do teu tio?!
A filha não respondeu, foi para o quarto. Aflita, Raquel começou a fazer as malas.
Raquel! Estou falando contigo, guria! reclamou a mãe parando alguns passos após entrar no
quarto.
Alexandre, que acabava de chegar, virou-se para Raquel e pediu:
Calma. Não sei se iremos embora hoje. Terei que levar esse carro lá na cidade para ver qual é o
problema.
Ponderada, mas nervosa, a esposa perguntou:
Onde está a Bruna?
Na cozinha. A Gorete fez um suco pra ela.Decidida, Raquel avisou:
Olha, Alex, o carro vai para a cidade, sim. Mas iremos todos juntos.
A mãe interferiu e perguntou alterada:
Como pegaram a caminhonete daquele homem?!
Foi preciso, dona Tereza explicou Alexandre. Estávamosdando uma volta, meu carro
apresentou um problema lá perto de onde ele mora. Não poderíamos andar seis
quilômetros com a Bruna
no colo e com esse sol escaldante.
Virando-se para Raquel, a mulher disse nervosa:
Que carregasse tua filha nas costas, mas não fosse pedir nada aquele verme! Bah!
Raquel a olhou firme e, falando baixo, impôs-se de forma a não se abalar, dizendo:
Olha, mãe, diante das dificuldades, a primeira mão que se estender devemos aceitar. Talvez sejam
esses os desígnios de Deus.
Quase gritando, dona Tereza retrucou:
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Como tu podes falar assim comigo depois de tudo o que aquele verme te fez?!!! Barbaridade, chê!
Tu tens que me respeitar, Raquel! Se eudisse que não deveria pedir a ajuda dele, é porque não deveria!
Em baixo volume de voz, porém muito firme como nunca alguém vira antes, a filha perguntou, com modos
frios, ao encará-la de frente:
Quem é a senhora para me dizer o que devo ou não fazer? A senhora não sabe o que é ajudar
alguém, muito menos sabe o que é pedir por socorro. Se não fosse ele, quem iria nos ajudar? É
cômodo
só exigirmos dos outros e nos acovardarmos quando se faz necessário ajudar alguém. A senhora nunca
ajudou ninguém, nunca soube o que é proteger, nem a mim, que pouco orientou, mãe. Mas sempre
soube exigir. Não me lembro de ter recebido um carinho seu. Quando foi que me disse "eu te amo, Raquel"?
Nunca!
A mulher abaixou a cabeça com o semblante sisudo sem dizer nada, e a filha continuou:
Quando é que me socorreu de um sonho ruim? Em pouco tempo com a família do meu marido
recebi mais carinho e atenção do que em todos os anos em que vivi aqui. A senhora sempre me criou
distante de meus irmãos. Não seja tão amarga e exigente, mãe. Isso dói muito.
Não fale assim comigo! avisou dona Tereza austera. Se eu estou chamando tua atenção é
porque não agiu direito!
Raquel se virou para continuar a fazer as malas e a mãe exigiu, segurando-a pelo braço com gesto rude, ao
dizer:
Olhe para mim quando eu falar contigo!!!Alexandre não gostou e reagiu ponderado:
Espere, dona Tereza. Solte a Raquel. As coisas não são assim, não.
Mãe disse Raquel ao se virar para evitar uma discussão com o marido , fizemos o que foi
preciso. Agora temos que ir embora daqui.
Arrogante e orgulhosa, a mulher perguntou:
Ele te viu?
Por que quer saber, mãe? perguntou desconfiada.
Só quero ter a certeza se aquele verme te viu com a filha dele.
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Alexandre alteou o volume da voz e falou gravemente:
Não fale isso nunca mais! A Bruna é minha filha!Raquel sentiu-se gelar e decepcionada revelou
ofendida:
Agora eu entendo por que não foi me visitar e insistiu tanto paraeu vir até aqui. A senhora queria
me exibir como um troféu, símbolo de uma vitória.
Não foi isso! gritou a mulher.
Mãe, a vida não é uma brincadeira, eu não sou uma brincadeira! avisou exigente. A senhora
não esteve comigo quando eu mais precisei. Morei nas ruas por uns cinco meses e quase morei de novo
se não fosse o Alexandre. Nesse período a senhora nem sabia onde eu estava! Foi por não querer ser uma
mãe assim como a senhora é que eu corri atrás da minha filha, para dizer que a amo e que ela pode contar
comigo sempre! Eu decidi não fazer com ela o que mais me feriu, o que mais me magoou na vida, ser
abandonada por minha mãe nas piores dificuldades. A senhora não tem o direito de me exibir! Nem tem o
direito de me exigir nada!
Acha que eu fiquei feliz longe de ti, Raquel?! Chorei noites e noites! Roguei a Deus para que
cuidasse de ti! Sempre os odiei pelo que te fizeram!
Mãe, não julgue os outros pelo que a senhora mesma foi capaz de fazer! Falou Raquel quase
num grito. Se eles me maltrataram, a senhora não fez diferente. Quando cheguei aqui na porta desta
casa,machucada e ferida acusando o tio Ladislau de tudo o que ele fez comigo, a senhora ficou muda! Não
disse nada em minha defesa e deixou que o vô me espancasse novamente!!!
Eu tinha dezessete anos, não sabia o que fazer, não conhecia nada da vida! A senhora não me defendeu,
nem disse nada a meu favor para se proteger! Para não macular a sua moral! A sua imagem! Para que não
descobrissem que você traiu seu marido com o irmão dele! Em um tom mais brando, quase melancólico,
agora com lágrimas a correr pela face, Raquel ainda lamentou: A senhora sempre me odiou, mãe.
Talvez por eu fazê-la lembrar da traição que foi capaz de cometer. Eu faria dezoito anos pouco
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tempo depois, mas ainda era menor de idade, eu merecia e precisava de proteção, de alguém que me
levasse a um médico, que procurasse a polícia, que lutasse por meus direitos, porque, mesmo se eu fosse
maior de idade, eu tinha sido agredida, violentada por meu tio... E em choro copioso ela continuou:
que era meu pai...! E a senhora sabia disso!
A senhora não foi diferente deles, mãe. A senhora só pensou em si, em sua moral...
Quando eu a procurei, um pouco depois de tudo o que houve aqui, a senhora me virou as costas pela
segunda vez. Isso foi mais cruel do que quando o vô me tocou desta casa. Eu estava grávida e não sabia o
que fazer! Não tinha para onde ir! E a senhora, o que fez?! Deixou-me com a consciência mais pesada
ainda por estar grávida do meu próprio pai! Desde a primeira vez que lhe reclamei daqueles carinhos
nojentos que recebia dele, poderia ter feito algo! Poderia ter falado com seu marido, aquele que pensava
que era meu pai, mas você não disse nada porque tinha medo, porque devia! O tempo em que vivi nas
ruas, recebi da Amélia, aquela indigente que a procurou na igreja, mais carinho do que todo tempo em que
vivi com você! Ela me protegeu até morrer!!!
Não fale assim comigo! inquiriu a mulher. Não tem essedireito!
Alexandre assistia a tudo calado, uma vez que via sua esposa reagir, reivindicando seus direitos, deixando
de ser submissa, superando seus temores. Nesse instante, sem chorar, porém com voz branda e
lamentosa, Raquel continuou:
E qual o direito que eu tenho, mãe? O direito de me calar? O direito de me odiar? O direito de
querer morrer por ser tão rejeitada assim? Encarando-a contou: Sabe por que não me matei quando o
Marcos me expulsou de sua casa e depois quando fui despedida do emprego? Porque ouvi do Alexandre o
quanto é doloroso o suicídio.Porque encontrei nele alguém que me amava, que me protegia, alguém que me
respeitava e respeita, que me deu o valor que não recebi deminha própria família! Como é importante uma
palavra amiga, um conselho de alguém que nos ama, num momento difícil...
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Não queira exigir dos outros aquilo que não é, aquilo que não tem capacidade de fazer.
Eu creio que tenha pedido a Deus por mim. Eu acredito que tenha sentido minha falta, mãe. Mas acho que
não pensou que eu sentia a sua... Que eu precisava muito, muito da senhora, mãe! Por isso, não acho justo
a senhora torturar alguém com a minha imagem ou com a minha presença. Odiá-los pelo que me fizeram
não é correto porque você não agiu diferente deles.
Tadeu me contou o que vem fazendo com o vô. Desde que cheguei aqui, até agora, sinto algo estranho que
não sei o que é. O seu problema, mãe, é a mentira! E querer impor aos outros as suas determinações, a
senhora não é diferente deles, reconheça isso!
Aquele velho miserável merece morrer!
A senhora é Deus para julgar assim?
Não fale desse jeito comigo, Raquel!
Vamos parar com isso pediu Alexandre que decidiu intervir,não suportava mais a situação.
Não viemos aqui para discutir. Voltando-se para a sogra pediu: Desculpe-nos se não agradamos,mas
iremos embora o quanto antes.
A aproximação de Bruna, que chegava correndo, fez com que Raquel largasse o que estava fazendo e
fosse em sua direção; encontrando-a próxima da porta, pegou a mão da filha e perguntou, ao conduzi-la
novamente para fora do quarto:
Vamos almoçar, meu bem?
Ao se ver a sós com a sogra, Alexandre aproveitou a oportunidade e calmamente falou:
Dona Tereza, eu só quero que uma coisa fique bem clara: Bruna éminha filha. Entendeu?!
A mulher o olhou, não disse nada e saiu do quarto.
À tardinha Alexandre, conversando com a esposa, explicava:
Amanhã cedo nós sairemos daqui e vamos até a cidade. Ficarámais fácil para eu chamar um
guincho do seguro. Ficaremos num hotel,é mais tranquilo.
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Eu queria ir embora hoje, Alex avisou Raquel descontente.
Eu sei, eu também, mas não dá. Já está anoitecendo.
Após o jantar, Bruna se balançava em uma cadeira de vime que ficava na varanda e Raquel, a certa
distância, a olhava. Alexandre se aproximou e a abraçou perguntando:
O que foi? Você está tão com o semblante tão triste. Puxa, Raquel! Eu não a trouxe aqui para
isso. Se eu soubesse...
Foi bom eu ter vindo. Enxerguei realmente tudo como é. Nadamudou e agora não terei mais
dúvidas.
Como assim?
Alex, há alguma coisa errada com meus irmãos, como sempre houve. Eles ainda me ignoram.
Quer que eu pergunte por quê?
Não. Vou pôr a Bruna para dormir e depois conversarei com eles. Após poucos minutos, ela
comentou: Você reparou que minhascunhadas não conversaram comigo?
Reparei, sim. Elas vêm e vão e estão sempre caladas.
Eles afastaram as crianças também, não deixando que brincassemcom a Bruna. A mulher do
Pedro resolveu ir ficar na casa da mãe.
Eu achei isso estranho, mas...
Pouco tempo depois, após a filha ter dormido, Raquel procurou pelos irmãos, que estavam sentados na
escada do outro lado da casa.
Tadeu e Pedro, eu preciso falar com vocês. Os irmãos a olharam e ela os chamou: Daria para
vocês entrarem um pouquinho?Será melhor conversarmos aqui dentro.
Já na grande sala os três se dispuseram sentados em torno da mesa e Raquel falou:
Nunca tivemos a oportunidade de conversar assim e ser diretos,verdadeiros. Eu voltei para visitar
vocês e sinto que algo está errado.Gostaria de saber o que é.
Surpreso com a atitude da irmã, que sempre fora calada, Tadeu respondeu:
Não há nada errado! Bah! Tu tá vendo coisa que não existe!
475
Há sim. Mal vi minhas cunhadas e meus sobrinhos, vocês nemfalaram conosco direito e...
Passamos a manhã inteira com teu marido e mostramos tudo defendeu-se Pedro. Fomos a
cavalo até o ribeirão da "montanha velha" pra ele conhecer... Depois, quando voltamos, ele perguntou
pramãe onde tu estavas e resolveu pegar o carro pra ir atrás de ti e de tuaguria. Não houve mais tempo
depois disso.
Eu quero dizer que minha presença parece que os incomoda.Tadeu abaixou a cabeça e Pedro a
olhou. Tímido, Tadeu resolveu
revelar:
Olha, Raquel, o tipo de vida que tu tens levado não agradou a gente.
Que vida eu tenho levado?
Vamos ser honestos, tá? decidiu Pedro. Assim que acusou o tio daquilo tudo, nós não
acreditamos, é lógico!
Por quê? perguntou a irmã sentindo um nó na garganta e imensa vontade de chorar.
Fazia tempo que o tio vinha nos dizendo que tu irias dar trabalho pra gente. Que tu ficavas se
assanhando pra ele e se estava fazendo isso pra ele, fazia pra os outros também. Eu mesmo ficava
intrigado quando tu sumias.
Por que não perguntou onde eu estava? A mãe sabia que eu gostava de ficar na cachoeirinha
brincando. Aquele lugar se tornou um local"encantado", era o meu "castelo", o "mundo" onde eu imaginava
brincadeiras, pois não tinha companhia...
Não sei por que não te perguntei. Só que, assim que tudo aconteceu, não pudemos acreditar
porque pensamos que acusaste o tio pra se vingar das surras que levaste por ele ter avisado sobre o
negrinho que te namorava.
Tadeu ficava calado e Pedro continuou:
O tio sempre foi um pai pra gente, minha irmã. Ele sempre teve moral. Não pudemos acreditar
naquilo. Depois de um tempo, a mãe nos procurou e disse que tu estavas morando com o Marcos e mostrou
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uma carta da Alice, onde ela dizia que tu estavas dando trabalho. Pedro se calou por uns instantes, mas
depois revelou: A Alice disse que tu estavas saindo com "um e com outro".
Tadeu, que até então não se pronunciara muito, argumentou:
Agora, de repente, tu apareces casada e traz uma guria junto.Tudo tá muito confuso, Raquel. Olha
a idade dela! Mas tu não tens que dar explicações, não. Se ele te aceitou... Tá certo. Sejam felizes! Bah!
A irmã estava decepcionada com o que ouvia. Raquel respirou fundo, criou coragem e falou com sua voz
doce, porém firme e com postura inalterável:
Pelo que estou percebendo a mãe nunca contou tudo a vocês.Vamos esclarecer, de uma vez por
todas, o que eu deveria ter feito desde o começo. Os irmãos se entreolharam e Raquel continuou:
Aconteceu assim: desde pequena, quando eu tinha uns oito ou nove anos,percebi certos carinhos
estranhos por parte do tio Ladislau...
Os irmãos, atentos, surpresos e assombrados, ouviram tudo até o fim.
Mesmo com a voz embargando em alguns momentos, Raquel não se deteve e, no final, os irmãos estavam
perplexos, boquiabertos. Eles ficaram em silêncio por alguns minutos, mas depois Pedro virou-se para
Tadeu e perguntou:
Lembra-te que, assim que a Raquel foi-se embora, eu achei o casebre revirado e te chamei para
mostrar as amarras cortadas e desfiadas,comida embolorada e água...?
Lembro! Bah!!! confirmou Tadeu, atordoado, e completou: Tinham manchas de sangue e eu
até encontrei aquela capa e o bornal do tio, mas não quisemos acreditar, pensamos que o negrinho tinha
roubado. Barbaridade!!!
Pedro pendeu a cabeça e Raquel disse:
Foi lá mesmo, no casebre perto do ribeirão da "montanha velha",que ele me prendeu. Para me
soltar, fiquei quase a noite inteira roendoaquelas tiras com os dentes, igual a um animal.
Desgraçado! Maldito!!! gritou Pedro dando um soco forte na mesa. Eu vi o lugar e ainda
pensei...! Não quis acreditar! Era mais
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fácil dizer que tu estavas mentindo pra não ter remorso de não ter te acudido. Não tinha como desconfiar do
desgraçado do tio.
Calma, Pedro pedia Raquel. Não fique assim, não adiantamais.
Raquel perguntou Tadeu , tu tens certeza de que ele é teu pai?
Foi isso o que ouvi da mãe, quando a procurei desesperada por estar grávida e morando nas ruas
com uma indigente. Se quiserem chamá-la agora para esclarecer tudo novamente... Estou pronta para esse
"frente a frente".
E tua filha? tornou Tadeu.Raquel abaixou a cabeça e respondeu:
Agradeço a Deus por ela ser perfeita, pois... por ser filha do próprio avô... Alexandre a assumiu
como filha dele. Ele não quer que Brunasaiba a verdade.
Teu marido sabe dessa barbaridade, mesmo?! Chê!!!
Sim. Ele sabe de tudo. Como eu disse, foi o Alexandre quem me recolheu, fez superar tantos
desafios e aceitar minha filha sem lembrarde como a concebi.
Pedro estava inconformado. Ele se levantou e, quase gritando, esmurrou a mesa novamente ao falar:
Vou matar aquele desgraçado! Miserável!!!Raquel foi em sua direção e o abraçou, implorando:
Pedro, por Deus, por seus filhos, eu te peço que não faça nada. O tio já é vítima de si mesmo.
Não suje as suas mãos, por favor!
Não posso me conformar, minha irmã! Eu tenho uma filha e...
Estou te pedindo, por favor, por tua filha... Ela não merece ter umpai assassino. Já me vi em
muito desespero por causa dessa história, superei medos e traumas, mas ainda vivo alguns conflitos por
tudo o que aconteceu. Não me deixe com mais esse remorso de saber que um devocês fez algo contra a
vida dele por causa do que contei. Eu temia que soubessem a verdade e reagisse assim, mas não queria
que continuassem a duvidar da minha moral. O Marcos acreditou em mim, mas se deixou
478
levar pelas mentiras de Alice, como eu já contei. Hoje ele sabe a verdade e nós nos damos tão bem.
Gostaria que fosse assim com vocês. O irmão a encarou sentindo verdadeira compaixão e
arrependimento. Raquel, preocupada, pediu novamente: Não me deixe com esse peso na consciência,
já sofri muito, meu irmão. Por favor.
Alexandre que, vagarosamente, entrou na sala, fazendo-se ouvir pelos passos no assoalho, parou ao
chegar próximo da esposa. Tadeu aturdido ainda olhou para o cunhado e disse:
Desculpe, Alexandre. Pensamos muito mal de ti, homem!
Ele deu um leve sorriso forçado sem dizer nada e Pedro, ainda inconformado, reagia:
Canalha!!! Se pego esse...! Ele nos enganou!!!
Pedro, eu te peço, não suje suas mãos. Não me deixe com esse remorso.
Olhando para a irmã, Pedro falou:
Não sei como pode pensar assim, Raquel.
Veja, Pedro, eu estou bem. Tenho uma filha linda. Eu a amo muito. Tenho o Alex, que é um
marido maravilhoso. Sou feliz! E ele? Apunição à qual ele se condenou é pior do que a morte.
Tadeu se levantou e, andando de um lado para o outro, perguntou:
Por que a mãe nunca nos falou?
Não a culpe, Tadeu. Ela se acovardou quando não me defendeu das surras que o vô me dava,
deve ter ficado em choque com o que aconteceu, sofrido e sentido muita vergonha, também. Se quiserem
tirar satisfações com ela, aproveitem a minha presença aqui, mas não a condenem. Contudo quero que me
prometam que não vão fazer nada contra ele.
Pedro a encarou, sentindo-se arrependido e a abraçou dizendo:
Raquel, tu és capaz de perdoar a gente? Perdoa?! A gente precisa do teu perdão.
Claro, Pedro. Eu amo vocês.
Tadeu, mesmo meio sem jeito, a envolveu com carinho e lágrimas nos olhos, mas não conseguiu falar.
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Ao se recolherem no quarto, Raquel olhou a filha que dormia tranquila e virou-se para o marido, que estava
ao lado, fitou-o por um tempo, até que ele, sem entender, sorriu e perguntou generoso:
O que foi?
Ela o abraçou com força e disse baixinho:
Amo você, Alex. Obrigada por você existir.
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Capítulo 21
Doação de órgãos
Na manhã seguinte, bem cedinho, Raquel despertou com o carinho delicado da mãozinha de Bruna, que
tocava seu rosto. Alexandre não estava do seu lado e ela olhou para a filha que sorrindo dizia:
Bom dia, mamãe!
Bom dia, meu amor!
Mamãe avisou a garotinha com voz doce e meiga , o papaijá levantou.
É tão cedo, Bruna. Por que não está dormindo?
Eu tentei. Fechei os olhos assim, oh! disse a pequena espremendo os olhinhos. Mas não
adiantou nada. Por isso eu vim aqui dormir com você.
Raquel sorriu, levantou-se e foi se arrumar para ir à procura do marido. Alexandre mexia em seu carro,
tentando encontrar o defeito. Ao ver a esposa parada na escada da varanda, ele sorriu e avisou:
Você nem vai acreditar! Foi um cabo da parte elétrica que talvez,pela estrada esburacada, tenha se
soltado de leve por não estar bempreso, por isso a luz do painel acendeu. Quando o cabo acabou
dedesligar, o carro "apagou" por completo.
Indo a seu encontro Raquel o beijou e perguntou sorrindo:
Então posso pegar as coisas para irmos?
Fique, Raquel! com jeito seco a mãe pediu, da varanda, enquanto os observava.
Com a educação que lhe era própria, a filha argumentou:
Obrigada, mãe. Mas é que, realmente, preciso ir.
A mulher não respondeu nada. O marido de Raquel, que havia se voltado para o carro, falou quase
sussurrando, com a cabeça sob o capo que estava levantado:
Se quiser, pode arrumar as coisas agora mesmo. Vou pedir para seu irmão dirigir o meu carro até a
casa do seu tio. Tenho que devolvera pick-up o quanto antes.
Raquel empalideceu imediatamente e o marido tentou tranquilizá-la, dizendo:
Tudo bem. Fique calma, estarei com seu irmão e voltaremos logo.
Chegando à casa do cunhado de dona Tereza, eles ouviam alguns gritos em meio a gemidos de lamentos.
Ao olhar para Pedro, Alexandre assustou-se ao perguntar, sem palavras, o que era aquilo.
Não se intrigue! Bah!!! avisou o cunhado com seu sotaquecarregado e bonito, bem típico da
região. É minha tia. Ficou assim desde que as três gurias morreram. Após poucos segundos,
enquanto Alexandre ainda fechava a pick-up, ele lembrou: Agora eu sei o que pesa na consciência. Ela
também jurou contra minha irmã.
Alexandre, ao entrar na casa chamando, viu a cadeira de rodas de Ladislau, que novamente parecia
esperá-lo.
Pedro ficou à porta e o cunhado entrou, dizendo:
Bom dia! Com licença. Vim devolver as chaves. A caminhonete está estacionada no mesmo lugar
que a peguei. Obrigado. Muito obrigado, mesmo. Ajudou-nos muito.
Ladislau moveu-se até ele, pegou-lhe a chave da mão e balançou a cabeça concordando. Sem ter mais
nada a dizer, Alexandre se despediu rápido e saiu da sala seguindo Pedro, que já estava próximo de seu
carro.
Ladislau foi até a varanda e antes de vê-lo descer os poucos degraus chamou:
Ei, rapaz!
Alexandre se virou e ele gesticulou para que voltasse.
482
Pois, não? perguntou sentindo um mal-estar que parecia lhecorrer por todo o corpo como um
tremor frio que chegava a estonteá-lo.
Encarando-o com modos frios, o senhor curvo, devido à altura, deixando perceber que fora muito forte,
perguntou em baixo e grave tom de voz, espremendo os miúdos olhos azuis.
Eu preciso saber de uma coisa. Aquela guria, filha de Raquel, étua filha mesmo, homem?!
Alexandre sentiu-se gelar. Teve que se conter muito, pois, mesmo vendo-o naquelas míseras condições,
sentiu forte desejo de agredi-lo por tudo o que fizera à sua doce e indefesa Raquel. Rapidamente lembrou-
se do que aprendera sobre o perdão e das conversas que tinha com sua irmã Rosana sobre o fato de ter de
controlar seus impulsos. Em pensamento, o rapaz pediu: "Deus, me ajude". Respirando fundo, olhando-o
nos olhos, Alexandre ergueu a cabeça respondeu ponderado:
Sim. O pai de verdade sou eu mesmo. Quanto ao pai biológico,esse pouco nos importa.
Dizendo isso, ele sentiu-se tremer pelo nervoso, mas terminou de descer as escadas, entrou em seu carro
e se foi.
Que grande prova para Alexandre a de ter que se conter diante daquelas circunstâncias. São em rápidos e
corriqueiros acontecimentos que demonstramos nosso aprendizado e fé.
No carro, Pedro perguntou o que o tio havia questionado, pois ele não conseguiu ouvir. Alexandre contou, e
depois solicitou:
Atenda ao único pedido que a Raquel te fez, Pedro. Não façanada contra ele. Ela já sofreu muito
e não sei o que pode acontecer seainda tiver esse remorso, pois foi por ela que vocês souberam de tudo.
Nem cheguei perto do asqueroso por causa disso. Estou até suando frio! Bah! expressou o
cunhado inconformado. : Não dormi estanoite e ainda estou passando mal. Após pequena pausa
revelou: Eu e o Tadeu pensamos que tinha sido o namoradinho que a tivesse prendido naquele casebre.
Essa ideia não me saía da cabeça. Tu nem imagina como estava o lugar! Barbaridade! Chê!!!
483
Alexandre tinha que se fazer firme para controlar os sentimentos, ao ouvir aquilo que tanto o magoava,
pois em sua mente passavam cenas de como deveria ter sido. Pedro não deteve as lágrimas e, após secar
o rosto com as mãos num gesto um tanto bruto, devido ao ódio que sentia, esmurrou o painel do carro,
dizendo quase num grito:
Diabo!!! E eu ainda concordei com o Tadeu!
Como assim?! perguntou Alexandre que se assustou.
Não conte nada pra a Raquel, não. A gente agiu errado.
O que aconteceu, Pedro?!
Eu e o Tadeu demos um fim no negrinho. Pobre moleque!
O quê?!!! perguntou o cunhado surpreso, que até parou ocarro, pois se sentia mal.
Questionando em seguida, incrédulo: Vocêsnão fizeram isso?!
Pensamos que tivesse sido ele, porque eu e o Tadeu, quando soubemos pelo tio que ele queria namorar
a Raquel, tivemos umas peleia com o cabra.
Peleia? O que é isso? perguntou Alexandre.
Peleia? Ê pega. Briga. Sova, bah! Quebramos o guri umas trêsvezes, numas quebradas por aí.
Por isso acreditamos que ele ficou comraiva e fez aquilo tudo com nossa irmã, prendendo a Raquel lá no
casebre. Depois, pensamos que ela acusou o tio Ladislau de tê-la violentadopor vingança pelas surras que
levava do nosso vô. Ficamos com dó daguria, mas tinha que obedecer nosso avô, chê!
Alexandre debruçou-se no volante não querendo acreditar no que ouvia, e Pedro confessou:
Pensamos que por causa do negrinho a nossa irmã havia se perdido. Ficamos com tanta raiva do
cabra que pegamos ele e demos um fim. Com a voz embargada, Pedro desfechou: O infeliz morreu
jurando que não teve nada com ela.
Atordoado, o cunhado perguntou com voz fraca:
Quem mais sabe disso?
Agora só tu, né, homem! Depois de pequena pausa Pedrodesabafou: Não podíamos deixar
do jeito que tava. Tu tinhas que vercomo tava o casebre, tinha que ver como tava a Raquel quando chegou
484
na frente da Casa-Grande da fazenda. Ela ficou presa lá por seis dias. Tava toda imunda, machucada e
rasgada de dar dó. Após pensar um pouco Alexandre perguntou:
Não foram por três dias que Raquel sumiu?
Não! Bah! Que isso?! Eu ouvi, ontem, ela falando que ficou trêsdias lá, mas acho que ela "perdeu
o tempo" e não contou direito porqueperdeu a noção, desmemoriou, porque ela ficou fora, mesmo, por
seisdias. Tenho certeza!
Por que não foram conversar com ela quando tudo aconteceu? Porque não foram até a polícia?
Não sei, homem disse Pedro atordoado. Sabe, nós não conversávamos muito, não. A mãe
sempre separou a Raquel da gente esó agora eu entendo por quê. O nosso vô sempre deu as ordens e a
gentefoi acostumado assim. Hoje é que eu penso diferente.
Como faz falta um diálogo, Pedro. Se vocês tivessem conversado mais... Se tivessem sido
amigos...
Mas ela era guria pequena e miúda. Não dava pra gente conversar. Já éramos homens!
Eu tenho duas irmãs, uma delas que é a mais nova, a Rosana, éminha melhor amiga. Não sei o
que faria sem ela. Somos companheiros,confidentes, parceiros...
Vendo que não adiantaria mais, pois só poderia torturá-lo, Alexandre se calou. Ficou perplexo com o que
ouvia e não poderia fazer nada, nem mesmo contar para Raquel. Ela poderia se sentir pior, acreditando ser
culpada pelo crime que os irmãos cometeram.
Mesmo perturbado, ele ligou o carro e seguiu decidido a sair dali o quanto antes, entendendo que tudo o
que precisava já havia feito e realizado.
Após saírem da fazenda, Alexandre resolveu aproveitar bem as férias.
Vamos! dizia ele a esposa para convencê-la. É uma pousada e tem lindos chalés de madeira e um
distante do outro, ao pé da serra, com lareira, tapetes e colchas de pura lã de carneiro, com dois ou três
485
quartos, hidro... É um lugar lindo! Principalmente nessa época do ano, onde tudo deve estar florido. Se não
quiser o chalé, ficamos num apartamento. É bem espaçoso e tem dois quartos, sala...
Minha vontade mesmo, depois de tudo o que passamos, é voltarpra casa e... Ah! Quero abraçar
seus pais, beijá-los muito, muito, muito!E me esconder entre eles para me sentir segura. Agradecê-los por
me adotarem... por me darem você de presente sorriu feliz.
Alexandre sorriu também, envolveu-a com um abraço e perguntou, com jeito manhoso:
E comigo, você não se sente segura?
Seu bobo! Claro que sim!
Então vamos ficar nessa pousada. Temos mais de vinte dias deférias pela frente! Depois você
terá todo o tempo que quiser para pegarmeus pais e abraçá-los, beijá-los muito, muito, muito! Mas antes
teráque fazer isso comigo, ou não a levo para casa.
Raquel, bem mais alegre e segura, concordou. Eles passearam e se distraíram o resto das férias,
conhecendo lugares maravilhosos que os faziam esquecer tudo o que tinham passado nos dois dias em
que ficaram na fazenda.
Ao chegarem à residência do senhor Claudionor, foram recebidos com imenso carinho.
E lá?! Como foi?! perguntou dona Virgínia eufórica.
Obrigado por você ser como é disse Alexandre abraçando-a.Puxando também seu pai para
um abraço, completou: Pelo amor que tem por nós, pelo carinho, pela atenção, pelos ensinamentos...
Agradeço a Deus por vocês existirem. Sem deter as lágrimas, falou com avoz embargada: Não
conseguiria viver sem vocês.
Sem dizer uma palavra, Raquel entrou no meio deles, os abraçou emocionada e chorando. Os pais não
conseguiam entender, apesar de corresponder ao carinho, e dona Virgínia perguntou chorosa:
486
Mas o que houve?
Precisamos descansar um pouco, mãe. Depois conversamos e contamos tudo.
Após se recomporem da viagem, Alexandre e Raquel comentaram tudo o que tinha acontecido. O casal
ficou perplexo e o senhor Claudionor argumentou:
Não fiquem tristes com isso. Já passou e vocês não perderam aviagem, pois aproveitaram para
outros passeios, isso é o que importa.Mas não posso deixar de ficar orgulhoso por sermos uma família
deverdade.
Alexandre, Raquel e Bruna não queriam voltar para o apartamento, como se pudessem se sentir mais
seguros ali. Alexandre não deixava a esposa por um minuto, parecendo assumir aquele jeito, como diziam,
"grudento", de ficar perto dela, acompanhando-a nem se fosse só com o olhar, a todo lugar que Raquel ia.
Mesmo brincando com a sobrinha, Rosana percebeu o comportamento diferente do irmão e o advertiu
baixinho:
Ela não vai fugir não, Alex. Dá um tempo!
Alexandre estampou um largo sorriso para a irmã e a olhou de um jeito estranho, meio maroto.
Alex, você está com uma cara de safado! Não me esconda nada.Alex, o que foi?
Nada! respondeu ele sorrindo e, levantando-se rápido feito um moleque, deu-lhe um beijo no
rosto e a deixou falando sozinha,indo atrás de Raquel, abraçando-a com carinho.
Após alguns dias, voltando a se acostumar com a rotina, Alexandre retornou ao trabalho.
Duas semanas depois, assim que chegou do serviço e tomou seu banho, Raquel, após deixar a filha
entretida com um brinquedo, procurou pelo marido e pediu:
487
Alex, não vá brincar com a Bruna agora não, preciso conversarcom você primeiro.
Diga pediu sorrindo ao abraçá-la e balançá-la de um lado paraoutro.
Hoje eu fui acompanhar a Rosana ao médico devido às dores decabeça que ela anda sentindo.
Havia uma vaga na agenda do médico eeu resolvi passar também.
Você está bem, Raquel? perguntou atento, acomodando-se epuxando-a para que se sentasse
em seu colo.
Estou. É que...
Percebendo algo diferente na voz trêmula da esposa, insistiu mais sério:
Você está nervosa, por quê? Há algo errado?
Raquel parecia tensa e atrapalhava-se para relatar o que acontecia, mas Alexandre procurou ficar tranquilo
e esperar o desenrolar do caso.
É que, quando chegamos de viagem, lembra? ela perguntou.
Claro, lembro. Não sei o que, mas lembro que chegamos de viagem disse ele, quase sorrindo,
para deixá-la mais à vontade.
A esposa sorriu e mesmo com sua voz doce comentou apreensiva:
Decidimos que esperaríamos um pouco para ter um filho, né? Daínós fomos ao médico para que
me receitasse um remédio contraceptivo,lembra?
Claro. Lembro, sim respondeu calmo. Não suportando a demora, com expectativa perguntou:
E...?
O médico orientou que eu esperasse alguns dias após o ciclomenstrual para começar a tomar o
remédio. Hoje eu fui lá e ele mepediu para fazer um exame de gravidez, porque esse ciclo não
aconteceuaté agora. Nem cheguei a tomar o remédio. Está bem atrasado. Acho que foi na viagem...
afirmou ao murmurar sorrindo e trêmula.
O marido parecia ter perdido o fôlego. Alexandre não sabia se sorria ou se chorava. Abraçando-a com
carinho, beijou-a com ternura, embalando-a nos braços. A emoção o fez perder as palavras e só muito
depois ele disse emocionado:
Eu te amo, Raquel. Eu te amo, tanto. Deus! Obrigado.
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Calma disse a esposa também chorando de emoção , não temos certeza ainda.
Somente quando se acalmaram das fortes emoções, ele perguntou:
A Rosana já sabe?!
Não. Eu não contei.
Nada?! Nem sobre nós...!
Não. Não contei nadinha! riu com gosto.
A Rô vai me matar quando souber! E você já fez o exame?
Não respondeu Raquel sorrindo e chorando ao mesmo tempo. Estou com medo.
Alexandre não poderia se sentir mais feliz e disse satisfeito ao abraçá-la:
Amanhã cedinho eu vou com você. Quero acompanhá-la em tudo,meu amor.
Dois dias depois, Alexandre não cabia em si. O teste de gravidez dera positivo. Para fazer surpresa, eles
combinaram que ainda não contariam nada e que só no fim de semana dariam a notícia a todos de sua
família.
No sábado, ao chegarem na casa do sogro, Raquel pediu baixinho:
Deixe-me contar pra Rô primeiro e sozinha?!
Claro! Vai lá!
Dona Virgínia, desconfiada com o comportamento e o cochicho dos dois, perguntou ao filho o que estava
acontecendo, ao ver a nora se afastar. Não conseguindo se conter, Alexandre, que não tirava o sorriso do
rosto, chamou seu pai e contou a novidade. Vilma e Valter, que estavam lá a passeio, compartilharam da
novidade e da felicidade, com lágrimas de alegria e muita emoção.
E a Bruna, ela já sabe?! perguntou dona Virgínia entusiasmada e chorando.
Já, nós contamos ontem à noite para ela.
Eles abraçavam o novo pai cumprimentando-o, quando ouviram um grito.
É a Raquel! exclamou Alexandre assustado com o grito daesposa, saindo correndo para
procurá-la. Ao entrar no quarto da irmã,ele trombou com Raquel, que gritava:
489
A Rosana!... Alex, a Rosana!
Onde ela está?! perguntou o marido.
Aqui! mostrou Raquel, em desespero, indo até o banheiro.Alexandre trouxe a irmã no colo e a
colocou sobre a cama. Rosana
parecia desmaiada. Raquel, em crise de nervos, chorava muito ao explicar o que acontecera:
Eu entrei no quarto, chamei e ela não respondeu. Bati na porta do banheiro, ainda brinquei que tinha
uma novidade, se ela demorasse eu não contaria e fiquei esperando. Como ela não respondia e eu
acheique estava demorando muito, abri a porta e a vi no chão.
Rosana foi levada ao hospital. As horas de espera deixavam todos aflitos. Vilma havia ficado em casa com
as crianças e dona Virgínia, depois de ter se sentido mal no hospital, fora levada para casa por Valter. O
senhor Claudionor, Alexandre e Raquel aguardavam ansiosos por qualquer notícia que pudesse vir.
Preocupado com o estado da esposa, o marido sugeriu:
Raquel, é melhor eu levá-la para casa. Você está sem se alimentar,está pálida. Não é bom ficar
aqui. Faremos o seguinte, eu volto comvocê, tomo um banho, como alguma coisa, depois o Valter me traz,
eufico aqui e ele leva meu pai. Não vai adiantar ficarmos todos. Certo, pai? perguntou o filho, virando-se
para o senhor Claudionor que estavaao lado.
É melhor sim, Raquel. Lembre-se do seu estado. Você precisadescansar, filha concordou o
homem.
Decidindo pelo melhor, Alexandre levou a esposa para casa. Raquel ficou lá e ele voltou para o hospital
após um banho e uma alimentação leve. Dona Virgínia chorava muito e Raquel não se separava dela. No
dia seguinte, a notícia chegou através de Alexandre, que voltou para casa.
A Rosana teve um aneurisma cerebral.
O silêncio reinou por longos minutos. Elas ficaram caladas e Alexandre, com olhos vermelhos, nervoso e
lágrimas a correr pela face, sentou-se e desabafou:
Estou desesperado...!
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Segurando a fronte com as mãos, apoiando os cotovelos sobre a mesa, ele chorou muito. Dona Virgínia,
incrédula e parecendo não entender, ignorando a seriedade do caso, perguntou meio atordoada:
Ela vai ficar boa, não vai?
Procurando se recompor, Alexandre segurava o choro, ao dizer:
O pai precisa de você lá no hospital, mãe. Lá vão explicar direito pra você... O motorista da firma
está aí, ele vai nos levar porque eu não tenho condições de dirigir.
Chorando, Raquel abraçou-se ao marido, e ele a envolveu com carinho.
Vilma, apesar de chorar aflita, mais uma vez, ficou em casa com as crianças. Pouco depois eles chegavam
ao hospital, onde o médico que solicitou a presença dos pais os aguardava numa sala privativa.
Sou o doutor Cardoso, neurologista. Eu e minha equipe estamoscuidando de Rosana desde que
chegou aqui. Ela entrou em coma profundo, diagnosticamos um aneurisma cerebral. Depois de breve
pausa,o médico explicou brandamente: Bem, aneurisma é a formação deum saco ocasionado pela
dilatação das paredes de um vaso sanguíneo.O rompimento dele provoca uma hemorragia fulminante. O
médico fez pequeno intervalo, mas continuou comovido: Sinto muito.Acabamos de confirmar em Rosana
a morte encefálica.
Dona Virgínia, após um gemido de lamento, abraçou-se ao esposo, entregando-se ao choro compulsivo de
aflição e muita dor. O senhor Claudionor tentou ser forte, mas não resistiu, lamentou chorando:
Deus! Minha filha... nossa filhinha...! Não.
O médico, que também estava em situação difícil, teve que avisar:
Eu sei que é um momento de dor e angústia, mas não há nadaque possamos fazer. A morte
encefálica é irreversível, só depende de horas ou de desligarmos os equipamentos que ainda mantêm
poucos órgãos funcionando. Por essa razão eu tenho que pedir... ou melhor,avisar: a Rosana é uma
doadora incondicional. Diante do quadro que se apresenta, sou porta-voz do pedido de doação de seus
órgãos. Muitos podem continuar vivendo com a decisão de vocês. Novo intervalo
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pequeno se fez e o médico perguntou compadecido, com voz meiga, entendendo a dor daquele momento:
A família autoriza a doação?
Dona Virgínia pareceu não ouvir e o pai de Rosana ficou refletindo sobre o pedido, depois disse:
Preciso conversar com meus outros filhos, doutor. Podemos pensar?
Claro. Mas, por favor, perdoem-me por ter que avisar, vocês terão que ser breves. Seus filhos
estão aqui?
O Alexandre e a Raquel sim, eles estão lá em baixo, mas não sei sea Vilma e o Valter chegaram,
o Valter talvez... respondeu ele atordoado.
Dona Virgínia chorava muito e o senhor Claudionor estava como que em choque, incrédulo. Tudo fora
muito rápido. Não demorou e Alexandre, Raquel e Valter chegavam assustados por terem sido chamados
da sala de espera com urgência. Após serem avisados sobre a solicitação da autorização para a doação de
órgãos, Raquel abraçou-se a dona Virgínia, enquanto Alexandre e Valter ficaram chocados e pensativos.
Forçando-se a se recompor, o irmão perguntou:
Doutor Cardoso, o que é a morte encefálica?
É a inibição irreversível das atividades cerebrais. Ela pode sercausada por uma pancada, que é o
traumatismo craniano, por um tumor ou uma lesão, como é o caso de sua irmã.
Desculpe minha ignorância tornou Alexandre , mas como se tem certeza disso, digo, como
se tem certeza da morte encefálica?
É possível que diagnostiquemos a morte encefálica com exames clínicos, mas a Legislação
Brasileira exige diagnóstico preciso através demétodos sofisticados. Através dos exames:
eletroencefalograma, angio-grafia cerebral e outros como o eletroencefalógrafo, que registra as
ondascerebrais... Aqui está disse o médico estendendo-lhe alguns papéis, eu os trouxe para que veja.
Inclusive a arteriografia.
Alexandre pegou os papéis e os olhava atento, acompanhado por Valter, enquanto o médico lhes mostrava
melhor e explicava ao mesmo tempo.
492
O senhor Claudionor parecia ter deixado a decisão para eles. Alexandre se sentou, olhou para a esposa e
para a mãe, passou as mãos pelo rosto e, erguendo o corpo, olhando para o teto, rogou:
Deus! O que faremos?
Valter, parecendo estar mais consciente, lembrou:
Alguém sabe dizer o que Rosana diria em uma situação dessa?Todos ficaram em silêncio. Por
fim, Alexandre perguntou:
Doutor, quanto tempo temos?
Não muito. Após a morte encefálica, alguns órgãos resistem pormais tempo, outros não. Estamos
mantendo as condições de circulação sanguínea e a respiração de forma artificial, através de respiradouros
emedicamentos que aumentam a pressão arterial. Veja, a equipe encarregada para fazer a retirada dos
órgãos para o transplante tem que seracionada. É uma equipe com treinamento específico para esse tipo
deprocedimento. Eu não faço parte dela e nem poderia fazer. Os prováveisreceptores têm que ser
chamados aos hospitais e cada órgão tem umtempo diferente de duração após a retirada. Por exemplo, o
pâncreasdura de doze a vinte e quatro horas; dois rins, de doze a quarenta e oitohoras; um fígado, de doze
a vinte e quatro horas; duas córneas, até sete dias; e um coração e dois pulmões, somente de quatro a seis
horas. É uma corrida contra o tempo. Fora essas dez partes mencionadas, temos ainda as válvulas
cardíacas, medula óssea, veia safena etc.
Muitas vidas dependem disso. Hoje em dia, eu acredito que há cerca de 30 mil ou 35 mil pessoas, ou mais,
esperando na lista para receber uma doação. Mais de trinta por cento morrem antes de conseguir esse
"presente de Deus" e somente dez por cento recebem um órgão por ano.
Doutor Cardoso, perguntou Valter , a morte encefálica de Rosana foi diagnosticada só pelo
senhor? E se quisermos chamar ummédico de nossa confiança, agora, é permitido?
Se vocês tiverem um médico de confiança da família, por favor,chame-o imediatamente! Isso
será ótimo! Contudo, não somente eu,mas também o doutor Reinaldo, outro neurocirurgião, foi acionado
493
assim que diagnosticamos a morte encefálica de Rosana. Ele não estáaqui no momento, pois atende a uma
emergência, mas, junto comigo, ele diagnostica e atesta. Como devem saber, são dois médicos, que não
façam parte da equipe de remoção e transplante de órgãos, que precisam chegar ao mesmo parecer, o da
morte encefálica, para que seja solicitada a doação. Fora isso também se admite a presença de um outro
médico de confiança da família. Um médico sozinho não pode atestar a morte encefálica para a solicitação
do transplante de órgãos. Decidido, Alexandre avisou:
Prefiro que seja assim. Dê-me alguns minutos, vou telefonar para meu médico.
Por favor. Chame-o o quanto antes incentivou o neurocirurgião.
Enquanto aguardavam a chegada do cardiologista acionado por Alexandre, Valter procurava saber, com o
neurocirurgião que atendia Rosana, maiores informações.
Doutor, perguntou Valter muito interessado , pode me dar uma orientação?
Mas é claro!
Quem pode ser doador de órgãos?
Todos, desde que não sejam pessoas portadoras de doenças infecciosas incuráveis, câncer
generalizado, diabetes, Aids ou tenham comprometido o estado do órgão. Não é muito fácil ser doador se
observarmos acausa da morte ou em que condição esta se dá, a demora para a retirada...e tudo mais,
inúmeros fatores comprometem todo o roteiro a ser seguido.Por esse motivo há muitos na fila de espera
para doação. Isso sem contarcom aqueles que não admitem ser doadores. Por exemplo, se a
Rosana tivesse outro tipo de morte, um acidente, por exemplo, e seu corpo fosse trazido para cá sem que
fossem mantidas as funções vitais para os órgãos,como a circulação sanguínea e a respiração, muito mal
poderia se aproveitar as córneas, porque, após a autorização da família, precisamos aindaacionar a equipe
especializada para a retirada dos órgãos, e esta equipe nem sempre está próxima. A equipe de atendimento
do hospital não pode fazer o procedimento de retirada dos órgãos.
494
Doutor tornou Valter, por exemplo, nós estamos aqui com esse dilema de doar ou não.
Nesse instante, a família ou as famílias dospossíveis receptores estão sabendo do caso e há um interesse,
ou umapressão, vamos dizer assim, sobre os médicos desse hospital para quenos convençam a fazer a
doação?
Não há como isso ocorrer. Logo o médico perguntou: Qual é seu nome mesmo?
Valter.
Pois bem, Valter. É preciso que as pessoas saibam que a doação deórgãos sob a ótica da
Legislação Brasileira não pode ser feita para umapessoa específica. Isso é crime. Como eu já disse,
quando há morte encefálica e essa pessoa é um doador potencial, primeiro são mantidas as funções vitais
dos órgãos, pois se é o cérebro que comanda tudo, amanutenção do corpo tem que ser feita por meios
artificiais, se não, em pouquíssimo tempo, esses órgãos vão parar de funcionar.
Constatada a morte cerebral, a família é avisada e consultada sobre a possibilidade de doação. Se não
foram realizados exames como eletroencefalograma, angiografia cerebral ou arteriografia, a família deve
exigi-los. Isso é lei. Mesmo se os equipamentos necessários para esses exames não existirem no hospital,
eles podem e devem ser trazidos. Além disso, a família pode pedir a presença de um médico de sua
confiança para acompanhar o caso e dar um parecer.
Como eu ia dizendo, Valter, após o consentimento da família, o hospital onde está o doador potencial
notifica a Central de Transplantes, que por sua vez pede a confirmação do diagnóstico da morte encefálica
e a autorização da família e, somente a partir daí, iniciam-se os testes de compatibilidade entre doador e os
possíveis receptores da lista de espera. A Central de Transplantes aciona a equipe de remoção e
transplante e o pessoal de apoio deslocando-os para o hospital onde o doador estiver. O possível, ou
possíveis, receptor para cada órgão só então é comunicado e vai ao hospital onde ele será atendido, o qual
também já deverá estar de sobreaviso. Então veja, se você quer doar o seu coração para mim, é bem
provável que não possa. Existem as compatibilidades
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entre o doador e o receptor, que é escolhido por Deus. Na lista de espera, não podemos ficar
felizes quando somos o suposto primeiro, pois o décimo dessa mesma lista pode receber um órgão antes
de mim, por não ter aparecido um doador compatível comigo. Entendeu?
Só mais uma coisa, doutor. Isso nos terá algum custo, caso desejarmos doar?
Absolutamente, não. Vocês não pagam nem a manutenção, nemqualquer outra despesa do
procedimento.
Eu sei que não é o caso, mas se tivéssemos um familiar na lista deespera e quiséssemos doar
para ele, agora, poderíamos?
Não. A família não pode indicar um receptor. Este é sempre indicado pela Central de
Transplantes, com base nas urgências, na compatibilidade, na semelhança de tecido etc.
A chegada do cardiologista que fora chamado por Alexandre interrompeu o assunto, e ambos os médicos
se retiraram. Naquela sala, onde todos esperavam confusos, sofridos e aflitos, o silêncio imperou absoluto.
Dona Virgínia, abraçada à nora, parou de chorar e fitava ao longe, com o olhar perdido. Raquel ficou quieta,
ela estava chocada com tudo o que acontecia e, às vezes, incrédula. Valter não conseguia se sentar. Ele,
vagarosamente, andava de um lado para o outro, ora olhava os parentes, ora fitava pela larga janela.
O senhor Claudionor estava perplexo, inconformado. Alexandre, com os olhos vermelhos, observava a
esposa querendo que ela ficasse perto dele, pois sentia-se muito mal com aquela perda. A irmã era uma
pessoa que significava muito para ele. Em alguns minutos, ele sofria crises de choro, mas logo procurava
se controlar para não abalar os demais.
Cada um, à sua maneira, recordava gestos, risos, detalhes, cenas onde Rosana, espirituosa e irreverente,
contagiava todos com sua alegria, sempre procurando ajudar, sempre associando concórdia, amor e ideias
salutares em todas as situações. Jamais lembravam dela triste, melancólica, isso raramente ocorria. Era
triste e doloroso pensar que não mais teriam Rosana junto deles. Minutos se passaram e Vilma abriu
vagarosamente a porta e os olhou como que incrédula. Alexandre se levantou,
496
abraçou-se a ela por longo tempo sem dizer nada. Eles choraram muito. Depois, Vilma ajoelhou-se em
frente de sua mãe e Raquel. Não havia palavras que os confortassem naquele momento. Valter, mais
próximo, perguntou:
E as crianças?
Chamei a dona Leila para ficar com elas.
O marido a abraçou depois informou sobre a solicitação da autorização para a doação dos órgãos. Vilma
virou-se para o senhor Claudionor e perguntou:
Papai, o que você decidiu?
Com lágrimas a correr na face, ele falou como num lamento:
Eu não sei o que fazer, filha. Preciso de vocês.
Chamei meu cardiologista disse Alexandre. Ele está com odoutor Cardoso.
Dona Virgínia, desnorteada, perguntou:
Não há possibilidade de terem errado e Rosana estar viva?
Pelo que entendi, não, respondeu Alexandre.
E se doarmos e houver comercialização dos órgãos? insistiu a
mãe.
Essa possibilidade é bem remota, porque tem que se seguir normas e obedecer à legislação.
Esse é um hospital credenciado e que tem regras a seguir. Nem se sabe quem será o provável receptor.
Isso são rumores que, infelizmente, podem diminuir o número de doações. Já ouvi falar de comércio de
órgãos duplos, como o rim, mas o doador é consciente e se beneficia com alguma verba, mas isso é
proibido por leino Brasil informou Alexandre.
O que faremos? Precisamos decidir pediu o senhor Claudionor,como que implorando uma
decisão.
Alguém sabe dizer o que Rosana queria? insistiu Valter firme.Raquel olhou para todos e falou
com a voz trêmula e chorosa:
Outro dia, não faz muito tempo, eu estava intrigada pelo fato de Sandra ficar procurando pelo Alex...
Raquel foi interrompida pelochoro e pelos soluços que não obedeciam à sua vontade. Todos
aguardaram
497
que se recompusesse e depois ela continuou: Eu estava dizendo isso para a Rô, então ela me
disse que a mãe de Sandra contou para a dona Virgínia e olhando para o marido ela lembrou ,
naquele dia em que chegamos e elas estavam conversando no portão. Ela falou que a Sandra estava com
problemas renais e necessitava fazer hemodiálise, que estava também na lista de espera para doação...
Rosana disse para eu não me preocupar porque ela deveria estar arrependida, ou coisa assim, e talvez
quisesse conversar com o Alex sobre isso.
Em dado momento, a Rosana ficou penalizada com o fato e disse: "Se eu pudesse doaria um rim para ela".
Depois, ela falou daquele jeito todo animado: "Quando eu morrer, podem doar tudo, não vou precisar
mesmo. Aí eu não corro o risco de ser enterrada viva".
Raquel caiu em um pranto copioso e Alexandre a abraçou, tentando não deixá-la mais nervosa.
Eu também a ouvi dizer o mesmo informou Vilma.
Mas, gente argumentou a mãe em aflição , e se houver uma chance? Se os médicos tiverem
errados? Será que ela vai sentir dor?
Valter, mais ponderado e consciente, avisou:
Aqueles exames constataram a morte encefálica e esta é irreversível.Se desligarem os aparelhos
que mantêm os órgãos ainda em condições,todos vão parar em pouco tempo e tudo se perde.
Acredito ser quase impossível os médicos errarem. Vamos lembrar que serão três os
pareceristas responsáveis e a um deles eu confio minha vida lembrou Alexandre.
Quanto à dor disse Valter , o que faz o corpo sentir, oumelhor, reconhecer um estímulo de
dor é o cérebro. Se este está morto,o corpo físico não sente nada.
Vilma se levantou e, impelida por uma força interior, falou:
Gente, nós temos que parar de dar valor à matéria quando esta não nos serve mais e sermos
nobres e caridosos para ajudar os outros.A morte faz parte da vida. E melhor acreditarmos em Deus agora
elembrar que Ele deve ter inspirado os homens a desenvolver processos médicos e científicos, não só para
prolongar a vida terrena, mas, principalmente,
498
para sermos mais caridosos e menos egoístas, crescendo espiritualmente. Não vamos pensar
que estamos fazendo um ato grandioso, nem vamos esperar por um retorno de bênçãos. Vamos pensar
que essa é a nossa prova de desapego material, prova de amor ao próximo como a si mesmo. Se eu um
dia tiver todas essas abençoadas qualidades de ser uma doadora potencial como a minha irmã, não
hesitem, autorizem a doação. Se fosse o caso de um de nós precisarmos, rogaríamos a Deus por essa
oportunidade. Pediríamos que houvesse pessoas nobres e corajosas.
Não interessa quem vai receber, não interessam as mentiras ou as verdades que dizem sobre o comércio
ou o privilégio daqueles que não deveriam ser favorecidos primeiro. Só receberá a doação quem realmente
precisar, e devemos crer que este será responsável e terá que corresponder à altura, pela nova
oportunidade que teve.
Não cabe a nós esse julgamento. Devemos só fazer a nossa parte, a nossa caridade e por amor. Vamos
lembrar que não estamos doando a Rosana, e sim o que ela usou. Assim como faremos com suas roupas e
suas outras coisas.
O que acontecerá com esses órgãos se não doarmos? Apodrecerão, com certeza.
Seremos tais quais os vermes que os devorarão, se formos egoístas agora. Eu estou sentindo uma imensa
dor por saber que vou ficar longe da minha irmã, mas eu sei que em algum lugar ela vive e ficarei feliz por
saber que a sua roupa humana é utilizada por alguém. Não consigo entender por que nós nos negaríamos
a doar se não vamos precisar mais. Será bom pensarmos o quanto a Rosana foi e ainda será útil para as
pessoas, para outras famílias, que ficarão alegres, que por causa dela vão continuar a se abraçar a se
beijar e até a gerar novas vidas. Por mim, vamos doar e acabou! Nada mais importa. O que queríamos era
tê-la conosco. Enterrar o corpo inteiro ou faltando algumas partes dele não vai trazê-la de volta.
Vilma foi interrompida por um soluço e não conteve as fortes emoções, que não a deixaram prosseguir.
499
Ela parou de falar, abraçou-se ao marido e escondeu o rosto para chorar.
Meio atordoado, Alexandre ainda lembrou:
Eu li, há poucos dias, num livro que ela me deu, O Livro dos Espíritos, que "O corpo é uma máquina
que o coração põe em movimento. O corpo se mantém enquanto o coração fizer o sangue circular, epara
isso não necessita da alma". Creio que é a questão 152. Se assim for,Rosana deve estar longe agora e em
lugar melhor.
Nesse momento, a porta da sala se abriu e, em poucas palavras, o médico de confiança da família
confirmou o que os outros atestaram. O doutor Cardoso olhou para o senhor Claudionor, pedindo uma
resposta com o olhar piedoso. O pai, chorando, não conseguiu articular nenhuma palavra e, em um olhar
para Alexandre, pediu-lhe que falasse em seu nome. Chorando, Alexandre se levantou e disse, entre os
soluços que embargavam sua voz:
Vamos doar a alma de nossa irmã a Deus e a vida dos seus órgãos àqueles que ainda podem viver.
Que Jesus os abençoe.
O médico sentiu que poderia chorar; não resistindo às emoções, seus olhos marejaram e, estapeando as
costas de Alexandre, o doutor Cardoso teve que se controlar para dizer:
Preciso que assinem a autorização mas traído pela emoção daspalavras de Alexandre, ele
abaixou a cabeça para esconder as lágrimasque deslizaram.
A família decidiu pela caridade de doar os órgãos sobreviventes e úteis no corpo que fora de Rosana. Na
espiritualidade, Rosana, como que adormecida, já havia sido desligada do corpo que lhe servira enquanto
necessitou provar aquela existência terrena. Conduzida com inenarrável ternura e tratada com muito
carinho, ela estava longe dali. Por ter sido uma criatura sem apego à matéria corpórea, caridosa e amável,
o que ocorria com o corpo de carne não lhe importava. Ela era preparada para a vida espiritual, onde
haveria, com toda certeza, de se satisfazer com a decisão de seus queridos ainda encarnados.
Tempo depois o corpo foi liberado para os familiares, que cuidaram do enterro. Ricardo fora avisado, mas
não conseguiu chegar a tempo.
500
Somente sua família compareceu ao enterro. Aquela que seria a sogra de Rosana estava inconformada.
No velório, dona Virgínia teve crises de choro, mas recebia um alento indefinível que durava cada vez mais
tempo. Sua consciência estava livre de culpa por egoísmo. Ela, lá no fundo, sabia que, naquele momento,
sua filha estava "salvando" outras vidas.
Alexandre se preocupava com Raquel, ela estava muito sofrida, Rosana foi a sua única e melhor amiga.
Elas eram confidentes e se davam muito bem. Raquel estava como que paralisada, não conseguindo mais
chorar, e com o semblante triste, olhos vermelhos, não dizia nada.
Bem mais tarde, ao chegarem à residência do senhor Claudionor, todos estavam abatidos e somente as
crianças, que tinham ficado com a empregada, por não entenderem o que ocorrera, estavam animadas.
Pouco depois, Ricardo, o ex-noivo de Rosana, chegou desesperado, acompanhado pelo pai. O rapaz
chorava muito. Após abraçar a todos, ele pediu para ir até o quarto da noiva. Lá, Ricardo dobrou os joelhos
no chão e se curvou sobre a cama que fora da moça, inconformado, chorou muito. Sua aflição comovia a
todos.
Raquel agora estava estranha. Pelo cansaço, ela pediu ao esposo que a levasse para casa. Quando ele
avisou sua mãe que iria embora, a mulher reagiu, pedindo de forma melancólica e comovedora à nora que
estava abraçada ao seu filho:
Fique, por favor, Raquel. Um dia a Rô, num exemplo, previu que se eu ficasse sem ela você seria
minha filhinha amiga. Por favor, filha,fique comigo agora.
Mãe, eu estou preocupado com o estado da Raquel. Se estamos esgotados, imagine ela?
avisou Alexandre sensível. Lembre-se,Raquel está no início da gravidez e...
Toma um banho e vá se deitar, mas fique aqui.
Não, mãe. Ela precisa de sossego. A tia falou que vem para cá, ascrianças não param e a Raquel
não terá sossego, ela está abatida. É melhor irmos. Amanhã cedo voltaremos.
Eu não quero que a afastem de mim dizia dona Virgínia chorando desesperada. Deixe a
Raquel comigo. Já perdi a Rosana...
501
A jovem, ouvindo o pedido lamurioso, decidiu falando com delicadeza:
Vamos ficar, Alex. Será melhor assim. Também quero ficar com ela.
O clima estava triste e depressivo. Somente bem mais tarde, exaustos, conseguiram se deitar. Após ir ver a
filha dormindo, Raquel deitou-se ao lado do marido, que a abraçou, e disse:
Você deve estar muito cansada. Precisa de sossego, Raquel. Quer ir embora agora?
Não. Vamos ficar. Não posso deixar sua mãe num momento comoesse. Devo tanto a ela, Alex!
Ela é minha mãe. Eles ficaram em silêncio até que a esposa começou a chorar e disse: Nunca
escondi nadada Rô... Eu não contei nada pra ela, nem sobre nós... Quis fazer surpresa sobre a gravidez
e...
A Rô já está sabendo, Raquel. Não fique assim. Procure dormir.Precisa descansar. Pense no
bebê.
Mas foi a Rô quem mais me apoiou e... não soube por mim!... Ela era minha única amiga falava
chorando amargurada.
Alexandre a abraçou e não tinha palavras que a confortassem naquele momento, pois ele próprio tinha que
se fazer firme para não expressar seus sentimentos perto da mulher, que já estava muito abatida.
As crises de choro de dona Virgínia fizeram com que Raquel e Vilma se levantassem na madrugada para
ficar com ela.
Bem cedo, Alexandre decidiu:
Pai, preciso ir pra casa. A Raquel não descansou, estou preocupado com ela que deve estar
exaurida. Não dormiu e... Mais tarde eu volto.
Vá, Alex, eu cuido de tudo por aqui. Sua mãe parece melhor.Deixe a Bruna aqui para brincar com
os priminhos. Será melhor para a Raquel poder descansar.
Não, pai. É bom ela ir com a gente. Ter nossa filha perto é ummotivo para a Raquel não ficar
pensando...
Com o coração apertado, Alexandre se despediu de seu pai sem muitas palavras e, beijando-lhe o rosto,
apertou-o contra si com força, prometendo retornar à tarde.
502
Capítulo 22
O mundo dá voltas
Chegando ao apartamento, Alexandre, fazendo-lhe um carinho, pediu-lhe:
Raquel, tome um banho e vá se deitar. Passando a mão noventre que nem se avolumara, ele
falou: Precisa cuidar do nosso neném.Descanse que eu olho a Bruna.
Preciso preparar algo para almoçarmos. Não tenho nada pronto.
Vamos fazer o seguinte, daqui a pouco eu saio e compro alguma comida pronta. Certo? ele
decidiu.
Raquel concordou. Ela tomou um banho e se deitou. Não dormiu, mas ficou quieta em seu quarto. O marido
distraía a filha, procurando não incomodar Raquel. Após alguns minutos, ela começou a se sentir mal, mas
acreditou que fosse pelo cansaço.
Suas pernas doíam muito. Ela sentia algo em suas costas, na região dos rins, como que uma contração,
mas achou que fosse pela má acomodação das últimas horas.
Mais tarde Alexandre foi vê-la e ao perceber que estava acordada, falou:
Pensei que estivesse dormindo.
Não consegui.
Você está bem?
Estou muito cansada. Sinto tontura.
É melhor eu levá-la ao médico.
Ele vai dizer que é para eu descansar, não precisa. Não quero ir. Com lágrimas que brotaram
imediatamente, ela falou sentida: Não consigo parar de pensar na Rô.
Nenhum de nós consegue. Eu também... Ele parou de falar,ao perceber que poderia não conter
sua emoção.
Raquel, muito sensível, lamentou:
Ela foi minha única amiga. Minha melhor amiga...Alexandre a abraçou com ternura e pediu:
Não fique assim, meu bem. Eu sei que está sofrendo. Eu sei quea ama... Mas procure ficar
tranquila. Não se desgaste mais. Pense no nosso filho.
Eu não contei pra Rô.
Nós não contamos para fazer uma surpresa. Não foi por egoísmo.Alexandre apoiou-a em seu
ombro e ficou afagando-lhe até percebê-la mais calma. Passados alguns minutos, vendo-a serena, avisou:
Está na hora do almoço. Preciso ir comprar algo, a Bruna deve estar com fome.
Vá. Eu estou bem.
Tem certeza?
Tenho.
Ele beijou-lhe a testa e avisou:
Eu já volto. Vou levar a Bruna comigo.
Não, bem. Deixe-a aí.
Alexandre ficou pensativo e depois decidiu:
É melhor, assim volto mais rápido. Ela está quietinha brincando lá na sala com um quebra-cabeça
que a... ele deteve as palavras, ao lembrar que fora um presente de Rosana.
Raquel percebeu, mas nada comentou, e pediu:
Deixe a porta do quarto aberta. Daqui eu escuto o que está acontecendo e dou uma olhadinha.
Beijando a esposa antes de sair, ele insistiu:
Você está bem?
Só minhas pernas doem. Estou cansada. Mais nada. Fique tranquilo.
Eu já volto, tá? prometeu generoso.
O tempo foi passando e Raquel achou que o marido demorava muito. As dores, que antes sentia de modo
a suportar, agora aumentavam de
504
intensidade e outras contrações, muito fortes, na região do baixo-ventre, começaram a acontecer. Ela não
sabia o que fazer. Mesmo sentindo-se mal, Raquel levantou-se apoiando nos móveis e foi até a sala, onde
Bruna Maria distraía-se com o brinquedo de montar. Indo até a cozinha à procura de um analgésico,
lembrou-se de que não poderia tomar qualquer remédio devido à gravidez, então decidiu voltar para o
quarto.
Sentindo-se gelar teve um torpor que a deixou tonta. Curvada pela dor que a arrebatava, Raquel chegou
até a porta entre a sala e a cozinha e falou para a filha, com voz fraca e ofegante, que mal saía:
Filha... Liga pro papai...
O que foi, mamãe?
Diga pro papai vir logo... que a mamãe não tá bem.
Raquel perdeu as forças e caiu. Bruna, assustada, sacudiu-a chamando e, por não ter resposta, decidiu
telefonar para o pai, mas não conseguia. Por iniciativa própria, a menina telefonou para os avós.
Dona Virgínia dizia a empregada , telefone pra senhora.Desolada, a mulher solicitou
educada:
Pede pra a Vilma atender pra mim, por favor.
Mas é a Bruna e ela está chorando avisou a empregada.
Bruna?! Dê-me aqui, por favor. A mãe de Alexandre se assustou com a notícia e atendeu
rapidamente a ligação: Aqui é a vovó,filha. O que aconteceu?
Vovó, a mamãe pediu pra eu ligar pro papai, mas eu não estou conseguindo dizia a garotinha,
com voz de choro. Eu ligo, ligo,ligo e não acontece nada. Ele não responde.
Onde está a mamãe, Bruna? perguntou a avó quase desesperada.
A mamãe caiu aqui na sala e não se mexe. Ela também não responde.
E o papai?
Ele disse que já volta, mas está demorando. Ele foi comprar o nosso almoço.
Nesse momento, Valter e o senhor Claudionor, que chegavam na sala, ficaram preocupados e atentos à
conversa.
505
Bruna, filhinha, fique quietinha aí que a vovó já está chegando, tá?
Vovó?
Fala, querida.
Eu estou com medo. A mamãe está cheia de sangue em volta.Dona Virgínia teve que arrancar
forças das entranhas da alma para se
manter calma e aconselhar:
Bruna, querida, faça o seguinte, pegue um cobertor e cubra amamãe, ela pode estar com frio.
Ponha também um travesseiro embaixo da cabeça dela. Faça isso, mas não desligue o telefone, volta para
vocêficar conversando com a tia Vilma até a vovó chegar aí. Você entendeu,meu bem?
Entendi. Mas estou com medo.
Olha, Bruna, se você cobrir a mamãe, você não vai mais ver o sangue e ela vai ficar quentinha.
Agora seja boazinha e vai pegar umacoberta, está certo, meu bem?
A menina concordou e dona Virgínia contou a todos o que havia acontecido. Vilma ficou conversando com
Bruna por telefone, enquanto o senhor Claudionor, Valter e dona Virgínia foram rapidamente para o
apartamento do Alexandre.
Ao chegarem lá, Raquel ainda estava desfalecida. Bruna cobrira a mãe conforme o pedido, mas chorava
porque só conseguiu trazer o lençol que estava sobre a cama e não alcançara o cobertor que estava em
um lugar alto no armário.
Venha, querida, vem aqui com a vovó. Isso não tem problema.
Meu Deus! alarmou-se Valter ao pegar a cunhada desmaiada elevá-la para o quarto. É uma
hemorragia muito forte, dona Virgínia,não podemos perder tempo. Pegue a bolsa dela com os documentos
evamos para o hospital agora!
Ainda sem sentidos, Raquel foi levada para o hospital às pressas.
Minutos depois, trazendo a refeição que fora buscar, Alexandre chegou ao apartamento e estranhou ao
encontrar no corredor um lençol com manchas de sangue.
Raquel! Bruna!!! chamou ele em desespero. Ao entrar em seuquarto, observou que havia
sangue também sobre a cama.
506
Alexandre sentiu-se mal. Ele começou a esfriar quando o telefone tocou, e precisou de muita força para
reagir e atender.
Vilma...! A irmã o avisou sobre tudo e ele perguntou gritando: Para onde eles a levaram?!
Assim que soube, ele saiu em desespero para o hospital. Ao chegar láencontrou-se com Valter, pois seu
pai havia levado dona Virgínia e Bruna para casa, uma vez que a menina ainda estava assustada.
Calma, Alex.
Como calma! gritou aflito esfregando o rosto com as mãos.
Sente-se aqui pediu o cunhado, tentando conduzi-lo com amão sobre seu ombro.
Alexandre aceitou o pedido e Valter acomodou-se a seu lado ainda com a mão sobre seu ombro para
confortá-lo.
Você falou com ela? perguntou Alexandre brando.
Não. Quando chegamos, ela estava sem sentidos. Nós a trouxemospara cá o mais rápido
possível. Fitando-o, Valter avisou: O médico virá daqui a pouco falar com você.
Alexandre estava pálido, parecia exausto. Diante de seu silêncio, Valter perguntou:
Você está bem? Está sentindo alguma coisa, Alex?
Após alguns segundos, o cunhado respondeu de forma mecânica e desanimada:
Acho que estou. Não sei o que estou sentindo.
Como assim? tornou Valter, olhando-o assustado.
Estou sentindo um torpor. Não sei se é cansaço físico, emocional...
Seja forte, Alex. A Raquel vai precisar. Você sabe... A gravidez émuito recente e... Ela ficou muito
nervosa. A Rô era sua melhor amiga e... Se todos nós estamos assim, imagine ela, grávida, tão sensível...
Ahemorragia foi muito forte. Você foi ao apartamento e deve ter visto. Ela perdeu muito sangue.
Eu sei. Já pensei nisso. Tendo passado poucos minutos, Alexandre argumentou: Como a
Raquel vai reagir se... Não suportando a angústia e a aflição, ele começou a chorar escondendo o rosto
507
entre as mãos, e revelou: Eu quero tanto esse filho! Quero tanto a Raquel! Se algo acontecer a ela...
Deus!
Valter não sabia o que dizer. Não havia palavras que pudessem confortar Alexandre naquele momento. Ele
somente passava-lhe a mão no ombro em sinal de apoio. O cunhado sofria muito com tudo o que lhe
ocorria. Como se não bastasse a perda da irmã, agora a esposa e o filho, tão desejado, poderiam estar
correndo sério risco.
Após alguns minutos o médico surgiu e perguntou:
O marido de Raquel é?...
Sou eu, doutor apresentou-se. Meu nome é Alexandre.
Senhor Alexandre disse o médico com modos frios e sem rodeios, sua esposa acaba de
perder o bebê. Eu sinto muito. Só quenecessitamos fazer uma curetagem.
Como ela está?
A dona Raquel recobrou os sentidos. Ela está nervosa, muitoassustada e não se deixa examinar,
mesmo após o tranquilizante queministramos. Precisaremos lhe dar uma anestesia geral. Ela teve
umahemorragia muito forte e perdeu muito sangue. Isso é perigoso.
Posso vê-la, doutor?
O médico pensou um pouco e respondeu:
Só por alguns instantes antes que a levem para a sala de cirurgia.Venha comigo.
Alexandre esteve com a esposa por alguns minutos. Ela chorava muito e quase não conseguia falar.
Realmente Raquel estava em desespero.
Retornando para a sala de espera Alexandre ficou com Valter aguardando notícias, até que o cunhado
observou:
Alex, eu não estou gostando de vê-lo como está. Daqui a poucoterei que fazer a sua internação,
também.
Somente nesse momento Alexandre ofereceu um leve sorriso e falou:
Estou bem. Não se preocupe. Decidindo avisou: Vou telefonar. Quero saber como está a
Bruna e é proibido o uso de celular em hospitais, interferem nos equipamentos médicos.
508
Dias depois, Raquel já estava em casa recuperando-se. Deprimida, ela não queria ver ninguém. Vivia
fechada no quarto e parecia se sentir bem somente com a presença da filha e do marido. Às vezes,
chorava muito.
Marcos, quando foi visitá-la, procurou Alexandre longe da irmã e perguntou:
Minha mãe escreveu para vocês?
Não. Desde que voltamos, não tivemos mais notícias.
Se chegar alguma carta, é melhor você não entregar para a Raquel. Do jeito que ela está...
Por quê? estranhou o cunhado.
Minha mãe não está bem. Primeiro ela me escreveu e eu já acheiestranho. Nesta semana, o
Pedro mandou uma carta me explicando tudo.
O que está acontecendo? tornou Alexandre.
Minha mãe escreveu dizendo que estava feliz. Ela disse que viu tudo o que queria. Eu não
entendi e escrevi pra lá. Depois de uma boaespera, o Pedro me contou tudo. Ele disse que após vocês
saírem de lá,minha mãe passou a visitar, com frequência, o tio Ladislau. Ela o torturava dizendo que a
Bruna era filha dele. Que ele matou as outras três eque as duas filhas que lhe restavam eram... Raquel e
Bruna, que elas herdariam tudo...
Alexandre abaixou o olhar e Marcos não completou o que iria dizer, mas por fim prosseguiu:
Minha mãe disse que ele perdeu as filhas e ficou aleijado porcastigo de Deus, que a mulher iria
atormentá-lo enquanto vivesse. Ela disse coisas baixas sobre eles e... Além disso, falou que a Raquel
estavabem, que em breve iria morar naquela fazenda junto com você e o colocaria para fora... Pedro disse
que o homem não suportou e, numa manhã, deu um tiro na esposa e depois se suicidou.
Sério?! perguntou Alexandre empalidecendo.
Agora, de uns dias para cá, minha mãe anda assustada, diz que vêvultos... Ela vai todos os dias
à igrejinha para rezar. À noite ainda acordaassustada, mas não sabe dizer o que é.
Ela precisa de tratamento, Marcos.
509
Ainda não terminei. O Pedro falou que, mesmo com tudo isso,ela ainda vive torturando meu avô,
que fica lá indefeso ouvindo-a.
E seus irmãos deixam?
Eles têm que cuidar das coisas por lá! Não podem ficar atrás dela o dia inteiro. Diante do
silêncio do cunhado, Marcos pediu: Não conta nada pra Raquel.
Claro que não! Por favor, nem você, hein!
Lógico concordou o cunhado.Após algum tempo, Alexandre perguntou:
E você, Marcos, o que vai fazer?
Quanto à minha mãe, eu não sei. Pretendo fazer algo por mim e por meus filhos. Sabe, um diretor lá
de onde eu trabalho, o senhor JoséLuiz, foi demitido. Quando ele foi se despedir de mim, eu perguntei:"O
senhor está a fim de administrar um hotel-fazenda?".
Alexandre sorriu largamente, pois fora ele quem dera aquela ideia para o cunhado, que completou:
Então ele aceitou e no mês que vem vamos pra lá.
Genial! admirou Alexandre satisfeito. Como eu lhe disse,com a extensão da agência de
turismo, faremos ótimos pacotes e daremos preferência e destaque para vocês, claro!
Obrigado, Alexandre. Espero poder retribuir tudo o que estáfazendo por nós.
Espero não precisar! respondeu sorridente.
Você soube da Alice? perguntou Marcos mudando o assunto.
Não. Como ela está? interessou-se Alexandre.
O juiz a declarou capacitada e ela não receberá pensão. Os meninos ficarão comigo por causa
de sua moral. Não sei se você soube, mas oValmor morreu.
Morreu?!
Morreu. E os filhos dele a despejaram do apartamento, pois,como herdeiros, eles tinham esse
direito porque o apartamento foi comprado antes da união deles.
E agora? perguntou Alexandre perplexo.
510
Nem te conto. Olhando para Alexandre, Marcos ficou observando sua reação e disse: A
Alice, para poder sobreviver, está levando uma vida fácil.
O quê?!
Isso mesmo. Estou até com pena por ela, não conseguiu arrumar emprego em lugar nenhum e
não lhe restou alternativa. A Alice parece que não encara a realidade, não vive a vida como ela é.
Conversando com ela, até achei que está perturbada, pois disse que os guias lhe disseram que ainda vai
conseguir muita coisa na vida, vai ser rica, conhecer alguém que lhe dê muito dinheiro. Vive acreditando em
simpatias e coisas do gênero. Para mim, uma pessoa que vive como ela está vivendo, depois de tudo o que
viu acontecer, não está normal. Alexandre ficou em silêncio tamanho foi seu espanto e Marcos continuou:
Ela me procurou, mas como é que posso aceitá-la de volta? Jamais! Mas, paraela não morrer de fome,
mesmo sem ter a obrigação, eu estou lhe dando uma pensão.
E a fazenda que você herdou, ela não tem direito?
Não. A Alice só tem direito ao que construímos juntos após ocasamento. Antes ou depois, não.
Essa herança já era minha antes deme casar e não se deu por consequência do casamento. Depois
de breve reflexão, Marcos comentou: É, Alexandre, esse mundo dá voltas, mesmo. Não podemos fazer
nada contra alguém, pagamos aquimesmo.
Alexandre nem tinha o que dizer e se manteve calado.
Os meses foram passando, Raquel e dona Virgínia se davam muito bem. Agora elas sempre estavam
juntas. Rosana, certa vez, havia dito àmãe que Raquel poderia lhe ser como filha, amiga e companheira e
estava sendo. A mulher se apegara muito à nora, que parecia também necessitar de seu carinho. A esposa
de Alexandre ainda se recuperava da perda da amiga e do filho que esperava, dedicando-se a tarefas na
Casa
511
Espírita que frequentava. Ela sempre levava consigo dona Virgínia, que passou a se integrar no trabalho de
assistência social e sentia-se menos deprimida pela ausência da filha e recebia, nas palestras, conforto ao
seu coração bondoso.
Um dia, quando estavam no Centro Espírita arrumando, carinhosamente, uma bela embalagem de enxoval
de bebê, dona Conceição, a senhora que coordenava aquele trabalho, se aproximou com o semblante triste
e Raquel percebendo, perguntou:
O que foi, dona Conceição? A senhora está chateada?
É. Estou.
O que aconteceu? preocupou-se a moça.
Sem ter mais com quem falar e por se achar isenta de alternativas, a colega revelou, quase como uma
confissão:
Há dois meses, minha sobrinha sofreu uma violência sexual. Foiregistrada a ocorrência e... Bem,
ela engravidou e o juiz deu permissão para o aborto. Minha irmã, que é viúva, não entende o que eu venho
lhe explicando e vai levar a menina para fazer o aborto. Hoje eu as trouxeaqui para a palestra da tarde. Elas
estão lá no salão. Mas minha irmãestá irredutível.
Raquel, tomada de uma força incomum, pediu:
Posso ir falar com elas?
Para que, Raquel? O que você diria? perguntou com simplicidade.
A companheira ignorava detalhes sobre a vida de Raquel e esta falou:
Talvez eu possa ajudar.
Como, filha?
Eu posso! Acredite! afirmou com delicado sorriso no belo rosto.Pela insistência e convicção de
Raquel, dona Conceição procurou
um local apropriado e reservado, deixando as três conversarem por longo tempo. Dona Virgínia, inquieta,
às vezes se preocupava. Curiosa com a demora, dona Conceição não sabia o que fazer. Mais de uma hora
depois, Raquel abriu a porta da sala onde estavam exibindo um largo
sorriso.
512
Mãe e filha saíram abraçadas e foram ao encontro de dona Conceição que, sem palavras, com os olhos
lacrimejando, olhou para Raquel ignorando o que dizer, pois entendeu que ambas aceitaram a criancinha
que estava para chegar. A mãe da moça voltou, abraçou fortemente Raquel, beijou-lhe o rosto e se foi junto
com a filha, após se despedir da irmã. Mais recomposta da forte emoção, dona Conceição procurou por
Raquel e lhe perguntou:
O que foi que você disse a elas, Raquel?
Eu contei a minha história e no final fiz uma pergunta.
Que história, Raquel? Que pergunta?
Dona Conceição, no momento eu estou emocionada e não queriachorar mais. Se me permite,
vou resumir o que disse a elas.
Claro. O que é?
A senhora conhece a minha filha, a Bruna?
Lógico!
Ela foi concebida num estupro. A mulher ficou paralisada e Raquel continuou: Eu contei tudo
como foi e as dificuldades queenfrentei, as misérias que vivi. Porém, a minha vida atual não seriaassim se
eu não tivesse a Bruna, minha filha. Depois eu mostrei essa foto disse ela exibindo novamente a
fotografia , e perguntei se hoje alguém teria a coragem de esquartejar a minha menina só por causa do
modo como ela foi concebida. Só por ela ser minha filha, porconsequência de um estupro, não merece
viver? Merece ser sacrificada?Esquartejada ou sufocada? Ainda aconselhei que se, por acaso, não
quisessem a criança, deixassem-na encontrar uma família de verdade, mas que lhe dessem uma chance,
pois foi isso o que Deus deu a cada um denós. Ainda contei que, hoje, a minha filha é minha maior alegria.
Bruna é a razão da minha vida e a do Alexandre também.
Ainda em choque, a mulher argumentou:
Raquel, eu não sabia. Ela até se parece com seu marido.
Mesmo não sendo o pai biológico, ele é o pai de verdade. Sabe,dona Conceição, a Bruna é o
motivo de eu ter o Alexandre, que, na minha vida, foi a maior bênção, depois dela, que eu recebi de Deus.
513
A mulher a abraçou com carinho e com lágrimas a correr-lhe pela face, beijou-lhe por várias vezes o rosto,
que prendeu entre suas mãos. Após ela ir embora, dona Virgínia se mostrou insatisfeita e comentou:
Não deveria ter contado, Raquel.
Foi preciso, dona Virgínia. Foi por uma boa causa. Sei que não devemos dar exemplos próprios,
como esse, mas elas precisavam de ummotivo... Confio em Deus.
E se elas comentarem alguma coisa?
Pessoas dignas e que se prezam não saem falando da vida dosoutros.
E se falarem?
Se isso puder prejudicar minha filha, ou incomodar o Alex, posso mudar de Centro. Fiz o que tinha
que fazer aqui e posso continuarfazendo em outro lugar.
A sogra olhou-a e sorriu, reconhecendo a situação.
No plano espiritual, tarefeiros que se mantêm despercebidos para os encarnados observavam o momento.
O espírito Rosana estava presente, em companhia de criaturas queridas. Após abraçar Raquel, envolveu
com ternura sua mãe. Elas não a percebiam, mas, para Rosana, quanta emoção!
Mãe, obrigada por fazer meu corpo ser útil após o desencarne.Senti-me tão bem com o que vocês
fizeram dizia ela, mesmo sabendo que não seria ouvida pelas encarnadas.
A amiga espiritual, que sempre envolvia Alexandre em momentos oportunos, estava ao lado de Rosana e
satisfeita a informou:
Você sabia que todos os órgãos doados do seu antigo corpo foram proveitosos e sem rejeição
para os receptores? Rosana iluminou-se defelicidade, mas não se pronunciou e ela prosseguiu: Suas
vibrações bondosas e o merecimento de quem necessitava auxiliaram a harmonia dessa caridade oportuna,
que não só foi uma caridade, mas também uma harmonização, você sabe.
Graças a Deus todos estão bem.
Nesse momento se aproximou delas um espírito com sorriso expresso em harmonia que a chamou:
514
Rosana.
Esta ficou na espera e olhando para aquele que aparentava um belo moço que nunca tinha visto, ou pelo
menos de que não se lembrava. Após cumprimentar sua companheira avisou:
Estou à sua procura, minha querida. Amigos me disseram que estaria aqui. Não pude ir visitá-la
antes porque tive de acompanhar entes queridos que estão encarnados. Agora soube que estava aqui e vim
lhe agradecer.
Agradecer? questionou Rosana sem entender.
Sim! respondeu ele sorridente e trazendo um semblante harmonioso e feliz. Vou reencarnar
em breve e devo essa abençoadaoportunidade a Deus e a você.
A mim?!
Lógico! afirmou ele ao pegar em suas mãos e completar: Ocoração que lhe pulsou a vida
toda no corpo físico hoje habita o peito daminha futura mãe. Consequentemente, na próxima vida terrena,
poderei dizer que terei um pedacinho de você.
Surpresa, ela não sabia como reagir, e ele prosseguiu:
Enquanto eu tiver consciência, agradecerei a Deus a caridade deseus familiares e a sua bondade
de um dia ter dito a eles sobre seudesapego à matéria física e afirmado que não se importaria com a
doação de seus órgãos. Isso foi o que mais levaram em conta para um ato tão corajoso, tão nobre e
abençoado. Haverei de encontrá-la logo na próxima e... Ele se deteve emocionado, mas prosseguiu:
Saberei, mesmoinconscientemente, que lhe devo a vida. Ele a envolveu num abraçofraterno e beijando-
lhe o rosto, falou: Adoro você, Rosana. Obrigado por tudo. Sempre vou amá-la.
Não fiz nada justificou-se ela emocionada e encabulada.
Ah! Fez sim. Ainda conversaremos a respeito. Agora quero que me perdoe, mas tenho que ir.
Contudo, em poucos dias vou procurá-la paraconversarmos mais. Prometo.
Despedindo-se da companheira de Rosana, ele voltou o olhar para esta e foi se afastando com o sorriso
constante a moldar o rosto feliz de indefinido sentimento elevado.
515
Ele se foi. Rosana sentiu-se atordoada e ainda confusa, perguntou:
Quem é ele?
A bondosa companheira satisfeita revelou:
É uma criatura querida que há muito procura ser feliz com
você.É uma alma afim, que sempre
esteve a seu lado e, nas duas últimasreencarnações suas, vocês necessitaram se separar para
refazimentos eharmonizações.
Rosana, ainda inebriada pela forte emoção, não sabia descrever o que experimentava naquele instante.
Refletindo um pouco, ela argumentou:
Que bom que nessa última experiência terrena pude ser útil aalguém, ou, pelo menos, meu
antigo corpo o foi.
Não, minha querida, você não foi só útil aos outros, você foi importante para si mesma. Sua
conduta moral e seus feitos, que pareceram insignificantes, surtiram resultados maravilhosos a muitos.
Pensamentos bons, atitudes caridosas, vibrações de amor e ensinamentos nobres impregnam a tudo e a
todos, a começar da roupagem que utilizou.O desapego para com tudo o que lhe pertenceu resultou em
sua rápidaharmonização no plano espiritual.
Então, todas as pessoas deveriam doar seus órgãos, não é?
Não foi isso o que eu disse. As pessoas devem ter, acima de tudo,o seu direito de pensamento e
ação. Se alguém que não esteja preparado solicitar que seus órgãos não sejam doados, acreditamos que
seudireito deva ser respeitado. Mas não é por isso que essa mesma pessoadeixará de ser bem acolhida,
de acordo com seu nível espiritual e moral, na espiritualidade, quando se der esse momento. As pessoas
devem ter consciência do desapego em todos os sentidos, desde os bens materiais até o corpo físico, pois
todos ficarão aqui após o desencarne. Mas isso depende da opinião de cada um. Jesus já nos disse: "Não
ajuntei para vós tesouros na Terra, onde a traça e a ferrugem os consomem, e onde os ladrões minam e
roubem; mas ajuntai para vós tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem os consomem e onde os
ladrões não minam nem roubam. Porque onde estiver o teu tesouro, aí estarátambém o teu coração".
516
Entretanto, Rosana, cada um deve seguir sua jornada evolutiva sem ser violentado em suas opiniões,
desde que não agrida os outros. Aquele que guarda seus tesouros em planos elevados e não têm apego à
matéria, é um vitorioso, um vencedor.
De acordo com seu processo evolutivo e as possibilidades de caridade com o que lhe pertenceu, por
empréstimo, na vida terrena, se ele tiver a oportunidade de doação de seus órgãos e o fizer, por fé e com
amor, ele já estará recebendo, com urgência, o socorro da Espiritualidade Maior diante do fato. Como foi o
seu caso. Por isso é muito importante deixarmos amigos e parentes cientes da nossa opinião sobre a
doação dos órgãos.
Em uma conversa sem importância, eu disse para a Vilma e paraa Raquel que era favorável à
doação.
Abençoado foi esse momento, Rosana. E também a visão e aopinião de sua irmã no hospital,
que não deixou dúvidas em seus parentes sobre a decisão a ser tomada.
Após pensar um pouco, sempre curiosa, Rosana questionou:
E quanto a ele, vou encontrá-lo novamente?
Em breve poderão tecer longos planos para o próximo reencarne.Veja, filha, quando em
conversa afirmou que não se importaria que doassem os órgãos que lhe pertenciam na matéria, você deu
liberdade aosseus familiares para autorizar a doação, quando solicitaram a eles. Seucoração ajudou aquela
que será mãe dessa bondosa e elevada criatura.Consequentemente, no seu caso, isso lhe garante um
futuro sem aquela solidão, ou sem aquela ausência inexplicável de uma alma querida, ao lado, que conforta
e agasalha o coração, que harmoniza e nos completa.No seu caso, a sua falta de egoísmo garantiu a
existência do futuro companheiro e amigo com quem há de se encontrar. Como ele disse, mesmona
inconsciência há de lhe ser grato e lhe dispensar toda consideração e respeito meritório, além do seu amor.
Juntos, Rosana, vocês acolherão osfilhos queridos e abençoados que vão completar a felicidade de todos.
Espere! Espere, aí! Eu vou reencarnar?
Em breve.
517
Então por que desencarnei? Não seria mais fácil ter continuado lá?
Sempre há um planejamento reencarnatório, filha. Nesse caso,todos os envolvidos estavam
dispostos a ajudá-la nessa, que foi uma curtajornada, ou então, preparados ou não, precisavam passar pela
ausênciabrusca que necessitavam para crescer e evoluir. Além disso, a doação deórgãos foi, para eles e
para você, uma forma de se disporem para harmonizar inúmeras partes de um todo: sentimental e material.
Seu ex-noivo, Ricardo, precisou da dor da perda para valorizar as ligações amorosas. Ele agora tem que
seguir o seu caminho com outra pessoa e buscar ser feliz cumprindo seus propósitos. Você o estruturou
para isso quando lhe deu orientações valiosas. Sua mãe despertou para as tarefas úteis. Em todos os
sentidos, você amparou e sustentou a união de Raquel e Alexandre, orientando-os como devia. Você os
ama muito, não é? E creio que merece ficar entre eles.
Vou reencarnar como filha da Raquel e do Alex?! perguntouimediatamente.
A amorosa companheira sorriu ao afirmar:
Você disse uma vez que faria tudo por eles, não foi? Esse casalmerece motivos para ter
animação e felicidade.
Mas a Raquel perdeu um bebê há pouco tempo!
Esse querido irmãozinho retornará também, só que no tempooportuno e não agora. Enquanto
isso você... se prepara.
Eufórica e entusiasmada, Rosana, muito feliz, exclamou interrompendo-a:
Ah! Eu não acredito! pensando rápido, eufórica e marota, revelou seus desejos: Quero ter
os cabelos da Raquel! Os olhos do Alex!Eles são lindos, não são? Mas também quero ser mais alta que a
Raquel,para meu pai não me chamar de baixinha, claro! E...
Rosana! Rosana! Calma, filha, não é assim.
Ah! Tem que ser assim! Como é que essa "coisa" linda e maravilhosa que acabou de nos deixar
vai olhar pra mim, se eu não tiver a dadivosa beleza dos meus pais? Ah! Se eu tiver o direito, vou escolher,
sim! brincava ela como sempre fazia com tudo.
518
Diante do silêncio e do semblante risonho da companheira, Rosana insistiu com um jeito engraçado:
Deixe-me escolher, vai? Só os olhos?... Ou o nominho?... Os cabelinhos, então?...
Rosana não havia mudado nada na espiritualidade, isto é, Rosana não morrera, pois isso é viver. Em
espírito ninguém perde a sua individualidade nem sua personalidade.
De acordo com os valores morais conquistados através da renúncia, do amor incondicional e da caridade,
nos elevamos no padrão vibratório e nos encontraremos em níveis melhores de consciência, caminhando
para mundos felizes. E por que razão haveremos de ser sérios ou tristes, se salutar for essa alegria?
Rosana, animada e irreverente, antes de ir, aproximou-se de Raquel e, com seu jeito espirituoso, disse:
Tchau, mamãe Raquel! Após beijá-la completou: Em breve estarei com você, viu? Vê se me
trata bem, hein! Nada de castigo quando eu fizer coisa errada.
E, com dona Virgínia, não foi diferente.
Tchau, vovó Virgínia. Sabe aquela vez que eu disse que você era avó coruja? Esquece tudo e
continue sendo coruja, tá? Eu vou adorar osseus mimos. Daqui a pouco eu estarei de volta.
Não havia quem ficasse sério próximo de Rosana pelo seu jeito bem-humorado e expansivo de alegria
saudável, ela possuía o dom de envolver a todos nessa vibração dadivosa e, por isso, haveria de ser muito
feliz.
Agora, Raquel estava longe do irmão, pois Marcos mudara-se com os filhos para a fazenda onde
conseguira, junto com a administração do amigo José Luiz, erguer um grande negócio com os irmãos
Pedro e Tadeu.
Dona Tereza entrou em uma depressão crônica e necessitava de constante acompanhamento clínico e
medicamentos antidepressivos.
519
Ela chorava por qualquer motivo e se queixava de doenças e dores que os exames não confirmavam.
Poucos conseguiam ficar perto dela por causa de suas reclamações chorosas, e esta passou a se
enclausurar no quarto.
Alexandre, quando viu a esposa melhor, contou a ela, com palavras amenas, sobre a morte de seu tio
Ladislau e dos problemas que sua mãe vinha apresentando. O suicídio do tio a abalara muito e as
dificuldades de sua mãe a preocupavam. Ela só tinha notícia de sua família quando recebia cartas dos
irmãos. Mesmo com o tempo, Raquel ainda estava deprimida pela perda do filho e a ausência de Rosana
era algo doloroso.
O senhor Claudionor sempre tentava convencer o filho a se mudar do apartamento e ir morar em sua casa.
Sua mãe se dá bem com a Raquel e... As duas se entendem, Alex.Juntas, uma ajudará a outra a
superar tudo isso, além do que, a Brunaprecisa de espaço.
Depois de pensar, Alexandre opinou:
Vou falar com a Raquel, pai. O que ela decidir eu aceito.
A esposa concordou e eles se mudaram para a casa dos pais de Alexandre.
Passados alguns dias, Raquel procurou pelo marido e ao vê-lo chegar do serviço, pediu:
Alex, vem cá um pouquinho. Precisamos conversar.
Já no quarto ele perguntou sorridente ao abraçá-la com carinho, beijando-a:
O que aconteceu, hein? Quais as novidades? sorriu.Sem rodeios a mulher falou:
Gostaria que você fosse comigo até a casa da Sandra.
Alexandre sentiu-se gelar. Ele afastou-se de Raquel. Com o semblante descontente, virou-se, apoiou as
mãos sobre um móvel e abaixou a cabeça, sem dizer nada.
Ela, mesmo preocupada, pois sabia que o marido não queria que se tocasse naquele assunto, continuou:
520
A dona Otávia me procurou. Como você sabe, Sandra está comproblemas renais e seu estado é
grave. O que ela mais quer é poder falarcom você.
Alexandre se virou, encarou Raquel e perguntou, exibindo-se contrariado:
Você quer que eu vá?
Eu gostaria que você fosse por sua própria vontade. Após umapequena pausa, ela lembrou:
Alex, você me fez vencer alguns medos e traumas, me levando para encarar a última criatura que eu
poderiadesejar ver. Eu fiz isso por mim e por você... Aproximando-se e procurando envolvê-lo, continuou
com seu jeito carinhoso: Sabe, meubem, não foi fácil, mas foi tão... libertador. Sinto-me livre das ofensas
e de sentimentos que nem sei dizer. Gostaria que se sentisse como eu, a respeito do assunto mal resolvido
entre você e a Sandra, que arrancasse de seu peito essa mágoa que tem. Liberte-se de tudo isso! Mostre
que você é superior ao que ela fez. Dê-lhe um minuto de sua atenção. É só isso o que a Sandra pede.
Alexandre suspirou profundamente, encarou-a, e depois perguntou:
Você vai comigo?
Lógico! respondeu a esposa sorrindo. Vou estar sempre com você. Após se abraçarem,
convidou: Vamos lá agora. Amanhãela vai para o hospital.
Criando forças, ele decidiu:
Vamos.
Eles deixaram Bruna aos cuidados de dona Virgínia, que ficou aflita ao saber aonde iam.
Sandra morava a poucas casas dali e o casal foi a pé até a sua residência. Dona Otávia os recebeu,
surpresa; ela não acreditava que Raquel pudesse, ou quisesse, convencer o marido a ir visitar a ex-noiva.
Entrem, por favor disse a mulher cordial que indicou o quarto: Sandra está ali. Venham
comigo.
A residência era muito luxuosa e o quarto de Sandra não fugia ao estilo. Muito abatida, ela estava sobre a
cama e mal se mexia.
521
Sentem-se. Fiquem a vontade pediu dona Otávia apontando as cadeiras ao lado do leito da filha.
Eles a cumprimentaram e Raquel decidiu, em brando tom de voz:
Eu vou esperar lá fora. É melhor que conversem sozinhos.Alexandre, que segurava sua mão,
apertou-a com cuidado, puxando
a esposa de modo discreto, pedindo com o olhar para que ficasse ao seu lado.
Instante em que Sandra, com voz fraca e sem forças nas expressões, solicitou:
Por favor, Raquel, fique. Eu prefiro.
O casal se sentou e a mãe da enferma saiu para preparar algo para as visitas.
Obrigada por terem vindo agradeceu Sandra. Muito obrigada, mesmo. Após poucos
segundos, continuou: Alexandre, eu sei que não vai dar tempo para eu esperar por um transplante. A lista
é grande e no estado em que me encontro não tenho muitas chances.Aliás, quero parabenizá-los pela
decisão que tomaram quanto a salvar vidas pela vida extinta de Rosana. Quero, de coração, que Deus os
abençoe por isso.
Alexandre, muito sério, não dizia nada e Raquel ofereceu um doce sorriso. Após um tempo maior de pausa,
em que ela parecia estar recuperando o fôlego gasto com aquelas palavras, e também pela nítida emoção,
Sandra continuou:
Há tempos eu quero falar com você, Alex. Eu sei tudo o quepassou e sofreu por minha causa.
Talvez nunca me perdoe, não sou isenta de culpa, mas... Sabe, eu deveria ter sido honesta com você e tê-lo
procurado para conversarmos antes de fazer o que fiz. Após aparar algumas lágrimas que rolaram, ela
prosseguiu: Assim que conheci seus colegas, aqueles com os quais você dividia o apartamento,Júlio se
aproximava de mim e, aos poucos, foi conquistando a minha amizade. Eu soube, por você mesmo, que ele
era de muita confiança e era o seu melhor amigo. Com o tempo, o Júlio começou a insinuar coisas sobre
você e...
522
Sandra chorou e Raquel a confortou, passando-lhe a mão na fronte e afastando-lhe os cabelos do rosto.
Não fique assim, Sandra. Tudo isso já passou.
Não, Raquel. Talvez passe após eu terminar.
Alexandre, ainda sério, não dizia uma única palavra nem expressava qualquer sentimento em seu
semblante. Mas trazia o coração apertado e dolorido por ter que enfrentar novamente aquela situação.
Em alguns momentos, em pensamento, ele se socorria em Deus com uma prece para ter forças, piedade e
compreender aquela criatura que tanto o fez sofrer.
Olhando-a nos olhos, ele aguardava a ex-noiva continuar.
O Júlio começou a dizer coisas a seu respeito e a fazer comparações, mostrando-me detalhes que
não existiam e situações... E eu, emvez de procurá-lo e perguntar se era verdade, fiquei aflita e comecei
achorar minhas mágoas para ele. Eu estava triste, pois com o apartamento montado, casamento marcado,
estava confusa e, como você, fiz do Júlio meu amigo. Ela parou o relato e, após secar as lágrimas
teimosas, prosseguiu: O Júlio me enganou de tal forma que não sei dizercomo tudo aconteceu. Um dia,
quando cheguei ao que seria o nosso apartamento e encontrei o Celso lá, fiquei nervosa, lembra?
Alexandre não respondeu nada e ela continuou: Hoje sei que vocês estavam instalando coisas no
computador, mas na época não acreditei. Eu saí delá enlouquecida, contrariada, e sabe por quê? Porque
eu estava grávida.Eu esperava um filho seu.
Alexandre empalideceu e se fez firme. Mesmo sentindo-se gelar com o torpor que o dominou por minutos,
quase o fazendo ensurdecer, ele permaneceu calado.
Sandra, mesmo entre os soluços, contou:
Dias depois, eu o vi para cima e para baixo com o Celso, e pensei que o Júlio estava certo. Eu o
procurei e ele me consolou, me fez acreditar nas maiores barbaridades a seu respeito, pois ele sabia, ele
era seumelhor amigo e vocês moravam todos juntos. Foi aí que eu o traí pela primeira vez, e a segunda foi
quando nos flagrou juntos.
523
Alexandre respirou fundo, esfregou o rosto com as mãos e, pela primeira vez, falou:
Por favor, vamos terminar logo com isso. Se esse assunto a conforta, a mim magoa muito,
principalmente agora. Tudo isso é passado, eujá me recuperei. Encontrei uma criatura maravilhosa, que é a
Raquel.Estamos casados e vivemos muito bem. Hoje eu sou um homem feliz,Sandra. Não quero lembrar
de situações desagradáveis. Por isso, gostaria que você fosse breve.
Eu sei, Alexandre disse ela chorosa. Eu sei o quanto isso ofez sofrer. Mas eu preciso
esclarecer. Como me arrependo, principalmente pelo que falei de você para todo mundo. Eu fiz isso de
raiva,porque acreditei que estava sendo enganada, porque contou ao meu pai que me encontrou com seu
amigo... Sei que nem se dá bem com alguns tios e primos por causa de tudo o que eu disse. Soube que
tentou se matar pelas lembranças que tinha... Seus problemas cardíacos tiveram origem aí. Estraguei a sua
vida...
Após chorar um pouco, e sob alguns carinhos de Raquel, Sandra se refez e continuou um pouco mais
calma:
Há algum tempo o Celso me visitou com a esposa. Ele se casou,sabia? Em conversa, o Celso me
contou que ficou decepcionado com tudo, nunca imaginou que o Júlio pudesse fazer o que fez e até se
mostrou desapontado comigo. Ele me contou que vocês estavam sempre juntos porque ele havia lhe
apresentado um colega que estava conjugando a iluminação no apartamento e vendo alguma coisa com o
som e quequeria me fazer uma surpresa. Só então entendi tudo melhor ainda.
O Júlio me enganou depois que fomos morar juntos. Eu tirei o filho que esperava e não suportei mais a vida
que levávamos. Ele arrumou outra... Depois disso, descobri que estava doente e precisei da ajuda de meus
pais. Tive culpa pelo que você sofreu, mas não me julgue tão mal, eu também fui enganada.
Diante do silêncio que reinou, agora com o semblante ainda mais sério, Alexandre perguntou com voz
grave:
O que você quer que eu diga?
524
Quero que me perdoe. É por isso que eu venho procurando você.Nunca mais tive sossego. Não
durmo bem, não tenho paz e só penso no crime que cometi quando abortei e na traição que lhe fiz. Você
quase morreu por minha causa. Perdoe-me, por favor.
Se é como conta disse Alexandre , você tem culpa sim, mas não toda ela.
Com lágrimas correndo na face, ela pediu:
Precisava ter paz na minha consciência e eu acreditei que só a teria no dia em que esclarecesse
tudo com você. Perdoe-me, Alexandre,por favor!
Aflita, Raquel apertou a mão do marido como se lhe pedisse uma resposta positiva. Alexandre encarou
Sandra com piedade por seu estado e condição moral, entendendo que ela sofria por tudo, pois a
consciência parecia pesar imensamente.
Não tenho pelo que perdoá-la, Sandra. Tudo já passou...
Não, não passou disse ela chorando copiosamente. Para mim não passou. Vivo enfrentando
o arrependimento por tudo o que lhe fiz. Vejo-me aqui doente e me lembro do tempo em que ficou
acamado por minha causa sem dever, sem merecer... Você me perdoa por tudo?
Se for importante que ouça dessa forma, sim. Eu a perdoo, sim,Sandra afirmou agora mais
piedoso.
Sandra ergueu-lhe os braços, Com um leve e discreto empurrãozinho de Raquel, Alexandre se levantou,
aproximou-se da cama onde ela estava e a abraçou. Comovido, ele voltou para seu lugar e disse:
Não desista de viver, Sandra. Você ainda pode fazer muita coisa.
Estou sem chances, Alex. Se eu puder...
Você encontrará um doador, Sandra. Eu tenho certeza disse Raquel, com suave sorriso no
rosto.
A moça a olhou e falou:
Se você não encontrou, desejo que encontre a felicidade verdadeira, Raquel. Você tem um homem
maravilhoso ao seu lado e sei que também é digna dele. Além de ser linda, você tem um coração generoso.
Cumpriu sua promessa de arrumar uma oportunidade para meu
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desabafo com o Alex. Que esposa faria isso sabendo se tratar da ex-noiva que tanto o fez sofrer? Já ouvi
falar muito bem de você, mas nunca imaginava que fosse tão bondosa. Quero que sejam muito felizes. Por
Deus, esse é meu maior desejo. Eu soube que perdeu um bebê e... Sei que se deprimiu. Não fique triste,
ele voltará novamente para completá-los.
Eu acredito que sim, Sandra afirmou Raquel com suave sorriso meigo.
Nesse instante Raquel se levantou, aproximou-se da enferma e lhe deu um forte abraço. Após conversarem
mais um pouco, o casal se retirou, voltando para casa.
No caminho, andando vagarosamente sob as árvores que encobriam a luminosidade da lua que se fazia
radiante, nada foi dito. Alexandre abraçou a esposa e não lhe confessou seus pensamentos. Apesar de
triste por ouvir toda aquela história, ele se sentia tranquilo e com a consciência mais leve por tê-la ouvido e
esclarecido a situação.
Alexandre começou a pensar que precisara experimentar toda aquela situação, ou talvez não tivesse
mudado tanto sua vida, seu comportamento materialista e orgulhoso. Acreditou que se aproximara de
Sandra por sua beleza física, seu dinamismo e o que sofrera por sua causa fora mais pela decepção da
traição do que por sentimentos verdadeiros.
Após ter encarado a ex-noiva novamente, teve a certeza de que o único sentimento que restara nele, por
ela, fora o de piedade. Realmente ele a perdoara, reconhecendo a fraqueza humana que ela tivera.
Olhando para a esposa, passou a valorizá-la ainda mais pelo caráter íntegro, pela moral elevada, por sua
delicadeza, meiguice, paciência e tantos outros valores que alguém dinâmico, e em destaque, talvez não
tenha.
Como Raquel era nobre! Como se sentia feliz, realizado e completo por estar com ela.
Quando chegaram em casa, dona Virgínia, que estava inquieta, ficou ansiosa, enquanto ouvia. Ao se ver a
sós com o filho, ela admitiu:
A Raquel me surpreende a cada dia.
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Ela é maravilhosa, mãe. Minha Raquel é linda, meiga e maravilhosa. Acho que não mereço tanto.
Ela é uma filha para mim, Alex.Ele sorriu e nada completou.
Alguns dias haviam se passado depois desse encontro. Raquel procurou pelo marido e, com jeitinho,
perguntou:
Sabe, eu liguei para a dona Otávia e ela me contou que a Sandrafica indo e voltando do hospital.
Seu estado não está nada bom. Pensativo, Alexandre não disse nada e ela continuou, com o mesmojeito
generoso: Estive pensando, você se incomodaria se eu fosse visitá-la algumas vezes?
Ele ficou mais sério e argumentou:
Olha, Raquel, eu estou com pena da Sandra, a perdoei e não tenho mágoa nenhuma dela, ao
contrário, estou compadecido do seu estado. Desejo que ela tenha uma chance de continuar. Mas eu não
sei o que pode passar pela cabeça dela. Desculpe-me a sinceridade, mas não posso confiar. Você é minha
esposa eu a amo muito e... Após pequena pausa, ele a abraçou e disse: Tenho medo. Será que
ela realmente mudou e nos deseja tudo de bom? A Sandra não tem nada a perder.
Não acredita que ela mereça um voto de confiança?Alexandre ficou calado, ele era um tanto
possessivo quanto a Raquel,
mesmo dando-lhe toda liberdade. Talvez pela traição que sofrera no passado, mesmo confiando na esposa,
queria tê-la perto. Sempre sincero, ele admitiu:
Raquel, eu preferiria que você não fosse lá. Mas, se quiser, não vou brigar com você por isso. Tudo
bem.
Ela não disse nada e se contentou.
Meses depois, algumas vezes, ao chegar em casa e procurar a esposa, Alexandre tinha informação de que
ela estava na casa de Sandra.
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Não estou gostando disso reclamava
ele para sua mãe apóschegar em casa e novamente não encontrar Raquel. Eu não me incomodaria se
fosse menos frequente, mas olha só: quase todo dia euchego em casa e: Cadê a Raquel? Na casa da
Sandra. Assim não dá! Euvou falar com ela!
Calma, Alexandre! disse dona Virgínia defendendo a nora. Também não é assim! Ela não
vai lá todo dia, não. Após poucos segundos a mulher completou: Talvez a Raquel deva estar se
sentindo só. Ela precisa de uma amiga.
Sentindo-se só?! retrucou o filho. Ora, mãe! Desde quando eu comecei a trabalhar com o
pai, ela reclamou que não trabalhava e resolveu ir junto assumindo o serviço na recepção. Das sete ao
meio-dia a Raquel está na empresa. Quando o pai vem almoçar, ele a traz e,quando que chego em casa,
quatro ou cinco horas da tarde, cadê a Raquel? Ela só volta à noitinha e quando temos que ir ao centro. E
vocêvem me dizer que ela está só?
Não é assim, não, Alexandre! revidou a mãe veemente. Desde quando você e seu pai se
meteram com esse novo negócio, você não vem dando a atenção necessária para sua esposa. Até eu estou
saturadade ouvir vocês dois só conversarem sobre negócios aqui dentro de casa.Outro dia eu reparei: a
Raquel, sempre que chega perto, nem parece que está ali e você continua como se ela não estivesse.
O que é isso, mãe?! Eu adoro a Raquel! Nunca a desprezei!!!
Pode adorar, amar e fazer tudo por ela, mas eu percebi que nos últimos tempos você está
diferente, Alexandre!
Como diferente?! Você mesma vive me chamando de "gruden-to"! Fala que eu não a largo! Você
disse, outro dia, que ela trabalha na empresa porque eu quero tê-la junto de mim, pensa que eu não
estou sabendo?! Ele não segurou o sorriso, mas escondeu o rosto, pois sabia que sua mãe o chamava
pelo nome todo só quando estava nervosa. Por fim, para provocá-la, ainda falou: Se quer defender a
Raquel só porque eu disse que vou falar com ela, não precisa ficar inventando coisas!
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Eu não estou inventando coisas! Alexandre! Alexandre! Maiscalma ela pediu: Não diga nada
para ela. Faça o seguinte: peça, com jeitinho, para ela estar em casa um pouco mais cedo. Faça
um programa para saírem. Entendeu? Não precisa brigar. Arrume um motivo para ela estar aqui. Acho que
não preciso ficar te ensinando estas coisas, né?!
Ele sorriu e confessou:
Sabe, mãe, eu só queria tê-la aqui em casa. Não gosto de pensarque a Raquel está em
companhia da Sandra. Às vezes eu sinto umacoisa...
Você perdoou a Sandra?
Perdoei, sim. Mas não sei se posso confiar a ponto da Raquel ir lá e ficar horas com ela sozinha.
Você entende? Fico preocupado, acho que ela pode se desequilibrar pelo desespero com a doença. Na
verdade euacho que a Sandra tem inveja da Raquel; talvez ache que a Raquel ocupao seu lugar, entende?
Dona Virgínia ficou pensativa e concordou:
Já pensei nisso. Eu também não confio, não. Sabe filho...
A chegada de Bruna, que correu e se atirou nos braços do pai, interrompeu o assunto. Ao levantá-la no
alto, ele a fazia rir, quando o telefone tocou e tiveram que interromper a brincadeira. Ele a ajeitou no braço
e, mesmo assim, a filha protestou:
Ah! Papai! Faz de novo, vai!
Só um minutinho. Deixa o papai atender, a vovó está com asmãos molhadas.
Era dona Otávia.
Alexandre?! perguntou a mulher assustada.
Eu!
Aqui é a Otávia, filho. Vem depressa pra cá. A Raquel está passando mal.
Após desligar imediatamente Alexandre estava pálido.
O que foi, Alex? perguntou sua mãe muito preocupada.Ele entregou a filha para a avó e não
conseguia responder.
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O senhor Claudionor, que acabava de entrar, ficou atento ao olhá-lo e o filho pediu com a voz
trêmula:
Pai, vem comigo. A Raquel passou mal lá na casa da dona Otávia.Pega o carro...
Às pressas, eles foram até a casa da mulher e ela os recebeu em desespero. Raquel, deitada em um sofá,
estava desmaiada, e dona Otávia falou assustada:
Ela começou a passar mal, ficou pálida, aí, enquanto eu ligava pravocê...
Alexandre a pegou no colo sem dizer nada, e saiu. A esposa estava sem sentidos e ele a levou para o carro
seguido de seu pai.
Raquel foi socorrida em um hospital e liberada pouco tempo depois. Não era nada sério, ao contrário, foi
motivo de muita felicidade para todos.
Seu mal-estar era resultado da gravidez que todos ignoravam. E Aline nasceu alguns meses depois desse
susto.
Essa bênção de Deus oferecia a todos mais alegria e união, mostrando que nunca estamos longe daqueles
que amamos. Alexandre não cabia em si tamanha era sua felicidade e, como dizia, ele tinha, agora, mais .
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Leia os romances de Schellida!
Emoção e ensinamento! Psicografia de Eliana Machado Coelho
Sem Regras para Amar
Machado Coelho i
"""SttielHda
Gilda é uma mulher rica, casada com o empresário Adalberto, mãe de Lara, Eduardo e Érika. Arrogante,
prepotente e orgulhosa, ela sempre consegue o que quer graças ao poder da sua posição social. Mas a
vida dá muitas voltas. Os problemas de Gilda começam quando Lara morre em um acidente
automobilístico. Aumentam quando a filha Érika apaixona-se por João Carlos, professor em uma academia
de musculação e... negro. Crescem ainda mais quando Eduardo envolve-se com Helena, moça simples e...
humilde. Então, determinada a acabar com os dois romances de seus filhos, Gilda passa a colocar em
prática seus planos para atrapalhar a vida de todos, assumindo os seus preconceitos racial e social. Instala-
se naquela mansão a desarmonia e a obsessão que trarão consequências desagradáveis para toda a
família.
O Direito de Ser Feliz
Fernando e Regina apaixonam-se. Ele, de família rica, bem posicionada. Ela, de classe média, jovem
sensível e espírita. Mas o destino começa a pregar suas peças. Movido pela ambição material, Fernando
decide ir trabalhar na França, caindo na rede sedutora de Lorena, uma prima que mora em Paris. Regina
fica só. O tempo passa, e eles se separam definitivamente. Fernando fica com Lorena, Regina se casa com
Jorge. Novos fatos vêm abalar a vida de todos os personagens desta envolvente história... Por quais
caminhos devemos seguir para não cair nas armadilhas da própria invigilância, da imprudência, da traição e
das amarras dos vícios que levam àautodestruição? Como encarar a solidão, sobretudo quando perdemos
aqueles a quem mais amamos, e tendo ainda de enfrentar a dura realidade do câncer?
O Amor Enxuga as Lágrimas
Leia este romance emocionante do espírito Irmão Ivo!
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Fábio, Andrée Laís. Quando tudo parece caminhar em segurança, começam as provações daquela família:
o garoto Fábio, após um período de internação para a cura de uma doença banal, vem a falecer de maneira
quase inacreditável. Marília, a mãe inconformada, entrega-se ao desespero e àdepressão, esquecendo-se
do amparo aos outros filhos e ao marido. Nesse meio-tempo, o casal Pedro e Laura, além do filho Marcos,
aproxima-se mais de Paulo e Marília, tentando auxiliar na superação da tragédia. Porém, o pior estava por
vir: Marcos, adolescente envolvido por más companhias, arrasta André para o mundo das drogas e do
delito, trazendo mais problemas para todos.
Mas a espiritualidade nunca desampara seus filhos. Eis que surge a figura equilibrada e sempre
companheira de Dr. Rubens, um experiente médico, espírita, amigo sincero de ambos os casais, que terá
papel relevante na orientação espiritual do grupo e na recuperação social dos dois jovens, resgatando-os
para uma vida mais produtiva. O resultado maior de toda essa união será a inauguração do Lar de Isabela,
entidade assistencial às gestantes carentes que leva o nome da filha do médico, também desencarnada em
tenra idade.
Longe dos Corações Feridos
Um romance imperdível! Um enredo envolvente!
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Estamos em 1948. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, dois militares americanos da Força Aérea vão
viver emoções conflitantes entre o amor e a guerra. O governo dos Estados Unidos decide pela intervenção
nas Filipinas. Joe Evans, arrojado e habilidoso piloto, é destacado para servir nesta nova empreitada ao
lado de seu melhor amigo, Don Delmore, outro piloto capacitado, porém fanfarrão, mulherengo e ambicioso.
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uma linda e inteligente mulher. Antes da viagem dos dois militares, Joe apresenta Laurie para Don no Baile
dos Oficiais, o evento mais esperado na corporação. Imediatamente, Laurie sente uma estranha emoção no
limite da atração e da repulsa. Começa aí outra vez Um triângulo amoroso que trará à tona situações de um
passado distante e que culminará com o desencarne prematuro de Laurie. Na espiritualidade, a história
ganha um novo rumo com a ajuda do orientador Fernando, até o final surpreendente que esclarecerá todo o
enredo deste envolvente romance. Para o espírito Laurie, não restará alternativa senão aceitar sua nova
condição com renúncia e resignação até que todos aprendam o verdadeiro sentido da palavra perdão.
Romances do espírito Helena!
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Amor e Ambição
Loretta era uma jovem nascida e criada na corte de um grande reino europeu entre os séculos XVII e XVIII.
Determinada e romântica, desde a adolescência guardava um forte sentimento em seu coração: a paixão
por seu primo Raul. Um detalhe apenas os separava: Raul era padre, convicto em sua vocação.
Um Novo Despertar
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família. Quando começa a trabalhar em uma grande empresa estatal, um pavoroso incêndio consome o
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espiritualidade.
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Universo Profundo
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Universo Profundo - Seres inteligentes e luzes no céu - uma visão espírita da Ufologia é uma obra que
desmistifica e facilita o entendimento desse polémico assunto. Com argumentos lógicos, racionais e
científicos, Pedro de Campos expõe com clareza os fundamentos da Doutrina Espírita quanto à vida
inteligente nas profundezas do Cosmos.
Colónia Capella -A Outra Face de Adão
(espírito Yehoshua ben Nun)
Uma extraordinária viagem no tempo até os primórdios da Humanidade que une o evolucionismo proposto
por Charles Darwin e a Teoria Evolucionista Espiritual, a partir das constatações feitas por Allan Kardec de
que "existem seres inteligentes extrafísicos com os quais é possível comunicar-se".